Introdução
Com a publicação do Plano Nacional de Educação para o decênio 2014-2024, o termo educação em tempo integral tem se difundido ainda mais nos debates educacionais. Apesar de ser muito confundido com a concepção de educação integral3 proposta por John Dewey e pelo movimento da Escola Nova, a proposta de educação em tempo integral propõe fundamentalmente a ampliação do tempo de permanência dos educandos no interior das escolas e já vinha sendo aplicada em todo o país desde a década de 30 (FERREIRA; REES, 2015).
Especificamente no Estado de São Paulo, dentro da modalidade de ensino em tempo integral, foi criado o Programa de Ensino Integral (PEI). Proposto em 2012 pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP), o PEI foi apresentado como uma das ações do Programa Educação – Compromisso de São Paulo (PECSP) (SÃO PAULO, 2011).
O PECSP, segundo o site oficial da SEE-SP, foi proposto em 2011 com o intuito de estabelecer um compromisso coletivo entre o governo e a sociedade civil. Ele está estruturado em cinco pilares (valorização do capital humano, gestão pedagógica, educação integral, gestão organizacional e financeira e mobilização da sociedade) e surgiu como uma das ações previstas no Plano Plurianual (PPA), relativo ao período de 2012 a 2015 (SÃO PAULO, 2011; s. d.).
Partindo do diagnóstico de que a rede pública de ensino paulista já havia universalizado o acesso ao ensino fundamental, o PPA (2012-2015) propôs ações com o objetivo de promover tanto melhorias na qualidade do ensino, quanto uma maior igualdade de oportunidades. Dentre as medidas pretendidas estavam: a valorização profissional; a expansão da oferta do ensino médio e técnico; a consolidação do currículo; e a reorganização administrativa da SEE-SP (SÃO PAULO, 2011). No entanto, essas novas proposições não foram acompanhadas por alterações significativas na verba destinada à SEE-SP, pois, no período de 2011 a 2015, não houve aumento nos investimentos para o setor educacional4 na esfera estadual.
Nessa conjuntura, o PEI surgiu como uma forma de “[...] lançar as bases de um novo modelo de escola e de um regime mais atrativo na carreira do magistério.” (SÃO PAULO, 2014, p. 5). A adesão ao programa tem aumentado em todo o Estado de São Paulo (Figura 01) e este modelo tem gradativamente substituído as Escolas de Tempo Integral (ETI).
As escolas do PEI têm alterado o cenário educacional paulista, não somente por apresentarem uma estrutura curricular diferenciada, mas também pelas modificações na regulamentação e no exercício da profissão docente. Este texto apresenta uma problematização acerca da situação de trabalho docente em uma das escolas que aderiram ao PEI, evidenciando os avanços, desafios e retrocessos dessa nova forma de organização escolar presente na rede paulista.
Para fundamentar o artigo, foi desenvolvido um estudo de caso5 em uma escola do PEI, localizada no município de Votorantim-SP. Esse município, situado a 100 km da capital do Estado, foi selecionado por apresentar o mesmo valor de Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) que a média dos municípios do Estado de São Paulo em 2015 (4.8) (BRASIL, 2016).
Os dados que embasam a discussão foram obtidos de três formas: por meio da análise documental das normas que regulamentam o programa (disponibilizadas no site oficial da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo - ALESP) e de seu confronto com dados da literatura; através da realização de observações no interior de uma escola do PEI; e por meio de entrevistas semiestruturadas com professores e a equipe gestora da unidade escolar participante da pesquisa (realizadas durante o horário livre, escolhido pelo participante).
Tanto a fase de observações quanto a de entrevistas foram realizadas concomitantemente (primeiro bimestre de 2016) e organizadas em três eixos: perfil docente, concepções e paradigmas e políticas educacionais6. Durante todo o processo buscou-se desvelar as opiniões e perspectivas dos docentes sobre as políticas educacionais paulistas e em relação ao trabalho docente na unidade.
A origem e as normas do Programa de Ensino Integral
Segundo as próprias diretrizes do programa, publicadas em 2014, o PEI surgiu em um contexto de políticas educacionais que têm estimulado a gestão por resultados, tais como: o prêmio gestão; o progestão; e os planos de gestão e ação quadrienais (SÃO PAULO, 2014). Sua formulação sofreu influências das primeiras experiências de educação em tempo integral implementadas no Brasil (como a de Pernambuco, construída em 2004 por meio de uma parceria com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação – ICE, e a do Rio de Janeiro, criadas em 1930 e 1985) e em São Paulo (do Programa Escola de Tempo Integral – ETI –iniciado em 2006).
No cenário brasileiro, do século XXI, pode ser observada uma tendência crescente na ampliação da jornada escolar para o ensino fundamental. Esta modalidade de ensino – Escola de Tempo Integral (ETI) - surgiu no país a partir das discussões e debates da educação integral cujas raízes se encontram no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, proposto em 1932 (CARVALHO, 2015).
No entanto, apesar da ETI ter suas origens na educação integral, é imprescindível que se destaquem as singularidades e diferenças entre estes dois conceitos. O termo educação integral remete à corrente filosófica da Escola Nova, idealizada por John Dewey, que propõe a educação como reconstrução das experiências. Nessa concepção, dá-se importância:
[...] à articulação da educação intelectual com a atividade criadora, em suas mais variadas expressões, à vida social-comunitária da escola, à autonomia dos alunos e professores; à formação global da criança. (CAVALIERE, 2002, p. 251).
Já a terminologia escolas de tempo integral propõe uma ampliação da jornada escolar, pressupondo que com essa ampliação ocorra um aumento na qualidade da educação ofertada. Isso tem levado muitos autores, como Ana Maria Cavaliere (2014), a questionar se a proposta das ETIs tem realmente promovido o direito à educação7 e qual é a concepção de qualidade educacional estabelecida nesse debate.
As primeiras experiências de ETI no território brasileiro foram propostas pelo educador Anísio S. Teixeira, que implantou cinco escolas experimentais no Rio de Janeiro em 1930, e criou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro (Escola-parque) em Salvador (1950). Essas iniciativas influenciaram a criação dos Centros Integrados de Educação Públicas (CIEPs), no Rio de Janeiro (1985), pelo antropólogo Darcy Ribeiro, e dos Centros Integrados de Atendimento à Criança (CIACs), durante o governo do presidente Fernando Collor de Melo, em 1991 (CAVALIERE, 2000).
Essa progressiva ampliação da jornada escolar, ocorrida nas últimas décadas, atende à demanda social de assistir as crianças e jovens durante o turno de trabalho dos pais. Nesse contexto, a ETI estende as responsabilidades sociais da escola, modificando não só o currículo escolar8, como também o que se espera de professores, alunos e gestores.
De acordo com Libâneo (2012), as ETIS podem ser interpretadas como uma ação do Estado que confere à escola novas funções sociais (prestação de serviços de segurança e saúde) em detrimento da sua função pedagógica, isentando o Estado de fornecer serviços básicos que aumentariam a qualidade de vida da população em geral.
Essa modalidade de ampliação da jornada apareceu pela primeira vez na legislação brasileira através da LDBEN (Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional) de 1996, em seus artigos 34 e 87, e o estímulo ao aumento de matrículas nessa modalidade de ensino é um dos destaques da lei do FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica) de 2006. Tanto o PNE (Plano Nacional de Educação) de 2001, quanto o de 2014, trazem as ETIs com um sentido compensatório, objetivando o atendimento de camadas sociais mais vulneráveis e mais necessitadas.
Dentre os enaltecimentos a essa modalidade de instituição escolar, está o destaque ao estabelecimento de parcerias entre o ensino formal e não-formal. Segundo Felício (2011), essa proposta viabilizaria uma integração curricular, pois, através de uma superação de relações hierárquicas e da construção coletiva da profissionalidade, a parte não-formal do currículo deixaria de ser vista como complementar e passaria a ser vista como parte de um único processo de construção do conhecimento.
Entre as críticas a este modelo estão: a lentidão em sua implementação na rede pública; a falta de investimentos estruturais e curriculares para viabilizarem a proposta; a falta de preparo dos profissionais envolvidos; os entraves gerados pelo modelo tradicional de ensino, vigente durante toda a história do país, a esta nova proposta; falta de definições e articulações entre as teorias e práticas de educação integral nas políticas públicas educacionais; a falsa correlação direta entre ampliação da jornada e melhoria do ensino; entre outras (FELÍCIO, 2011; CARVALHO, 2015; FERREIRA; REES, 2015).
Especificamente no Estado de São Paulo, o Programa ETI foi criado com o discurso de ampliação do tempo de permanência da criança na escola para aumentar suas oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento. Esse modelo foi instituído pela Resolução SE nº 89, de 09 de dezembro de 2005, que propôs o desenvolvimento de vivências, uso de temas transversais e a adoção de um currículo enriquecido nas escolas que aderissem ao programa.
Como requisito para a adesão, solicitou-se que as escolas tivessem uma estrutura compatível e, para viabilizar a proposta, foram mobilizados o dobro de funcionários de apoio e de secretaria (em relação aos que são destinados às escolas de ensino regular). O currículo dessas instituições é composto de uma parte diversificada e obrigatória (comum a todas as escolas regulares) e aos professores é exigida a formação mínima de licenciatura plena na área em que lecionam (SÃO PAULO, 2005).
O Programa de Ensino Integral paulista, alvo principal desta problematização, foi proposto como uma variante do modelo de ETI de São Paulo, e seu funcionamento foi regulamentado pela Lei Complementar (LC) nº 1.164, de 04 de janeiro de 2012. Essa LC instituiu: o Regime de Dedicação Plena e Integral (RDPI) e a Gratificação da Dedicação Plena e Integral (GDPI) aos professores atuantes nas escolas de educação integral; o regime de trabalho de 40h/semanais, sendo vedada a prática de outra atividade remunerada durante o horário de funcionamento da escola integral; a construção coletiva do plano de ação (ferramentas de diagnóstico, de proposição de estratégias e formas de avaliar os resultados das atividades a serem desenvolvidas na unidade escolar); a construção dos projetos de vida pelos alunos, envolvendo a responsabilidade individual, social e institucional; e a criação dos guias de aprendizagem pelos professores, com vigência semestral e contendo orientações pedagógicas sobre os componentes curriculares (SÃO PAULO, 2012a).
Ainda em 2012, a LC nº 1.164/12 foi alterada pela LC nº 1.191/12, que determinou: a construção coletiva dos programas de ação, documentos com a finalidade de estipular os objetivos, as metas e os resultados da aprendizagem dos alunos; a promoção do protagonismo juvenil, tanto por meio das disciplinas, quanto através dos clubes juvenis e do processo pedagógico da tutoria; e a composição da equipe escolar, compreendendo um diretor, um vice-diretor, um professor coordenador geral, professores coordenadores por área do conhecimento, professor da sala de leitura e professores das diferentes disciplinas (SÃO PAULO, 2012).
Segundo a LC nº 1.191/12, o objetivo principal do PEI é:
[...] a formação de indivíduos autônomos, solidários e competentes, com conhecimentos, valores e habilidades dirigidas ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e seu preparo para o exercício da cidadania [...] (SÃO PAULO, 2012b, artigo 2º, parágrafo I).
E, segundo as Diretrizes do PEI, o programa:
[...] ainda oferece também aos docentes e equipe técnica condições diferenciadas de trabalho para, em regime de dedicação plena e integral, consolidar as diretrizes educacionais do Programa e sedimentar as possibilidades previstas para sua expansão. (SÃO PAULO, 2014, p. 6, grifo nosso).
[...]
O tempo de dedicação dos educadores que atuam no Programa de Ensino Integral segue como um importante fator na medida em que, com melhores condições de trabalho ampliam-se as possibilidades da presença educativa dos profissionais e como consequência o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades dos alunos. Em decorrência desse maior tempo de dedicação ao ensino, a equipe escolar organiza as metodologias do Ensino Integral na direção de se oferecerem as melhores condições para o cumprimento do currículo, enriquecendo e diversificando a oferta das diferentes abordagens pedagógicas. Esse tempo é aplicado também para o aprimoramento da formação dos profissionais, para o desenvolvimento de metodologias e estratégias de ensino e de abordagens de avaliação e recuperação da aprendizagem dos alunos. (SÃO PAULO, 2014, p. 10, grifo nosso).
A idealização do PEI paulista é fundamentada em quatro princípios: a educação interdimensional, a pedagogia da presença, os quatro pilares da educação para o século XXI proposto pela UNESCO (aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver junto e aprender a ser) e o protagonismo juvenil (SÃO PAULO, 2014).
Neste ponto, é imprescindível que se destaque que: para atuar no PEI, os professores devem ser titulares de cargo e apresentar no mínimo três anos de experiência na rede; os docentes tenham aderido ao Regime de Dedicação Plena e Integral; a permanência dos professores no programa está condicionada à avaliação por desempenho periódica e específica, e em caso de não correspondência, o professor será removido ou transferido para a unidade mais próxima; os professores coordenadores e os das disciplinas devem substituir seus pares em caso de ausência; e os professores que atuam em regime de dedicação plena e integral recebem uma gratificação de 75% do vencimento relativo à faixa e nível no qual o profissional está enquadrado (SÃO PAULO, 2014).
De acordo com Moura (2015), durante o processo seletivo dos professores que irão atuar na escola do PEI são consideradas algumas características dos docentes, tais como: a assiduidade; a disposição para aprender; e a capacidade de desenvolver um trabalho diferenciado com as crianças e jovens. Mesmo depois de já terem aderido ao programa e iniciado suas atividades, esses educadores continuam sendo avaliados em relação: ao desenvolvimento de atividades específicas da área pedagógica e da gestão; a atuação na função específica; ao comprometimento com suas atividades; e a realização de atividades de aprimoramento. Ela ressalta também que ao atuarem nesse modelo de escola, os professores estão designados para o cargo, podendo ser remanejados a qualquer momento.
As atribuições docentes, nas escolas que aderiram ao PEI, incluem:
[...] além das atividades tradicionais do magistério, tem também como responsabilidade a orientação aos alunos em seu desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional e com a dedicação integral à unidade escolar, dentro e fora de sala de aula, espera-se dos educadores iniciativas que operacionalizam seu apoio social, material e simbólico à elaboração do projeto pessoal e profissional do aluno, ações que o ajudem a superar suas dificuldades e atividades que o energizem para buscar o caminho de seus ideais e que ele gradualmente define no seu Projeto de Vida. (SÃO PAULO, 2014, p. 11).
O trabalho nas escolas do PEI tem início com uma atividade chamada de acolhimento. Nela são apresentados o modelo e a estrutura da escola aos alunos ingressantes, sendo que esta atividade é realizada pelos alunos de outras unidades ou da própria unidade que já tiveram contato com o programa. Posteriormente, os educandos passam por uma fase de avaliação, na qual são analisados os seus conhecimentos e habilidades de leitura, língua portuguesa e matemática. De acordo com o desempenho dos alunos, eles são agrupados e encaminhados para uma fase de Nivelamento (recuperação). Ao longo do ano, os alunos são submetidos às reavaliações e seus processos de aprendizagem são acompanhados individualmente através dos Programas de Ação (SÃO PAULO, 2014).
Segundo as diretrizes do Programa, os instrumentos que orientam e organizam a gestão da unidade e da aprendizagem seguem o modelo PDCA (Plan/Do/Check/Act), no qual há um ciclo a ser percorrido para o desenvolvimento das ações, de forma a aprimorá-las continuamente (SÃO PAULO, 2014).
O currículo desenvolvido nas escolas do PEI inclui, além das disciplinas da base comum curricular, as atividades de: projeto de vida; tutoria; clubes juvenis; protagonismo juvenil; disciplinas eletivas; práticas experimentais; orientação de estudos, turmas de nivelamento e língua estrangeira moderna (MOURA, 2015).
Caracterização do cenário
A unidade escolar, contemplada neste estudo, foi criada na década de 60, durante o movimento de expansão do acesso à escolaridade no governo paulista de Abreu Sodré (ocorrido durante o governo ditatorial de Costa e Silva). Ela está localizada em um bairro afastado da região central do município, mas não está situada em uma área economicamente desfavorecida. Alguns de seus alunos são provenientes de outros bairros, que se mobilizam até a escola pelo fato de o projeto ser bem avaliado pela população local.
No ano 2000, durante o governo de Mário Covas, a escola sofreu o processo de municipalização. Na ocasião, os alunos matriculados nos anos iniciais do ensino fundamental (1ª a 4ª série) foram encaminhados para uma unidade escolar municipal localizada no entorno. Segundo o relato dos professores da unidade, o processo de municipalização foi conturbado. A mudança ocorrida no meio do período letivo ocasionou um comprometimento do trabalho desenvolvido com as turmas, fazendo com que muitos professores destituídos tivessem que complementar sua jornada de trabalho em outras escolas ou procurar mais de uma ocupação com o intuito de não comprometerem suas rendas mensais.
Desde então, a escola passou a atender apenas os anos finais do ensino fundamental e o ensino médio. Em 2006, a escola foi transformada em uma Escola de Tempo Integral (ETI), e, posteriormente (2014), a unidade aderiu ao Programa de Ensino Integral (PEI).
Em 2017, essa unidade escolar funcionou de forma independente em dois períodos: no período integral (7h00 às 15h00) como uma escola do PEI, que atende alunos matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano); e no período noturno (19h00 às 23h00), atendendo aos alunos matriculados no ensino médio regular.
A escola desenvolve o PEI com oito turmas no período integral, cada uma delas contendo, em média, 32 alunos. Ela apresenta inúmeros recursos disponíveis para a realização de práticas pedagógicas diferenciadas, tais como: quiosques; pátio coberto e descoberto; sala de leitura; sala de informática; sala para TV ou vídeo e 2 salas multiuso (PORTAL EDUDADOS, 2016).
No período integral, todos os professores em exercício pertencem à categoria F (estáveis) ou A (concursados). Os professores entrevistados (11), em sua maioria, são do sexo feminino (70%), têm uma idade média de 47,8 anos e uma experiência de, em média, 19,1 anos. Em relação à formação: 80% têm formação inicial em um curso de licenciatura e o restante realizou cursos de habilitação posterior na área; 50% já têm cursos de pós-graduação e 90% realizam frequentemente cursos de formação continuada fornecidos pela diretoria de ensino.
Durante a prática de observação participativa, destacou-se o cenário de limpeza da unidade, o número reduzido de conflitos entre os estudantes, a grande participação dos pais na vida escolar dos filhos, as intensas socializações de experiências entre os professores e a ausência de relatos de alunos envolvidos com o uso ou tráfico de drogas9.
Trabalho docente
O trabalho docente é influenciado tanto pela estrutura física e pela legislação, que regulamenta a profissão, quanto pelas condições de formação (inicial e continuada) e pelas concepções e cosmovisões dos próprios docentes (BASSO, 1998). Ele é composto não somente por atividades de planejamento e de desenvolvimento das aulas, mas por uma série de outros elementos que lhes conferem um caráter elástico e flexível, já que as atividades desenvolvidas variam para cada profissional e pelo fato de nem todas serem desenvolvidas dentro da unidade escolar (OLIVEIRA, 2004; TARDIF; LESSARD, 2014).
Contendo um forte cunho emocional, o trabalho docente envolve características pessoais do professor, que afetam não somente sua relação com os alunos, mas também os instrumentos de coerção, autoridade e persuasão que o mesmo utilizará para desempenhar seu trabalho. E, pelo fato de atuarem “com seres humanos, sobre seres humanos, para seres humanos” (TARDIF; LESSARD, 2014, p. 31), os trabalhadores da área educacional nunca detêm o controle sobre seu objeto de trabalho.
Diferentemente do trabalho fabril ou de escritório, o trabalho docente é classificado como semiprofissional. Isso ocorre pois, na maioria dos casos, os professores não detêm poder sobre a organização escolar, participam pouco da definição do funcionamento de seu posto de trabalho e de seu processo de formação e não exercem poder sobre os saberes que lecionam (TARDIF; LESSARD, 2014). Contudo, pela natureza instantânea e interativa do trabalho docente, os educadores apresentam um alto grau de discricionariedade10.
Por conta da grande diversidade de situações enfrentadas diariamente pelos educadores, o trabalho docente exige uma maleabilidade do profissional e das normas que regem seu trabalho. É imprescindível que se destaque que o trabalho docente e a instituição escolar se inserem em um contexto político, social, cultural e econômico mais amplo, o que faz com que alterações ideológicas alterem a forma de funcionamento da escola e o cenário de atuação docente. Este fato pode ser evidenciado pelas influências das novas formas de se conceber trabalho e de sua regulação no mundo capitalista em vigor na sociedade e dentro do ambiente escolar.
Um exemplo disso tem sido a introdução da perspectiva neogerencialista ou toyotista no funcionamento do sistema educacional. Essa visão tem sido amplamente impulsionada em toda a América Latina depois da década de 80, alterando as formas de regulação do governo e impondo critérios mercadológicos para o funcionamento de setores estatais, dentre os quais se destaca a educação.
O neogerencialismo tem afetado as concepções dos trabalhadores, ao introduzir uma nova cultura que estimula a competitividade, a autovigilância, o compromisso coletivo e ao difundir uma lógica de performatividade dentro do ambiente educacional (BALL, 2006). Essa lógica também tem alterado progressivamente o significado de termos como participação e autonomia, fazendo com que os funcionários, chamados de colaboradores, tenham a sensação de maior poder de decisão, quando na verdade estão sendo responsabilizados pelos maus resultados obtidos (BERNARDO, 2009).
Na área educacional, os sinais da precarização do trabalho docente têm se tornado cada vez mais evidentes, tais como: a perda de prestígio social; a diminuição do poder aquisitivo dos trabalhadores da categoria; a depreciação das condições de vida; o crescente cenário de insatisfação docente com o magistério; a dessindicalização; a remuneração abaixo da qualificação e a falta de diálogo entre os pares (LÜDKE; BOING, 2004).
Outro agravante nesse cenário seria a rotinização, ou seja, a ausência de tempo para a realização das atividades e para o exercício da reflexão sobre a prática, que desencadearia um quadro de desqualificação intelectual. O consequente isolamento profissional diminuiria a capacidade da categoria de resistir às imposições sofridas e intensificaria o processo de responsabilização/culpabilização dos docentes pelos baixos resultados obtidos (CONTRERAS DOMINGO, 2003).
A ausência de uma reflexão aprofundada sobre as raízes dos problemas enfrentados pelos professores diariamente, assim como das normas que regulamentam seu trabalho, impediria a formação e o exercício da autonomia docente em seu sentido emancipatório (reflexões entre os pares e desses com a comunidade escolar viabilizariam a luta por transformações da rede educacional como um todo) (GIROUX, 1997; CONTRERAS DOMINGO, 2003).
O PEI emergiu nesse contexto com um discurso de melhorias nas condições de trabalho dos educadores paulistas. Contudo, que avanços, melhorias e retrocessos esse programa tem propiciado aos professores?
Trabalho docente na PEI
Em relação à adesão ao programa, segundo o depoimento dos professores entrevistados, a avaliação foi positiva, pois nesse modelo há uma maior integração entre a parte obrigatória e diversificada do currículo, diferentemente do que ocorria na ETI. Os professores argumentaram também que as melhorias salariais (gratificação) e a permanência na mesma unidade foram vantagens adquiridas pela adesão ao programa.
No entanto, o fato de o programa ter sido aplicado em escolas que já tinham uma estrutura física compatível fez com que a rede como um todo não recebesse melhorias. A escola analisada atende um número pequeno de turmas e já possuía uma infraestrutura adequada, o que facilita o desenvolvimento de projetos e a implementação de novas políticas educacionais. Isso pode ser evidenciado na fala de um dos professores entrevistados: “O tamanho da escola é um aspecto positivo. O número de classes reduzido ajuda a trabalhar e conhecer, tanto no aspecto pedagógico e didático quanto no administrativo.” (PROFESSOR 2, 32 anos).
No entanto, a ausência de verbas adicionais para a aquisição de materiais e para o desenvolvimento das práticas diferenciadas pode comprometer o trabalho desenvolvido pelos docentes. A necessidade de se utilizar recursos próprios para manter a qualidade do ensino esteve presente nas falas dos docentes entrevistados, assim como a insatisfação pelo cenário de restrição de recursos: “Fala pra fazer, mas muitas vezes sem a estrutura necessária. Aí fica complicado!” (PROFESSORA 5, 41 anos).
Além dos recursos físicos, a formação específica dos profissionais do PEI também é um diferencial na rede paulista. Por contar com muitos concursados, a formação da licenciatura plena na área em que lecionam é muito mais comum, o que tende a proporcionar melhorias do ensino na escola do PEI, mas não na rede.
O processo seletivo do PEI realiza uma triagem dos professores, delegando às unidades do PEI os profissionais mais qualificados. Nas escolas públicas estaduais paulistas, por conta das contratações em tempo determinado e do cadastro emergencial, muitas vezes profissionais sem licenciatura, formados em outras áreas do conhecimento ou ainda estudantes, acabam atuando como professores, o que tem comprometido a qualidade do ensino ofertado.
Contudo, ao entrar na escola PEI, foi possível observar que os próprios professores acreditam que sua formação ainda não é suficiente para o desempenho das funções a eles atribuídas: “Às vezes falta formação para o mediador. Ter o dom, saber o que fazer e como fazer para não atrapalhar a situação.” (PROFESSORA 3, 52 anos). Esse destaque ao caso da atuação do professor mediador, deve-se à ausência desse cargo nas escolas do PEI. Isso é um resultado da concepção de que analisar e resolver os conflitos fazem parte da formação integral e do trabalho de todos os docentes.
Ao se analisar relatos sobre outros programas governamentais que propõem a educação em tempo integral no Brasil, foi constatada a mesma demanda por maiores recursos e pela necessidade de maior capacitação de profissionais, como pode ser observado no estudo desenvolvido por Ferreira e Rees (2015) em uma escola municipal em tempo integral de Goiânia.
Contudo, diferentemente do estudo de Ferreira e Rees (2015), onde observou-se na fala dos docentes uma indistinção entre a proposta de ensino em tempo integral (maior permanência) e o conceito de ensino integral, foi constatado nas falas dos professores entrevistados na PEI de Votorantim-SP a visão de que os educadores desempenham uma importante função na formação pessoal do aluno e no desenvolvimento de sua cidadania. Ao longo dos relatos foi possível destacar também o forte papel do planejamento no trabalho do professor e a perspectiva do educador enquanto pesquisador, como pode ser evidenciado na fala: “A função do professor é mediar, estabelecer parcerias, criar relações dialógicas e ser um pesquisador.” (PROFESSOR 2, 32 anos).
A concepção de docente enquanto pesquisador favorece a postura do professor enquanto sujeito da própria prática. No entanto, como foi possível constatar nas observações do funcionamento da escola e nas regulamentações do programa, as ações dos docentes têm mais a finalidade de adaptar as normas construídas por outros (currículo oficial e cadernos do professor e do aluno) à realidade local do que promover reflexões sobre o sistema educacional e o PEI com objetivo de transformá-los.
Em relação às práticas docentes, a diversificação das atividades pedagógicas foi um elemento de destaque no PEI, como pode ser evidenciado na fala:
A gente tem alguns CDs, tem a internet, livros didáticos, apostila do Estado, que a gente usa bastante, aqueles currículos. A gente faz uma complementação com a internet, um curso que a gente faz na diretoria [de ensino], né?! (PROFESSOR 1, 51 anos).
Segundo os relatos dos docentes, eles utilizam diversos recursos para a elaboração e implementação das aulas e as atividades a serem realizadas são divulgadas previamente aos alunos por meio dos guias de aprendizagem e das agendas de trabalho. O que se pode destacar como evidente nas falas dos docentes é a ideia de complementação, de adaptação local e de mudanças de estratégias para a implementação das habilidades e competências propostas pelo currículo. Como pode ser observado na fala: “A gente sempre faz readequações, mas sem sair da proposta.” (PROFESSORA 6, 55 anos).
No tocante à intensificação do trabalho docente, um ponto que pode ser ressaltado no PEI é a ausência de professores eventuais ou de substituição. Isso leva, segundo as próprias normas do programa citadas anteriormente, à substituição compulsória, na qual o professor que realiza a substituição não recebe nenhum adicional pelo trabalho excedente: “Nesse sistema integral de ensino nós não temos professor de apoio. Um professor cobre a falta do outro. Nós não temos nem eventual. Nós não temos, é só a equipe mesmo.” (PROFESSOR 1, 51 anos); “O excesso de faltas leva ao decaimento. Como não tem eventual, quando alguém falta, quem substitui é o professor da mesma área” (DIRETORA, 56 anos).
Isso tem desencadeado um cenário de vigilância mútua entre os professores, que é típica de uma concepção toyotista de monitoramento entre os pares. Nesse sentido, foram presenciadas situações durante a fase de observações, nas quais duas professoras, sem condições de permanecerem na escola por motivos de saúde, tiveram de cumprir seus horários e lecionar suas aulas do mesmo modo, para não serem mal avaliadas pela avaliação de desempenho e não comprometerem seus colegas com o trabalho extra.
Na fala de um dos entrevistados, “Ah, ela já sabia que era assim quando entrou no projeto!”, ficou latente a inexistência de espaço para o questionamento crítico e para a transformação das normas vigentes do programa e da sua própria existência.
Atenuando este cenário, existem as avaliações de desempenho, que são realizadas com todos os profissionais e alunos da escola do PEI. Pelo fato de uma má avaliação resultar no desligamento do programa, as avaliações criam um ambiente de instabilidade, que tem levado muitos profissionais do PEI (40% dos entrevistados) a continuarem acumulando cargos mesmo com o ingresso no programa.
Essa dupla ou tripla jornada é permitida, pois a legislação do PEI exige a dedicação integral apenas no horário de funcionamento do programa. Desta forma, muitos profissionais, por não saberem se suas melhorias salariais serão mantidas, permanecem realizando outras atividades ou ministrando aulas no período noturno. Isso tem desencadeado um quadro de sobrecarga docente.
Quando se reflete sobre o PEI, a intensificação do trabalho docente torna-se muito mais evidente. Apesar do professor trabalhar 40h semanais e receber a gratificação por dedicação integral, o educador da PEI desenvolve muitas outras funções além daquelas previstas em sua formação inicial. O docente passa a acumular tarefas diretamente vinculadas à gestão da escola, ao atendimento especializado dos alunos, ao atendimento de exigências burocráticas para a formulação de documentos, à própria formação continuada, entre outras (MOURA, 2015). Esse fato foi observado na fala de alguns professores entrevistados, que argumentam que acabam levando muito trabalho para terminar em casa: “São muitos documentos para entregar. Você está sempre fazendo alguma coisa” (PROFESSORA 4, 52 anos).
A sobrecarga de trabalho dos professores coordenadores de área também foi destacada em relatos como:
Ele [professor coordenador de área] trabalha pra caramba! Porque não é como nas outras escolas que ele é só coordenador. Aqui ele dá aulas. Então ele tem as suas aulas e ele tem que coordenar. Então ele exerce as duas funções na verdade. Ele resolve problemas e dá apoio na área, e mais as aulas dele. (PROFESSOR 1, 51 anos).
No que diz respeito ao tempo de planejamento, o horário de estudos tem possibilitado aos docentes desenvolver as atividades de planejamento, desenvolvimento e correções das atividades dentro da unidade, além de propiciar um tempo para a construção de trabalhos coletivos entre os professores e viabilizar a socialização entre os pares. Segundo a coordenadora da escola (44 anos):
Não tem ATPL [Aula de Trabalho Pedagógico Livre], é a hora de estudos. Cumprido totalmente na escola! Ele é ótimo, porque tudo é alinhado aqui! Todos estão presentes. Todos em uma escola só.
Durante a observação participante, foi possível vivenciar a prática intensa de adaptações do currículo oficial paulista e das propostas presentes no caderno do professor durante os horários de estudos. Nesses momentos pedagógicos, os professores também foram observados construindo projetos interdisciplinares e atividades para a parte diversificada do currículo do PEI. Contudo, o que se tem observado não tem sido o estímulo ao exercício da autonomia docente em um sentido emancipatório.
Muitas vezes as reflexões observadas estavam limitadas à realização de adaptações curriculares ou de replicações de práticas exitosas realizadas pelos colegas. Somente durante os intervalos foram vivenciadas situações isoladas de questionamento das normas do programa, mas que não resultaram em nenhuma mobilização ou ação efetiva para sanar a situação.
A divisão da Aula de Trabalho Pedagógico (ATPC) em ATPCG (geral) e ATPCA (por área do conhecimento) foi avaliada como positiva pelos profissionais entrevistados. Já que tem propiciado mais momentos de reflexão e socializações das práticas desenvolvidas, o que pode ser evidenciado na fala a seguir:
O ATPC? São na realidade dois ATPCs. Nós temos um de área e um coletivo. Eles acontecem normalmente, com instruções, com apresentações, inclusive com devolutivas para ajudar nos planejamentos. Se tem alguma coisa que funcionou, que a gente vê que realmente deu certo, então a gente apresenta para a equipe. (PROFESSOR 1, 51 anos).
O trabalho coletivo dos professores também foi evidenciado nos relatos sobre os processos de construção dos planos escolares. Mas, é importante destacar que não há uma participação direta dos alunos na construção desses documentos, ficando restrita a interferência de professores e da equipe gestora.
Considerações finais
O Programa de Ensino Integral tem ocasionado modificações na forma de funcionamento da rede estadual paulista de ensino público. A análise do caso de uma escola situada no município de Votorantim-SP permitiu constatar que a gratificação salarial e a possibilidade de formar uma jornada de trabalho em uma única unidade têm promovido a adesão e o interesse dos educadores da rede no programa.
Contudo, o cenário de intensificação do trabalho docente é evidente. O acúmulo de funções pode comprometer a atuação desses profissionais, ainda mais quando esses profissionais são pressionados a realizar as substituições compulsórias em caso de ausência ou quando permanecem acumulando outros cargos ou funções, por conta da instabilidade no programa (professores designados).
Outros agravantes nesse cenário seriam: a ausência de recursos para a manutenção e promoção das práticas diferenciadas; o estímulo à cultura neogerencialista de vigilância e controle entre os pares; a ausência de formação específica para o apoio das novas funções a serem desempenhadas pelos professores; o cenário de instabilidade gerado pela designação dos professores ao programa e pelas avaliações de desempenho e o fato das reflexões e socializações entre os professores estarem limitadas à realização de adaptações, replicações e contextualizações das propostas curriculares.
Apesar do discurso de melhorias, a promoção do PEI tem agravado o cenário de desigualdade educacional, uma vez que essas escolas atuam com recursos físicos, humanos e pedagógicos considerados superiores aos das demais escolas, ainda que exista uma previsão de expansão do número de escolas que atuam nessa modalidade de ensino. O salário diferencial e a ausência de situações propícias para a reflexão e trabalho conjunto entre os diferentes professores da rede tendem a isolar os professores da PEI agravando o cenário de fragmentação da categoria docente.
Soma-se a isso, a forma como o programa tem sido implementado, pois a instalação do PEI em unidades que já possuem condições físicas para comportar o programa, faz com que esse novo modelo de escola não exija, de forma direta, investimentos no setor educacional. O que também não tem favorecido melhorias infraestruturais na rede pública de ensino paulista como um todo.
Uma agravante nesse cenário é a alienação dos profissionais aos problemas da categoria. A longa jornada e a intensificação do trabalho docente ocupam os professores com contextualizações, adaptações e replicações de práticas exitosas e não promove o questionamento, a reflexão e a transformação do currículo, do próprio programa ou da rede de ensino paulista.
A intensificação e rotinização do trabalho docente têm permanecido ocultas nas escolas do PEI, através de uma faixada de participação na escolha de metodologias e na criação de novas técnicas de ensino e atuação pedagógica. Dessa forma, a ausência de espaço para a construção de reflexões críticas e para a participação efetiva dos docentes na elaboração das políticas educacionais paulistas ainda permanece um desafio para a Secretaria de Educação paulista.