Introdução
O sistema de ensino superior está reinventando-se. Atualmente, ele funciona em uma sociedade baseada na explosão do conhecimento e no desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação ( BERNHEIM; CHAUÍ, 2008 ). A crescente importância da ciência, tecnologia e inovação demanda novas formas de criar e disseminar o conhecimento. As instituições de ensino superior são desafiadas a propor soluções para formar profissionais que sejam capazes de não apenas aplicar tecnicamente o conhecimento específico, mas também de criar soluções inovadoras que respondam a problemas presentes e futuros em uma sociedade cada vez mais complexa ( UNESCO, 2005 ). Nesse contexto, as universidades investem tempo e esforços para melhorar o ensino oferecido aos seus alunos.
A avaliação docente, entendida como a avaliação sistemática de desempenho didático-pedagógico dos docentes, é um ponto crítico para promoção da melhoria da qualidade do ensino de graduação3 ( GOERGEN, 2001 ). Para que essa melhoria seja perceptível aos alunos e à comunidade acadêmica é necessário comprometimento institucional para promoção permanente de políticas de desenvolvimento profissional docente e de acompanhamento dessas melhorias ( GONÇALVES, 2009 ). No ambiente universitário, essas políticas são difundidas como formação permanente, formação contínua ou continuada, formação em serviço, desenvolvimento de recursos humanos, aprendizagem por toda a vida, cursos de reciclagem ou capacitação. Dentre as várias definições de desenvolvimento docente existentes na literatura, destacamos aquela proposta por Heideman (1990 , p. 4, tradução nossa):
O desenvolvimento profissional dos docentes vai para além de uma etapa meramente informativa; implica adaptação à mudança com o fim de modificar as atividades de ensino-aprendizagem, alterar as atitudes dos docentes e melhorar os resultados escolares dos alunos. O desenvolvimento profissional de docentes preocupa-se com as necessidades individuais, profissionais e organizacionais.
Nas últimas décadas, pesquisas voltadas à pedagogia universitária vêm informando ações de desenvolvimento didático-pedagógico nas universidades brasileiras ( ISAIA; BOLZAN, 2009 ; TORRES, 2014 ). Mesmo assim, os resultados obtidos ficam aquém das expectativas. De acordo com Barnett (2005) , os desafios contemporâneos enfrentados pelas instituições de ensino superior apresentam grande complexidade e não podem ser adequadamente respondidos por ações isoladas. A visão fragmentada dos elementos que constituem a prática docente, tais como o planejamento do ensino, as concepções sobre o papel do currículo e as cobranças institucionais referentes à pesquisa, ensino e extensão, levam a uma perspectiva parcial do problema e à produção de respostas pouco adequadas para encaminhar soluções robustas.
Essas preocupações, de caráter global, levaram um docente britânico a propor um panorama teórico-prático denominado modelo da fragilidade pedagógica ( KINCHIN et al., 2016 ; KINCHIN; WINSTONE, 2017 ). Tal modelo integra elementos relevantes para descrever as atividades docentes no ensino superior, iluminando os principais motivos que levam muitos docentes (incluindo os mais experientes) a enfrentarem situações estressantes no ambiente acadêmico. De modo geral, a fragilidade pedagógica (FP) pode ser observada quando colegas perdem a capacidade de se adaptar a mudanças repentinas, situações inéditas ou a um ambiente de ensino complexo em constante evolução (KINCHIN, 2015b). No âmbito do desenvolvimento docente, esse modelo surgiu com o intuito de ajudar no processo de integração dos esforços institucionais para que a melhoria da qualidade do ensino de graduação alcance maior repercussão ( KINCHIN; CABOT, 2016 ).
O objetivo deste artigo é apresentar o modelo da fragilidade pedagógica (MFP) e explorar sua aplicação prática no cenário educacional brasileiro, levantando as concepções de alguns docentes universitários. Para isso, o texto foi organizado em quatro seções. A primeira apresenta uma breve revisão da literatura no que tange ao MFP e suas dimensões constitutivas. A segunda e a terceira seções apresentam os caminhos metodológicos da pesquisa e os resultados do estudo de caso no qual foram levantadas as concepções de docentes sobre as dimensões do MFP utilizando entrevistas mediadas por mapas conceituais. A última seção apresenta as considerações finais que delineiam contribuições, limitações e perspectivas do MFP para o desenvolvimento pedagógico de docentes do ensino superior.
O modelo da fragilidade pedagógica e suas dimensões: uma breve revisão da literatura
As constantes pesquisas e discussões acerca da formação docente nas universidades estrangeiras originaram, em algumas delas, pequenos grupos de profissionais que se preocupam exclusivamente com o desenvolvimento pedagógico dos seus docentes ( EGGINS; MACDONALD, 2003 ). Esses profissionais cumprem um papel de formador docente do ensino superior, que parte do pressuposto de que, por exemplo, ser bom engenheiro não implica necessariamente ser bom docente de engenharia. Enquanto o primeiro depende do conhecimento do conteúdo disciplinar ( content knowledge ), o segundo implica a integração entre conhecimento especializado e conteúdo pedagógico do conhecimento ( Pedagogic Content Knowledge – PCK), ou seja, saber ensinar os conteúdos disciplinares ( FERNANDEZ, 2014 ).
O docente britânico Ian Kinchin exerce a função de desenvolvedor acadêmico há quase duas décadas, tendo visto a criação e a evolução do panorama teórico de certificação de qualidade pedagógica de acadêmicos (em inglês, Teaching Excellence Framework – TEF) como parte das políticas públicas para educação, amplamente aceito e difundido no Reino Unido. Com base em sua experiência, ele conduziu um estudo piloto em 2014, entrevistando docentes da Universidade de Surrey. Os resultados desse estudo ( KINCHIN et al., 2016 ; KINCHIN; FRANCIS, 2017 ) indicaram a existência de diferentes estressores, que ao se acumularem, transformam eventos relativamente pequenos (mudanças no ambiente acadêmico) em situações insustentáveis e impossíveis de serem acomodadas dentro de um modelo tradicional de ensino. A unificação desses estressores levou Kinchin a propor o conceito de fragilidade pedagógica como aquele que “ajuda a colocar foco simultâneo em uma série de ideias-chave com o objetivo de aprimorar o ensino no contexto universitário” ( KINCHIN et al. 2016 , p. 1, tradução nossa).
O conceito de fragilidade pedagógica
Conforme apresentado em Kinchin (2015b), o conceito de fragilidade pedagógica (FP) foi concebido a partir de uma analogia com a literatura médica. Nessa, a fragilidade desenvolve-se como consequência do declínio de uma gama de fatores que, coletivamente, resulta no aumento da vulnerabilidade desencadeada por eventos relativamente pequenos (CLEGG; YOUNG, 2011). Por exemplo, a fragilidade clínica pode ser verificada quando um indivíduo não é mais capaz de lidar com situações da vida cotidiana por causa da diminuição das suas capacidades social, intelectual, emocional e física.
Vários indicadores de fragilidade foram identificados na literatura médica nacional e internacional ( ROCKWOOD, 2005 ; VERAS et al., 2007 ) e incluem, por exemplo: a incapacidade de integrar respostas à mudança devido ao estresse; a perda da capacidade de adaptação devido à complexidade; o desgaste resultante de esforços repetidos para se adaptar às mudanças; a sensação de fadiga quando uma mudança é implementada sem consulta. Esses fatores são muito semelhantes às pressões sentidas e relatadas pelos docentes universitários. Na prática, a FP é observada quando os acadêmicos, frente às pressões cumulativas do ambiente profissional, têm reduzida a sua capacidade de alterar práticas de ensino em resposta a um ambiente em constante transformação ( KINCHIN et al., 2016 ). Nesse contexto, a adoção de uma abordagem pedagógica segura e sustentável caracteriza-se como o único caminho possível ( CLEGG, 2008 ; BAILEY, 2014 ).
Uma abordagem de ensino mais conservadora pode levar a uma visão tradicional do processo de ensino-aprendizagem, na qual a mera transmissão do conteúdo tem papel preponderante. O docente, ao adotar uma abordagem centrada naquilo que eu já sei e o que funciona para mim , seleciona a informação que considera essencial para transmitir sua visão de ensino e, seletivamente, ignora o restante dos conteúdos e valores. O impacto dessa abordagem pode ser visto na formação do aluno, estruturada como uma cadeia linear de eventos e atividades que reforçam a memorização em detrimento da aprendizagem profunda. Conforme salienta Kinchin e Hay (2007 , p. 43, tradução nossa):
Redes ricas e complexas são indicativas de conhecimento especializado, mas que raramente são explicitadas para os alunos no curso do ensino. Em vez disso, estruturas simples e lineares compreendem a maioria dos planos de aula ou sequências didáticas. [...]. Assim, a abordagem de ensino predominante nas universidades e a evidência de ensinamentos autênticos conduzidos por pesquisa continuam a ser escassos. É provável que isso reforce os resultados de uma aprendizagem superficial entre os estudantes universitários sendo um impeditivo para o surgimento da condição de especialista.
Para Talbot (2004) , a adoção dessa linearidade não permite o diálogo como parte do desenvolvimento pedagógico desses docentes, retratando uma certeza “autoritária” da existência de uma única rota de ensino possível do começo ao fim. Por outro lado, as universidades, ao se esforçarem pela melhoria da qualidade do ensino, podem acabar “homogeneizando suas abordagens para um ensino de excelência, suas práticas pedagógicas e a experiência geral dos alunos” (STEVENSON; BURKE; WHELAN, 2014, p. 39, tradução nossa). Nesse contexto, não há espaço para mudanças, criatividade e inovação. Consequentemente, a evolução rumo às melhores práticas de ensino é cada vez mais negligenciada sendo a universidade um centro educacional com maior FP e menores chances de formar profissionais competentes para atuar com problemas complexos (KINCHIN; LYGO-BAKER; HAY, 2008).
As dimensões do modelo da fragilidade pedagógica
Kinchin e seus colaboradores (2016) mostraram que o primeiro passo para lidar com a FP é identificar as relações entre os fatores que contribuem para essa condição ( Figura 1 ). Para isso, ele organizou os estressores identificados nos relatos dos docentes em quatro dimensões: discurso regulativo, pedagogia & disciplina, nexo pesquisa-ensino e lócus de controle. Cada dimensão será brevemente apresentada a seguir.
De acordo com a teoria sociológica para a educação de Bernstein (2000) , existem dois discursos que informam a construção e disseminação do currículo4: o discurso instrucional, relativo às discussões que envolvem a sequência e distribuição das disciplinas nos períodos letivos, os mecanismos de instrução e avaliação, a atribuição dos docentes nas disciplinas e suas cargas horárias e, o discurso regulativo ( Figura 1 ), relativo às discussões que envolvem as abordagens pedagógicas, as teorias subjacentes ao ensino-aprendizagem, os valores e pressupostos a serem alcançados através do currículo ( SANTOS, 2003 ).
É muito comum observarmos longas reuniões pedagógicas que discutem e rediscutem a posição, inserção ou exclusão de disciplinas na grade curricular, sem a devida discussão dos impactos dessas mudanças nos valores inerentes à identidade profissional dos egressos. Essa prevalência do discurso instrucional, sem os subsídios do discurso regulativo, aumenta a FP devido à ausência de uma visão compartilhada de ensino.
A dimensão, pedagogia & disciplina ( Figura 1 ), diz respeito às linguagens adotadas em sala de aula pelos docentes ao ensinar conteúdos disciplinares e avaliar a aprendizagem ocorrida. A autenticidade do ensino verifica-se quando os docentes ajudam os alunos a compreender o papel do conteúdo especializado no contexto da futura prática profissional, extrapolando a mera transmissão de informações ( SHAFFER; RESNICK, 1999) . Pode-se dizer que a FP aumenta quando um corpo docente não compartilha as mesmas linguagens em prol da aproximação entre os conteúdos disciplinares e a prática profissional dos egressos, tanto no ensino como na avaliação. Na prática, é muito comum observarmos docentes que lecionam para os mesmos alunos, no mesmo semestre e, às vezes, dividem a mesma disciplina, mas que nunca conversaram acerca de como suas abordagens e linguagens de ensino podem ser complementares ou redundantes.
O nexo pesquisa-ensino ( Figura 1 ) tem sido discutido com frequência e profundidade tanto na literatura internacional ( ROBERTSON, 2007 ; LIGHT; CALKINS; 2015 ) como nacional ( NOVA; SOARES, 2012 ; SOUSA, 2014 ). Alguns autores apontam que o ensino deve ser considerado isoladamente de outros aspectos da prática acadêmica ( ÅKERLIND, 2011 ) enquanto outros exploraram possíveis benefícios de se conectar pesquisa e ensino ( DEMO, 1998 ; HEALEY, 2005 ). Ainda que não haja um consenso na literatura, tensões não resolvidas entre pesquisa e ensino podem ser uma potencial fonte de estresse e mal-estar na vida acadêmica ( MAGALHÃES, 2013 ).
A indissociabilidade do tripé pesquisa, ensino e extensão ( PUHL; DRESCH, 2016 ), instituída na Reforma Universitária (Lei 5540/68), requer habilidades de pesquisa e ensino como pré-requisitos dos acadêmicos, os quais devem ser fundidos ao invés de tomarem papéis separados. Nessa direção, Goergen (2001 , p. 70) lembra-nos que “[...] ensino e pesquisa, embora representem noções e atividades de natureza distinta, parecem aproximar-se hoje na medida em que a aprendizagem envolve atitude de pesquisador”. Entretanto, o que se percebe na prática é uma distribuição não balanceada de tempo e energia dedicados a tais atividades ( ROBERTSON; BOND, 2001 ; HOSEIN, 2017 ). Uma maior valorização percebida à pesquisa ou ao ensino pode levar a um desequilíbrio que desencadeia desdobramentos assimétricos de recompensas, status , reconhecimento e motivação e, consequentemente, ao aumento da FP ( YOUNG, 2006 ).
A quarta dimensão do modelo diz respeito a um elemento valorizado pelos docentes universitários: a autonomia profissional ( CONTRERAS, 2002 ). As tensões entre os objetivos individuais e institucionais podem moldar nossa compreensão de autonomia, dependendo do nível de regulação imposto pela instituição e do espaço cedido para a negociação das práticas de ensino ( KINCHIN, 2017 ). Nos últimos anos, algumas universidades deslocaram-se para uma administração mais centralizada, com modelos de avaliação da qualidade do ensino com uma visão “comercial” ( GOERGEN, 2010 ), além de rigorosas abordagens de auditoria para medir a eficácia desse ensino prestado aos alunos (vistos aqui como consumidores). Já algumas universidades têm administração descentralizada, que permite maior participação da comunidade acadêmica nas tomadas de decisões que impactam o ensino e no processo de avaliação da qualidade ( SOUSA SANTOS, 2010 ). A FP tende a aumentar com a falta do lócus de controle ( Figura 1 ), ou seja, com a falta de autonomia institucional e de lideranças acadêmicas que avaliam e regulam as melhores práticas de ensino.
Kinchin (2017) argumenta que os acadêmicos tendem a ter certa dificuldade em relacionar as dimensões mais propensas ao controle individual com aquelas sob controle institucional ( Figura 1 ). Por exemplo, os valores que subsidiam o currículo do curso deveriam auxiliar os docentes a estabelecer conexões significativas entre os conteúdos disciplinares e sua utilização no contexto da futura prática profissional dos egressos. Essas conexões poderiam dialogar com as pesquisas mais recentes da área, auxiliando docentes na seleção de temas e problemáticas atuais para serem discutidas com os alunos.
Caminhos metodológicos da pesquisa: um estudo de caso com docentes universitários brasileiros
A metodologia adotada nesta pesquisa é de caráter qualitativo, mais especificamente, um estudo de caso ( CRESWELL; POTH, 2017 ). O estudo de caso não visa a produzir achados generalizáveis, mas fornecer uma riqueza de dados que seja valiosa para levantar questões de pesquisa e identificar padrões despercebidos. A partir da investigação de um fenômeno (as fontes de estresse no processo de ensino na academia), buscamos a compreensão da sua essência, a partir das visões, concepções, crenças e valores dos indivíduos em análise (os docentes).
Os participantes da pesquisa foram sete acadêmicos de uma universidade pública paulista identificados aqui pelas letras de A a G. Todos os docentes foram contratados sob um regime de dedicação exclusiva para realizar atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão. Coincidentemente, os docentes são das áreas de Ciências Naturais (Química, Física, Biologia) ou de Ensino de Ciências Naturais, tendo suas formações acadêmicas e linhas de pesquisa voltadas a essas mesmas áreas.
Entrevistas mediadas por mapas conceituais e o procedimento de coleta dos dados
O conceito de FP entrou em cena como parte de um estudo exploratório mais amplo das estruturas de conhecimento de docentes, de diferentes áreas de conhecimento, sobre as práticas de ensino e aprendizagem na universidade. A representação dessas estruturas de conhecimento foi facilitada pelo uso dos mapas conceituais (KINCHIN, 2015a, 2016b).
Mapas conceituais são organizadores gráficos formados por uma rede de proposições que permitem a representação e visualização gráfica da estrutura de conhecimento de um sujeito sobre um determinado tema ( NOVAK, 2010 ). As proposições são formadas por dois conceitos unidos por meio de um termo de ligação com verbo e uma seta que orienta a leitura da proposição. Normalmente, os conceitos são hierarquicamente organizados e toda a rede proposicional responde a uma pergunta focal específica ( AGUIAR; CORREIA, 2013 ). Por exemplo, a Figura 1 apresenta um mapa que responde à pergunta focal “Quais são os fatores que contribuem para o aumento da FP?” e, “Discurso regulativo – informa às relações entre → Pedagogia & disciplina” ilustra o que é uma proposição.
A visualização inicial do modelo e os estudos conduzidos até o momento foram, portanto, dependentes do uso dos mapas, sendo essencial que esses tenham a mais alta qualidade de estrutura e conteúdo ( AGUIAR; CORREIA, 2017 ; CAÑAS; NOVAK; REISKA, 2015), a fim de representar com a maior precisão possível as concepções, visões e crenças dos docentes (CAÑAS; REISKA; MÖLLITS, 2017, CORREIA; AGUIAR, 2017 , WILEY; FRANKLIN, 2017 ).
A coleta de dados envolveu entrevistas semiestruturadas mediadas por mapas conceituais. Entrevistas convencionais normalmente estabelecem-se por meio de perguntas e respostas em uma estrutura tipicamente linear ( CRESWELL; POTH, 2017 ). A transcrição das entrevistas na íntegra, feitas a partir das gravações de áudio, gera grande quantidade de informação, demandando alto custo de tempo para o tratamento de dados. Já as entrevistas mediadas por mapas conceituais (KINCHIN; STREATFIELD; HAY, 2010) diferem substancialmente dessa dinâmica pois, permitem:
(1) a coconstrução do mapa conceitual à medida que a entrevista ocorre;
(2) a visualização do discurso do entrevistado por meio da atenção focada em conceitos-chave e proposições que têm alto caráter explicativo;
(3) maior flexibilidade ao entrevistador, que pode adequar sua abordagem e perguntas dependendo das respostas do entrevistado; e
(4) a correção, refinamento e validação do conteúdo exposto pelo entrevistado durante e logo após o fim da entrevista, dispensando a transcrição integral dos discursos.
Os sujeitos da pesquisa foram informados sobre os propósitos da pesquisa logo no início das entrevistas. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido5 . Cada docente foi convidado a contar um pouco sobre sua trajetória acadêmica, de modo que o pesquisador reunisse informações demográficas profissionais tais como, tempo na carreira, atribuições e atividades, local de trabalho, disciplinas ministradas na graduação. Em seguida, cada dimensão da FP (incluindo ela própria como dimensão) foram mapeadas sequencialmente. Cada entrevista foi iniciada oferecendo ao docente uma folha A3 em branco, conceitos escritos em notas autoadesivas e perguntas gerais declaradas verbalmente ( Quadro 1 ).
Dimensões | Conceitos iniciais dados | Perguntas declaradas verbalmente |
---|---|---|
Discurso regulativo | Avaliação; Conteúdo do curso; Pressupostos; Sequência; Teorias; Valores. | O que se fala de ensino dentro da universidade? O currículo do seu curso está mais voltado para o desenvolvimento de valores ou para a instrução? Qual o papel da avaliação no currículo? |
Pedagogia e disciplina | Atividades; Autêntico; Disciplinar; Estratégias; Prática; Profissional. | A linguagem da disciplina é a mesma linguagem do ensino da disciplina? Considerando a disciplina que você leciona, o que se ensina é de fato o que os alunos aplicarão no contexto profissional? Em que medida o ensino e a avaliação são autênticos? |
Nexo pesquisa-ensino | Ensino; Motivação; Pesquisa; Recompensas; Reconhecimento; Status . | Considerando o contexto da universidade, da Unidade ou do seu Departamento, onde está o foco: na pesquisa ou no ensino? Existe ligação ou tensão entre essas atividades? Como elas se desdobram em recompensas, reconhecimento, status e motivação? |
Lócus de controle | Autonomia; Decisões; Melhores práticas; Orientação; Qualidade do ensino; Regulação. | Onde são tomadas as decisões sobre o ensino ou que afetam o ensino? Elas são centralizadas ou ocorrem fora da universidade? Qual é o seu grau de autonomia nas tomadas de decisão? Como se regulam as melhores práticas de ensino? Como se assegura a qualidade do ensino? |
Fragilidade pedagógica | Habilidade; Adaptar; Ambiente; Complexidade; Estresse; Integrar; Mudança; Resiliência; Sustentável. | O que você costuma fazer quando o ambiente de ensino se torna muito complexo ou quando você precisa fazer uma mudança em função de algo externo? Existe estresse nesse processo? Qual o papel da resiliência para você? Quando o ambiente se torna insustentável? |
Fonte: os autores.
O entrevistado (isto é, docente) prosseguiu sua narrativa, respondendo às perguntas e o entrevistador (isto é, pesquisador) manteve a discussão ativa solicitando, por meio de perguntas mais específicas, esclarecimentos sobre a conexão entre os conceitos e os verbos presentes nos termos de ligação que explicitavam tais conexões. Durante o processo de coconstrução do mapa conceitual, o docente pôde incluir ou excluir conceitos e proposições à medida que a entrevista ocorria. Por fim, foi feita a leitura do mapa de modo a encontrar possíveis incorreções ou imprecisões, validando o seu conteúdo a partir das concepções, visões e crenças do docente. A apresentação inicial e a construção colaborativa dos cinco mapas conceituais levaram em média 30 minutos cada, resultando em uma entrevista de aproximadamente 3h de duração por docente.
O mapa conceitual construído durante a entrevista é tomado como uma representação aproximada dos modelos mentais do entrevistado sobre cada uma das dimensões da FP. As concepções sobre ensino, visualizadas nos conceitos e proposições dos mapas conceituais, constituem-se no principal resultado a ser analisado no âmbito dessa pesquisa6 .
De posse dos 35 mapas conceituais coconstruídos durante as entrevistas, selecionamos cinco comparações (casos 1 a 5), considerando cada uma das dimensões constitutivas do modelo. A ideia foi explorar a validade do MFP aliado aos mapas conceituais como ponto de partida para reflexão da prática docente, bem como discutir os fatores que podem contribuir para a constituição das suas identidades profissionais ( BEAUCHAMP; THOMAS, 2009 ; KREBER, 2010 ).
Resultados e discussões: mapeando a concepção dos docentes universitários
De modo geral, as entrevistas mediadas por mapas conceituais tornaram visível as concepções, muitas vezes implícitas, sobre temas que informam as atividades de ensino dos sete docentes sujeitos da pesquisa. Os casos de 1 a 5, discutido a seguir, oferecem uma visão geral das concepções dos docentes, enquanto as informações sobre suas formações acadêmicas, o tempo na carreira docente e áreas de atuação na graduação permitiram uma melhor compreensão sobre os elementos que contribuem para o estabelecimento dessas concepções.
Caso 1: Discursos regulativo vs. instrucional e a formação acadêmica
O primeiro caso compara os mapas sobre a dimensão discurso regulativo dos docentes A e B, da área de Ensino de Ciências ( Figura 2 ). Ambos têm aproximadamente 12 anos na carreira acadêmica na mesma unidade de ensino e pesquisa e ministram aulas para o mesmo curso de Licenciatura em Ciências da Natureza. Apesar de vários conceitos aparecerem nos dois mapas, suas conexões com outros conceitos (as proposições) revelam diferenças marcantes.
No primeiro mapa da Figura 2 , é possível perceber uma predominância do discurso regulativo por parte do docente A uma vez que esse docente acredita que o currículo, pautado em premissas e teorias, deve estar centrado na formação dos futuros docentes de Ciências. Tanto o conteúdo conceitual e disciplinar como a sequência lógica do curso (discurso instrucional), são apresentados na base do mapa, tendo relevância menor em comparação aos demais conceitos. Isso pode ser observado neste trecho de sua fala:
O currículo deve considerar premissas fundamentais de ‘para quem’ e ‘para quê’. Ele é constituído pelas teorias, sendo estas o seu núcleo. O currículo atende ao indivíduo, considerando a formação do futuro professor de Ciências como um ser social que atuará na sociedade em seu entorno [...]. O grande problema é que, atualmente, o currículo deste curso privilegia mais os conteúdos disciplinares, com suas sequências lógicas, e menos a formação do sujeito. (Docente A).
Ao contrário dessa visão, o mapa da Figura 2 revela maior predominância do discurso instrucional por parte do docente B. Para ele, o currículo, expresso por uma sequência lógica de conteúdos disciplinares, requer planejamento. As premissas e teorias que embasam a construção desse currículo raramente passam por uma avaliação institucional. Por fim, ambos estão cientes da falta da inserção dos valores no currículo do curso ao qual estão atrelados. Essa visão fica clara quando o docente afirma que:
Ainda que os valores existam, eles não são expressos, negociados ou compartilhados na definição do currículo [...]. Imagina que o currículo é uma sequência. Para que serve este currículo? Para que o aluno entre sem saber muita coisa da sua carreira e saia um profissional. O currículo é expresso muito mais por esta sequência de conteúdos disciplinares do que pelos valores, que são implícitos. (Docente B).
Uma possível explicação para as diferenças observadas são suas formações acadêmicas e linhas de pesquisa. Enquanto o docente A é formado em Biologia e Filosofia e se autointitula pesquisador da área de Educação (linhas de pesquisas: epistemologia e filosofia da ciência), o docente B é formado em Química com atribuições industriais e se autointitula pesquisador que está “mudando de área”, a partir de um interesse de pesquisa na área educacional (linhas de pesquisa: mapas conceituais, aprendizagem e instrução).
São raras as oportunidades, durante a vida acadêmica, para se discutir o impacto desse discurso sobre como o currículo será entregue aos alunos. Poder explicitar, compartilhar e discutir as diferentes visões e concepções sobre o currículo pode ser um ponto de partida para o desenvolvimento de um profissional mais reflexivo ( SCHÖN, 2000 ) além da constituição de um currículo mais integrado ( BERNSTEIN, 1971 ).
Caso 2: Pedagogia e disciplina e os cursos universitários
O segundo caso estabelece uma comparação entre os mapas dos docentes B e C ( Figura 3 ), que ministram aulas de Química Geral para os cursos de Licenciatura em Ciências da Natureza e Bacharelado em Química, respectivamente. A inserção entre pedagogia e disciplina pode ser evidenciada, por exemplo, pelas relações conceituais no entorno do conceito profissional (em cinza na Figura 3 ). O primeiro mapa ressalta que, para o docente B, o conhecimento disciplinar subsidia a formação profissional. Porém, ainda que suas aulas abordem aspectos teóricos e práticos, não necessariamente elas precisam contemplar diretamente a formação para a prática profissional. Um exemplo observado na fala do docente, que justifica sua visão, coloca foco no papel da disciplina de Química Geral no curso de Licenciatura em Ciências:
O conteúdo disciplinar subsidia a formação profissional, mas as aulas não precisam contemplar diretamente esta formação. Por exemplo, ele está vendo na minha disciplina os conteúdos de termoquímica e cinética, mas ele ainda não está vendo como vai aplicar isso quando ele for professor. Quando ele for para uma disciplina de Ensino de Ciências da Terra e for estudar movimentos das placas tectônicas, ele vai resgatar os conhecimentos de termoquímica e cinética e, então, conseguirá ensinar Ciências tendo como base os conteúdos de Química. Por isso eu disse que subsidia, mas não contempla. (Docente B).
Em contrapartida, o segundo mapa evidencia que, para o docente C, o profissional precisará saber como resolver problemas reais com base na integração de diferentes fundamentos químicos e, por isso, suas aulas contemplam tanto os aspectos teóricos como as práticas de laboratório para solução desses problemas. Nesse caso, a disciplina de Química Geral tem papel fundamental na inserção dos conteúdos iniciais do curso, conforme o excerto extraído de sua fala:
Na minha aula os problemas são reais. Eu trago situações reais que acontecem nos laboratórios e nas indústrias para que os alunos resolvam. Para isso, eles precisam aplicar os fundamentos teóricos e, muitas vezes, realizar uma prática de laboratório para comprovar suas hipóteses [...] A disciplina introduz conceitos gerais e não específicos, então não há um conteúdo disciplinar rígido. (Docente C).
A similaridade nos discursos dos docentes refere-se às particularidades do ensino de Química, tais como a adoção de estratégias didáticas que envolvem fundamentos conceituais e teóricos da Química e aulas práticas de laboratório. Por outro lado, eles diferem quanto a inserção dessas linguagens para a formação do profissional, seja ele um Químico ou um futuro docente de Ciências.
O enfoque curricular da disciplina Química Geral nos cursos aos quais esses docentes estão atrelados pode justificar as diferenças observadas entre seus discursos. No Bacharelado em Química, essa disciplina representa um primeiro contato que o aluno tem com o conteúdo específico do curso, porém, é a primeira disciplina de muitas que ainda virão ao longo dos próximos anos. Oferecer uma visão geral dos conteúdos que ainda serão abordados, valorizando o conhecimento prévio, a participação do aluno e atividades práticas que os motivam à prática investigativa, pode garantir a permanência no curso, evitando evasão precoce. Já no curso de Licenciatura, apenas duas disciplinas contemplam conteúdos de Química Geral, sendo elas, sequenciais, complementares e pouco redundantes. Possivelmente, o contato mais profundo com os fundamentos voltados às transformações químicas será abordado neste momento do curso, o que pôde ter contribuído para que o docente valorizasse os conteúdos disciplinares em detrimento dos valores e premissas. Já os saberes da prática profissional (saber ensinar Química), serão extensivamente trabalhados em outras disciplinas pedagógicas do curso, tais como metodologia, instrumentação e didática do ensino de Ciências.
CASO 3: Nexo pesquisa-ensino e as expectativas da comunidade científica
O terceiro caso compara as conexões e tensões existentes entre as atividades de pesquisa e ensino na universidade retratadas nos mapas dos docentes B e D ( Figura 4 ). O docente B tem 12 anos de profissão na área de Ensino de Ciências em uma unidade voltada às humanidades e ciências enquanto o docente D é Biólogo e tem 40 anos de profissão junto ao departamento de Bioquímica.
Em linhas gerais, eles compartilham a visão de que a universidade na qual estão inseridos valoriza mais as atividades de pesquisa do que ensino, levando à obtenção de um maior reconhecimento, status e recompensas por parte da instituição, da academia, dos alunos e dos pares quando o docente é um bom pesquisador. Apesar disso, a motivação e a satisfação pessoal estão presentes nas atividades relacionadas ao ensino. Isso pode ser verificado na fala do docente B:
As atividades de ensino e pesquisa são assimétricas na universidade, devido à missão da própria instituição. Ela se declara como uma universidade de pesquisa; ela quer ser protagonista nos papers publicados no Brasil; ela se posiciona assim. Então, quem vem para esta universidade, sabe que vai ter a oportunidade de fazer pesquisa [...] Se eu faço pesquisa bem e eu sou um bom pesquisador, isso leva a uma maior recompensa, que pode ser tangibilizada, por exemplo, em um paper ou em um convite para uma parceria de pesquisa. Porém, eu me sinto tão motivado para fazer pesquisa como para o ensino...isso é totalmente pessoal e interno. (Docente B).
Aparentemente, o docente B apresenta uma visão simplificada e generalizada do nexo pesquisa-ensino quando comparado ao docente D. Provavelmente, isso ocorre, pois, o docente D tem maior tempo de carreira, apresentando uma visão mais detalhada tanto das expectativas da comunidade acadêmica (o uso de métricas de pesquisa para aprovar um candidato a docente no concurso da universidade), como das recompensas concretas oferecidas pela instituição (ascensão na carreira e aumento de salário).
Além disso, o docente D explicita com maior detalhamento os mecanismos de conexão entre ensino e pesquisa. Para ele, o conhecimento gerado na pesquisa expõe o docente a uma situação em que é preciso se movimentar para acomodar as novas informações e, então, ser capaz de oferecer estas aos seus alunos, tornando o ensino cada vez melhor. No excerto do seu discurso a seguir, fica clara a sua visão sobre a importância da pesquisa no ensino:
Quando o professor é também um pesquisador, isso o obriga a estar sempre atualizado. Estar exposto a este conhecimento gerado na pesquisa faz com que ele melhore o ensino, pois ele levará esse conhecimento para a sala de aula, para ser discutido com os alunos [...]. A universidade me cobra por mais resultados de pesquisa e eu, por me sentir mais motivado com o ensino, acabei conciliando as duas coisas fazendo pesquisa em ensino de bioquímica. (Docente D).
Já para o docente B essa conexão é mais simplista – a pesquisa gera um novo conhecimento, o qual é, de alguma forma, transmitido7 aos alunos por meio das práticas de ensino. Apesar dos dois acadêmicos diferirem em suas formações acadêmicas, tempo na carreira e filiação, ambos apresentam uma visão compartilhada quanto ao nexo pesquisa-ensino. As expectativas da comunidade científica, que corroboram implicitamente com as expectativas da universidade, exercem forte influência em como os docentes perceberão as recompensas relativas às atividades de ensino e a pesquisa. Explicitar e compartilhar essas percepções podem auxiliar no alinhamento e/ou adaptação aos valores institucionais em vigor.
CASO 4: Lócus de controle e os valores institucionais
O quarto caso compara os mapas que refletem a percepção dos acadêmicos D e E a respeito das tomadas de decisões que impactam o ensino e da autonomia institucional e individual nas práticas acadêmicas ( Figura 5 ). Ambos os docentes têm pelo menos 35 de carreira acadêmica na mesma universidade, porém, nas áreas de Educação (docente E) e Bioquímica (docente D).
O docente E descreve um mecanismo generalista de regulação e avaliação detalhando o processo em nível institucional (PRG e UES), nacional (DCNs e CNE/MEC)8 . As articulações entre esses níveis são complexas e podem ser explicitadas com mais detalhes na fala do docente:
A pró-reitoria de graduação precisa se subordinar às diretrizes de ensino, que vem pré-estabelecidas pelo conselho nacional de educação. Essas diretrizes são muito fechadas e homogeneizadas. Por exemplo, não é possível mudar a quantidade de horas de estágio que um aluno precisa fazer. Mas, pelo menos, os professores podem escolher os conteúdos que vão lecionar, dando uma certa autonomia individual. (Docente E).
Para ele, as unidades de ensino superior apoiam a autonomia docente e provêm mecanismos de avaliação em busca das melhores práticas de ensino. A presença de conselhos, comissões e congregações, formadas pelos próprios docentes da unidade e apoiadas por diretrizes e normas, representam sua percepção para um lócus de controle descentralizado e autônomo. Um padrão similar é observado no mapa do docente D, ainda que este tenha descrito mecanismos de regulação e avaliação em nível departamental. No caso da Bioquímica, as decisões que impactam o ensino são divididas entre seus docentes, por meio de uma comissão, e a unidade de origem, que apresenta a demanda por disciplinas específicas. Essa dinâmica, muito particular do departamento de Bioquímica, fica clara na fala do docente:
A unidade de origem faz a solicitação por uma disciplina de ‘xis’ créditos aqui no departamento e, nós, definimos o professor que será responsável por essa disciplina considerando o curso e os objetivos. Por exemplo, se for Bioquímica para Medicina é um perfil e se for Bioquímica para Química é outro. (Docente D).
Um ponto de contraste no discurso dos docentes D e E refere-se ao papel dos alunos na busca pelas melhores práticas de ensino. O docente da Educação relata que:
Em meu departamento, os alunos não são incluídos nas dinâmicas de avaliação dos docentes. Não há uma avaliação sistemática em que se pergunta diretamente aos alunos o que eles acharam de cada professor. Quem toma as decisões são as comissões de área [...] ainda que eu ache que os alunos deveriam ser acrescidos dessa avaliação, isso não é feito. (Docente E).
Já o docente da Bioquímica afirma que, em seu departamento, a comissão considera a opinião dos alunos no momento de alocar docentes em suas respectivas disciplinas. Essa diferença revela que, mesmo sob um regimento geral da universidade, as unidades de ensino têm autonomia suficiente para implementar mecanismos de regulação da qualidade localmente, considerando para isso uma avaliação sistemática que passa por ouvir seus docente e alunos ( DURHAM, [1989 ].).
Vale ressaltar que, para ambos os docentes, a presença de autonomia individual para as práticas de ensino (escolha dos conteúdos, avaliações e estratégias de ensino nas disciplinas) minimiza a sensação de falta de controle nas tomadas de decisão que mais impactam a qualidade do ensino (a falta de autonomia institucional).
CASO 5: Estresse, resiliência acadêmica e o tempo na carreira
O último caso a ser ilustrado compara os mapas produzidos durante a entrevista com quatro docentes C, D, F e G ( Figura 6 ) do Instituto de Química, a respeito da própria FP. Os docentes C e D têm mais de 25 anos de carreira acadêmica, enquanto os docentes F e G têm menos de 12 anos. Nitidamente, os mapas apresentam diferenças entre si, tanto em forma como conteúdo. Por exemplo, o conceito ambiente (em cinza na Figura 6 ) está presente em todos os mapas, mas com diferentes significados e níveis hierárquicos – desde o mais geral como o todo e o sistema educacional , até os mais específicos, como o Instituto de Química e a sala de aula.
Os docentes mais jovens na carreira (F e G) apresentaram uma visão mais negativa sobre a necessidade de adaptação e integração em um ambiente de alta complexidade. O docente F entende a resiliência como algo que impede o processo de mudanças, evidenciando uma concepção que se assemelha ao de resistência em vez de capacidade de lidar com a complexidade ( HOWARD; JOHNSON, 2004 ). É possível observar em sua fala um sentimento de impotência, uma vez que para esse docente:
O sistema educacional, de posse da autonomia e poder, poderia facilitar os processos complexos da prática docente, mas não o faz, dificultando a vida do professor. (Docente F).
O docente G atribuiu às pessoas a sua volta (colegas) a fonte de complexidade e estresse do seu dia a dia, o que o leva, geralmente, ao estado de isolamento. Além disso, não há percepção de escolha quando as mudanças são impostas pelo Departamento, sendo a adaptação a única forma de sobrevivência nesse ambiente em constante evolução. Conforme relatado durante a entrevista, para esse docente:
As pessoas simplesmente não sabem conversar para chegar a um acordo. Normalmente, cada um está buscando para si o que é melhor. Quando as mudanças são impostas, as pessoas oferecem todo tipo de resistência. Para não discutir, eu acabo não me envolvendo em questões pedagógicas; acabo me isolando na minha sala e dando as minhas aulas. (Docente G).
Já os docentes com maior tempo na carreira acadêmica (C e D) apresentaram uma visão mais positiva no que tange à complexidade inerente ao processo e ambiente de ensino. O docente C também atribuiu aos seres humanos a imprevisibilidade e a complexidade do ambiente. Porém, em sua visão:
As mudanças podem ou não acontecer e isso vai depender de estímulos externos. Estes estímulos prepararam o professor para lidar com situações próprias do ambiente de ensino. Por exemplo, se eu preciso dar uma nova disciplina que nunca foi dada, isso é um estímulo externo que faz com que eu me adapte e me prepare para o que vai vir. Mas, da próxima vez que isso acontecer, eu já estarei mais preparado e terei aprendido a lidar com este tipo de imprevisibilidade. (Docente C).
O docente D revela encadeamento quase linear onde uma situação leva ou depende de outra para acontecer. Para ele, o equilíbrio desejado entre as partes do sistema (docente e alunos) não é estático, mas dinâmico. A complexidade, imposta pela sala de aula, é vista como algo natural. Esse docente não atribuiu às pessoas a presença de complexidade, mas sim da necessidade de as mudanças requererem reconciliação – na maioria das vezes não paritárias. Em suas palavras:
O docente é a autoridade em sala de aula e o responsável por manter o equilíbrio entre as partes que compõe o sistema, evitando situações de estresse em face da complexidade. O sucesso deste processo dinâmico e natural depende da experiência do docente, adquirida ao longo da sua trajetória acadêmica. (Docente D).
No discurso de ambos os docentes C e D, é possível observar um descritor semelhante ao de como as pessoas adquirem resiliência na vida, com o passar dos anos, por meio da interação com outros e de experiências providas pelo externo/ambiente ( GROTBERG, 2005 ; TAVARES, 2001 ).
É importante ressaltar que, independentemente do tempo de carreira ou mesmo de uma visão mais positiva ou negativa sobre a complexidade de um ensino em evolução, a percepção e o conceito de estresse pode ou não estar presente em suas narrativas. Para dois dos docentes (G e D), o estresse se fez presente em seus discursos ainda que em contextos diferentes – das pessoas que compõem o sistema ou das próprias mudanças impostas no decorrer do processo de ensino e aprendizagem, respectivamente.
Considerações finais: algumas contribuições, limitações e perspectivas
Os acadêmicos que ensinam na universidade estão inseridos em um ambiente profissional complexo, com elevado potencial de estresse. O MFP foi desenvolvido para visualizar os fatores que contribuem para as atividades acadêmicas, a fim de proporcionar maior sensação de coerência sobre a nossa contribuição como docentes e para ajudar a gerenciar esse estresse.
Quando as dimensões do modelo estão em tensão umas com as outras, observa-se um ambiente marcado pela FP, no qual são preservadas as práticas de ensino tradicionais e conservadoras, possivelmente desatualizadas. Tornar visível, compartilhar, discutir e resolver tais tensões à medida que a vida acadêmica ocorre é um desafio à formação docente e às instituições de ensino superior que desejam melhorar o ensino oferecido aos seus alunos. A busca por relações significativas entre as dimensões do modelo, a partir do estabelecimento de um diálogo aberto e franco dentro da academia, parece ser um ponto de partida para o desenvolvimento pedagógico sistemático dos docentes universitários.
O estudo de caso, reportado neste artigo, mostrou (1) como entrevistas mediadas por mapas conceituais auxiliam a sistematizar, organizar e visualizar o discurso dos docentes, mantendo um foco atento aos elementos-chave que compõem cada dimensão do modelo e (2) como estabelecer, na prática, um ponto de partida para um diálogo produtivo com os docentes sobre suas trajetórias acadêmicas, opções didáticas, visões de ensino e pesquisa, concepções de currículo. De modo geral, os resultados mostraram que as visões, concepções e valores dos acadêmicos são individualizadas e sensíveis aos cursos e disciplinas que lecionam, ao tempo na carreira e aos valores do departamento, da unidade ou da instituição aos quais estão vinculados.
Além disso, o fato de os sujeitos da pesquisa serem todos da área de Ciências Naturais e/ou Ensino de Ciências também merece destaque. Tradicionalmente, as disciplinas acadêmicas classificada como “duras”9 (Química, Física, Matemática) apresentam pouca tradição em discutir questões pedagógicas que embasam seu ensino, voltando-se à aquisição de conhecimento atinente apenas aos conteúdos disciplinares. Mesmo os cursos de Licenciatura nessas áreas privilegiam o conteúdo especializado em detrimento à formação pedagógica, não oferecendo, portanto, subsídios práticos aos futuros docentes de Ciências. A criação dos cursos de pós-graduação em Ensino de Ciências vem contribuindo para a formação continuada desses docentes, além de permitir a inserção de uma nova geração de professores-pesquisadores nas universidades voltada para essa área, essencialmente interdisciplinar. Algumas comparações feitas neste artigo iluminaram a diferença entre as concepções de docentes dessas áreas, evidenciando a formação de uma identidade profissional socialmente constituída pelos seus membros.
Uma das principais limitações do modelo é o fato do conceito de fragilidade apresentar uma conotação negativa, muitas vezes sendo mal compreendido como “fraqueza” ou “limitação”. Ao contrário da fragilidade médica, aquela pedagógica não deve ser considerada como uma capacidade individual do docente per se , mas sim, como resultado da qualidade e do grau de interação com os elementos-chave do ambiente profissional. Além disso, uma caracterização ou julgamento pessoal e individual é inútil quando se deseja obter a abertura necessária para o desenvolvimento docente. Para minimizar esta limitação, sugerimos uma releitura do MFP considerando um possível análogo positivo: a resiliência acadêmica. O mapa conceitual da Figura 7 mostra a nossa proposta de reformulação do modelo, dando ênfase na resiliência acadêmica.
Outro desafio à disseminação do modelo em larga escala é o tempo necessário para a condução das entrevistas. Além disso, há a necessidade de um pesquisador que compreenda não só o modelo, mas também a técnica de mapeamento conceitual aliada à metodologia de entrevistas. Estudos futuros devem direcionar pesquisas (1) em busca de formas mais ágeis de coleta de dados que possam substituir o processo de entrevista ou, pelo menos, reduzir o tempo necessário para sua condução; (2) para o desenvolvimento de atividades mediadoras de elaboração e edição de mapas conceituais, explorando as diferentes dimensões do modelo; (3) teóricas e práticas de revisão ou expansão do modelo considerando diferentes contextos, perfis docentes e áreas de conhecimento.
Por se tratar de um novo panorama teórico (com implicações práticas) para o desenvolvimento pedagógico de docentes universitários, as pesquisas a respeito desse assunto ainda estão em fase de disseminação e merecem ser exploradas, testadas, validadas e adaptadas para nossa realidade educacional. Acreditamos que ainda há espaço na literatura para se discutir a efetividade do modelo nas mais diferentes áreas de conhecimento, bem como o impacto em âmbito individual, departamental e institucional.