Introdução
O ato de educar somado ao de fazer registros (textuais, visuais, fotográficos3 ) e anotações do próprio cotidiano escolar não se constitui uma tarefa fácil. No Brasil, Madalena Freire (1983) foi uma das pioneiras a registrar o cotidiano escolar de uma professora e crianças (de 4 a 6 anos), nos mostrando que o conhecimento construído com as crianças é algo fascinante, inspirador, de muitas descobertas investigativas no trabalho pedagógico. Já projetava um novo tipo de prática educacional (cheio de vida) norteado pela sensibilidade estética da paixão de conhecer o mundo, que se desenrolava na experiência com as crianças, cujos registros desvelavam aventuras infantis na práxis escolar, por meio de relatos e desenhos das expressões infantis. Desde Madalena Freire (1983) , reconhecemos a importância do registro da experiência (pelo conhecimento de proposições e predisposições perceptivas, sensoriais, emocionais e intelectuais) com crianças na escola através de anotações da lição, como forma de resgatar memórias de situações educativas do cotidiano, num jogo contínuo entre imaginação e percepção da professora.
Tendo por base as mudanças curriculares recentes da Base Nacional Comum Curricular ( BRASIL, 2017 ), é necessário criar condições de possibilidade ao trabalho pedagógico, para que a relação existente entre o currículo oficial, o currículo real e o currículo oculto seja associada à construção de roteiros e registros de atividades coletivas, com vistas à construção de memórias e da significação do conhecimento das crianças, como proposta pedagógica para a produção de mini-histórias4 . As mini-histórias aqui conceituadas têm seu surgimento também com as pesquisas realizadas por David Altimir (2010) , com a obra Como escuchar a la infância que é trazida com referência aos contextos brasileiros para nos apropriar do que fazem os bebês no berçário ( FOCHI, 2015 ). Tais proposições se apresentam como breves relatos imagéticos (fotografias acompanhadas de uma escrita curta, de linguagem direta, simples e poética) sobre o saber-fazer dos bebês nas inter-relações com os outros sujeitos capazes de linguagem e ação em relação ao mundo, nas suas relações interpessoais recíprocas. Em síntese, é uma atitude pedagógica que envolve a globalidade do trabalho pedagógico e exige do professor a escuta atenta, a observação, o olhar curioso, a proposição, o ato de fotografar, registrar e narrar as experiências do cotidiano escolar. Em vista da supressão da memória infantil (amnésia cultural ou mutismo da infância) e da padronização dos métodos de educar, relacionar a construção de saberes na Educação Infantil com práticas narradas por imagens é trilhar um caminho com poucas pesquisas sobre o tema, e isso serve de impulso para pensarmos nas produções intrínsecas às práticas pedagógicas - motivadas pela cooperação docente e pelo fazer infantil, articulando projetos em que a criança seja ativa e participativa desse processo ( ZABALZA, 2009 ).
Olhar o trabalho pedagógico na relação com a infância exige o descentramento como condição essencial para despertar modos de fazer, ver, ser, escutar e perceber as crianças em seus movimentos formativos com as proposições e experiências dos professores ( NOGARO; JUNG; CONTE, 2018 ). Nesse sentido, Rubem Alves (2010 ,) nos auxilia a compreender a criança no contexto de pesquisa que será descrito e relatado em pistas do conhecimento construído aqui:
As crianças ignoram os relógios. Os relógios têm a função de submeter o tempo do corpo ao tempo da máquina. Mas as crianças só reconhecem os seus próprios corpos como marcadores do seu tempo. Se as crianças usam relógios, elas os usam como se fossem brinquedos. Que maravilhosa subversão! Usar a gaiola do deus Chronos como brinquedo de Kairós , o deus do tempo da vida. As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma… Crianças não são para ser usadas como ferramentas. Elas são para ser gozadas, como brinquedos… Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança [...]. Quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregada do programa de educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos, os riachinhos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: Com os adolescentes é diferente. Eles não têm olhos para as coisas. Eles só têm olhos para eles mesmos... Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas. Aprender é chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no vestibular. Por isso quero ensinar as crianças. Ensiná-las para que elas se encantem com o mundo. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxinim, uma concha de caramujo, o voo dos urubus, o zinir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas, invisíveis aos eruditos olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados. A especialização os tornou cegos como toupeiras. Só veem dentro do espaço escuro de suas tocas. E como veem bem!), nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não está no Aurélio!) chamada pesquisa; dessa fuçação , o conhecimento; e do conhecimento, a alegria! ( ALVES, R., 2010 , n.p.).
Mas escrever mini-histórias exige esforço por parte dos professores5 e uma atenção considerável para comunicar as manifestações no mundo experienciado pelas crianças no cotidiano escolar. A proposta de acompanhamento para a elaboração de mini-histórias foi desenvolvida de 2017 a 20206 junto ao Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade La Salle. Essa perspectiva de gestão compartilhada de conhecimentos ofereceu algumas provocações e espaços para aprender por meio dos caminhos instigantes das mini-histórias, para que se produzam deslocamentos nos olhares naturalizados do fenômeno educativo em sala de aula, agora produzindo investigação dos saberes e relações culturais. É um esforço para reconhecer a pluralidade da produção do conhecimento na Educação Infantil que não se faz isoladamente, nem fora do mundo, pois não basta defender teoricamente o pluralismo e ignorá-lo na prática, mas, cabe a nós fomentarmos projetos de observação que apoiem experiências e registros dos professores em atuação, no momento da produção de memórias das crianças no cotidiano escolar. O respeito ao outro implica trazê-lo para o debate, mesmo que isso envolva riscos e dificuldades na sistematização de diferentes histórias. Então, questionamos: De que maneira podemos utilizar as mini-histórias na Educação Infantil como forma de documentação para qualificar os processos pedagógicos e educativos? Será que as mini-histórias podem modificar essa realidade educacional para o alargamento do diálogo com o mundo social? A Pedagogia, por meio do registro de mini-histórias, traz novas metodologias e sentidos à Educação Infantil e dá vida às narrativas de cenas cotidianas na escola, viabilizando a documentação pedagógica?
No que segue, organizamos caminhos para os principais conceitos e as pegadas de um itinerário formativo, no sentido de mobilizar novas metodologias que são fruto de um trabalho coletivo com mini-histórias. Diante disso, para que se alcance o objetivo inicial de compartilhar experiências formativas de mini-histórias, o trabalho foi organizado em três seções. A primeira busca revisitar o que são mini-histórias e as relações metodológicas com os elementos éticos, estéticos e sociais da educação. Na segunda seção partilhamos a experiência formativa realizada coletivamente em ambiências digitais, numa perspectiva de apoio pedagógico e de exercício desafiador de provocar abordagens de mini-histórias no cotidiano da Educação Infantil. Na terceira e última seção apresentamos algumas mini-histórias em cenários até então impensados, que sugerem uma mudança de olhar para as ambiências digitais, dialogando com o pensar, o reescrever e o saber-se no mundo. Ao final manifestamos o valor epistêmico das experiências com mini-histórias como possibilidades para diversificar e ampliar a formação de professores na Educação Infantil, em uma dimensão mais sensível, ativa e de competências para interagir com os significados da própria formação cultural.
Problematização metodológica
Se a forma de comunicar em que o adulto reproduz o processo da criança não teve tanto êxito na escola infantil em virtude de ter marcas e ressentimentos de uma pedagogia tradicional, comunicar em breves relatos foi uma prática muito marcada na proposta pedagógica Reggio Emília7 , onde pensadores da infância, como David Altimir (2010) buscaram inspiração. Uma das primeiras mini-histórias de Magaluzzi, comentada em Children (2021) , é a história de Francesco e o tubo de papel, que apresentou na University of Massachusetts , em 1988, conforme vemos na Figura 1 .
Por tratar-se de uma pesquisa de caráter educativo, formador e social que vem sendo desenvolvida desde 2017, a abordagem é inspirada na pesquisa-formação, em razão da própria temática manifestar um interesse transformador de práticas, herdeira das discussões sobre a hermenêutica. Tal procedimento metodológico orienta a investigação em suas variadas estratégias metodológicas, bem como para garantir os princípios articuladores das linguagens na produção dos saberes junto ao currículo prescrito e vivido. Ainda, permite avaliar o impacto das mini-histórias nos discursos e no cotidiano escolar, situado na emergência de outros estilos de aprendizagem (narrativas visuais, orais, escritas, digitais) no devir infantil, bem como orientar ações para promover a inclusão das produções dos professores no engajamento pedagógico com as crianças. O diálogo em rede, com a realidade pedagógica, permite relacionar os aspectos cognitivos, estéticos, éticos e afetivos postos na contemporaneidade, por meio dos dispositivos digitais móveis de comunicação e de interação escolar.
Nesse cenário de narrativas interconectadas pela cultura digital, Nilda Alves (2007) reforça a importância de promover novas formas de leitura e escrita, formando uma rede de múltiplas linguagens, imagens, sentidos no brincar com as palavras, gestos, emoções, ideias, tecendo diversas narrativas. As mini-histórias ganham novas formas de expressão em rede, outros enredos poéticos que atuam e marcam a imaginação humana, social e criadora das experiências9 . De acordo com Gadamer (1996 , p. 39), “la formación pasa a ser algo muy estrechamente vinculado al concepto de la cultura, y designa em primer lugar el modo especificamente humano de dar forma a las disposiciones y capacidades naturales del hombre”. Os caminhos escolhidos para desenvolver o entendimento do fenômeno das mini-histórias na Educação Infantil com os professores, pela documentação pedagógica, engloba concepções de infância, de professor, de escola e de humanidade, o que demandou uma pesquisa exploratória em sua etapa inicial, buscando observar as necessidades, assessorar, construir roteiros formativos, elaborar planos de ação e participação em práticas escolares na região metropolitana de Porto Alegre/RS. O processo é complexo e a abordagem da pesquisa-formação permite a interlocução de questões teóricas e narrativas entre os participantes, “com vistas a evidenciar um pensar reflexivo, autoformativo e uma racionalidade narrativa”, contemplando processos de mudança das práticas pedagógicas, de autocrítica no momento da atuação e de problematização da própria experiência inscrita nesse contexto de investigação ( SANCHES; CONTE, 2017 , p. 188). Tal estratégia se fez necessária para dialogar com a produção já existente e para desvelar as questões próprias do cotidiano escolar, da produção de dados e significados com grupos de crianças e professores, de quatro escolas de Educação Infantil, que manifestaram interesse em participar dessa proposta de forma voluntária e livre. O itinerário metodológico tem seu alicerce na construção do novo saber pedagógico, da memória, a partir da intervenção consciente sobre a prática, “no sentido de impulsionar o diálogo pedagógico na encruzilhada da ação (pensar em situações-limite)”, para fortalecê-la no enfoque criativo-emancipador dos enlaces do tempo vivido ( SANCHES; CONTE, 2018 , p. 106). Em uma segunda etapa, realizamos um estudo contextual, no sentido de identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência do fenômeno nas escolas, destacando os contextos e as abordagens a serem utilizadas na projeção de mini-histórias. A coleta dos dados da experiência realizada ocorreu, principalmente, por meio das oficinas pedagógicas digitais e presenciais, de observação do cotidiano escolar, rodas de conversa, formação permanente dos professores participantes e notas de campo (respeitando as normativas vigentes e leis sanitárias de 2020, por meio do Google Meet ).
A ideia de pesquisa-formação é abordada por Josso (2006) , em termos de dar condições ao desenvolvimento de um trabalho autoral e de uma experiência pedagógica conjunta através da ressignificação na própria experiência de atuação profissional, o que traduz também um trabalho de (re)elaboração ao longo da pesquisa, cujo processo de interação gira em torno do fenômeno estudado. Para Josso (2006) , ligar, religar e desligar é muito importante na compreensão do nosso processo de construção de conhecimento e formação pedagógica e cultural.
É o momento em que se trata de compreender como essa história articula-se como um processo - o processo de formação - que pode ser depreendido mediante as lições das lembranças que articulam o presente ao passado e ao futuro. Será o estabelecimento dessa perspectiva temporal que permitirá nomear os argumentos da história. Nessa fase do trabalho biográfico centrado na compreensão e na interpretação dos relatos com olhares cruzados, novos tipos de laços aparecerão ( JOSSO, 2006 , p. 378).
O entendimento da pesquisa-formação somou-se à compreensão de sentido praxiológico do aprender a realidade no contexto de uma cultura, defendida por Oliveira-Formosinho e Formosinho (2017) :
Esta práxis de descoberta busca transformar o espaço e o tempo que a criança vive, as interações e relações que vivencia, o cotidiano da aprendizagem que experiencia, as atividades e projetos que desenvolve, a avaliação em que participa. [...] O aprender da criança é situado, contextual, cultural, experiencial, interativo e comunicativo, reflexivo. Desafia, assim, a identidade de uma práxis que precisa ser responsiva ao ator principal da aprendizagem – a criança enquanto identidade que se desenvolve em direção à herança socio-histórico-cultural, através da mediação pedagógica respeitosa desenvolvida no território vivencial que é o cotidiano da práxis enquanto locus da pedagogia. ( OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2017 , p. 4).
Constantemente buscamos criar espaços-tempos de sociabilidade, de responsabilidade pelo outro e de experiências na escola, em diálogos partilhados e aprendentes com relação à cultura da infância. A dimensão praxiológica supõe um desenho formativo, pois as mini-histórias narram esse cotidiano educativo, que se nutre de tradições importantes para a vida.
A narrativa é um caminho para criar significado quando as atividades e projetos permitem que as crianças usem os sentidos plurais inteligentes e inteligências sensíveis plurais. Quando o professor é um colecionador de artefatos infantis culturais, pode facilmente iniciar a conversa, a comunicação, os diálogos em torno desses artefatos e a experiência que os criou, fazer disponível para a criança a documentação que a ajude a revisitar a aprendizagem, a identificar os processos de aprender a aprender a celebrar as realizações. As crianças conceitualizam-se como pessoas que aprendem quando têm acesso às jornadas de aprendizagem através da documentação. A complexidade deste processo permite a criação de memória e significado e impulsiona a criatividade. ( OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2013 , p. 35).
A ideia da documentação pedagógica é defendida por diversos autores como fundamental para o registro das crianças, produzindo memórias no cotidiano escolar, para estreitar os laços interculturais entre professores e infâncias enquanto postura ético-estética que leva em consideração as potencialidades das crianças e a compreensão formadora em diálogo interpares ( GANDINI; GOLDHABER, 2002 ; AZEVEDO; SOUZA, 2010 ; HELM; BENEKE, 2005 ). A documentação tem a dimensão de dar voz às crianças, estando relacionada à ética do cuidado, da escuta e do encontro ( DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003 ). Acrescenta-se ainda que, para Rinaldi (2012) , a documentação pedagógica
[...] [é] um ponto de partida importante para o diálogo, mas também para criar confiança e legitimidade em relação à comunidade mais ampla, abrindo e tornando visível o trabalho dessas instituições. Graças à documentação, cada criança, cada pedagogo e cada instituição podem conseguir uma voz pública e uma identidade visível. Isso que é documentado pode ser visto como uma narrativa das vidas das crianças, dos pedagogos e dos pais na instituição dedicada à primeira infância, uma narrativa que pode mostrar as contribuições das instituições para a nossa sociedade e para o desenvolvimento da nossa democracia. ( RINALDI, 2012 , p. 206).
Dahlberg, Moss e Pence (2003 , p. 193) entendem que a documentação pedagógica aprimora o exercício da autonomia do professor na Educação Infantil, sendo efetuado na coconstrução e coprodução, uma vez que “nós coconstruímos e coproduzimos a documentação como sujeitos participantes ativos”. Isso está atrelado à reflexão pedagógica do professor e à suposição de que usa a própria documentação para (re)pensar caminhos à prática pedagógica, estabelecendo formas de reconhecimento do trabalho com as crianças, as famílias e a comunidade. O intuito da documentação pedagógica não é apresentar uma verdade objetivista e tecnicista, mas é uma provocação para aprender a olhar para a criança e para os processos de desenvolvimento humano e da aprendizagem, visando compreender os sentidos e os contextos das experiências do trabalho coletivo. O potencial da documentação indica um parentesco com a narração de uma prática em suas diversas manifestações, que provoca um sentido de partilha de investigações e (re)interpretação cooperativa e avaliativa ( DAVOLI, 2011 ).
A documentação pode ser uma ferramenta potente porque ela não apenas estabelece uma nova relação entre os educadores e as crianças, mas também oportuniza outra maneira de trabalhar entre os adultos. Ela se constitui como uma produção pedagógica e como importante instrumento de trabalho. Documentar pode ser ainda um importante momento de crescimento profissional, de qualificação do serviço e da construção de condições de trabalho adequadas. ( BARBOSA; FERNANDES, 2012 , p. 3).
Daí que organizar uma rede em construção de mini-histórias serve à documentação do não sabido ( in-fans invisíveis) para a comunidade educacional, tendo no olhar artístico e cotidiano dos professores10 a possibilidade de narrar e dar visibilidade à jornada pedagógica com as crianças no cotidiano da Educação Infantil. Esses registros podem ser utilizados para o diálogo com outras experiências de mundo, para gerar (auto/re)conhecimento, autonomia, autoria coletiva, acesso a outras leituras de mundo das infâncias e do trabalho pedagógico pela sociedade. É por esse motivo que o sentido hermenêutico abre um caminho para recuperar no saber empírico, geral e humano da vida, também o conhecimento científico e educativo que deve ser novamente despertado para a vida, inclusive em conexão com os seus contextos de produção, de naturezas evidentemente diferentes ( GADAMER, 1996 ). Como dizia Paulo Freire (2015) , a educação, em qualquer nível de ensino que ocorra, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento da necessidade radical que é a expressividade humana. Por essência, a teoria está relacionada à prática, pois o mundo não é acessível independentemente dos sujeitos e dos processos curriculares, profissionais, tecnológicos e institucionais do fazer pedagógico em suas múltiplas diferenças e processos envolvidos.
Desdobramentos com as produções de mini-histórias
A argumentação se concentra em apresentar algumas experiências que vêm sendo desenvolvidas desde 2017 e continuadas em ambiências virtuais no período de 2020, por meio de oficinas pedagógicas voltadas para a formação de um laboratório de aprendizagem com professores da educação básica sobre mini-histórias. Essa proposta de intencionalidade formativa contempla a possibilidade de mudança das práticas educacionais e gira em torno de melhorar os processos pedagógicos desde a Educação Infantil, colocando em ação uma perspectiva desenhada no engajamento, na reflexão interdisciplinar e na socialização de experiências, de aprendizagens cooperativas conquistando competências ao interagir com o outro no mundo, indo além do desenvolvimento de competências técnicas ( GONZÁLEZ, S.; MARTÍN; GONZÁLEZ, M., 2019 ). O estudo foi realizado no Google sala de aula de uma universidade comunitária de Canoas/RS e envolveu um grupo de cerca de vinte (20) professores de escolas distintas de Educação Infantil, criado por demanda espontânea, além do grupo de pesquisa que coordenou as atividades. Os relatos dessa pesquisa-formação incluem também outras discussões ocorridas antes da pandemia como forma de contextualizar as mini-histórias à documentação pedagógica como um processo de pesquisa educacional na Educação Infantil, para contribuir com os novos significados na pesquisa baseada na cultura da infância.
Evidentemente, tais experiências (presenciais e virtuais) não retratam a totalidade dos modos de ver e agir das práticas de mini-histórias, em suas singularidades e diferenças, mas dão visibilidade a um recorte da virtualidade da comunicação para a partilha do sensível como forma de disposição estética ( RANCIÈRE, 2009 ). Vamos explorar as possibilidades da documentação pedagógica, em tempos desconhecidos, como um processo formativo de busca por fontes de conhecimento na primeira infância, tendo em vista o sentido de trabalhar pedagogicamente em cooperação, que se transforma em encantamento e curiosidade epistemológica, para oferecer aos professores e às crianças condições de fala e novas formas de comunicar, conhecer e explorar o mundo. Iniciamos a escrita colaborativa das mini-histórias em 2017 e, desde então, ampliamos e aperfeiçoamos o nosso entendimento sobre esta abordagem de pesquisa na Educação Infantil, assim como as formas de (re)elaboração e reconstrução das mini-histórias. As mini-histórias permitem a construção de conhecimentos visuais e de histórias do desenvolvimento infantil que implicam, antes de tudo, a participação e o comprometimento com a investigação no espaço e tempo do trabalho pedagógico, tendo em vista os interesses e necessidades com os outros sujeitos, neste caso, os professores que atuam com crianças e projetos da própria experiência vital.
As relações entre os participantes, incluindo quem orienta ou propõe a pesquisa, são de sujeitos-sujeito; Os objetos de pesquisa são construídos pelo coletivo, dependendo da especificidade dos conhecimentos derivados da experiência; Os dados da pesquisa são construídos mediante interações de todos os participantes do coletivo. O processo habitualmente chamado de coleta, sistematização, análise dos dados é parte da construção dos mesmos; O rigor da pesquisa se dá na máxima aproximação das explicações advindas do coletivo que gera as informações sobre a situação objeto. Essa aproximação resulta das relações subjetivas, derivadas de elementos ideológicos, políticos, sociais e culturais específicos do coletivo, embora no âmbito da sistematização universal dos conhecimentos; A metodologia de pesquisa-formação das pessoas do e para o coletivo objetiva a construção de consensos, nos quais a permanente circulação das informações se caracterize pela criação de condições, para que todos os participantes tenham equitativas possibilidades de comunicar-se. ( ALVARADO PRADA, 2005 , p. 631).
Tal análise é composta também por uma documentação pedagógica registrada em fotos, com suas respectivas autorizações de uso de imagem, bem como por reflexões teóricas que serviram de inspiração na prática pedagógica e que foram escolhidas para compor o processo de investigação. A intencionalidade presente nas mini-histórias implica no gesto de fotografar que traduz a atitude pedagógica de uma observação extremamente minuciosa do cotidiano escolar, por parte do professor a um novo contexto, sobretudo quando se trata de fotografar momentos episódicos das crianças interagindo com os outros, com a natureza e com o mundo.
Desse modo, o gesto de fotografar permite-nos ver concretamente de que forma a escolha funciona como projeção no futuro. Esse gesto é um exemplo da dinâmica da liberdade, ele mostra que a crítica (o uso de critérios para projetar possibilidades) incorpora essa dinâmica da liberdade. Contudo, ser um espelho enquanto apreciação das possibilidades do futuro é apenas um dos sentidos do conceito de reflexão. Num outro sentido, a reflexão é um espelho no qual nos vemos a nós próprios quando tomamos uma decisão. ( FLUSSER, 2019 , p. 50).
A apropriação dos conhecimentos no campo da Educação Infantil envolve aspectos em que a racionalidade se mistura com a pragmaticidade e a emocionalidade, em que as atuações são utilizadas para a compreensão do (re)conhecimento e da leitura da realidade. Experimentar as pesquisas com mini-histórias desde a Educação Infantil provoca o olhar do professor sobre o próprio trabalho pedagógico e desacomoda-o nas metodologias de sala de aula. O objetivo das oficinas sobre mini-histórias não foi oferecer algo pronto em forma de um manual de como produzi-las, mas justamente de gerar o processo formativo e reconstrutivo presente na própria prática pedagógica e na escrita colaborativa interpares. Daí que o movimento para escutar a criança em tempos de pandemia e reconhecer suas experiências de crescimento no cotidiano é um convite aos professores para aprenderem a reconquistar a própria cultura da infância. Então, questionamos: De que maneira podemos utilizar as mini-histórias na Educação Infantil para qualificar os processos pedagógicos? Que repercussão teve o gesto de fotografar sobre o criar por mini-histórias? Por essas razões, criamos o seguinte percurso de pesquisa: 1) A criação de um itinerário formativo por meio de oito oficinas pedagógicas, com base nas diferentes concepções e características epistemológicas, culturais e político-pedagógicas das escolas em articulação com as mini-histórias; 2) A investigação da realidade e a reelaboração de modelos formativos sensíveis às discussões sobre arte, educação, imagens culturais, documentação pedagógica, roteirização, autonomia, produção de mini-histórias e formação pedagógica, estimulando a formação de redes de pesquisa e colaboração; 3) Ampliar a interlocução e a participação dos professores de rede pública para a produção de materiais didático-pedagógicos em coautoria, aliado a um poder de expressão e criação de mini-histórias (trabalho de acompanhamento com as oficinas), reconhecendo as capacidades (co)autorais dos sujeitos da educação; 4) Quebrar paradigmas e criar desdobramentos educativos e científicos para as diferentes linguagens que compõem as mini-histórias na educação, iniciando pela sistematização do conhecimento em ambiências digitais, sensibilização às múltiplas linguagens, construção didática e rigor científico gerado pelas mini-histórias de dimensões ético-estéticas à criação de conhecimentos na Educação Infantil.
As oito oficinas propostas no curso de extensão, sob o título Convite às mini-histórias: itinerâncias formativas em redes narrativas , contaram com webconferências sobre mini-histórias, indicação de leituras em todas as oficinas e atividades assíncronas com exercícios (desafios) para estudar e reinventar a própria experiência. Além disso, também estudamos o fenômeno da percepção, do olhar, da leitura, do sentir, do gesto de fotografar e do movimento da escrita pedagógica com a interação perceptiva do trabalho vinculado a crianças nos mundos (presencial e digital). Para o desenvolvimento das oficinas de mini-histórias criamos um roteiro de trabalho, buscando formas de traduzir metodologicamente o desenho da formação holística e produção colaborativa que o assunto exige. No que segue, iremos contextualizar duas oficinas em função dos limites de um artigo e das dimensões abertas da experiência desenvolvida, uma vez que se trata de um desafio ainda maior de formação em ambiências virtuais, algo inovador em termos de representar uma situação desconhecida, em termos de prática com mini-histórias. A oficina Janelas do sentir 11 serviu de inspiração para potencializar um trabalho metaforicamente desconhecido, ou seja, para despertar outra forma de olhar, para ampliar o repertório de sensações e compreender a complexidade do que se faz como professor(a) na Educação Infantil. Esse exercício de olhar traz o desafio de percorrer caminhos diferentes em situações de atenção e percepção atenta das coisas e da natureza, traduzindo a experiência do olhar devagar e da própria bagagem cultural. Essa oficina visou incentivar a observar o mundo e prestar atenção nos detalhes que nos rodeiam, o que soa aos sujeitos da pesquisa como uma experiência única no estado de relação com o mundo. Essas referências servem de inspiração para despertar nos professores as linguagens expressivas, trazendo repertórios para os contextos educativos e diálogos de que na cultura da infância a prática precede a teoria. Alguns retornos dessa atividade trouxeram as percepções de professores quase sem tempo para o desenvolvimento de outras linguagens sensoriais porque esse desafio levou a algumas professoras a sonhar e a registrar as ausências, especialmente da valorização da escuta sensível aos mundos.
Pensar sobre a práxis e a conquista da escrita por meio de mini-histórias, estabelecendo exercícios de criação na ambiência virtual do curso de extensão, é um desafio que precisamos enfrentar, especialmente para quem nós formamos. A partir do vídeo Lila12 , provocamos os participantes a olharem para as sutilezas do cotidiano e para as mini-histórias, no sentido de fazer existir por tornar visível, pela imaginação criadora promovendo um mundo melhor de encontro e valorização das diferenças humanas. Sabemos que criar mini-histórias em processos pedagógicos na Educação Infantil é um ato de tornar visível a vida cotidiana na escola, buscando, de uma forma respeitosa e honesta, o fazer existir por tornar visível e partilhar o invisível dos contextos, na verdade, a beleza está nos olhos de quem vê e o que é essencial é invisível aos olhos. Ao associar o desafio da criação de mini-histórias ao exercício do olhar foram trazidos alguns relatos de interação perceptiva nesse exercício conjunto. Algumas sensações dessa oficina foram percebidas e escritas nas seguintes relações do que apreendemos dela, em excertos de outubro de 2020.
Podemos perceber claramente que Lila era capaz de enxergar a beleza no que via, e assim nós também temos esse compromisso de sermos capazes de olhar profundamente para cada cena, para expressar a beleza do que escolhemos contar, tornando cada mini-história especial. “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.” (Manoel de Barros).
Os mistérios da vida em transformação poética... Somos inacabados e essencialmente um canteiro de obras. Que vídeo sensível, inspirador e lindo! Confesso que assisti do início ao fim com um sorriso largo no rosto. Automaticamente relacionei Lila aos olhares! Primeiramente das crianças. Tão generosas, sempre! Percebem beleza e se encantam pelo simples e belo que a vida oferece. Enquanto o vídeo passava e as imagens apareciam, ficava imaginando que para as crianças deve ser exatamente assim... Incrível, mágico, colorido, cheio de vida! Há riqueza, imaginação, envolvimento, fascinação em tudo que as cerca...
E após, me peguei pensando, relacionando aos olhares dos adultos... Que precisam aguçar a sensibilidade para poder ver sob o ponto de vista deles. Uma escuta sensível, que está ora junto, ora ao lado, por vezes, um pouco mais para trás, oferecendo espaço para que sejam protagonistas em seus modos de perceber e interpretar o mundo. Parceiros na arte dos olhares!
Impossível não se emocionar com essa lindeza de vídeo. Lila representa uma pureza de olhar e uma imaginação fantástica que percebo ser algo bastante presente nas crianças. A curiosidade, o fascínio e a criatividade de Lila demonstraram o quanto perdemos essa capacidade quando adultos. O olhar “endurece”, perde a leveza e gera um afastamento daquilo que as crianças cotidianamente querem nos mostrar: a beleza da vida.
O processo de observação atenta e da escrita poética para documentação visa a construção de sentidos em meio às tecnologias educativas, do que é apreendido e tecido junto, a fim de superarmos uma pedagogia da infância oprimida. Vale destacar que as mini-histórias na complexidade do agir pedagógico envolvem muita reflexão sobre a prática, por isso foram desenvolvidas com vistas ao próprio processo de (auto)formação e discussão acerca da educação estética e sensível com a infância, e não somente para o registro e documentação. Acrescentamos que o trabalho pedagógico com mini-histórias enquanto campo de experiência coletiva pertence à lógica do professor comunicacional, artista, de autonomia estética e escritor sensível, pois “valoriza-se a determinação da arte como forma e autoformação da vida” ( RANCIÈRE, 2009 , p. 39).
Desde o primeiro encontro com os participantes desafiamos os professores a fazerem uma narrativa visual da própria formação que contemplasse o que havia ocorrido nesse período de pandemia, com o objetivo de compartilhar os saberes da experiência em forma de autorreflexão do percurso realizado no curso, sugestões e revisão das investigações produzidas. Essa oficina foi proposta e organizada no final do curso de extensão para fortalecer os vínculos e a abordagem das mini-histórias, na tentativa de dar continuidade à formação permanente em 2021, por meio de uma coletânea de ensaios com as ações com crianças na escola. Vejamos alguns relatos da experiência:
Para mim o curso sobre as mini-histórias foi muito interessante porque desde o início despertou a sensibilidade em observar mais, em sentir, apreender e também sobre a importância do registro de momentos que parecem comuns, mas que trazem em si uma profundidade antes não percebidas. E sinto que este aprendizado vou levar para a vida, tanto no trabalho com a educação infantil, quanto com a família e amigos. Foram muitas leituras, muito estudo, mas gostaria de ter tido mais tempo ainda para me dedicar.
As mini-histórias são fontes importantíssimas de documentação pedagógica, pois por meio delas é possível observar o cotidiano da educação infantil, as aprendizagens... Além do olhar cuidadoso da (o) educadora (o) quanto ao protagonismo infantil. Esse curso foi um presente durante o isolamento social, no decorrer da minha formação tive pouco contato com a educação infantil. Entretanto, após esse curso sinto-me mais preparada para tal porque sei que respeitarei as aprendizagens, protagonismo e os conhecimentos dos educandos. Realizei as atividades nos domingos, foi um momento de apreciação e de beleza do meu dia, pois as mini-histórias são arte feitas a partir dos registros das crianças como seres sociais.
Por essa razão o meu interesse em participar desse curso, para compreender melhor e produzir materiais mais ricos. Mas me surpreendi com o curso, pois ele trouxe para mim uma percepção das mini-histórias muito além da que eu tinha, com uma extrema sensibilidade e um olhar profundo sobre uma determinada situação envolvendo uma ou mais crianças. Anteriormente, costumava a escrever mini- histórias mais simples, sem riqueza em detalhes e fazia isso para todas as crianças da turma, a pedido da direção que não concordava em fazer relatos de apenas uma determinada situação. Hoje eu vejo como aprendi errado, pois uma mini-história não deve ser um material quantitativo e sim um material de qualidade, envolvendo uma situação real de experiência, trocas de aprendizados, interações nos mais variados momentos e o mais importante, deve ser um material que revela significado para as crianças envolvidas.
Resolvi participar do Curso por curiosidade pela temática, pois não conhecia a proposta das mini-histórias. Considero que é muito importante para o contexto da educação infantil, especialmente; e, também um tanto complexo para aprender, que no meu caso não estou atuando com a Educação Infantil. Mas aprendi um pouco, e este pouco quer dizer que tenho muito o que conhecer, ainda. As mini-histórias oportunizam muita reflexividade, criticidade e criatividade no processo de ensino e aprendizagem. É necessário compreender muito sobre esta perspectiva pedagógica.
Estamos chegando ao final deste curso encantador. Que troca maravilhosa de saberes. Durante o Curso de Mini-histórias aprendi a ter um olhar atento, crítico e poético para meus registros.
Sinceramente, pensei que não conseguiria escrever mini-histórias em tempos de pandemia, por estar longe das crianças, mas com o apoio das famílias, foi possível vencer este desafio! Não sabemos os rumos para o ano de 2021, mas sugiro que o curso tenha continuidade (no formato online), para aprofundarmos ainda mais o assunto.
Conforme podemos depreender dos relatos acima, a experiência revela o que aprendemos desses encontros formativos e como atribuímos sentidos e percepções a esses movimentos do curso de escutar e documentar o desenvolvimento das aprendizagens socias da infância. As evidências científicas mostram que no caminho de horizontalidade todos aprendemos em comunicação, inclusive as famílias se predispõem a participar mais do cotidiano escolar e acompanhar o desenvolvimento das crianças em ações da vida, para o exercício competente da própria condição humana em suas experiências sociais e colaborativas. Para ilustrar esse processo em forma de registros pedagógicos, a partir de mini-histórias, incluímos abaixo quatro construções que surgiram de fotos recentes compartilhadas por experiências de crianças em brincadeiras ou vivências com familiares, que surgiram em encontros ( online ) durante a pandemia. Precisamos considerar que a criança aprende em todo contexto, conforme os autores de referência afirmam e não somente na escola. Nesse sentido, ao analisarmos as produções de mini-histórias podemos perceber essa aprendizagem contextual e que acontece agora, em muitos desdobramentos na construção em rede. Pelo olhar das famílias pode ser possível narrar a aprendizagem das crianças e compreender que mesmo estando em casa é possível desenvolver mecanismos de aprendizagem às crianças em trabalhos distintos, experienciais e sem horário marcado. Na verdade, aprendemos desde o nascimento, o tempo todo, nas situações diversas como, por exemplo, na mini-história a seguir ( Figura 2 ), que é contada pelas lentes de uma avó que passou a ficar mais tempo com a neta durante a pandemia.
Algumas questões acerca das singularidades das experiências pedagógicas desenvolvidas com mini-histórias vêm à tona pelo interesse dos participantes durante as oficinas, bem como pela reflexão sobre a própria prática, que nos convida a outras investigações, em termos de (re)construção de abordagens dos conhecimentos vinculados ao agir cooperativo. Estes movimentos formativos nos provocam outras questões: como e por que documentar os processos de formação desde a Educação Infantil? Como desenvolver o olhar investigativo na Educação Infantil? No que impacta o comprometimento pedagógico e o trabalho conjunto para a busca de sentido da cultura infantil? “Pode-se falar do agir humano em geral e nele englobar as práticas artísticas, ou estas constituíram uma exceção às outras práticas”? ( RANCIÈRE, 2009 , p. 63).
Se “hoje o estético ressurge como uma forma de lidar com as exigências éticas da pluralidade” ( HERMANN, 2005 , p. 33), tal processo autoeducativo é marcado por mini-histórias, expresso por texto e imagem, em alguns casos também por som (no movimento das linguagens digitalizadas). Mergulhar nesse universo se converteu numa aventura fascinante que provoca a convivência com os elementos da experiência perceptiva, investigativa, do diálogo que vincula o desenvolvimento cognitivo, motor e emocional, a partir da expansão de nossos sentidos e, consequentemente, das nossas relações com o mundo da Educação Infantil. Em um cenário tão atípico, iniciamos trabalhos investigativos de forma remota com a intencionalidade pedagógica de priorizar estar presente na vida das crianças, visto que as mini-histórias despertam a curiosidade das crianças, o apoio das famílias e impactam positivamente no desenvolvimento infantil, conforme os registros na Figura 6 .
Tudo isso é fruto do cotidiano formativo, mas também se relaciona aos seus autores (crianças e professores), no que se refere às intenções comunicativas, expressivas, aos vínculos afetivos produzidos com os outros, no universo pedagógico, artístico e sociocultural. Tais perspectivas mudam as relações com a Educação Infantil, superando o tempo vazio e homogêneo da história, pois engaja e compreende a potência das crianças localizadas e movimentadas nas formas de viver junto e iluminadas no momento do seu reconhecimento ( BENJAMIN, 2012 ). Os atravessamentos formativos dos professores em experiências digitais e estéticas são desestabilizadores, no sentido de que criam contextos de investigação coletiva que não são apenas virtuais, mas sim possíveis. Esse caminho de reconstrução pedagógica exige, portanto,
Uma nova imagem de criança - com agência e capacidades de exploração, comunicação, expressão, narração, significação; uma outra imagem de profissional – com o poder de escutar, de dar tempo e espaço, de dar voz, de documentar e incluir a voz das crianças; uma harmonização de vozes (a da criança e do profissional) através da escuta, da negociação, da colaboração; e a reconstrução do conhecimento profissional prático no âmbito da pedagogia da infância. ( OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016 , p. 90).
Algo semelhante ao que é manifestado no texto de Clarice Lispector (1998 , p. 22): “Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem além e aquém de minha história humana. Transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula me cria”. O professor de Educação Infantil vive na corda bamba porque é consciente de sua fragilidade, falibilidade, mas vive a serviço da humanidade, pela seriedade do seu trabalho e esforço para se manter em permanente estudo, atuando como cidadão, cientista e intelectual.
Considerações finais
As mini-histórias ainda que sejam pouco conhecidas e exploradas pelos profissionais da Educação Infantil podem ser uma forma interessante de intercomunicar experiências, num processo próprio de pedagogias autorais, participativas e comunicativas. Uma escola da infância deve valorizar toda forma de expressão e ser capaz de articular aprendizagens envolvendo a criança em metodologias e formas de trabalho pedagógico que envolvem a comunidade educacional. Os professores e as crianças precisam ser agentes de mudança social no processo de ensino pela via da autonomia e da curiosidade, no sentido de desenvolver práticas reflexivas e em diálogo com os problemas contemporâneos, para aperfeiçoar a capacidade de fazer experiências estimuladoras de responsabilidade pelo mundo. Daí que as mini-histórias representam uma forma de construção do conhecimento sustentado em práticas estéticas desde a Educação Infantil, por meio de atos de criação, partilha e abertura às novas construções nesse movimento virtuoso que articula a perspectiva das crianças. As evidências obtidas nesse relato revelam a importância da formação e da constante atualização científica e profissional do professor, pois é ele quem trabalha com a primeira infância e com os artefatos culturais que permeiam suas práticas. A tarefa do professor é organizar pistas e caminhos instigantes para as descobertas de conhecimentos, além de estar aberto para aprender a olhar e a decifrar as expressões e movimentos das crianças, mobilizando aprendizagens culturais e experimentações com os mundos da infância, por meio das mini-histórias. Tais práticas de mini-histórias propiciam a criação de registros éticos, estéticos e formativos em tempos diferenciados de pandemia, configurando-se, também, como forma de documentação que leva em conta o desenvolvimento humano voltado aos valores axiológicos e epistemológicos da cultura da infância ( CONTE; CARDOSO, 2022 ).
As experiências educacionais mostraram que o professor pode incorporar ensaios formativos por mini-histórias em consonância com as intenções pedagógicas implícitas, necessidades, expectativas e condições de aprendizagem do público infantil, como forma de incentivar e sensibilizar as crianças e os familiares para outros olhares sobre a educação, consolidando assim um processo pedagógico de (re)construção de sentidos e significados. A visibilidade e o reconhecimento dessas práticas pedagógicas com mini-histórias trouxeram uma mudança das pessoas pelos vínculos e experiências criadas ( FREIRE, P., 2015 ). Vale lembrar que as crianças de hoje serão os adultos de amanhã, que podem ser capazes de melhorar o mundo, exercendo o direito à liberdade e à autonomia para pensar, imaginar, agir, estabelecer relações curiosas com o mundo, na esperança de que se reconheçam as especificidades da infância pelo movimento de orientação pedagógica e estabelecimento de vínculos por e com histórias imagéticas.
As mini-histórias projetam experiências complexas de interação humana, comunicação dos contextos vividos, confirmam sua autenticidade e relevância ao serem reconhecidas e potencializadas na formação pedagógica interpares. Se faz extremamente necessário compartilhar as práticas desenvolvidas na Educação Infantil, para inspirar outros profissionais a desenvolverem um trabalho mais respeitoso e honesto com as crianças. Soma-se o fato da valorização da Educação Infantil que só ocorrerá se o professor tiver coragem de buscar formação permanente, novas fontes de aprendizagem e cultivar saberes epistemológicos da profissão para narrar seus percursos formativos, tornando-se um professor pesquisador junto às crianças. A ideia das mini-histórias precisa ser reconstruída no ato de escutar, de desencobrir o invisível de todas as linguagens (oral, corporal, visual, sinestésica de estar com o outro), dando vida ao trabalho pedagógico realizado na Educação Infantil, pois nessa etapa associamos a vida ao obrar-se humano. Só assim poderemos superar as tradicionais e canônicas práticas e lançar novas experimentações coletivas, para que sirvam de vínculo comunicativo à (auto)formação de professores e à conquista de competências ao interagir com a proposta de mini-histórias, tecendo críticas às carências de um trabalho sem sistematização e investigação na Educação Infantil e exigindo mudanças às práticas descontextualizadas.