Introdução
Com este estudo pretende-se identificar as imagens que os textos dos manuais escolares2 de Português utilizados em Portugal no 1º Ciclo do Ensino Básico3 constroem das crianças e da infância, bem como os recursos linguísticos associados a tal construção. Acredita-se que essas imagens influenciam as perceções das crianças-leitoras e, consequentemente, as suas ações e as suas posturas perante os outros e perante si mesmas.
Utilizar-se-á uma abordagem teórica e metodológica pluridisciplinar e interdisciplinar, tendo como eixo orientador da investigação a centralidade da criança. O corpus de análise é constituído por textos dos manuais utilizados pela maioria dos alunos das escolas portuguesas do 4º ano de escolaridade. A análise do discurso, espaço de confluência de vários saberes, constitui a base científica adotada nesta investigação, uma vez que engloba os fundamentos teóricos e metodológicos mais adequados a esta pesquisa. Contudo, não se pretende apenas investigar os aspetos linguísticos, procurando-se também contributos de pesquisas realizadas em torno dos Estudos da Criança (ligados à educação). Assume-se que os manuais escolares são objetos de estudo relevantes, seja considerando o seu uso como instrumentos de apoio ao ensino-aprendizagem, seja considerando o seu papel social de veiculação de modos de configurar o mundo (CHOPPIN, 1992; CASTRO et al., 1999; DIONÍSIO, 2000; APPLE, 2002; CASTRO, 2008; RAMOS, 2009; CLAUDINO, 2011).
Consideram-se fundamentais alguns contributos que nos chegam da sociologia da infância, nomeadamente a afirmação segundo a qual, desde o seu nascimento, a criança se torna herdeira da cultura que alicerça a sociedade a que pertence e esta condicionará a sua forma de ser e de estar no mundo; mas que, por outro lado, não podemos considerar a criança apenas como assimiladora de cultura, pois ela interpreta e participa em sua construção (SARMENTO; PINTO, 1997; SARMENTO, 2000, 2004, 2005, 2007, 2011; RASMUSSEN, 2004; FERNANDES; VIDIGAL, 2005; RUBIO et al., 2014). A sociologia da infância tem vindo a definir os conceitos de criança e infância tentando proporcionar um lugar pleno de direitos à criança, considerando-a como cidadão ativo e participativo na vida e nas decisões da sociedade. Para esses sociólogos, a criança não pode ser vista como um ser passivo, mas como indivíduo com capacidade para colaborar na vida da sociedade, assumindo determinados papéis e manifestando a sua opinião sobre os assuntos que dizem respeito à vida nessa mesma sociedade.
Quando pensamos em criança e infância, pensamos também em escola – instituição social concebida fundamentalmente para educar os indivíduos, principalmente as crianças. Desde a sua criação no século XVIII, a escola pública institucionalizou-se e generalizou-se, tendo o Estado assumido o papel de proteger e educar as crianças (que deixaram, assim, de se circunscrever ao espaço doméstico e de depender em exclusivo da proteção parental), atribuindo à escola a função de transmitir o saber socialmente válido e indispensável que serve de base a uma dada cultura.4 É por isso que a escola assume a sua função socializadora, dedicando-se à formação moral e cívica dos alunos, para além da instrução (ARIÈS, 1981; GIDDENS, 1997; PAIS, 1998; CORREIA, 2005). Mais ainda: para Sarmento (2011), a escola é um dos eixos estruturantes da definição da infância contemporânea, definidora das representações, das prescrições, das obrigações e das interdições configurantes das práticas e do estatuto próprios das crianças, integrantes do ofício da criança. Para o autor, a escola oferece à criança-aluno um estatuto e uma função: a de se deixar formatar, a de
[...] adquirir a cultura escolar – deixando de lado [...] a sua cultura de origem, quando incompatível com a cultura escolar, ou a cultura gerada e reproduzida nas relações com os seus pares: as culturas da infância – e ajustar-se à disciplina do corpo e da mente induzida pelas regras e pela hierarquia dos estabelecimentos de ensino que frequenta. (SARMENTO, 2011, p. 589).
Os textos constitutivos do corpus a analisar serão escrutinados na sua materialidade linguística, adotando, como foi referido, os fundamentos teóricos e metodológicos da análise do discurso (AD). Esse ramo da linguística recebe contributos de várias áreas do saber, que se ocupam da análise e da descrição dos discursos produzidos por indivíduos devidamente contextualizados. Salientam-se entre os mais relevantes contributos os de áreas do saber como a pragmática linguística (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969; MAINGUENEAU, 1990, 1996; FONSECA, 1994): entendendo-se o mundo como construído no e pelo discurso, os textos são considerados instrumentos de construção desse mundo, pois só é possível conceber um ato discursivo se este visar a uma finalidade ilocucional (RAMOS, 2014). A AD assume o homem como ser social (FOUCAULT, 1969; VAN DIJK, 1985; BRONCKART, 1985, 2009; FONSECA, 1992; KERBRAT-ORECCHIONI, 1996) e analisa os textos/discursos baseando-se no uso efetivo da língua em contexto.
Acresce que os trabalhos de Adam (1990, 1992), realizados no âmbito da linguística textual, tornam-se basilares para a análise dos textos/discursos, tendo em conta que aqui estes são entendidos como unidades configuracionais heterogéneas e complexas, mas coerentes. Os textos/discursos configuram-se em planos de organização que se encontram em constante interação. São tessituras extremamente complexas, organizadas em torno de sequências prototípicas dominantes e estas em estruturas composicionais, convergindo para um significado global. No entanto, os textos não nascem do nada, do silêncio absoluto (BAKHTIN, 1992). As produções discursivas ancoram-se em discursos anteriores, preveem discursos subsequentes e inscrevem-se em determinadas conjunturas sociais, tornando incontornável a noção de polifonia ou heterogeneidade enunciativa – as marcas de outras vozes, inscritas no discurso através de estratégias linguísticas mais ou menos explícitas. Os textos decorrem de processos de modalização que se concretizam em reportórios interpretativos (POTTER; WETHERELL, 1987), selecionados pelo enunciador para facilitar a evocação de frames (FILLMORE, 1975) ou quadros conceituais convocados durante a leitura. Esse processo tem por base a enciclopédia de saberes do alocutário, construída ao longo de consecutivas leituras, bem como através das suas vivências individuais e sociais.
Metodologia e corpus de análise
Os textos em análise foram recortados dos seguintes manuais de Português do 4º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico de Portugal:
Pasta Mágica – Língua Portuguesa 4.º ano (PEREIRA, 2006);
Amiguinhos – Língua Portuguesa 4.º ano (ROCHA; LAGO; LINHARES, 2006);
Giroflé – Língua Portuguesa 4.º ano (MARQUES; SANTOS; GONÇALVES, 2006).
A escolha desses manuais teve por base informações facultadas pela Direção-Geral da Educação, segundo a qual foram os mais utilizados no 4º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico, cobrindo um total de 54,35% dos alunos matriculados no 4º ano de escolaridade no ano letivo de 2010/2011, constituindo uma amostra representativa da totalidade dos manuais utilizados no país e permanecendo em utilização até ao final do ano letivo de 2012/2013. Foi escolhido o 4º ano por constituir a última etapa do 1º Ciclo do Ensino Básico e fundamental para todo o percurso educativo do indivíduo, com capacidade de repercutir as boas e más experiências por toda a vida. Por uma questão de distanciação e objetividade, foram analisados manuais que já não se encontram em uso nas escolas, mas considera-se que os resultados desta análise serão válidos e relevantes para a reflexão sobre as escolhas de manuais para o futuro. Uma breve reflexão, nas conclusões, integra considerações genéricas sobre livros atualmente em uso.
Por uma questão de economia e funcionalidade, neste texto apresentam-se sobretudo os resultados da análise, não cabendo aqui o desenvolvimento de todo o processo analítico micro e macrotextual. Este poderá ser encontrado, no essencial, em Castro (2014).
Para proceder à seleção dos textos que serviriam de suporte à presente investigação, utilizou-se como critério a construção linguística de imagens de crianças ou da infância, tendo sido selecionados os que constroem, apresentam ou convocam, de forma explícita ou implícita, imagens de crianças ou da infância concretizadas na presença de personagens infantis, de crianças como narradores ou sujeitos de enunciação, assim como a apresentação ou construção de mundos prototípicos da criança: brincadeiras, atitudes, relações, linguagem, cenários, etc. Desta forma, obteve-se um corpus global de 110 textos, que foram classificados conforme a tipologia textual definida pelo Dicionário terminológico, segundo o qual “os textos, para além das propriedades fundamentais da textualidade, apresentam estruturas verbais peculiares, semânticas e formais, e marcas pragmáticas que possibilitam a sua classificação em tipos ou géneros”.5 Esse documento oficial, da responsabilidade do Ministério da Educação e Ciência português, é orientador das práticas letivas no Ensino Básico e Secundário.
Segundo Maingueneau (2005, p. 141), os textos são produzidos tendo em vista determinado público, sendo que
[...] a própria rede institucional desenha uma rede de difusão, as características de um público, indissociáveis do estatuto semântico que o discurso se atribui [...]. O “modo de difusão” vai de mãos dadas com o modo de consumo do discurso, isto é, com o que se “faz” dos textos, como eles são lidos, manipulados.
Neste sentido, os textos presentes nos manuais escolares são produto de uma dupla intencionalidade: a do autor original e a do autor do manual. Originalmente, o texto foi produzido com uma intencionalidade comunicativa e visando a determinado público, mas, numa segunda instância, o texto (ou parte desse texto) foi selecionado com uma intencionalidade comunicativa que pode ser (e é, muitas vezes) diferente da original. Também o público-alvo pode ser diferente, como é o caso de excertos de obras concebidas para leitores adultos e que são utilizados nos manuais escolares para serem estudados por crianças. Concorda-se aqui, pois, com Maingueneau (2005, p. 188) quando este afirma que, “mesmo quando se republicam textos, mesmo quando se produzem novos textos que parecem resultar da mesma competência discursiva, não se poderia falar dos mesmos discursos”. Entendemos, portanto, que os textos presentes nos manuais escolares, ainda que possam ser apenas excertos, são sujeitos a processos de retextualização e recontextualização, transformando-se em novos textos (CASTRO, 2007), enformados por essa dupla intenção comunicativa.
O manual escolar ocupa um lugar central no processo de ensino e aprendizagem (CHOPPIN, 1992) e é reprodutor do conhecimento entendido como socialmente válido, ao mesmo tempo em que funciona como aparelho de controlo social (APPLE, 2002). É esse o estatuto que o manual escolar assume para alunos, pais e (muitos) professores, o de detentor do saber inquestionável e socialmente válido. É por esse motivo que o manual de Português se torna tão relevante, uma vez que é através dele que o aluno vai contactar mais de perto com o modo escrito da sua língua, aprendendo a manipular os mecanismos linguísticos que lhe permitem utilizá-la não só para transmitir informações, mas também para eficazmente exercer influência e poder sobre os outros (CASTRO; RAMOS, 2014).
Como lembra Maingueneau (1997, p. 63), “[...] é preciso [...] não perder de vista que o termo ‘escola’ não é unívoco. Ele remete a um só tempo a uma instituição, a práticas, a lugares… à escola que se legitima ao enunciar – é tudo isto ao mesmo tempo”. Logo, os manuais de Português são enformados por um enquadramento social que os reveste de enorme importância e os torna excelentes veículos de transmissão de valores, de ideologias e de modos de ser e estar na vida e na sociedade. Ora, essa transmissão de conhecimento e de valores é particularmente expressa, de forma mais ou menos explícita, nos textos que servem e tornam possíveis as finalidades educativa e comunicativa com que são escolhidos, criados ou recriados. Os textos dos manuais de Português são, portanto, aqui entendidos como importantes veículos na construção e na transmissão de cenários prototípicos de normalidade, capazes de criar imagens da infância na sociedade, influenciando as formas de pensar e agir dos potenciais utilizadores (CASTRO, 2014).
A voz das crianças nos textos
Na perspetiva da sociologia da infância, não basta que os adultos zelem pelos direitos da criança fazendo proclamações de princípios gerais e vagas, ou as defendam de eventuais riscos. É também importante que eles reconheçam efetivamente o direito de as crianças terem voz ativa na sociedade para nela intervirem, assumindo uma cidadania participativa e exercendo influência sobre as decisões que os adultos tomam sobre os mais variados assuntos.
Assumindo (como foi referido) que os manuais escolares incorporam a virtualidade de construírem e difundirem imagens poderosas dos estados de coisas normais na sociedade, procurou-se identificar as marcas linguísticas que permitem reconhecer a voz das crianças nos textos desses livros. Subjaz a essa tarefa a aceitação do construtivismo linguístico, pois é através da língua que o mundo se constrói linguisticamente e que as ideias e os valores se edificam. É também através da língua que tais ideias e valores se transmitem e influenciam a forma de pensar e agir dos outros, pois é através da linguagem que a consciência do homem é modelada.
A voz das crianças pode ser inscrita nos textos de diversas formas. Há casos em que o sujeito da enunciação é uma criança, outros em que aparecem crianças representadas como personagens principais e/ou personagens secundárias, e ainda outros textos que elegem como alocutário, mais ou menos explícito, a criança-leitora.
A criança como sujeito da enunciação
Utilizar a voz da criança como sujeito da enunciação é uma estratégia linguística que garante a aproximação do texto ao leitor eleito, pois trata-se de colocar o discurso a realizar-se entre pares, potenciando a adesão do leitor às ideias transmitidas. Verifica-se que o discurso desses textos reflete grande parte do discurso dos adultos para as crianças, estratégia de camuflagem do que é transmitido e da intenção com que é dito. Para conseguir esse efeito nos leitores, o enunciador serve-se de várias estratégias linguísticas. Há textos enformados por características da máxima educativa, ou pedagógica, que se apresentam como prontos a serem memorizados e interiorizados, com o intuito de condicionarem as ações dos leitores eleitos. O uso da primeira pessoa (tenho de fazer... / devo fazer...) oculta o caráter diretivo dos textos e configura o seu conteúdo como uma adoção consciente de uma forma de ser e de agir por parte do enunciador, influenciando o comportamento da criança-leitora. Uma outra estratégia utilizada pelo enunciador é recorrer à máxima que convoca o valor de verdade incontestável do saber popular, usando uma voz comum aceite por toda a sociedade, realizando uma forma de modalidade epistémica. A par dessa modalização dos discursos, encontramos formas de modalidade deôntica, frequentemente inscritas no semantismo do verbo dever, que enforma os textos de valores e normas a seguir pelos leitores eleitos. Mesmo quando é a voz de uma criança que enuncia, é a voz do adulto que se ouve, que se camufla na voz da criança. Esse eco que se ouve proveniente de outros enunciados atesta a característica polifónica dos discursos (BAKHTIN, 1992) e contribuiu para esclarecer os posicionamentos do enunciador perante o conteúdo temático (BRONCKART, 2009).
Em alguns textos, a voz infantil mostra uma certa discordância para com algumas das ideias dos adultos. Só que essa discordância não passa de uma mera estratégia para ocultar a verdadeira opinião do enunciador, pois, no final do texto, prevalecem sempre as ideias do adulto e, algumas vezes, é a própria criança quem lhe dá razão. No final dos textos, fica sempre confirmado que o adulto tem razão e a criança é sempre caracterizada como ser inexperiente, que precisa de ajuda e de apoio constantes. No entanto, ao demonstrar coragem para contestar as ideias do adulto, o enunciador conquista a simpatia da criança-leitora, o que facilita a tarefa de orientar o discurso no sentido de colocar a criança em consonância de ideias com o adulto.
Encontramos, ainda, uma outra estratégia utilizada pelo enunciador para legitimar o poder dos adultos em relação às crianças. Trata-se de uma estratégia bastante dissimulada, na medida em que leva o leitor a pensar que se legitimam e desculpabilizam os comportamentos desviantes da criança-personagem, atribuindo culpas, supostamente, aos adultos por estes serem tão rigorosos com o estabelecimento e o cumprimento de regras. Só que os textos acabam por mostrar crianças que se veem obrigadas a mentir e a fingir para evitar castigos e mostrar obediência ao adulto, normalizando os manuais a ideia de que o melhor caminho é sempre a obediência.
Do ponto de vista pragmático, esses textos visam a um objetivo ilocutório de convencer as crianças de que o adulto tem sempre razão. Estabelecem-se as posições de poder numa forma de endoutrinação ou de aculturação, bem como de manutenção do poder instituído. Tais textos são, portanto, promotores de aceitação, acomodação e sujeição ao poder.
É frequente encontrarmos discursos introduzidos pela fórmula quando eu for grande, bem conhecida das crianças-leitoras, apresentando uma dimensão prospetiva e colocando a criança perante uma visão do futuro que a espera. Essa dimensão sai reforçada por ser a voz de uma criança que enuncia não só os seus desejos e sonhos, mas também os de todas as outras crianças. A criança é frequentemente configurada como ser em devir – quando for grande, irá fazer muitas coisas –, subentendendo-se que, por enquanto, nada ou muito pouco faz, configurando-se a infância como um tempo de espera e a criança como ser incompleto, um ser a quem falta alguma coisa para se realizar plenamente.
As crianças dos textos demonstram emoções/sentimentos através do que dizem ou das suas atitudes. Encontramos duas crianças indignadas com a falta de confiança demonstrada pelo adulto, mas pouco ou nada fazem para reverter a situação, e uma criança que se espanta com a liberdade que reconhece àquelas que brincam na rua e sente desejo de conquistar essa liberdade para si, sentindo necessidade de mentir aos adultos para brincar na rua também. Há, ainda, crianças que, para além de estarem felizes, parecem refletir sobre esse estado, num claro exercício de autoanálise muito mais próprio de comportamentos adultos do que de crianças, comprovando-se o uso da voz infantil somente como veículo para dar voz às ideias dos adultos.
Há crianças que sonham e demonstram confiança ao acreditarem na realização desses sonhos. Trata-se principalmente de sonhos que configuram a vida adulta como um estado em que se pode fazer tudo, em que se tem poder. Configura-se a definição do indivíduo pela profissão que exerce e não pelo que é como pessoa, o que reflete uma forma de construir a sociedade e de nela cada um se inserir.
Em nenhum desses textos encontramos uma criança manifestamente infeliz. No entanto, a infância configura-se nos textos como uma fase da vida dos indivíduos desprovida de poder, em que pouco se pode fazer, a não ser esperar que se cresça para poder ser tudo. Desta forma, cria-se da infância uma imagem de período de estagnação e de espera por algo que inevitavelmente ocorrerá no futuro, não se apresentando à criança outra solução que não seja esperar e confiar no que lhe dizem sobre ser adulto e os seus benefícios.
Nos textos escritos na primeira pessoa, a imagem que se apresenta das crianças é a de indivíduos socialmente imaturos (SARMENTO, 2007) e da infância como tempo de espera pela vida adulta. Ao atribuir-se todo o poder aos adultos, configuram-se as crianças como indivíduos sem voz e sem autoridade para intervir na sociedade, enformando-se a infância de uma certa negatividade (SARMENTO, 2005). Esta é uma forma de garantir os poderes instituídos na e pela sociedade, provavelmente mais própria de Estados totalitários do que de democracias participativas e progressistas.
A criança como personagem principal
Quando temos uma criança que assume o papel de protagonista, ela também assume um papel preponderante na transmissão de ideias, valores e (pre)conceitos, mais facilmente influenciando a criança-leitora. Não nos esqueçamos de que estamos perante textos predominantemente oriundos da literatura infantil, que possui um forte poder de aculturar e normalizar, potenciado pela sua inclusão nos manuais escolares.
Também nesses textos encontramos crianças que apresentam discursos muito semelhantes aos dos adultos. Por vezes, a criança recupera (evoca) um discurso anterior de outro enunciador, o professor. Nesses casos, o poder persuasivo do texto é triplicado: diz o professor, diz a criança e diz o manual escolar. Nunca são textos cujo objetivo ilocutório seja o questionamento ou a crítica, mas a conformação e a aceitação por parte das crianças do que pensam, dizem e fazem os adultos, confirmando-se e normalizando-se as relações hierárquicas e de poder instituídas pela sociedade.
Nesses textos, o tema mais abordado é a brincadeira, mas esta assume o mesmo estatuto de outros temas e parece que as crianças muito pouco têm a dizer sobre esse assunto específico. O quadro de brincadeira é apenas um cenário para falar de outras coisas – a poluição, a solidariedade, etc. –, apresentando-se os textos enformados do macro-objetivo ilocutório de moralizar a criança-leitora. Nesse conjunto de textos encontra-se o único de todo o corpus onde se retratam relações não harmoniosas entre crianças. No entanto, a referência a essas relações apenas serve de ponto de partida para se moralizar o leitor, procurando incutir-lhe valores morais de solidariedade.
Alguns dos comportamentos dessas crianças são semelhantes aos dos adultos e, por vezes, chegam até a demonstrar capacidade de afastamento e autorreflexão em relação à sua vida, o que as configura mais perto dos adultos do que das crianças. Apesar disso, quando não cumprem o que os adultos estabeleceram, recebem castigo. A diferença entre adulto e criança volta a afirmar-se nas relações de poder.
Estamos perante crianças que demonstram sentido de responsabilidade, algumas vezes assumido pela condição social que ocupam nos textos. Portanto, a responsabilidade aparece intimamente ligada à condição social, mas também ao poder. Mas a responsabilidade também é mostrada a outros níveis, por exemplo, nas atitudes que crianças tomam para com os outros: salvar alguém, resolver problemas, ensinar algo, realizar os trabalhos da escola, ajudar os adultos e não os atrapalhar. A responsabilidade atribuída a essas crianças está muito relacionada com os adultos e com o que eles esperam delas, por isso encontramos crianças que demonstram responsabilidade ao tentarem não atrapalhar as tarefas dos adultos. O frame criança incompetente é desenhado não só pelas atitudes de adultos e crianças, mas também pela modalização operada no material verbal que faz ressaltar a competência dos adultos perante a incompetência das crianças.
Essas crianças, assim como as que assumem o papel de narrador, nunca se revoltam, mesmo não concordando com os adultos, e acabam sempre por se revelar obedientes. É verdade que não se pode esperar que as crianças dos textos liderem revoluções, mas estranha-se o facto de nunca se questionarem sobre a sua condição e de, mesmo quando pontualmente discordam do adulto, acabarem sempre por lhe dar razão.
Encontramos também representados sentimentos de bondade, revelados nas atitudes que as crianças têm para com os outros. Para fazer notar essa bondade, o enunciador encontra recursos linguísticos, como a utilização de nome próprio para referir a criança bondosa e outro menos definido para se referir às outras personagens. Mas também pode apagar por completo o nome da criança e tornar apenas evidentes as suas qualidades: não importa quem é, mas tem uma bondade extrema. Estas e outras são estratégias que permitem elevar a personagem principal e evidenciar as suas qualidades que poderão ser imitadas pelas crianças-leitoras.
A criança como personagem secundária
As personagens secundárias desempenham um papel menos relevante nos textos e, por essa razão, a sua voz é ainda menos ouvida. À semelhança do que acontece com as personagens principais, também as crianças que vestem a pele de personagens secundárias reproduzem as ideias próprias de adultos que desempenham funções pedagógicas e/ou funções educativas. Através da voz das personagens secundárias, idealiza-se a vida no campo em detrimento da vida na cidade, sem nunca se falar também nas desvantagens que essa opção de vida comporta.
Apenas existe um texto em que os discursos das crianças mostram discordância para com o discurso do adulto (professor). No entanto, como evidencia a materialidade linguística, os alunos, mesmo não concordando com o professor, sentem-se compelidos a obedecer-lhe. Mas o enunciador modaliza o discurso por forma a torná-lo mais credível aos olhos do leitor, tratando também de salvar a face das crianças. Trata-se de uma forma de conservar o poder instituído e manter a ordem social.
Também essas crianças se abstêm de se manifestarem sobre as brincadeiras, apesar de participarem delas. Tudo nesses textos aparece predefinido, como se as brincadeiras não fossem planeadas pelas próprias crianças, mas por outro qualquer indivíduo externo à brincadeira. Um outro dado que importa sublinhar é que as atividades relacionadas com as brincadeiras descritas nos textos parecem profundamente anacrónicas, uma vez que nunca se faz referência a brinquedos ligados às novas tecnologias, por exemplo. São, muito provavelmente, as brincadeiras que os autores dos textos faziam quando eram crianças, filtradas pelas suas memórias da infância.
Essas crianças aparecem também conformadas com a sua situação e demonstram uma total ausência de voz sobre os assuntos que lhe dizem respeito. Continuamos a ter crianças solidárias com os outros e os discursos são orientados no sentido de evidenciar os mais desfavorecidos, contribuindo para que o leitor desenvolva sentimentos de solidariedade. Para conseguir esse efeito, o enunciador modaliza o discurso, nomeadamente através do recurso à adjetivação, que constrói a imagem dos desfavorecidos e convoca a voz do senso comum para corroborar aquilo que diz.
Nesse conjunto de textos encontramos dois em que as crianças demonstram algum desprezo em relação aos outros. Tais textos promovem a aproximação entre as crianças dos textos e as crianças reais e deixam implícito que aquele não é um bom sentimento, procurando sensibilizar a criança-leitora para que adote comportamentos inversos aos apresentados nesses casos. Estamos perante uma inversão das situações: não se apresenta o que se deve, mas antes o que não se deve fazer.
A criança eleita como alocutário explícito
Alguns textos elegem, de forma mais ou menos explícita, a criança-leitora como alocutário, dirigindo-se-lhe o sujeito da enunciação diretamente, fazendo parecer que o texto foi escrito propositadamente para ela. Nesse caso, o enunciador (quase) estabelece um diálogo com a criança-leitora e, embora ela não lhe possa responder, essa resposta ficará inscrita nos comportamentos que irá adotar, influenciada pelo que lhe dizem os textos. Para levar a cabo tal tarefa, nada melhor do que optar por textos instrucionais, aparentemente os ideais para atingir o objetivo ilocutório de fazer-fazer.
Esses textos realizam macroatos ilocutórios diretivos, com a clara intenção de levar a criança a fazer alguma coisa ou a modelar os seus comportamentos. No limite, visam à manutenção de uma sociedade organizada e pacífica e, para isso, difundem normas de conduta e valores que essa sociedade considera essenciais, tal como acontece em qualquer época. Os títulos são os primeiros recursos que o enunciador convoca, pois logo anunciam normas de boa educação nas mais variadas situações sociais, bem como normas de segurança que visam ao assumir de comportamentos responsáveis (“Ser bem-educado... na Escola!” ou “O silêncio é de ouro!... A Natureza também!”, por exemplo).
Tais textos cumprem uma múltipla função pragmática: fazer-saber, fazer-fazer e saber-ser. É nas últimas dimensões que está a maior e mais influente força ilocutória. O enunciador utiliza várias estratégias que permanecem inscritas na materialidade linguística dos textos: utilização de verbos no imperativo e expressões com valor modal de dever, a forma como familiarmente trata por tu o leitor, assim como expressões que ostentam o valor modal de demonstrar as vantagens que o leitor tem ao respeitar as regras sociais, etc.
Conclusões
Suportados nos pressupostos teóricos e metodológicos identificados, selecionaram-se os textos dos manuais escolares de Português para elencar as imagens das crianças e da infância que neles se constroem, convictos de que estas, potenciadas pelo estatuto que os manuais assumem na sociedade, influenciam a forma de pensar, de ser e de agir das crianças-leitoras, bem como normalizam essas mesmas imagens, que não são mais do que constructos sociais e ideológicos. Os textos dos manuais são enformados por dois enfoques distintos: o do autor do texto-origem e o do autor do manual. Embora os pais sejam os primeiros educadores, a escola sempre assumiu o papel de educadora de massas, educadora de uma consciência coletiva que se deseja harmoniosa e consistente, para garantir unidade e estabilidade social. No entanto, o autor do texto/manual não pode deixar de inscrever nele também as suas crenças e os seus valores pessoais, e o texto/manual assume-se como modelador de mentes e de condutas.
A voz das crianças faz-se ouvir nos textos através da voz das personagens infantis que os povoam ou através da voz do narrador, se este for concretizado numa voz infantil. Enunciar através da voz de uma criança aproxima locutor de alocutário e o mesmo acontece quando o destinatário dos textos é explicitamente a criança, utilizando-se o tratamento familiar tu.
É indiscutível que as personagens principais assumem um maior protagonismo nos textos, mas, apesar disso, a (efetiva) voz das crianças é muito pouco inscrita na materialidade linguística dos textos. As crianças dos textos reproduzem ideias tipicamente de adultos, por vezes elaborando raciocínios tão sofisticados que se tornam improváveis nas suas vozes. Na verdade, também encontramos discursos infantis que, aparentemente, e num determinado ponto, discordam das ideias dos adultos, mas esta é uma discordância fictícia e passageira, tratando-se de afirmar a concordância/submissão logo a seguir. Algumas vezes, o comportamento conciliador demonstrado pelas crianças é motivado pelo receio de uma possível punição, decidida e aplicada pelos adultos.
As atividades dessas crianças relacionam-se bastante com a brincadeira e o jogo, mas são referidas de forma breve e pouco evidenciada e quase nunca se torna presente a voz das crianças em discussões sobre o assunto. Raramente as crianças falam sobre a escolha, os parceiros ou o local da brincadeira. Tudo parece predefinido antes dos textos e sem participação dos protagonistas.
As crianças dos textos apresentam-se conformadas com a sua situação pessoal e social, mesmo se adversa, e não tomam atitudes para modificar essa situação. São crianças exemplares que nunca protestam, apesar de, em alguns casos, passarem necessidades básicas. São crianças bem comportadas, sempre dispostas a ajudar os outros (os adultos, principalmente), embora poucas vezes essa ajuda seja realizada com sucesso. Aos olhos dos adultos, as crianças atrapalham mais do que ajudam. São crianças sem poder, pois este está completamente concentrado nos adultos, e que assumem um papel de submissão aos poderes instituídos. Tal observação é compatível com o que afirmam Müller e Nunes (2014, p. 653) acerca dos próprios estudos sociológicos tradicionais que assumem a infância como objeto: estes tratam essa categoria “como fase transitória em direção à maturidade, sem autonomia frente ao mundo adulto e submetida a processos de socialização que as preparariam para a vida adulta”. Os textos dos manuais refletem essa visão dos estados de coisas; neles se evoca o frame de infância como tempo de espera entre o não-saber-fazer-nada e o saber-fazer-tudo, entre o não-saber-nada e o saber-tudo, entre o não-ter-poder-algum e o ter-todo-o-poder sobre si e sobre os outros.
Apesar de serem crianças sem opinião (ou por isso mesmo), vivem felizes até nos cenários mais adversos e nunca se questionam ou questionam o poder instituído. Tudo o que encontramos nos textos em relação à voz das crianças contraria as ideias defendidas pelos sociólogos da infância que reclamam o direito das crianças a uma participação ativa na sociedade, não só como consumidoras de cultura, mas também como coprodutoras. É que a cultura não é um mero acumular de conhecimentos, é algo dinâmico (SARMENTO, 2000), no sentido em que todo o indivíduo interpreta e age sobre a cultura. Apesar disso, é o que fica inscrito nos textos e que reflete o que a sociedade e o poder instituído esperam das crianças que vai influenciar e moldar a criança-leitora.
Os manuais em estudo estiveram em vigor até ao final do ano letivo 2012/2013, findo o qual novos manuais entraram nas escolas portuguesas, verificando-se uma evolução na seleção e na apresentação dos textos nos manuais de Português: os excertos textuais são mais longos, respeitam mais os originais, contêm referências bibliográficas que permitem (tentar) encontrar os textos originais e nota-se um esforço por incluir diferentes tipologias textuais. No entanto, mesmo uma análise relativamente elementar e geral mostra que os textos parecem continuar norteados pela dicotomia certo/errado, orientando a criança para uma forma de ser e estar estereotipada, não a incentivando a pensar por si – trata-se mais de textos de conformação do que de questionamento. São textos que não colaboram na construção de cidadãos conscientes, críticos e interventivos, apenas funcionam como formatadores de determinado modo de estar na vida, parecendo visar unicamente à reprodução e à estabilidade sociais.