Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
Italo Calvino
Duas concepções estão na base da teoria das práticas sociais (e educacionais) do sociólogo francês Pierre Bourdieu: dominação e reprodução. Para compreender sua complexa e polêmica teoria, que renovou o modus operandi sociológico a partir do início dos anos 1960 e recolocou esse campo do conhecimento no ranking das ciências, é necessário estabelecer uma relação estreita entre as duas concepções, tanto em relação à eleição das lentes interpretativas quanto à mobilização dos recursos metodológicos e das fontes empíricas. Em outros termos, são as concepções de dominação e de reprodução que dão sustentação à arquitetura teórica edificada por Bourdieu. Daí a importância de partir da compreensão do autor a respeito dessas concepções, que fundamentam, de modo consideravelmente amplo e aprofundado, o conjunto de suas obras (livros, artigos e conferências).
Bourdieu não economizou sua pena – nem seu verbo – para inscrever suas análises de diferentes objetos e temáticas nessa incontornável relação, ressignificada nas sociedades modernas, contribuindo assim para a consolidação de uma sociologia crítica2. Desde os seus primeiros estudos, desenvolvidos na Argélia3, ficou evidente que quanto mais diferenciadas as estruturas de uma sociedade, mais dissimulados são os mecanismos de dominação (de indivíduos, de grupos, de classes). Esses mecanismos favorecem a mobilização de estratégias de reprodução (das pessoais e familiares, como as estratégias matrimoniais ou de fecundidade, às institucionais, como as escolares, religiosas ou políticas).
Se nas sociedades pré-capitalistas, como Bourdieu define as estruturas sociais argelinas, são sobretudo as estratégias matrimoniais que asseguram a transmissão de um patrimônio e a preservação de posições sociais, nas sociedades contemporâneas a reprodução da ordem social e a persistência de desigualdades e injustiças são promovidas, essencialmente, pelas estratégias escolares4, que variam segundo o volume e a espécie de capital possuído. Assiste-se assim a “passagem da lógica dinástica da ‘casa do rei’, fundada no modo de reprodução familiar, à lógica burocrática da razão de Estado, fundada no modo de reprodução escolar” (BOURDIEU, 1994, p. 10).
Percebendo que o postulado de uma igualdade formal entre os alunos torna a instituição desatenta aos impactos das desigualdades reproduzidas pela escola, graças a processos de legitimação e naturalização da ordem social, Bourdieu e Passeron se dedicaram à elaboração de dois estudos de grande impacto sobre as políticas de democratização da educação: o primeiro foi publicado na França em 1964 e no Brasil em 2014, com o título Os herdeiros: os estudantes e a cultura (Les héritiers: les étudiants et la culture); e o segundo foi publicado na França em 1970 e no Brasil em 1975, intitulado A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement).
Nessas obras, os autores dão centralidade às noções de herança5, estratégia e reprodução social. A primeira é empregada num sentido amplo, não como patrimônio econômico, mas como patrimônio cultural, pois, além dos bens econômicos, herda-se um sobrenome, um nível cultural, uma rede de relações, assim como bens simbólicos, não se medindo esforços para preservar e mesmo ampliar o patrimônio herdado. Ao empregar a noção de estratégia6, os autores rompem com o uso recorrente à época, quando se considerava toda estratégia como uma iniciativa consciente de um agente, sendo tomada, portanto, no plano individual7. Para Bourdieu e Passeron, a estratégia designa o conjunto de ações ordenadas tendo como horizonte objetivos a serem alcançados a longo prazo, sendo geralmente produzidas pelos membros de um determinado coletivo. Em outras palavras, as estratégias visam transmitir a herança, a fim de reproduzir a posição social ocupada. No entanto, esse modo de reprodução tem por princípio não uma intenção consciente e racional, mas as disposições (os habitus) que tendem espontaneamente a reproduzir as condições de sua própria produção. Para Forquin (1971), essas duas obras constroem conceitos relacionais, contrapondo-se às ilusões da “sociologia espontânea”, ao culto do fato bruto ou da experiência imediata, a certas análises fatoriais que estabelecem correlações em sincronia dissimulando os processos de eliminação e os efeitos de carreira, às explicações puramente verbais e à abstração “reificante” dos pseudoconceitos.
Enfim, por se inscreverem num mesmo quadro reflexivo, fruto de uma profícua colaboração entre Bourdieu e Passeron8, a leitura de uma sempre supõe a leitura da outra, haja vista a construção do plano epistemológico, metodológico e político que as fundamenta. Além disso, os conceitos-chave que definem o caráter crítico de A reprodução já haviam sido esboçados em Os herdeiros. Neste texto, todavia, irei me dedicar apenas à apreciação de algumas das dimensões que marcam os 50 anos de A reprodução. Apresentarei primeiramente os aspectos gerais da obra; em seguida, situarei os fatores dos contextos políticos e educacionais em que foi concebida e introduzida no Brasil; e, por fim, mencionarei os elementos que caracterizam sua recepção no Brasil, assim como seu aporte para a pesquisa educacional brasileira.
Desvelando a “lógica secreta” dos sistemas de ensino
A reprodução se apresenta como uma obra mais teórica e mais conceitual que Os herdeiros, e isso desde o subtítulo: elementos para uma teoria do sistema de ensino, embora seu maior impacto venha do título9, pois faz apelo ao “paradigma” segundo o qual o sistema de ensino contribui para reproduzir a estrutura social. Interessados ou, mais propriamente, inconformados com a negação ou ocultação da questão sociológica das condições sociais de transmissão dos saberes, Bourdieu e Passeron constroem um modelo que permite compreender o funcionamento e a real função social do sistema de ensino. Desvelar os mecanismos pedagógicos pelos quais a escola contribui para reproduzir a estrutura das relações de classe permite, segundo eles, afirmar que a estrutura do espaço social, próprio das sociedades diferenciadas, é produto de dois princípios fundamentais de diferenciação: o capital econômico e o capital cultural.
Mas como apreender as lógicas de dominação e as estratégias de reprodução social postas em prática pela escola? Para responder a essa questão, Bourdieu e Passeron edificam uma “teoria geral das ações de violência simbólica”10, partindo do pressuposto que a instituição escolar é utilizada como estratégia que visa o monopólio das posições dominantes, pois exerce um papel determinante na distribuição do capital cultural.
A originalidade de A reprodução se evidencia desde sua estrutura, sendo composta de dois livros que, à primeira vista, não parecem se articular11. O primeiro livro, Fundamentos de uma teoria da violência simbólica, começa explicando os dois esquemas ali dispostos e tem por função “ajudar o leitor a apreender a organização do corpo de proposições […], mostrando as relações lógicas mais importantes e as correspondências entre as proposições do mesmo grau” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 18). A constituição dessas afirmações busca inspiração e apoio nas teorias clássicas do fundamento do poder (MARX, DURKHEIM, WEBER), além de se orientar segundo modelos considerados científicos.
Expressões como duplo arbitrário, autoridade pedagógica, trabalho pedagógico, sistema de ensino são ordenadas com base numa espécie de “estenografia de sistemas de relações lógicas”, ou seja, de uma premissa central deriva-se uma análise precisa sobre o modo como o ensino é exercido e percebido. Vários conceitos são introduzidos em A reprodução, a exemplo do conceito de habitus12 que, embora tivesse sido empregado por Bourdieu no posfácio à obra Architecture gothique et pensée scolastique, do historiador de arte Erwin Panofsky, em 1967, é reelaborado, passando a fazer parte, juntamente com os conceitos de campo e capital, do léxico bourdieusiano13. Segundo Bourdieu e Passeron (2013, p. 2),
[...] somente uma teoria adequada do habitus como lugar de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade permite colocar completamente em dia as condições sociais do exercício da função de legitimidade da ordem social que, de todas as funções ideológicas da escola, é sem dúvida a melhor dissimulada.14
O segundo livro, A manutenção da ordem, ao contrário do primeiro que não apresenta desdobramentos, é composto de quatro capítulos: 1. “Capital cultural e comunicação pedagógica”; 2. “Tradição erudita e conservação social”; 3. “Eliminação e seleção”; e 4. “A dependência pela independência”.
O primeiro capítulo se propõe a apreender a relação pedagógica como uma relação de comunicação, procurando “medir o seu rendimento, [para] determinar os fatores sociais e escolares do êxito da comunicação pedagógica pela análise das variações do rendimento da comunicação em função das características sociais e escolares dos receptores” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 81). Para levá-lo a efeito, os autores explicitam o modelo teórico adotado e a medida empírica dos percursos do sistema escolar, do ensino primário ao superior, buscando compreender como os alunos passam da classe social de origem a uma outra classe social após várias seleções. Segundo Forquin (1971, p. 41), Bourdieu e Passeron, tendo como referência resultados empíricos de grande dimensão, confirmam “uma hipótese ao mesmo tempo global e complexa relacionada aos efeitos combinados do capital linguístico e do grau de seleção de cada categoria de estudante sobre suas chances de sucesso e sua probabilidade de sobrevivência escolar em cada nível do curso”.
Uma dupla intenção orienta o segundo capítulo: “Tradição erudita e conservação social”. A primeira visa “interrogar sobre os meios institucionais e sobre as condições sociais que permitem a relação pedagógica de perpetuar-se”, enquanto a segunda, “determinar o que define sociologicamente uma relação de comunicação, por oposição à relação de comunicação definida de modo formal” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 121). O objetivo é interrogar-se sobre as modalidades da transmissão cultural, tendo em conta os constantes fracassos das medidas pedagógicas postas em prática pelo sistema de ensino. O trabalho dos autores consiste, portanto, em demonstrar que a comunicação pedagógica funciona menos como transmissão de uma cultura qualquer e mais como legitimadora de uma cultura particular, ou seja, os diferentes meios institucionais promovem uma certa “conivência cultural entre a escola e as maneiras (de viver, falar e pensar) características da classe dirigente” (FORQUIN, 1971, p. 42).
“Eliminação e seleção”, tema do terceiro capítulo, tem por finalidade mostrar que as características e funções internas do exame15 em um dado sistema de ensino permitem estabelecer uma hierarquia social e uma hierarquia escolar. Como instrumento neutro, o exame reforça o sentimento de uma escola para todos e legitima sua existência. Para elaborá-lo, os autores praticam uma sociologia histórica, recorrendo ao método comparativo. Eles esclarecem que é graças à
[...] ilusão da neutralidade e independência do sistema escolar em relação à estrutura das relações de classe que se pode chegar a interrogar a interrogação sobre o exame para descobrir o que o exame oculta e o que a interrogação sobre o exame contribui ainda para ocultar ao desviar-se da interrogação sobre a eliminação sem exame. (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 153).
No quarto e último capítulo, “A dependência pela independência”, os sociólogos analisam como se dão as funções do “interesse geral” ou dos fins da educação, que, graças ao caráter genérico, mascaram a verdade objetiva de sua relação com a estrutura das relações de classes. Mais especificamente, “numa sociedade em que a obtenção dos privilégios sociais depende cada vez mais […] da posse de títulos escolares, a Escola tem apenas por função assegurar a sucessão discreta a direitos de burguesia que não poderiam mais se transmitir de uma maneira direta e declarada” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 218).
Os autores se interrogam sobre as ilusões que a escola produz em relação à autonomia do sistema de ensino e ao seu princípio universal: a igualdade de oportunidades. Ou seja, é a reprodução da ordem social que o sistema de ensino tem como horizonte, de maneira que a pressão exercida pela democratização da educação o coloca em constante estado de crise. Por essa razão,
Conceder ao sistema de ensino a independência absoluta à qual ele pretende ou, ao contrário, não ver nele senão o reflexo de um estado do sistema econômico ou a expressão direta de valores da ‘sociedade global’, é deixar de perceber que sua autonomia relativa lhe permite servir às exigências externas sob as aparências de independência e da neutralidade, isto é, dissimular as funções sociais que ele desempenha e, portanto, desincumbir-se delas mais eficazmente. (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 189).
Como se pode ver, por razões teórico-metodológicas, mas também políticas, A reprodução se torna uma referência incontornável a diferentes sociologias, em particular à sociologia da educação. Trata-se de uma composição poderosa e muito complexa, de uma construção crítica e coerente, graças ao caráter relacional dos conceitos mobilizados, que em nenhum momento perdem de vista o horizonte da empiria. O viés político também atravessa toda a obra como uma chave de interpretação teórica, mostrando que uma verdadeira democratização coloca em dúvida os conteúdos escolares, seus métodos, seus exames, a função da Escola numa sociedade democrática, assim como a atitude dos professores diante dos alunos, da cultura, do sucesso e fracasso escolar.
Enfim, passado meio século, quais as possíveis contribuições das teses formuladas em A reprodução, tendo em vista a pesquisa em sociologia da educação? Que fatores motivam sua (re)leitura? Pode-se responder reconhecendo que se está diante de uma obra clássica: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 1991, p. 11). Trata-se, portanto, de uma obra que transcende o valor histórico próprio das grandes obras, pois instiga a produção de novas leituras e de novos argumentos críticos. Uma segunda motivação diz respeito à interpretação, ao mesmo tempo estrutural e genética, proposta pelos autores de A reprodução: os sistemas de ensino não escapam aos determinismos sociais, pois priorizam a produção dos seus reprodutores, como num círculo do eterno retorno; ignorando as demandas de democratização, os sistemas de ensino contribuem com muita eficácia para a reprodução da ordem social. Para melhor discutir esse processo, faz-se necessário voltar aos contextos políticos e educacionais francês dos anos 1960 e brasileiro dos anos 1970.
Contextos políticos e educacionais distantes e distintos
Retomar a obra A reprodução supõe buscar no momento histórico que a viu nascer – a França dos anos 1960 – fatores que instigaram seus autores e a tornaram importante para os estudos em educação. Examinar sua divulgação no Brasil dos anos 1970 supõe, por sua vez, situar aspectos contextuais que apontam sua contribuição a um campo de pesquisa ainda incipiente.
Na contramão das políticas proclamadas e vislumbradas
Eventos embalados por forças políticas vindas de diferentes direções não podem deixar de produzir impactos nos mais diversos enjeux de um dado momento histórico. Esse é o caso de Maio de 6816. Na França, essa “revolução específica”17 teve repercussões imediatas e consequências a médio e longo prazos. Bourdieu e Passeron eram dois jovens normalistas (egressos da prestigiosa École Normale Supérieure) quando as contestações eclodiram. Eles as viveram, presenciaram, sentiram, se entusiasmaram e se decepcionaram. Dois dos seus trabalhos alcançaram visibilidade naquele “momento crítico”18, tendo contribuído para inflamar os “ânimos” dos que clamavam por mudanças. O primeiro, Os herdeiros (1964), que para alguns comentadores seria uma das causas de Maio de 68, desvela a face perversa das políticas de democratização do sistema de ensino. Sua aparente neutralidade permite transformar diferenças sociais em diferenças escolares, levando à crença de que propriedades adquiridas fora da escola são “dons naturais”.
O segundo, A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas (1999), em colaboração também com Jean-Claude Chamboredon, denuncia a insustentabilidade da pesquisa sociológica em razão das afiliações teóricas, da ausência de rigor metodológico, do pouco interesse pela empiria, enfim, da falta de “espírito científico”, nos termos de Gaston Bachelard (1884-1962). Segundo Valle (2019, p. 28), “a superação de um número considerável de obstáculos e a adoção de uma série de princípios era [considerada pelos autores como] condição sine qua non para reivindicar plenamente o estatuto de ciência experimental” para a sociologia.
No que concerne à educação nacional, a França vivia um momento de profundas transformações nos sistemas de ensino, tanto na esfera pública quanto privada, resultantes da política adotada nos Trinta Anos Gloriosos19 (1945-1975). Uma das principais evidências dessas transformações pode ser observada no crescimento vertical de matrículas. Entre as décadas de 1960 e 1970 ocorreu uma verdadeira explosão no número de alunos em todos os níveis, fenômeno que exigiu a criação de novos estabelecimentos de ensino, a admissão e formação de um número considerável de professores e o aumento do orçamento destinado à educação.
O entusiasmo diante das chances anunciadas aos adolescentes e jovens e das oportunidades prometidas pela escolarização maciça em curso foi, todavia, quebrado pelos estudos de sociólogos e historiadores da educação20. Os herdeiros21, como assinalado anteriormente, inaugura essa onda de críticas: “A cegueira às desigualdades sociais condena e autoriza a explicar todas as desigualdades, particularmente em matéria de sucesso escolar, como desigualdades naturais, desigualdades de dons” (BOURDIEU; PASSERON, 2014, p. 92).
Langouët (1994, 2002), dentre outros sociólogos, faz um balanço exaustivo do aumento do número de matrículas, mobilizando, além das estatísticas disponíveis, a diversidade de análises que povoou o cenário da pesquisa em educação dos anos 1980. Suas conclusões confirmam que houve um movimento importante de demografização escolar22, que nem sempre foi acompanhado de uma verdadeira democratização. Embora tenha registrado progressos, esta avançou muito lentamente. Em outras palavras, a democratização do ensino se manteve muito frágil ao longo dos Trinta Anos Gloriosos, tendo variado segundo as expectativas das categorias socioprofissionais, que se revelaram através da escolha das habilitações: umas, voltadas às trajetórias de maior prestígio, respondiam a demandas das classes mais privilegiadas; outras, centradas nas carreiras mais curtas, destinavam-se às classes desfavorecidas, respondendo às suas necessidades de inserção no mundo do trabalho.
É desse contexto, em que se entrecruzam utopias e desencantamentos, possibilidades e decepções, sucessos e fracassos, que Bourdieu e Passeron retiraram a intuição necessária à vinculação entre educação, política e pesquisa sociológica23. O resultado desse imenso investimento veio a público em 1970, quando é lançada A reprodução, rapidamente alçada à posição de leitura “clássica” da sociologia, graças à dimensão crítica das evidências denunciadas. Todavia, apesar do cerceamento ideológico vigente no Brasil desde 1964, A reprodução é publicada em 1975, num momento em que a intelectualidade brasileira, e particularmente os sistemas de ensino, sofriam as consequências das políticas restritivas do regime autoritário.
O pensamento crítico na contramão do regime ditatorial
Diferentemente das mobilizações políticas e culturais que marcaram a França, a população brasileira foi, em 1964, surpreendida por um golpe militar que instituiu um modelo de Estado autoritário24, cuja base de sustentação se pautou na concentração do poder econômico, político e ideológico. Foram introduzidos programas políticos de diferentes ordens que priorizavam a internacionalização da economia, rompendo com o chamado nacionalismo desenvolvimentista25. Esses programas, com características similares a outros aplicados em vários países da América Latina, também tinham por finalidade conter movimentos sociais que vinham ganhando visibilidade nas últimas décadas. As consequências das medidas autoritárias ensejadas por esses programas foram rapidamente percebidas e sentidas em razão da intensificação do controle político-ideológico sobre as classes operárias e as diversas instituições sociais e estatais, em particular os sistemas de ensino.
Um dos primeiros alvos do novo regime foram os princípios pilares da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1961), aprovada em 196126. De imediato, foram redefinidos os princípios de descentralização, autonomia e democracia representativa, visando adequá-los às questões de segurança e unidade nacional e ao processo de desenvolvimento global da nação. À educação foi atribuída uma função cívica, operacionalizada inicialmente por meio da inclusão de disciplinas obrigatórias27no ensino de 1o e 2o graus (Educação moral e cívica e Organização social e política do Brasil) e no ensino superior (Estudos dos problemas brasileiros). Segundo Valle (2003, p. 30-31),
Ao incluir estas disciplinas, em nome da Doutrina da Segurança Nacional e da integração social, o Estado interferia diretamente na vida cotidiana da escola. Ele determinava as bases conceituais dos conteúdos de aprendizagem e introduzia no interior da unidade escolar estratégias de controle ideológico, meticulosamente elaboradas.
Mas as grandes reformas educacionais ainda estavam por vir, instituídas por meio de decretos: Reforma do Ensino Superior (BRASIL, 1968) e Reforma do Ensino de 1o e 2o Graus (BRASIL, 1971)28. Essas reformas introduziram transformações profundas nos sistemas de ensino, fazendo com que os órgãos administrativos da educação se reduzissem a meras instâncias de execução das decisões das esferas federais.
No que concerne à expansão da educação ao longo dos anos 1960 e 1970, os levantamentos demog-ráficos confirmam a persistência de taxas excessivamente baixas de acesso em todos os níveis escolares, revelando perfis diferenciados segundo as regiões do país. Além disso, os sistemas de ensino voltaram-se à instrumentalização das políticas do regime autoritário, como a da profissionalização obrigatória no ensino de 2º grau. Essas políticas, em momento algum, colocaram em perspectiva a democratização real da educação, pautada no princípio da “igualdade de oportunidades”. É desnecessário descrever aqui os (baixos) índices de escolarização, inclusive nos níveis obrigatórios; eles estão disponíveis em múltiplas fontes, das oficiais aos estudos que analisam a evolução desses índices. Destaco apenas, por me parecer o índice que melhor revela a ausência de políticas educacionais voltadas ao acesso à educação, a persistência das taxas de analfabetismo: em 1900, a população analfabeta acima de 15 anos era de 65,3%; esse índice cai para 39,7% em 1960, e 33,7% em 1970. Os dados de 2019 revelam que ainda existem 6,8% de analfabetos no país.
É nesse contexto autoritário, de avanços lentos e regionalmente muito distintos quanto ao processo de escolarização da população, que A reprodução passa a circular no Brasil, a partir de 1975. Traduzida para o português por Reynaldo Bairão e revisada por Pedro Benjamim Garcia e Ana Maria Baeta, a obra foi publicada pela Livraria Francisco Alves, editora do Rio de Janeiro.
Finalizando…
Textos inscritos na perspectiva bourdieusiana começaram a cair nas mãos de pesquisadores brasileiros no início dos anos 1970. Não é intenção levantar aqui a totalidade desses trabalhos. Todavia, destaco, por anteceder A reprodução, a obra A economia das trocas simbólicas (1974), composta de artigos traduzidos pelo sociólogo Sérgio Miceli29, já que um deles trata dos “Sistemas de ensino e sistemas de pensamento” (de 1967). Tem-se também a coletânea Educação e hegemonia de classe: as funções ideológicas da escola, organizada por José Carlos Garcia Durand, em 1979. Nela também constam dois artigos sobre educação: “A comparabilidade dos sistemas de ensino”, de Bourdieu e Passeron (1967), e “As estratégias de reconversão”, de Bourdieu, Boltanski e Saint-Martin (1973).
Mas, seguramente, é A reprodução que introduz a teoria das práticas sociais na agenda da pesquisa brasileira. Por ser considerada a mais radical das críticas aos sistemas de ensino, foi sem dúvida a que mais causou reações. Por essa razão, destacarei alguns trabalhos que fazem referência à sua recepção. Segundo Durand (1982, p. 52), pesquisadores brasileiros “torceram o nariz a Bourdieu e Passeron”. Ele cita a obra Escola, Estado e sociedade (1977), de Bárbara Freitag, e o artigo “Notas para uma leitura da teoria da violência simbólica” (1979), de Luiz Antônio Cunha. Bento Prado teria sido “o único a acentuar a dimensão positiva do livro, nele localizando o ponto de partida de um processo de desconstrução das representações vulgares acerca das instituições pedagógicas” (DURAND, 1979, p. 52, grifo do autor). Ele assinala ainda que esse tipo de apropriação fez com que os sociólogos franceses passassem “a ser encarados como autores de uma sociologia – para não usar eufemismos – reacionária, cujo maior perigo estaria em convencer de que a eficácia da ação pedagógica na imposição ideológica da dominação de classe seria nada menos do que total e definitiva” (p. 52).
Mas foi a leitura de Dermeval Saviani (1983) que teve a maior repercussão na pesquisa em educação. A classificação da obra como “reprodutivista” ou “crítico-reprodutivista”, em oposição a outro grupo de teorias não-críticas, teve consequências fortemente restritivas à circulação dos estudos bourdieusianos no Brasil. Segundo Catani, Catani e Pereira (2001, p. 68), essa classificação não levou em conta o aporte conceitual da obra, tão pouco “a existência das mediações e das autonomias relativas entre os campos”.
Tendo como base o período compreendido entre 1971 e 1999, esses autores elaboraram uma tipologia interessante para caracterizar as diferentes formas de apropriação desse aporte teórico (incidental, conceitual tópica e do modo de trabalho). Em se tratando de A reprodução, principal obra referenciada, os autores observaram que houve uma “apropriação incidental”, ou seja, “é comum o sociólogo ser arrolado nas referências bibliográficas e não aparecer mencionado no corpo do texto; vir referido apenas de passagem, junto com outros autores […], quase sempre de modo classificatório (‘reprodutivista’); surgir em notas não substantivas” (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2001, p. 65). A constatação desse estudo permite lembrar que um livro muito citado não pressupõe necessariamente que tenha sido lido, muito menos compreendido, pois nem sempre há relação entre os argumentos desenvolvidos e as referências arroladas.
Tendo em vista essas perspectivas, constata-se que as obras de Bourdieu somente passam a circular com força no campo educacional brasileiro a partir dos anos 1990. Desde então, há uma verdadeira explosão no número de traduções de artigos e livros, assim como de análises a respeito do léxico bourdieusiano. Entretanto, o mesmo não ocorreu com a sociologia de Passeron, que se enveredou para outros campos científicos.
Enfim, no que concerne especificamente à apropriação de A reprodução, muitos desafios precisam ser enfrentados em se tratando dos nossos sistemas de ensino. Como fazer chegar aos profissionais da educação esse aporte crítico que questiona a ação, a autoridade e o trabalho pedagógicos levados a efeito pela Escola? Nossa escola, que ainda não se estendeu a toda população, continua impondo arbitrariamente os saberes tidos como necessários, assim como a maneira de transmiti-los e avaliá-los. Métodos e conteúdos escolares permanecem privilegiando uma relação com o saber e uma forma de cultura que favorece as classes econômica e culturalmente dominantes. A escola persiste na transmissão de conteúdos tidos como neutros e não tem procurado compensar as diferenças que favorecem essa aquisição. Na medida em que as oportunidades de escolarização se expandem, o mérito escolar figura como referência essencial de seleção e classificação das novas gerações. As políticas educacionais não têm conseguido, de modo qualificado, combinar o aporte das diferentes ciências (dos conteúdos escolares) com os direitos constitucionais, dadas as condições desiguais de existência da população.
Nesse quadro interpretativo, A reprodução, assim como as obras que a seguiram, provoca no pesquisador o desejo de refutar suas teses, particularmente aquelas que atribuem à escola um lugar central na continuidade política e cultural. O próprio Bourdieu, ao se referir à mensagem de A reprodução como sendo não propriamente profética, entende que, assim como toda profecia, ela propõe uma verdade que balança as estruturas mentais e, portanto, muda a visão de mundo.