Introdução
Conhecido como um instrumento pedagógico otimizador do processo de ensino e aprendizagem escolar, o Livro Didático (LD) é alvo de posições opostas, ora resguardado, ora hostilizado. Presente de forma rudimentar, ainda manuscrita, desde o século XIII no processo de expansão das universidades ( THOMAS, 1992 ), os modernos LDs passaram a compor a cultura escolar a partir da escola moderna, no século XIX. Foi chamado por seus detratores de ferramenta ideológica do Estado, “muleta” ( MUNAKATA, 2012 , p. 63) de apoio do professor com deficiência na formação, produto capitalista produzido com fins lucrativos, instrumento alienante, e por seus defensores, de ferramenta necessária e pertinente para a eficiência da escolarização, além de servir como mediador entre professor e aluno. Apesar das divergências, ele continua em uso nas práticas escolares, mas a disciplina escolar de Educação Física (EF) tradicionalmente não faz uso dele.
O Brasil tem o maior programa de produção e distribuição de LD do mundo 2 , grande parte financiada pelo governo federal, por meio do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), criado em 1985, no entanto, a Educação Física escolar destoa das demais disciplinas que compõem o currículo das séries que hoje denominamos Educação Básica, não tendo o LD como principal ferramenta didática, bem como não sendo contemplada 3 pelo PNLD. Enquanto disciplina escolar, a EF iniciou um processo de transformação com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n° 9394, de 1996, a partir da qual passou a buscar um referencial teórico de cultura corporal de movimento de forma mais acentuada, superando gradativamente os modelos pautados no exercício rendimento, alinhados com uma cognição apenas motora. Por essas características em seus conteúdos e pela aparente ausência da utilização de instrumentos pedagógicos literários, como é o caso dos LDs, questionamos acerca do uso dos livros didáticos de Educação Física (LDEF) ao longo da sua história como disciplina escolar no Brasil e, para responder a tal questão, fizemos um levantamento das produções acadêmicas em torno do assunto. O levantamento objetivou traçar um panorama da produção científica nacional que elegeu o LDEF como fonte e/ou objeto de pesquisa, além de identificar os LDEF utilizados nas investigações elencadas.
Realizamos uma investigação semelhante à que fizeram Souza Júnior et al. (2015) , mas ampliamos o campo de pesquisa, incluindo outras bases de dados e consideramos revistas e repositórios sem critério de qualis/CAPES 4 - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, tendo em vista identificar questionamentos acerca do tema em diversos momentos históricos, na tentativa de perceber possíveis movimentos em torno do estudo de LDEF, em conformidade com Choppin (2004) , que enfatiza a necessidade de se produzir documentos de síntese sobre o LD das diversas disciplinas escolares para servir de guia e facilitar pesquisas futuras.
Consideramos as bases de dados CAPES 5 (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), SciELO 6 ( Scientific Electronic Library Online ), LILACS 7 (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde), NUTESES 8 (Núcleo Brasileiro de Dissertações e Teses em Educação Física, Esportes, Educação e Educação Especial), CRUESP 9 (Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas), PROTEORIA 10 , Oasis IBICT e BDTD IBICT 11 . Os descritores de busca utilizados a priori foram “livro didático educação física”, considerando as variações para o termo livro, como manual, compêndio e cartilha. Nas bases de dados, foram pesquisados simultaneamente nos campos título, resumo, palavras-chave e assunto, sempre utilizando os operadores “e” e “ou”. Não houve restrição cronológica nas buscas, porque uma das questões investigadas foi justamente o período de produção a respeito do tema, ou seja, a primeira publicação encontrada demarcaria o início de nosso recorte temporal.
Após os procedimentos metodológicos de busca, avaliação e seleção, utilizando os princípios de exaustividade, homogeneidade e pertinência, como sugere Bardin (1977) , chegamos às fontes que foram analisadas e consideradas nesta pesquisa. Os resultados de busca nos forneceram um total de 69 produções, mas após examinadas pormenorizadamente, concluímos que algumas, apesar de conter os descritores no resumo, não tinham como objeto, nem como fonte o LDEF. Finalizada essa etapa de análise inicial, foram selecionadas 55 produções bibliográficas com base nos nossos procedimentos e critérios de seleção e busca.
De posse das 55 pesquisas que compuseram o nosso conjunto de fontes, partimos para a codificação, que é a sistematização dos dados brutos selecionados na pesquisa bibliográfica, ordenando por particularidades e características, imprimindo unidades aos dados, o que nos possibilitou apontar quantificações e qualificações de determinados grupos de elementos ( BARDIN, 1977 ). Buscamos estabelecer relações entre elas que pudessem indicar congruências e similaridades (abordagens). A localização geográfica/institucional das produções encontradas, por exemplo, pode apontar qual segmento da comunidade científica está mais interessada no assunto.
O intuito de identificar as abordagens que direcionaram tais pesquisas pode balizar os paradigmas vigentes naquele contexto científico e as tendências em que estavam imersos os pesquisadores. Ao considerar que um saber influencia outros saberes construídos a partir dele, é comum que em alguns momentos pesquisas produzidas no mesmo período denotem um mútuo entrelaçamento. Em face dessas questões, buscamos tecer uma teia de interconexões com o intuito de trazer a lume o interesse acadêmico por livros didáticos de Educação Física.
Para tanto, apresentamos a seguir uma análise quantitativa e outra qualitativa das 55 produções localizadas, respondendo acerca da existência dos livros didáticos ao longo da história da disciplina de Educação Física no Brasil, buscando identificar o local, o período, as instituições e periódicos em que foram produzidas e publicadas, bem como os objetivos que norteiam cada uma delas.
Análise quantitativa das pesquisas com LDEF
Das 55 produções bibliográficas identificadas, temos: sete teses, 17 dissertações, quatro pesquisas monográficas (Trabalho de Conclusão de Curso - TCC) e 27 artigos. No que diz respeito ao local de produção, distribuímos as 55 pesquisas selecionadas conforme a cidade da instituição a que estão vinculados os autores, sendo que, para as teses, dissertações e TCC consideramos a instituição na qual eles foram produzidos, e para os artigos científicos, o local do periódico onde ele foi publicado, conforme se pode quantificar 12 no quadro a seguir:
Região | Estado | Universidade * | Pesquisas |
---|---|---|---|
Sudeste (40) | São Paulo (SP) (30) | UNESP | 24 |
USP | 3 | ||
UNICAMP | 3 | ||
Espírito Santo (ES) (4) | UFES | 4 | |
Rio de Janeiro (RJ) (1) | UFRJ | 1 | |
Minas Gerais (5) | UFMG | 3 | |
UFJF | 1 | ||
UFTM | 1 | ||
Sul (9) | Rio Grande do Sul (RS) (3) | UFRGS | 2 |
UNISC | 1 | ||
Paraná (PR) (5) | UFPR | 3 | |
UEM | 2 | ||
Santa Catarina (SC) (1) | UFSC | 1 | |
Nordeste (4) | Rio Grande do Norte (RN) (3) | UFRN | 3 |
Pernambuco (PE) (1) | UPE | 1 | |
Espanha (2) | Salamanca (2) | UPSA | 2 |
TOTAL | 55 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
* Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade de Pernambuco (UPE), Universidad Pontificia de Salamanca (UPSA).
Do total de 55 produções acadêmicas, 40 foram produzidas/publicadas na Região Sudeste, o que corresponde a 72,7%. A Região Sul é a segunda com nove publicações, somando 16,4%, e a Região Nordeste com quatro, num percentual de 7,3%. Na Região Norte e na Região Centro-Oeste não identificamos nenhuma produção e duas produções são de pesquisadores espanhóis, 3,6%. É digno de nota que das 40 pesquisas encontradas na Região Sudeste, 30 são do Estado de São Paulo, e dessas, 24 somente da UNESP, campus de Rio Claro, o que talvez se justifique pelo fato daquela universidade manter o Laboratório de Estudos e Trabalhos Pedagógicos em Educação Física (LETPEF) 13 .
Outro fator a ser observado é que, no universo total de 28 produções monográficas (teses, dissertações e Trabalhos de Conclusão de Curso - TCC), nove foram orientadas por Suraya Cristina Darido, Professora da UNESP – Rio Claro, sendo duas das sete teses, três das 17 dissertações e os quatro TCCs. Ela ainda é autora/coautora de 12 de um total de 27 artigos. Em resumo, ela tem participação em 28,6% das teses, 17,6% das dissertações, 100% dos TCCs e 44,4% dos artigos, o que nos autorizaria a dizer que se trata de uma referência em pesquisas sobre LDEF no Brasil.
Ainda acerca da localização das produções, cabe lembrar que em 2006, o governo do estado do Paraná publicou uma coleção de LD públicos, contemplando todas as disciplinas escolares, inclusive EF, e a partir de então se observam dez pesquisas analisando o LDEF daquele Estado ( MARANGON, 2009 ; ALVES; TIMOSSI; SANTOS, 2009 ; PACIFICO, 2011 ; PARAISO, 2011 ; GILIOLI, 2013 ; COSTA, 2014 ; PALOMARES; ALTMANN; CAO, 2015 ; CARLOS, 2016 ; PALOMARES; CAO, 2017 , CARLOS; MELO, 2018 ). Dessas dez, quatro foram produzidas naquele Estado, duas em SC, duas na Espanha e duas no RN. Das cinco pesquisas produzidas no estado do PR, quatro analisam o livro público do PR.
Na tabela abaixo, apresentamos dados das 55 pesquisas por temporalidade de produção/publicação, por década, ao mesmo tempo em que identificamos a quantidade de pesquisas separadas por formato de produção/publicação:
O início do período de produção é 1993, em razão da primeira fonte encontrada. A segunda ocorrência data de 1999. Cabe destacar que entre 2001 e 2010, as publicações começaram em 2006, com dois trabalhos, em 2008, 2009 e 2010, com três cada ano, totalizando 11. É a partir do ano de 2011, com sete trabalhos, que as pesquisas se intensificaram, em 2012 com nove, em 2013 e 2014 com quatro cada ano, em 2015 com oito, 2016, 2017 e 2018 com três cada ano e 2019 com um.
A tabela 1 permite evidenciar ainda que o número de teses e dissertações duplicou da segunda década para a última, evidenciando uma tendência favorável em programas de pós-graduação. Em síntese, das 55 fontes, apenas 12 não foram produzidas em programas de pós-graduação em Educação Física ou periódicos da área, sendo quatro teses, três dissertações e cinco artigos foram produzidas em programas de pós-graduação e periódicos de educação ou história da educação, ou seja, 21,8% são da área de educação e os demais 78,2% são de programas de pós-graduação e periódicos de Educação Física.
PERÍODO | Tese | Dissertação | TCC | Artigo | Total | Taxa % |
---|---|---|---|---|---|---|
1993 a 2000 | - | 2 | - | - | 2 | 3,6% |
2001 a 2010 | 2 | 4 | - | 5 | 11 | 20% |
2011 a 2019 | 5 | 11 | 4 | 22 | 42 | 76,4% |
Total | 7 | 17 | 4 | 27 | 55 | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Nas produções de teses, dissertações e TCCs destacamos o Programa de Pós-graduação (PPG) em Biociências do campus de Rio Claro, com 11 produções, o PPG em Educação Física da UFES com quatro, e o PPG em Educação da UFPR com três produções. Em relação aos periódicos, destacamos a Revista Movimento , da UFRGS, com cinco e a Revista Motriz , da UNESP, com quatro artigos.
Análise qualitativa das pesquisas com LDEF
Para a análise qualitativa, consideramos as abordagens que os autores apresentaram em suas respectivas investigações, ou seja, a maneira pela qual tomaram o LD como objeto e/ou fonte. Durante uma leitura preliminar, chamada por Bardin (1977) de flutuante, deixando-nos influenciar por impressões e orientações, consideramos, para fins metodológicos, cinco abordagens principais, pois algumas pesquisas realizam mais de uma abordagem. Para estabelecer em qual das abordagens se enquadrava cada pesquisa identificada, utilizamos como questão: qual o objetivo principal do autor ao realizar a pesquisa? No Quadro 2 , realizamos a codificação desse aspecto:
Fonte: Elaborado pelos autores
Fica evidente a preocupação de quase metade dos pesquisadores em analisar os conteúdos presentes nos LDEF. Ao abordar a história da educação e as pesquisas acerca do livro didático no Brasil, Almeida Filho (2008) aponta que as pesquisas acerca do LD nas décadas de 1970 e 1980 eram norteadas pelos conceitos de ideologia e do capital, em uma perspectiva de que a indústria cultural pressupunha objetivos ideológicos determinados para a indústria do LD enquanto mercadoria. Não identificamos essa tendência de perspectiva em nosso levantamento, talvez por tratar-se de uma disciplina na qual o uso do LD não é predominante nas aulas, exceção feita à investigação de Costa (2014) , na qual interroga, já no título de sua dissertação: “uma proposta marxista?”.
Entre os trabalhos que analisam conteúdos, há oito pesquisas analisando os LD de ginástica utilizados entre o fim do século XIX e início século XX, com influências do pensamento médico higienista. Souza (2011) analisa os livros do mestre de ginástica Arthur Higgins. Puchta (2015) discorre acerca dos diversos manuais entre 1882 e 1926. Puchta e Oliveira (2015) a respeito do livro Ginástica doméstica, médica e higiênica , do alemão Daniel Schreber, que deu origem a outro compêndio, Homem forte , de Domingos Nascimento, proposto como um manual escolar para as escolas paranaenses, por volta do ano de 1882, ocasião em que se tornou obrigatório o ensino de tal prática naquele Estado. Antunes e Dantas (2010) analisam as perspectivas de ensino existentes em quatro LDEF americanos, já que no Brasil, como os autores afirmam, “há quase que total inexistência de livros didáticos de Educação Física Escolar” ( ANTUNES; DANTAS, 2010 , p. 2). Moreno (2015) investiga a influência da ginástica sueca e dos conceitos de Ling 14 em manuais de língua portuguesa produzidos entre fins do século XIX e início do XX, tais como os manuais escolares escritos por Pedro Borges, Antonio M. Ferreira, Paulo Lauret, Kumlien e Arthur Higgins. Quitzau (2015) compara dois manuais alemães, Ginástica para a juventude , de 1793, e A ginástica alemã , de 1816, mas não identifica o uso de tais obras no Brasil.
Em relação às 15 pesquisas que realizaram propostas, percebemos o esforço para superar esse preconceito de que EF não utiliza livros, de que é apenas prática. Como as pesquisas atuais ultrapassaram, em parte, as concepções eugenistas, higienistas, militaristas e esportivistas, mesmo que a prática escolar ainda tenha algo dessas concepções, percebemos esse movimento de proposta de materiais didáticos para servir de auxílio ao professor, já que a cultura corporal do movimento é vasta, pois abrange tanto a ginástica, como danças, jogos, brincadeiras, esportes coletivos, lutas etc., todas em seu contexto histórico e cultural. Por esse motivo de amplitude dos conhecimentos, torna-se difícil para o professor ter o domínio desses conteúdos, e se faz cada vez mais necessários instrumentos de apoio, como é o caso do LD, como instrumento pedagógico.
Carmo (1999) expõe acerca da necessidade do LD para o ensino do futebol. Segundo ela, por ser uma “paixão nacional” e ter sua prática tão popularizada, o senso comum remete-nos a pensar que seus conteúdos são de domínio público, não havendo necessidade de livros, o que é um engano. Galatti (2006) e Galatti, Paes e Darido (2010) apresentam propostas para o ensino de esportes coletivos. O quarteto clássico dos esportes inseridos na cultura escolar, futebol, basquete, vôlei e handebol, não poderiam ficar de fora. Rodrigues (2009) e Fraiha (2012) propõem o uso do LD para o ensino do basquete na escola. Impolcetto (2012) inova na tentativa de construção coletiva de um LD para o ensino de Voleibol. Silva (2014) aponta as possibilidades da educação olímpica enquanto esporte e Diniz e Darido (2012) da dança, seguidas de Barros (2013) que inova ao trazer uma proposta do ensino de hip hop . Farias (2018) propõe LD sobre TICs (Tecnologias da informação e comunicação) no município de Caucaia - Ceará.
Seis pesquisas realizam uma discussão acerca do tema LDEF. Rufino (2013) terminou sua graduação em Educação Física tratando a respeito de interlocuções e entrelaçamentos em relação ao uso de LD na disciplina de EF. Darido et al. (2010) tecem considerações relativas às críticas em torno do LD e refletem acerca das possibilidades de produção; Neves (2011) discute acerca do LD como mediador entre professor e aluno nas aulas de EF. Rodrigues e Darido (2011) buscam a opinião de professores experientes a respeito do LDEF em suas práticas; Rosário e Darido (2012) relacionam os conteúdos dos currículos das disciplinas de história e ciências presentes nos LD, com o conteúdo curricular de EF, e Cintra (2019) discute o impacto dos livros no chão da escola.
Identificamos seis pesquisas que se dispuseram a realizar uma avaliação dos LDEF. Santos (2012) avalia o Manual de Educação Olímpica e Fraiha et al. (2016) trazem a opinião dos alunos acerca do uso de LD no ensino de basquete. Os temas transversais, ética e saúde também são avaliados por Rufino e Darido (2011; 2013). Barroso e Darido (2017) avaliam o uso dos cadernos Lições do Rio Grande , do professor e do aluno. Por fim, duas pesquisas realizaram pesquisas bibliográficas, sendo que Ontañón, Duprat e Bortoleto (2012) mapeiam as atividades circenses na literatura de EF e Souza Júnior et al. (2015) analisam pesquisas que tratam de LDEF.
OS LDEF nas pesquisas
A partir do balanço das pesquisas, identificamos 19 títulos didáticos, que circularam entre 1855 e 2014, apresentados no Quadro 3 , por ordem crescente de ano de publicação. Dispomos a autoria, o título das obras, o ano de publicação, a editora/local e os autores que as investigaram, conforme dados disponíveis nas pesquisas.
Autor | Título | Ano | Local/Editora |
---|---|---|---|
Daniel Gottlieb Moritz Schreber | Ginástica doméstica, médica e higiênica | 1855 | Lisboa: Candido Magalhães, s/d. |
Paulo Lauret | Manual theorico-pratico de GYMASTICA para uso dos lyceus, collegios, escolas municipaes e primarias | 1881 | - |
Pedro Manoel Borges | Manual theorico-pratico de gymnastica escolar elementar e superior | 1888 | Rio de Janeiro - B. L. Garnier |
Arthur Higgins | O Compendio de Gimnastica e Jogos Escolares | 1896 | Rio de Janeiro |
Antonio Martiniano Ferreira | Compendio pratico de Gymnastica - Para uso das escolas normaes e primarias | 1897 | Imprensa Oficial do Estado de Minas |
Arthur Higgins | Manual de gymnastica hygienica | 1902 | Capital Federal: Typ. do Jornal do Commercio - |
Domingos Virgílio do Nascimento | Homem forte | 1905 | Curitiba: Impressora Paranaense |
Ludvig Gideon Kumlien | Tratado prático de gymnastica sueca | 1908 | Lisboa: Typographia Lusitana Editora |
Renato Kehl | A fada Higia | 1925 | Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves |
Arthur Higgins | Gymnastica Escolar Methodo Sueco-Belga-Brasileiro | 1934 | Rio de Janeiro |
Ministério da Defesa | Regulamento Geral de Educação Física - Regulamento nº 7 | 1934 | A Defesa Nacional |
Mário Carvalho Pini; Valdir Barbanti | Guia para aulas de Educação Física | 1971 | MEC |
Hudson Ventura Teixeira | Trabalho Dirigido de Educação Física (TDEF) | 1976 | Saraiva |
Hudson Ventura Teixeira | Educação Física e Desportos | 1995 | Saraiva |
Estado do PR - PROJETO FOLHAS | Livro Didático Público de Educação Física do Estado do Paraná | 2006 | PR |
Roseli Aparecida Bregolato | Coleção Cultura Corporal | 2008 | Editora Ícone |
Estado de SP | Cadernos do aluno | 2008 | SP |
Estado do RS | Lições do Rio Grande. Referenciais Curriculares - Caderno do professor e do aluno | 2009 | RS |
Prefeitura de João Pessoa | Livro Didático Público de Educação Física da Prefeitura de João Pessoa-PB | 2012 | João Pessoa - PB |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Para compor nosso corpus documental de LD, consideramos apenas os títulos que foram publicados em formato de livro impresso. Alguns referenciais curriculares regionais foram investigados nas pesquisas localizadas. Por mais que tenham sido utilizados eventualmente como referência didática, não os consideramos pelo motivo da materialidade. São eles: Roteiros de Atividades Educação Física – Fundamental 6º ao 9º ano do Estado de MG, Guias de Orientações para a Intervenção Pedagógica do Estado do Espírito Santo , 2011, e Cadernos Pedagógicos do Município do Rio de Janeiro , 2014.
Percebe-se ainda a utilização de diversas nomenclaturas para designar a materialidade didática. As obras utilizadas para o ensino de ginástica receberam o nome de manual, compêndio, tratado e regulamento, enquanto os mais recentes foram denominados livro didático, lições, roteiros, guias e cadernos pedagógicos.
Segundo Choppin (1992) , o livro didático é constituído de um conjunto extenso de conteúdos curriculares, com progressão em unidades, favorecendo usos coletivos e individuais, e também como instrumento pedagógico inscrito em uma longa tradição, inseparável tanto na sua elaboração como na sua utilização das estruturas, métodos e condições do ensino de seu tempo. A partir dessa definição podemos fazer um primeiro questionamento: pode-se afirmar que todas as obras presentes no quadro 3 são livros didáticos?
Conceitualmente não, pois nem todos foram elaborados especificamente para o uso na escola, mas estão aqui enquadrados por terem sido utilizados como tal, em determinado contexto histórico, como alguns manuais de ginástica, por exemplo, proposto para diversos ambientes, como os manuais de ginástica sueca Ginástica doméstica, médica e higiênica e Tratado prático de gymnastica sueca , para serem usados em ambiente doméstico e em clubes, mas que foram apropriados pela escolarização, sendo o primeiro utilizado na escolarização primária do Paraná ( PUCHTA, 2015 ). No caso do Manual de gymnastica hygienica , publicado em 1902, foi proposto para a prática sem professor, o que reforça a perspectiva de que os manuais de ginástica foram elaborados para servirem de guia ao professor, ou até mesmo, no caso citado, ser o próprio guia.
A obra O homem forte - gymnastica domestica - natação - esgrima - tiro ao alvo , de autoria do capitão do Exército e deputado federal Domingos Nascimento, foi publicada em 1905, em Curitiba, com tiragem de 2000 exemplares. Com profunda influência da ginástica alemã, o que explica seu escopo altamente militarizado, foi adotada pela Inspetoria Geral do Ensino Público de São Paulo e pelo Conselho de Instrução do Estado do Paraná e, provavelmente, foi utilizada no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no início do século XX ( PUCHTA, 2015 ).
Outro exemplo desse viés militarizado na ginástica foi o Regulamento Geral de Educação Física , publicado pelo Exército em 1934 para o ensino do Método Francês de ginástica, adotado oficialmente para todo o território nacional em 1931. Trata-se de uma tradução do original francês composta por três partes, uma escolar, outra desportiva e uma terceira para uso militar. Souza Junior et al (2015, p. 486) afirmam que ele foi “utilizado nas escolas de todo o território nacional”. Bruschi (2015) identifica o uso desse manual como norteador da formação das normalistas no Espírito Santo na década de 1930. Mas, comparando os conteúdos do manual ao currículo do curso e a documentos do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, aponta que houve diferenças, adaptações e supressões entre um e outros, demonstrando claramente as lutas de representações em Chartier (1990) , e das estratégias e táticas em Certeau (1998) . Segundo Borel (2012) , foram distribuídos exemplares do Regulamento aos alunos matriculados no Curso Especial na Escola de Educação Física do Espírito Santo, em 1933, e que a partir de 1935, essa distribuição se tornou paga, ao preço de nove mil réis o volume (R$ 270,00).
O segundo questionamento refere-se ao conteúdo. Todas as obras listadas são destinadas à Educação Física? Não. Os onze primeiros títulos listados no quadro destinam-se ao ensino dos métodos de ginástica, fim do século XIX e início do XX, somando 57,9% das obras. A ocorrência dessas obras, publicadas entre 1855 e 1934, coincide com período higienista de 1850 a 1930, proposto por Soares (1990) , que discute a influência do pensamento médico higienista na Educação Física. Parece que esse foi o período que mais se utilizou de manuais didáticos, talvez por estar sob a tutela médica e ainda pela necessidade de se formar instrutores e mestres de ginástica, como eram chamados os que exerciam a docência em ginástica naquele momento. A respeito desse período, Darido e Rangel (2005) afirmam que a medicina, por meio da Educação Física, almejava promover hábitos de higiene e saúde, entendendo que o exercício físico desenvolveria o indivíduo, orgânica e moralmente.
Quase quatro décadas após, identificamos uma primeira obra governamental, o Guia para aulas de Educação Física , publicado pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1971, em um período pautado pela esportivização, estimulado pelos governos militares. Em 1976, foi publicado o primeiro livro didático de Educação Física alinhado às concepções de servir de intermediário entre professor e aluno. Trata-se de Trabalho Dirigido de Educação Física (TDEF), de autoria do professor Hudson Ventura Teixeira, publicado pela editora Saraiva. A obra foi revisada e publicada com alterações, em 1996, sob o nome de Educação Física e Desportos , ambas publicações destinadas a alunos do ensino fundamental.
O TDEF assemelha-se aos demais LD de outras disciplinas, com atividades a serem preenchidas no livro de maneira manuscrita pelo aluno. Em entrevista com professor que lecionou em Niterói na década de 1970, ele lembra que “era material de uso obrigatório na rede municipal de Niterói”, “a Bíblia, o livro de cabeceira” do professor de EF na época. Diz ainda que “a secretaria escolheu esse livro, o professor ganhava o livro e tinha que seguir a sequência do livro”, era uma espécie de guia dos conteúdos ministrados, e afirma que a ginástica não fazia parte de suas aulas porque o livro adotado não a tinha em seus conteúdos.
Entre 2006 e 2014, há ocorrência de quatro obras públicas em diferentes Estados da federação (PR, SP, RS e PB), talvez fomentados pela LDBEN/1996, a partir da qual a Educação Física passou a ser um componente curricular obrigatório integrado à proposta pedagógica da escola. Nos dois anos que sucederam a promulgação dessa lei, foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documento que define a Educação Física enquanto cultura corporal de movimento. A demanda da produção de conhecimento para atender esse entendimento influenciou o interessasse por livros didáticos. O livro do Paraná foi pioneiro e inovador, pois foi o primeiro livro didático público adotado por um Estado brasileiro, sendo elaborado a partir do Projeto Folhas, no qual professores da rede de ensino do Estado enviaram textos que compuseram os capítulos da obra. Em SP e no RS receberam o nome de caderno e lição, respectivamente, e foram impressos no formato de livro, já em João Pessoa, a iniciativa foi municipal, também em formato de livro.
Nem todas as obras listadas no Quadro 3 apresentam autoria, mas entre as que identificam, há recorrência de dois autores. O mestre de ginástica Arthur Higgins assina três obras. Segundo Marques (2011) , Higgins era conhecido como o professor da moda, pois organizava aos domingos de manhã, no jardim da Praça da República, o que o Jornal do Commercio chamava de Gymnastica recreativa, Jogos athleticos, Gymnastica de Campo, Gymnastica Campestre e Jogos gymnasticos ( SOUZA, 2011 , p. 39). Segundo Mariza Lira (1953 apud SOUZA, 2011 ), mesmo sendo declaradamente republicano, Dom Pedro II o nomeou, em 1885, professor de Ginástica, Evoluções Militares e Esgrima do Externato do Colégio Pedro II. Outra reincidência é o professor Hudson Ventura, já tratado anteriormente.
Evidenciamos a importância dos pesquisadores identificarem detalhadamente os procedimentos de localização das obras didáticas analisadas, facilitando o acesso às fontes aos novos pesquisadores, contribuindo para fomentar a investigação em torno dos LDEF. Tiana Ferrer (2017) observa que apesar da longa história do livro didático no campo educacional, ele foi concebido como eminentemente instrumental, e, portanto, facilmente descartado. Collados Cardona (2008 , p. 325) afirma que “o trabalho com estes materiais frequentemente dispersos, e fisicamente muito vulneráveis, faz com que a simples localização e catalogação de exemplares consumam considerável energia nos trabalhos de campo”.
Ao considerar que as obras listadas no quadro 3 foram objeto de poucas pesquisas, e mais raramente ainda pesquisas comparadas, seguramente muito ainda se pode indagar a respeito desses mesmos livros, bem como tantos outros que ainda não foram alvo de investigações, ampliando o campo de pesquisa em torno do ensino de Educação Física.
Considerações finais
A variedade no formato da produção e publicação das 55 pesquisas selecionadas, compreendendo tanto TCCs, dissertações e teses quanto artigos em periódicos, limita, de certo modo, a homogeneidade e pertinência do balanço aqui proposto, mas, ainda assim, permite-nos tecer algumas considerações sobre as investigações que tiveram o LDEF como fonte/objeto de pesquisa. As pesquisas iniciaram na década de 1990 e apresentaram um crescimento nos anos subsequentes, o que demonstra a atualidade e demandas do tema livro didático de Educação Física. Outra conclusão é o predomínio das pesquisas na região sudeste do país, com ênfase para a UNESP de Rio Claro, no Estado de São Paulo, e para a pesquisadora Suraya Cristina Darido, como autora e orientadora das pesquisas.
Assim como nas pesquisas que analisam LD de outras disciplinas, sobrepõe-se a análise de conteúdo como principal abordagem nas pesquisas sobre LDEF, representando quase metade das produções localizadas. No entanto, a ênfase não recai sobre a denúncia da ideologia presente nos LD, talvez porque essas investigações tenham se iniciado na década de 1990, período em que o conceito de ideologia dominante passou a ser repensado pelo campo. Além da análise de conteúdo, identificamos outros objetivos entre as pesquisas localizadas, que vão de propostas de criação de livros didáticos, avaliação de obras didáticas até discussão e revisão de assunto.
Identificamos 19 LDEF entre o período de 1855 a 2014, a partir das pesquisas que compõem o presente balanço. Essas publicações sugerem que em períodos em que a Educação Física buscou sua identidade, primeiramente científica, no início do século XX, e posteriormente enquanto disciplina escolar, no início do século XXI, o uso de livros e manuais didáticos foram mais intensos. O período de um século e meio evidencia que esse instrumento foi utilizado no decorrer do desdobramento da construção da disciplina escolar Educação Física no Brasil, desde o ensino de ginástica e sua relação com as práticas higienistas, utilizadas como manual para o professor, passando aos livros didáticos para professores e alunos, na década de 1970, até a elaboração de livros didáticos regionais de Educação Física, com incentivos de governos estaduais e municipais (PR, SP, RS e PB).