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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 10-Set-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945193129 

Artigos

Concepções educativas morais de crianças e adolescentes: diálogo entre teoria do juízo moral de Piaget e teoria do domínio social de Turiel 1

Luciana Maria Caetano2 
http://orcid.org/0000-0003-2068-7375

Jackeline Maria de Souza2 
http://orcid.org/0000-0003-3402-3481

Cecilia Onohara da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-6980-2963

Paulo Yoo Chul Choi2 
http://orcid.org/0000-0003-1198-5282

2- Universidade de São Paulo, SP – Brasil. Contatos: lmcaetano@usp.br; jackeline.souza1@gmail.com; cecilia.onohara@gmail.com; paulo.choi@usp.br


Resumo

A presente pesquisa teve como objetivo principal a investigação das concepções educativas morais de crianças e adolescentes, focando em suas compreensões acerca do papel dos pais como educadores e formadores. Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva e de análise qualitativa e quantitativa. Os dados foram coletados por meio de entrevistas estruturadas, utilizando um instrumento embasado na teoria do domínio social e na Piagetiana. Participaram 45 sujeitos, de 10 a 13 anos, alunos de uma escola pública de um bairro periférico de um município da Grande São Paulo. Os resultados indicaram: pouca presença de justificativas morais e a grande proporção de justificativas convencionais; obediência mesmo quando não legitimando a autoridade parental; pouca reivindicação por autonomia; notou-se que a legitimidade da autoridade parental, a obrigatoriedade da regra e a obediência da regra predominam, em maior grau, nas situações que foram classificadas previamente como sendo de domínios moral, prudencial e convencional, diferente das situações que envolvem o domínio pessoal. Ao considerar os resultados encontrados, pode-se afirmar que, sob o ponto de vista dos participantes dessa amostra, o papel dos pais está muito relacionado ao estabelecimento de regras sobre todos os conteúdos das interações sociais dos filhos. Além disso, a autoridade deles é frequentemente legitimada, com exceção dos assuntos percebidos como de domínio pessoal. Ao consultar a literatura da área, observa-se que pais e filhos têm percepções diferentes sobre justiça, obediência, autonomia e respeito em suas relações. Sugerem-se novas pesquisas com diversificação da amostragem e a inserção da variável religião, dada a quantidade de justificativas referentes à temática.

Palavras-Chave: Concepções educativas morais; Teoria do Domínio Social; Jean Piaget

Abstract

The main objective of this research was to investigate the moral educational conceptions of children and adolescents, focusing on their understanding of the role of parents as educators and character formers. It is an exploratory, descriptive research of qualitative and quantitative analysis. The data were collected through structured interviews, using an instrument based on social domain theory and Piaget’s theory, with participation of 45 persons aged 10 to 13 years, students of a public school in a peripheral neighborhood of a municipality in the São Paulo Metropolitan Region. The results indicated: little presence of moral justifications and the large proportion of conventional justifications; obedience even when not legitimizing parental authority; little claim for autonomy; it was noted that the legitimacy of parental authority, the binding character of a rule and rule compliance predominate to a greater degree in situations that have previously been classified as being of moral, prudential and conventional domains, different from situations of personal domain. Considering the results it can be said that, from the point of view of the participants in this sample, the role of the parents is strongly related to the establishment of rules about all the contents of the children’s social interactions. In addition, their authority is often legitimized, except on matters perceived as personal domain. In consulting the literature of the area, it is observed that parents and children have different perceptions about justice, obedience, autonomy and respect in their relationships. We suggest new researches with diversification of the samples and the insertion of the variable “religion”, given the amount of justifications referring to it.

Key words: Moral educational conceptions; Social domain theory; Jean Piaget

A presente pesquisa teve como objetivo principal a investigação das concepções educativas morais de crianças e adolescentes, focando em suas compreensões acerca do papel dos pais como educadores e formadores. A proposta do estudo foi dialogar duas perspectivas teóricas: a teoria do juízo Moral, de Jean Piaget ( PIAGET, 1994 [1932]) - considerada como marco referencial e ponto de partida de grandes pensadores da psicologia moral, como Lawrence Kohlberg, e a teoria do domínio social, uma abordagem contemporânea com consistente fundamentação empírica ( TURIEL, 1983 , 1989 ).

Essas duas perspectivas teóricas são construtivistas e assumem o pressuposto epistemológico do interacionismo como ponto de partida para suas investigações. Desse modo, ainda que tenham objetos de estudos e perguntas de pesquisa diferentes, ambas pensaram sobre o desenvolvimento moral da criança. Assim sendo, é possível pensar um diálogo entre as duas abordagens. Piaget interessou-se pelo estudo do sujeito epistêmico e em um de seus primeiros livros ( PIAGET, 1994 [1932]) apresentou seu estudo acerca da construção e do desenvolvimento da normatividade moral pelas crianças. A teoria do domínio social aprofundou-se em investigar aspectos do sujeito psicológico que julga e age, coordenando os diferentes domínios do conhecimento social que coexistem em suas atitudes e decisões, sendo a moral um desses aspectos construídos pela criança ao interpretar, imitar e estabelecer relações com as pessoas, integrados todos no mundo social ( TURIEL, 1989 ).

Segundo Turiel e Gingo (2017) , a grande divergência entre as duas teorias diz respeito a se o desenvolvimento moral é aprimorado de acordo com a passagem do tempo, ou seja, varia com a idade, ou se cada domínio do conhecimento moral, entre eles o domínio moral, tem um padrão específico de desenvolvimento. Por outro lado, autores como Sokol e Chapman (2004) ; Carpendale (2006) não acentuam a divergência entre as duas perspectivas teóricas, mas, ao contrário, afirmam se tratar de teorias com um número maior de aspectos convergentes e que se complementam.

De acordo com Piaget (1994 [1932]) os indivíduos nascem sem qualquer conhecimento a respeito do mundo normativo (anomia), de forma que as regras começam a ser aprendidas ao longo do seu desenvolvimento e socialização. A grande contribuição do autor para a área consistiu em afirmar a existência de duas morais na criança – heterônoma e autônoma. Segundo Piaget (1994 [1932]) os tipos de relações vivenciadas pela criança são responsáveis por oportunizar ou não a moral autônoma que, para ele, é uma forma de equilíbrio superior à moral heterônoma.

A coação é um tipo de relação social caracterizada pelo respeito unilateral da criança para com o adulto. Ela tende a consolidar a moral da heteronomia, que implica obedecer às pessoas. Assim, a autoridade do adulto e suas regras são legitimadas pela criança e devem ser cumpridas tal como propostas. Por sua vez, as relações de cooperação, caracterizadas pelo respeito mútuo e pela reciprocidade, permitem à criança desenvolver a moral da autonomia, que consiste em obedecer às regras e às normas legitimadas como justas e favorecedoras da manutenção da dignidade humana ( PIAGET, 1994 [1932]; 1986 [1964]; CARPENDALE, 2006 ; LA TAILLE, 2006 ).

Ao pensar no contexto das relações entre pais e filhos, Caetano (2009) afirma que as relações pautadas unicamente em respeito mútuo não são possíveis dada a estrutura hierárquica da relação. Caetano (2009) dedicou-se ao estudo das relações entre pais e filhos e, com base na teoria piagetiana, formulou a escala de concepções educativas ( CAETANO; SOUZA; SILVA, 2016 ) utilizando quatro construtos relevantes para a compreensão do processo de educação moral, sendo eles: obediência, respeito, justiça e autonomia.

A obediência é apontada por Piaget (1994 [1932]) como a gênese da moral da criança. Os estudos de Caetano (2005) mostraram que muitos pais acreditam que a melhor forma de fazer seus filhos obedecerem é a imposição da sua autoridade, com gritos, ameaças e castigos físicos, pois, dessa forma, as crianças entendem quem manda, sentem medo e cumprem os seus deveres. Essa prática parental brasileira excessivamente coercitiva tende a promover a obediência entre as crianças, e, portanto, favorece a moral heterônoma. Essa obediência pode ser superada, segundo Piaget (1932/1994), se as relações entre crianças e adultos mudarem seu caráter coercitivo para formas de cooperação.

Outro construto relevante para compreender as relações entre pais e filhos é o respeito, descrito por Piaget (1932/1994) como o sentimento de obrigatoriedade moral. Segundo La Taille (2006) , trata-se de um invariante funcional da construção da consciência do ser humano em prol do agir bem. O cumprimento da regra, para Piaget (1994 [1932]), existe na condição de que haja respeito pelo emissor da ordem e esse respeito deriva da combinação dos sentimentos de amor e temor. Entretanto, para Piaget (1994 [1932]), o temor está na base do respeito unilateral, e, portanto, do desenvolvimento moral heterônomo.

Já a justiça, chamada por Piaget (1994 [1932]) como a condição imanente e a lei de equilíbrio das relações sociais, é considerada pelo autor como a mais racional das virtudes. A justiça é um sentimento inerente na criança e acompanha o seu desenvolvimento cognitivo. A criança pequena demonstrou, nos estudos piagetianos, uma justiça atrelada às punições, chamada pelo autor de justiça retributiva. Essa é, mais tarde, superada por uma forma de justiça mais evoluída, intitulada de justiça por igualdade, a qual tende para um equilíbrio superior, quando é aplicada para além da distribuição igualitária, atendendo às especificidades da necessidade de cada um, quando então se intitula justiça por equidade ( PIAGET, 1994 [1932]), 1986 [1964]; LA TAILLE, 2006 ).

Por fim, a autonomia é compreendida como uma construção do próprio sujeito, mas que só é possível mediante à vivência de relações de cooperação, baseadas no respeito mútuo e que, muitas vezes, exigem a submissão dos desejos e interesses particulares ao bem coletivo ( PIAGET, 1994 [1932]).

Teoria do domínio social: contribuições contemporâneas acerca da legitimidade da autoridade parental

A teoria do domínio social parte do pressuposto de que o conhecimento moral e social da criança é construído por meio de interações indivíduo-ambiente. Aspectos dessas interações levam às variações e às concordâncias nos julgamentos morais e sociais ( TURIEL, 1983 ). Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento moral é mais bem compreendido pela análise psicológica dos julgamentos morais, os quais podem ser classificados em territórios ( domains ) ou estruturas conceituais. Esse modelo teórico propõe, inicialmente, a existência de três domínios sociais: moral, convencional e pessoal ( SMETANA, 2013 ).

O domínio moral diz respeito à preocupação com direitos, justiça e bem-estar. Tem como critérios a generalização (com relação a contextos sociais), obrigatoriedade (em executar/não executar uma ação; seguir/não seguir uma regra), inalterabilidade e independência de regras e de autoridade (não é preciso que uma regra ou autoridade estipulem se a ação é certa ou não) ( TURIEL, 1983 , 1989 ; SMETANA, 2006 ; TURIEL; GINGO, 2017 ). Justificativas de domínio moral fazem referência às consequências intrínsecas do ato para o bem-estar ou direito dos outros.

Já os critérios para o domínio convencional são: a relatividade contextual, alterabilidade e dependência de regras ou autoridades. O domínio convencional é justificado a partir de referências feitas à autoridade, às expectativas sociais, às argumentações em favor da manutenção da organização e às ordens sociais ( TURIEL, 1983 , 1989 ; SMETANA, 2006 ).

O domínio pessoal, por sua vez, refere-se à compreensão das pessoas como sistemas psicológicos, incluindo conhecimentos sobre o próprio comportamento e o dos outros; à construção de concepções de self , personalidade e identidade, bem como as tentativas de compreender causas psicológicas e inferir significados ( SMETANA, 2013 ). Ele engloba ações consideradas como fora do âmbito da regulação social e da preocupação moral, pois abrange questões de preferência e cujas consequências só afetam primariamente seu executor ( NUCCI, 1981 ). Regras acerca de assuntos avaliados como de domínio pessoal não são reconhecidas pelos indivíduos, de modo que suas violações são julgadas como “não erradas” ou “menos erradas” do que violações de regras do domínio moral ou social ( NUCCI, 2013 ).

Além dos três domínios básicos, as pesquisas mais recentes abordam também questões prudenciais e multifacetadas. As questões multifacetadas apresentam aspectos de mais de um domínio. As pessoas podem ter julgamentos discordantes por terem informações diferentes sobre as questões ou pelo peso atribuído a elementos da situação ( NUCCI, 2000 ). Para Smetana (2013) , é a natureza multifacetada de muitos fatos sociais que produz variabilidade contextual e desenvolvimental e as inconsistências de julgamentos. Já as questões prudenciais envolvem atos que têm consequências imediatas, negativas e percebidas diretamente sobre si mesmo, relacionando-se com preocupações acerca de segurança, perigo, conforto e saúde ( SMETANA; ASQUITH, 1994 ; SMETANA, 2010 ).

Ao compartilhar essa fundamentação teórica, Smetana e Asquith (1994) , tomando por objeto a relação pais e filhos, descobriram que as situações hipotéticas envolvendo os domínios moral, convencional e prudencial foram consideradas como legítimas à autoridade parental, logo, os pontos de discordância entre pais e filhos estão classificados dentro de um domínio pessoal.

Estudos mais recentes indicam que outras variáveis podem influenciar essa relação, por exemplo, jovens de níveis socioeconômicos mais altos legitimam menos a autoridade parental a respeito de assuntos considerados de domínio pessoal ( NUCCI; CAMINO; SAPIRO, 1996 ). O nível de escolaridade dos pais ( SMETANA; AHMAD; WRAY-LAKE, 2015 ) e diferentes contextos socioculturais são outras variáveis que podem produzir alterações na legitimação da autoridade parental ( SMETANA; CREAN; CAMPIONE‐BARR, 2005 ; ZHANG; FULIGNI, 2006 ; SMETANA; AHMAD; WRAY-LAKE, 2015 ), mas os diferentes domínios são sempre identificados. Ou seja, a mudança de contexto parece gerar mudanças no escopo de cada domínio e nas interpretações sobre práticas parentais, mas a existência dos domínios e suas diferenciações parece comprovada por um número significativo de estudos empíricos ( SMETANA; JANBOM; BALL, 2014 ; ROTE; SMETANA, 2016 ).

Encontram-se entre os resultados das pesquisas embasadas pela teoria do domínio social, principalmente as que investigam a família como contexto de desenvolvimento e educação moral ( TURIEL, 1983 , 1998 ), que conflitos entre pais e adolescentes frequentemente não ocorrem no domínio moral, pois os filhos concordam que questões relativas a esse domínio devam ser objetos da autoridade parental ( NUCCI; HASEBE; LINS-DYER, 2005 ; SMETANA, 2010 ; ROTE; SMETANA, 2016 ).

Entretanto, Caetano (2009) , utilizando a teoria do juízo moral, identificou a dificuldade dos pais em construir relações com seus filhos pautadas no respeito, na justiça e na autonomia, além de diferenciar juízo moral de ação moral. Os quatro construtos utilizados como parâmetros para analisar as concepções educativas no estudo indicaram conflitos morais nas relações entre pais e filhos, o que vai de encontro aos resultados da teoria do domínio social.

Tendo em vista essa discrepância de resultados, buscou-se no presente estudo discutir a relação entre pais e filhos, no tocante à influência desses responsáveis no desenvolvimento moral das crianças e adolescentes, utilizando instrumentos de ambas as perspectivas teóricas mencionadas, a fim de verificar se os instrumentos produzem resultados contraditórios, conforme sugerido por pesquisas anteriores.

Assim, a presente pesquisa investigou o que pensam crianças e adolescentes acerca do papel dos pais como educadores; as concepções de crianças e adolescentes acerca da independência e contingência da autoridade parental em atos de diferentes domínios sociais; comparou as concepções educativas morais de crianças e adolescentes em relação às concepções educativas morais de pais encontradas no estudo de Caetano (2009) e estabeleceu as correlações entre as concepções educativas e morais e as concepções de legitimidade parental de crianças e adolescentes.

Método

Participantes

Participaram do estudo 45 crianças e adolescentes, 31 do sexo feminino (69%) e 14 do sexo masculino (31%), do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, sendo 1 aluno do 6º ano (2,2%), 21 do 7º ano (46,7%), 13 do 8º ano (28,9%) e 10 do 9º ano (22,2%). As idades dos participantes variaram entre 10 e 13 anos de idade, sendo 1 de 10 anos (2,2%), 20 de 11 anos (44,4%), 14 de 12 anos (31,1%) e 10 de 13 anos (22,2%). Dentre os 45 sujeitos apresentados, 14 (31,1%) moram com o pai e com a mãe, 7 (15,6%) com os pais e com os irmãos, 5 (11,1%) moram somente com a mãe, 4 (8,9%) com a mãe e com os irmãos, 2 (4,4%) com o pai e com os irmãos, 2 (4,4%) com a mãe, com o padrasto e com os irmãos, 1 (2,2%) com os avós e 10 (22,2%) foram classificados na categoria outros. Todos os participantes estudam em uma escola pública situada em um bairro periférico de um município da Grande São Paulo.

Instrumentos

Foram utilizados dois instrumentos: o questionário de Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire ( Stimuli Test ) ( SMETANA; ASQUITH, 1994 ), traduzido e adaptado para o contexto brasileiro; e a Escala de Concepções Educativas (ECEM) ( CAETANO; SOUZA; SILVA, 2016 ), adaptada ao público mais jovem.

O instrumento oriundo da teoria do domínio social, Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire, investiga as concepções da legitimidade da autoridade parental nos diferentes domínios. Apresenta situações previamente classificadas em domínios (moral, convencional, pessoal, multifacetado e prudencial). No total, o instrumento tem 16 situações, são elas: pegar dinheiro dos pais sem permissão; bater nos irmãos; mentir para os pais; quebrar uma promessa com os pais; falar palavrão; sair de casa de pijama; comer de boca aberta; dar gargalhadas no velório; escolher a própria profissão; escolher as próprias roupas; fazer tatuagem; escolher os próprios amigos; colocar piercing ; fumar cigarros; comer alimentos não saudáveis e beber bebida alcóolica.

Para cada um dos 16 itens foram realizadas questões a fim de investigar, em primeiro lugar, a legitimidade da autoridade parental, bem como a obrigatoriedade, a obediência à regra e a contingência do ato à autoridade dos pais. Em seguida, investigaram-se as justificativas dadas pelos participantes a respeito do motivo de cada item estar certo ou errado. A partir dessas justificativas, as respostas foram classificadas segundo os domínios de conhecimento da teoria do domínio social. Para tanto, foram realizadas 7 perguntas: 1- Você acha certo ou errado os pais fazerem uma regra sobre (o item)?; 2- Você acha que os pais devem fazer uma regra sobre (o item)?; 3- Se os pais fizerem essa regra sobre (o item), você tem que concordar com ela e segui-la? Por quê?; 4- Você acha que (o item) é certo ou errado? Por que (o item) está certo ou errado?; 5-Escolher entre as opções: I- Isso é sempre errado, mesmo quando os pais dizem que não está errado; II- Isso é errado, apenas se os pais dizem que está errado; e III- Não é uma questão de certo ou errado. É uma escolha individual.

A ECEM ( CAETANO; SOUZA; SILVA, 2016 ) adaptada apresenta 23 itens que foram avaliados em uma escala do tipo Likert de concordância de 7 pontos que variou de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”, tendo um ponto central neutro de “não concordo, nem discordo”. Esses 23 itens estavam divididos de acordo com os construtos piagetianos descritos acima, sendo o construto justiça representado por 8 itens; obediência foi verificado a partir da média de 4 itens; o mesmo número de itens do construto respeito; autonomia com 7 itens.

Procedimento

Os dois instrumentos utilizados para a coleta de dados foram aplicados por meio de entrevistas individuais, que duravam em média de 50 minutos. A amostra foi selecionada por conveniência (crianças que aceitaram participar de forma voluntária do projeto e cujos pais assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, autorizando a participação dos filhos). O projeto foi submetido e aprovado (CAE: 57269816.0.00005561) pelo Comitê de Ética de Pesquisas com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, portanto, todos os procedimentos éticos para pesquisa com seres humanos foram cumpridos. O local de aplicação dos instrumentos foi uma escola pública situada em bairro periférico de um município da Grande São Paulo.

Os dados foram analisados de forma qualitativa e quantitativa. As respostas apresentadas no Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire foram analisadas por estatística descritiva, apresentando a porcentagem de legitimidade da autoridade parental, de contingência, obrigatoriedade e obediência às regras. Além disso, foi feita uma comparação entre os domínios eleitos pelos sujeitos - classificados a partir das justificativas dos participantes em relação aos critérios teóricos - e os domínios previamente classificados. Em relação aos dados levantados pela ECEM, foi apresentada a média do escore de cada construto. Por fim, foram realizados testes da estatística inferencial: correlação entre os escores da ECEM e variáveis sociodemográficas; e teste t de comparação de média dos escores da ECEM entre os sujeitos que legitimam ou não a autoridade parental investigada no Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire.

Resultados

Inicialmente, as justificativas dos participantes foram classificadas com base nos critérios teóricos de definição dos diferentes domínios de conhecimento social: moral, convencional, pessoal, prudencial e multifacetado. Observaram-se entre as respostas as seguintes justificativas:

  1. Morais: prejudicar o outro, ferir os sentimentos alheios, quebrar relações de confiança mútua, ferir física e psicologicamente;

  2. Convencionais: ter problemas com autoridade (“bronca”, “castigo”), ser contra a lei (“vira ladrão”), manter a ordem (“é errado”), seguir conforme o esperado pelos membros familiares, seguir as normas familiares, corresponder às expectativas sociais (“ir por um mal caminho”), seguir a religião (“minha religião não permite”), seguir a lei de Deus (“não é conforme a lei de Deus”);

  3. Pessoal: ter ou possibilitar escolha individual (“a pessoa escolhe”, “é uma escolha individual”, “não é certo e nem errado, mas depende da pessoa”);

  4. Prudenciais: possibilitar dano físico para o próprio sujeito (“gera doença”, “pode fazer mal”, “pode levar a morte”, “inseguro ou prejudicial para si mesmo”);

  5. Multifacetado: respostas que em si continham critérios de mais um domínio;

  6. Outras: depender do contexto, especificidade da questão do palavrão, não saber, vocação.

O Instrumento Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire indicou que, de modo geral, houve um número baixo de respostas de cunho moral, não havendo nenhuma situação com julgamento predominantemente do mesmo âmbito, uma vez que mesmo o item mais prototípico, o qual representava causar dano físico ao outro (bater no irmão), foi julgado com base no domínio convencional. Devido a esse número elevado de respostas convencionais, as justificativas emitidas pelos participantes não estão em consonância com os domínios previamente definidos. Esses dados podem ser observados na Tabela 1 .

Tabela 1 – Classificação prévia dos itens segundo os domínios de conhecimento da teoria do domínio social e porcentagens das respostas dos participantes 

Situações/ Porcentagem de Resposta Classificação prévia Moral Conv.* Pes.* Prud.* Mult.* Outro
Pegar dinheiro dos pais sem permissão Moral 9% 82% - - 7% 2%
Bater no irmão Moral 29% 64% - - 4% 2%
Mentir para os pais Moral 16% 78% 2% - - 4%
Quebrar promessa com os pais Moral 18% 78% - - - 4%
Falar palavrão Convencional 33% 66% - - 2% 2%
Sair de casa de pijama Convencional - 86% 7% - 2% 4%
Comer com a boca aberta Convencional - 93% 4% - - 2%
Gargalhar no velório Convencional 44% 51% - - - 4%
Escolher a própria profissão Pessoal - - 98% - - 2%
Escolher as próprias roupas Pessoal - 18% 76% - 2% 4%
Fazer tatuagem Multifacetado 2% 36% 42% 11% - 9%
Escolher os amigos Multifacetado - 27% 60% - 4% 9%
Colocar piercing Multifacetado - 31% 44% 13% 7% 4%
Fumar cigarros Prudencial 2% 2% 11% 78% 4% 2%
Comer alimentos não saudáveis Prudencial - 16% 22% 53% 2% 7%
Beber bebida alcóolica Prudencial 4% 20% 11% 53% 9% 2%

Fonte: elaboração dos autores, a partir dos dados da pesquisa.

*Nota: Conv. = Convencional; Pes. = Pessoal; Prud. = Prudencial; Mult, = Multifacetado.

Vale destacar que a situação de dar gargalhadas no velório, previamente classificada como de domínio convencional em virtude das características culturais que determinam esse momento, apresentou mais respostas morais (44%) do que pegar dinheiro dos pais sem permissão (9%), bater no irmão (29%), mentir para os pais (16%) e quebrar promessa com os pais (18%). Contudo, ainda com esse percentual mais alto, esse item apresentou uma porcentagem de justificativas convencionais maiores do que as justificativas morais, conseguindo observar o predomínio da convencionalidade na concepção educativa dos participantes.

Ademais, observa-se uma congruência entre as respostas dadas pelos participantes com as classificações dos domínios prévios nas situações de domínio pessoal e prudencial, a saber: escolher a própria profissão, a própria vestimenta e na situação sobre fumar cigarros, apresentando respectivamente 98%, 76% e 78% dessa concordância e coerência entre os elementos citados.

Além do instrumento Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire ter o propósito de apresentar as respostas descritas na Tabela 1 , ele também investiga acerca da legitimidade da autoridade parental, da obrigatoriedade, da obediência da regra e da contingência. A legitimidade está vinculada com as regras legítimas colocadas pelos pais, já a obrigatoriedade com a necessidade dos pais de fazerem certas regras, enquanto que a obediência com o cumprimento das regras por parte das crianças e, por fim, a contingência, que é relativa à possibilidade na mudança da concepção da criança pela jurisdição pessoal ou pela autoridade parental. Dessa forma, observam-se a seguir as respostas dos participantes acerca desses conceitos apresentados na Tabela 2 .

Tabela 2 – Porcentagem de respostas que representam a legitimidade da autoridade parental, contingência, obrigatoriedade e obediência às regras segundo cada situação apresentada ao participante. 

Resposta L.A.* OBR.R.* OBE.R.* C.SE.* C.SP.* C.E.P.*
Pegar dinheiro dos pais sem permissão 89% 87% 100% 68% 16% 16%
Bater no irmão 91% 91% 87% 73% 13% 13%
Mentir para os pais 93% 84% 89% 71% 16% 13%
Quebrar promessa com os pais 71% 64% 82% 58% 20% 22%
Falar palavrão 93% 91% 82% 71% 16% 13%
Sair de casa de pijama 58% 60% 80% 49% 13% 36%
Comer com a boca aberta 80% 80% 78% 73% 20% 7%
Gargalhar no velório 73% 76% 78% 77% 7% 16%
Escolher a própria profissão 9% 11% 22% - - 100%
Escolher as próprias roupas 27% 27% 51% 2% 7% 91%
Fazer tatuagem 67% 67% 71% 44% 12% 44%
Escolher os amigos 38% 36% 56% 7% 14% 80%
Colocar piercing 67% 69% 78% 39% 11% 50%
Fumar cigarros 89% 93% 87% 67% 7% 26%
Comer alimentos não saudáveis 52% 57% 69% 35% 12% 54%
Beber bebida alcóolica 93% 91% 87% 56% 13% 31%

Fonte: elaboração dos autores, a partir dos dados da pesquisa.

Nota: L. A. = Legitimidade da Autoridade; OBR.R. = Obrigatoriedade da Regra; OBE.R. = Obediência a Regra; C.SE = Contingência - Sempre Errado; C.SP = Contingência – Somente se os pais falarem que é errado; e C.E.P.= Contingência – Escolha Individual.

Nota-se que a legitimidade da autoridade parental, a obrigatoriedade da regra e a obediência da regra predominam, em maior grau, nas situações que foram classificadas previamente como sendo de domínios moral, prudencial e convencional, diferente das situações que envolvem o domínio pessoal. As situações morais: pegar dinheiro dos pais sem permissão, bater no irmão, mentir para os pais, quebrar promessa com os pais apresentaram alta concordância dos adolescentes, sendo respectivamente, 89%, 91%, 93% e 71% para a legitimidade da autoridade parental; 87%, 91%, 84% e 64% para a obrigatoriedade da regra e 100%, 87%, 89% e 82% para a obediência da regra. Esse resultado distingue-se consideravelmente das situações que envolvem o domínio pessoal (escolher a própria profissão e escolher a própria roupa), as quais apresentaram respectivamente, 9% e 27% para a legitimidade da autoridade parental, 11% e 27% para a obrigatoriedade da regra e 22% e 51% para a obediência da regra.

Em relação à contingência, repara-se que associada à escolha individual, o domínio pessoal apresenta maior contingência, tendo como resultado 100% e 91% respectivamente para as situações de escolher a própria profissão e de escolher a própria roupa. No entanto, a contingência vinculada com a resposta dos pais e com a resposta sem a influência deles apresenta maior prevalência nos domínios moral e convencional.

Em relação aos construtos piagetianos de respeito, autonomia, justiça e obediência, verificados por meio da ECEM, os resultados poderiam variar entre 1 e 7, e médias mais altas sinalizam maior concordância dos participantes com situações que envolvem o construto, enquanto as médias mais baixas demonstram o contrário. Vale destacar que para que esse cálculo fosse possível, os itens invertidos tiveram sua pontuação trocada para seguir essa mesma padronização.

Nesta análise, observou-se que o conceito de justiça obteve a maior média (5,1), indicando a demanda dos filhos por relações justas na relação com os pais. Em concordância com os dados demonstrados acima, a obediência também ficou explícita nesse instrumento e obteve a segunda maior média (4,9), a qual se aproximou da média do construto de respeito (4,8). Por fim, a autonomia obteve o menor escore nessa amostra (3,9), a qual se aproxima de quatro, o que representa a escolha de “nem concordo e nem discordo” na escala de sete pontos da ECEM. Os demais construtos se aproximam da média 5, a qual faz menção a alternativa “concordo”.

A partir do teste de correlação de Pearson, buscou-se investigar a associação entre os escores em cada um desses construtos avaliados pela ECEM e as variáveis idade e escolaridade. Entre os construtos de autonomia, justiça e obediência não houve correlação significativa com as variáveis de idade e de escolaridade (p > 0,05), porém, ambas as variáveis tiveram correlação significativa e positiva com respeito. Esse dado indica que quanto maior a idade e a série, mais os participantes tendem a concordar com o respeito no relacionamento entre pais e filhos (Idade: r = 0,357; p < 0,005; e escolaridade: r = 0,377; p < 0,05).

Relacionando os dois instrumentos, foi realizado um teste de comparação de média (test t) dos escores de respeito, autonomia, justiça e obediência, entre aqueles sujeitos que legitimam ou não a autoridade parental. Essa análise foi feita em todos os 16 itens do Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire , contudo, só foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre aqueles que legitimavam e não legitimavam a autoridade parental nos itens 4, 5 e 9, sendo os dois primeiros percebidos como de domínio convencional pelos participantes, e o 9, como de domínio pessoal. Esses dados estão descritos na Tabela 3 abaixo.

Tabela 3 – Diferenças estatisticamente significante nos escores dos construtos respeito, autonomia e justiça na comparação entre os participantes que legitimam ou não a autoridade parental nos itens 4, 5 e 9 do Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire 

  Respeito Autonomia Justiça
4 - Quebrar promessas com os pais Legitimam 4,65*    
Não-legitimam 5,25*    
5 - Falar palavrão Legitimam 4,76*   5,05*
Não-legitimam 5,58*   5,79*
9 - Escolher a profissão Legitimam   3,39*  
Não-legitimam   4,01*  

Fonte: elaboração dos autores, a partir dos dados da pesquisa.

Nota: *p < 0,05.

Como pode ser observado nos dados da Tabela 3 , em todos os casos citados acima, os adolescentes que não legitimaram a autoridade parental apresentaram escores mais altos do que aqueles que legitimaram essa autoridade, ou seja, os participantes que não legitimam a autoridade tendem a demandar mais respeito, justiça e autonomia nas situações apresentadas. Outro dado que merece ser destacado é que a autonomia esteve associada apenas ao domínio pessoal, enquanto respeito e justiça foram demandadas nos outros domínios. Vale destacar que não houve nenhuma diferença na forma de avaliar o construto obediência, demonstrando que tanto os que legitimam quanto os que não legitimam apresentam concordância com esse construto, ou seja, mesmo não legitimando, é preciso obedecer.

Portanto, considerando os resultados encontrados, pode-se afirmar que, sob o ponto de vista dos participantes desta amostra, o papel dos pais está muito relacionado ao estabelecimento de regras sobre todos os conteúdos das interações sociais dos filhos e sua autoridade é frequentemente legitimada, com exceção dos assuntos percebidos como de domínio pessoal.

Discussão

Ao comparar as justificativas dadas pelas crianças e os adolescentes brasileiros com os jovens americanos ( SMETANA; ASQUITH, 1994 ), observam-se algumas semelhanças entre esses grupos no que tange ao domínio pessoal, contudo, vale destacar que a diferença mais relevante esteve presente no domínio convencional, pois as justificativas brasileiras referiam-se com frequência à obediência à religião, a Deus ou ao padre ou ao pastor. Esse dado pode estar diretamente associado ao perfil da amostra e da cultura brasileira, visto que apenas 13,3% dos participantes desta pesquisa não têm religião e em contrapartida 86,7% se consideram seguidores do cristianismo, do espiritismo ou de outras religiões.

Setton e Valente (2016) afirmam que a religiosidade do povo brasileiro apresenta uma forte circulação como instrumento identitário, ainda que os conflitos entre a ordem secular e religiosa estejam presentes. Essa inter-relação entre a cultura brasileira e a religião é coerente para Sanchis (2008) , uma vez que o passado do país demonstra um grande vínculo religioso com a política ( PIERUCCI, 2008 ), possibilitando à formação de uma cosmovisão religiosa (a forma como se observa o mundo). Essas questões dizem respeito ao que a teoria do domínio social intitula como pressupostos informacionais ( WAINRYB, 1991 ), ou seja, a compreensão descritiva dos eventos é construída algumas vezes com base em crenças factuais fundamentadas em aspectos científicos e ou religiosos, ou ainda de opiniões de senso comum amplamente divulgadas, a ponto de se transformarem em concepções que guiarão a realização de julgamentos ( SMETANA, 2013 ).

Na pesquisa de Smetana e Asquith (1994) , 90%, 87% e 86% dos participantes americanos julgaram respectivamente sobre a legitimidade da autoridade parental, obrigatoriedade e obediência da regra acerca do domínio moral, percebendo uma valorização por questões desse âmbito. Todavia, os participantes brasileiros deram justificativas convencionais para a maioria dos itens, tendo como foco a obediência e o medo da punição. As práticas parentais no Brasil podem ser uma explicação para esses dados, pois a coação tem se mostrado uma das estratégias tipicamente utilizadas por pais brasileiros ( CAETANO, 2009 ), lembrando as relações de respeito unilateral, características de moral da obediência ou moral heterônoma (1994 [1932]).

Essa baixa presença de justificativas morais entre os participantes brasileiros chama atenção e em detrimento de questões prototípicas da teoria do domínio social (bater no irmão), no Brasil, uma situação previamente classificada como convencional, “gargalhar no velório”, apresentou o maior número de respostas morais entre os participantes. Isso pode ocorrer devido ao evento de “segunda ordem”, explicado pela teoria do domínio social. Os eventos de segunda ordem, presentes em questões multifacetadas, estão associados com uma violação de uma convenção ou de uma ordem social que possibilita danos psicológicos aos outros indivíduos ( SMETANA; JAMBON; BALL, 2014 ). Essa explicação justifica, portanto, o fato de os participantes terem julgado a situação “gargalhar no velório” com um foco na concepção moral, mesmo estando a situação vinculada a uma tradição social, forma de comportamento previamente estabelecida pelas boas maneiras ou postulada por uma religião.

No tocante às questões acerca do uso de cigarro, bebidas alcoólicas e tatuagens, os jovens americanos julgam essas questões como de domínio pessoal, sendo, portanto, independentes de controle externo ( SMETANA; ASQUITH, 1994 ). Todavia, os brasileiros acham que essas questões são de domínio prudencial, pois entendem que tais situações podem prejudicar a própria saúde. Costumamos encontrar essa diferença de domínios, quando se comparam o juízo de pais e filhos (SMETANA, 2011). Os filhos julgam essas questões de domínio pessoal e os pais o consideram de domínio prudencial, o que gera conflitos, pois os filhos consideram que os pais não estão legitimados a estabelecerem qualquer tipo de controle sobre tais aspectos ( ROTE; SMETANA, 2016 ). Ainda a respeito dessas situações, por outro lado, os adolescentes que participaram de nosso estudo julgam que os pais também têm direito e obrigatoriedade de fazer regras sobre isso, as quais devem ser obedecidas pelos filhos.

É interessante ressaltar que a situação acerca do fumo de cigarros apresentou mais respostas prudenciais (78%) do que as outras situações classificadas pelo mesmo domínio (53% para comer alimentos não saudáveis e 53% para beber bebida alcóolica). Pensamos que tal resultado pode estar atrelado aos programas governamentais e campanhas publicitárias em diferentes mídias que têm como objetivo reduzir o número de fumantes por meio de ações educativas, de comunicação e relacionadas à saúde. Além disso, pode relacionar-se com a adoção de medidas legislativas e econômicas, que obtiveram a diminuição do consumo per capita de cigarros por volta de 32%, durante os anos de 1989 até 2005 ( KUHNEN et al., 2009 ).

Ademais, mais de 50% dos participantes brasileiros deste estudo respondem em favor da obrigatoriedade e obediência à regra e da legitimidade da autoridade parental nas 16 situações apresentadas pelo instrumento Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire . A média das respostas e das justificativas dos participantes para esses três elementos citados anteriormente é de respectivamente 68,12%, 67,75%, e 74,8%. Os adolescentes da pesquisa americana ( SMETANA; ASQUITH, 1994 ) apresentam a média de 63,5%, 51% e 59,5% para a legitimidade, para a obrigatoriedade e para a obediência. Ou seja, podemos afirmar que os participantes brasileiros revelaram um perfil bem mais obediente à figura parental que os americanos.

Contudo, vale destacar que embora os brasileiros tenham apresentado médias altas para a legitimidade, obrigatoriedade e obediência, no que tange aos itens de domínio pessoal, esse padrão de resposta foi alterado e muitas dessas médias foram inferiores a 50%, conforme indicado na Tabela 1 na seção de resultados (escolher a própria profissão, as próprias roupas e os amigos). Destaca-se o item acerca da escolha da própria profissão, o qual apresentou a média mais baixa (22%) no que tange à obediência à regra. Ainda nesse item, a legitimidade (9%) e obrigatoriedade (11%) a essa regra também apresentaram as menores frequências.

Na comparação entre brasileiros e americanos, observa-se que os participantes dos EUA apresentam médias sobre as contingências desvinculadas da autoridade parental (23,8%), relacionadas com a autoridade dos pais (29,8%) e associadas com a jurisdição pessoal (46,3%); enquanto os participantes brasileiros apresentam 49,3%, 12,3% e 38,2% respectivamente. Contudo, vale destacar que essa diferença entre brasileiros e americanos pode estar pautada na diferença de faixas etárias, uma vez que os entrevistados brasileiros têm entre 10 e 13 anos enquanto os participantes americanos têm 6, 8 e 10 anos de idade.

Além disso, observam-se tanto pelos dados do Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire quanto pelos da ECEM uma concordância entre a autonomia e o domínio pessoal. A Tabela 2 demonstra que 100% e 91% dos participantes classificaram as respectivas situações, escolher a própria profissão e a vestimenta, como vinculadas à contingência da jurisdição pessoal. Isso ocorre devido a uma conexão que Nucci, Camino e Sapiro (1996) estabelecem entre as questões de âmbito pessoal com a autonomia descrita por Piaget (1994 [1932]); uma vez que o papel do domínio pessoal é de proporcionar a identidade, o conceito de liberdade e o respeito mútuo na cooperação entre as trocas de diálogos ( NUCCI, 2001 ).

Os dados demonstram que os participantes apresentam um perfil de filhos obedientes, entretanto, seus escores mais altos para o construto de justiça revelam a demanda por sanções mais recíprocas e menos coercitivas. Além disso, as médias obtidas nos construtos de respeito e de obediência indicam uma tendência ao respeito unilateral que está vinculada com a heteronomia e com o realismo moral (conceito proveniente da imposição e que apresenta uma consideração dos valores e deveres como aspectos perenes).

Uma das características do realismo moral, de acordo com Piaget (1994 [1932]), é a interação entre o dever e a heteronomia, tendo como resultado a obediência das regras por um pensamento não consciente, a possibilidade de a própria regra não ser moral e a dificuldade em acreditar e em reivindicar condições de autonomia. A pesquisa de Villalobos Solis, Smetana, Taspoulos-Chan (2016) investigou os desejos de autonomia e os valores de adolescentes latinos e porto-riquenhos e os resultados revelaram a dependência entre os julgamentos e raciocínios e os tipos de autonomia requeridas pelo jovem.

Comparando os resultados aqui apresentados com a pesquisa realizada por Caetano (2009) com pais, observa-se que os adolescentes que participaram da presente pesquisa tendem a concepções morais com menor autonomia (3,9) do que na concepção dos pais (4,3) investigados por Caetano (2009) . Além disso, os pais exigem, em maior grau, que seus filhos tenham respeito por eles (5,0) do que as próprias crianças oferecem (4,8). Ademais, os construtos de justiça e obediência também divergem em comparação com as respostas dos pais e dos filhos, sendo que os adolescentes ora investigados têm uma concepção de justiça com escore mais elevado que (5,1) os pais investigados por Caetano (2009) , porém, os mesmos pais acham que os filhos devem ser mais obedientes (5,2) do que os adolescentes deste estudo (4,9). Assim, percebe-se que existem diferenças entre as concepções educativas morais tanto de pais quanto de crianças e adolescentes.

No entanto, a medida proporcionada pela ECEM é coerente com os resultados encontrados com o Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire . A predominância do domínio convencional nas justificativas dos participantes e a legitimação da autoridade parental, bem como a obrigatoriedade e obediência às regras, demonstra o que a ECEM confirmou, ou seja, um perfil de filhos obedientes e submetidos à coação da autoridade parental, mesmo com a busca típica do adolescente sobre as relações mais justas. Essa relação entre a obediência (ECEM) e a legitimidade da autoridade parental ( Stimuli Items for the Parental Authority Questionnaire ) está em concordância com o estudo de Cumsille et al. (2009) . Tal pesquisa afirma que os adolescentes que legitimam as regras dos pais tendem a obedecê-los mais, nas situações em geral, por outro lado, o estudo de Barbosa e Wagner (2014) , utilizando um instrumento parecido ao Stimuli Test , utilizado na presente pesquisa, revelou que embora os participantes adolescentes confirmem as práticas parentais controladoras dos pais, eles também lutam por espaços de maior autonomia pessoal.

Dessa forma, percebe-se que o objetivo geral da pesquisa foi atingido, uma vez que foi possível observar que as concepções educativas morais de crianças e adolescentes estão pautadas na obediência e na legitimidade da autoridade parental, demonstrando uma concentração elevada das justificativas no âmbito convencional e um número relativamente baixo no domínio moral sobre as situações apresentadas às crianças e aos adolescentes. Todavia, o presente estudo investigou apenas as crianças e os adolescentes de uma única escola pública e de uma única região brasileira. Assim sendo, estudos em outras cidades brasileiras e com alunos de escolas privadas seriam interessantes, a fim de verificar se as respostas são semelhantes. Além disso, outro aspecto importante que não foi possível investigar, e seria interessante que futuros estudos o fizessem, diz respeito à dimensão da religiosidade dos participantes, pois muitas respostas envolveram essa temática da obediência relacionada à doutrina religiosa que os adolescentes afirmaram seguir.

Considerações finais

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que, no tocante às questões atreladas às discussões das duas diferentes propostas teóricas que sustentaram esta pesquisa, a teoria do domínio social mantém pressupostos epistemológicos que são caros à teoria do juízo moral de Piaget, logo, as teorias não são contraditórias ou excludentes. O conceito de domínio moral para a teoria do domínio social caracteriza-se pelo fato de que os aspectos que constituem esse domínio independem da autoridade. São inerentes às relações sociais e, portanto, definem-se pela garantia do bem-estar do outro e pelas relações interpessoais justas e que não prejudicam a ninguém.

Desse modo, os resultados americanos não encontram realmente conflitos entre pais e filhos no domínio moral, pois as situações avaliadas como pertencentes ao domínio moral são assim justificadas e pertencem a esse domínio exatamente pela não contingência e independência em relação à autoridade.

O perfil obediente e submisso dos adolescentes, encontrado na presente pesquisa, com tendência a justificativas convencionais para todas as questões elaboradas, foi o aspecto que mais chamou a atenção pelo contraste com os estudos internacionais. Tal achado desperta a necessidade de realização de novas pesquisas com diversificação da amostragem.

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1- Agradecemos a colaboração dos alunos integrantes do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Moral (GPDM) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) que contribuíram com a coleta e tabulação dos dados.

Recebido: 21 de Março de 2018; Revisado: 09 de Outubro de 2018; Aceito: 27 de Novembro de 2018

Luciana Maria Caetano é docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, recebeu o título de doutora pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Jackeline Maria de Souza recebeu o título de doutora pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e de mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe.

Cecilia Onohara da Silva recebeu o título de mestre pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Paulo Yoo Chul Choi é graduando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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