A teoria educacional de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) não aglutinou educadores no Brasil a ponto de constituir um movimento pedagógico, como ocorreu na Europa e nos Estados Unidos da América, nas décadas finais do século XIX. Não houve, como seria necessário para sua difusão, tradução de obras para a língua portuguesa nesse período3. Posteriormente, e em outra chave, diferentes manuais de história da educação de grande circulação adotaram a cronologia das ideias pedagógicas com compilações dos conceitos herbartianos e destaque para os princípios a serem adotados na condução da instrução. Nas menções esparsas feitas ao autor e suas obras por educadores brasileiros, prevaleceu a conotação de formalismo, a despeito da ausência da discussão de seus postulados.
Lourenço Filho (1960, p. 103), por exemplo, afirmou, em 1926, que o “learning by doing, ou aprendizado ativo foi a primeira e incipiente fórmula contraposta ao intelectualismo herbartiano, ainda dominante em nossas escolas”. João Roberto Moreira (1955) amplificou essa citação com explicações nas quais trata como equivalentes intelectualismo, formalismo e currículo primário tradicional, contrapondo também educação pela atividade com educação pela instrução.
Esse entendimento, no entanto, desconsidera a relevância dessa teoria na renovação do currículo (SOUZA, 2016) e dos métodos de ensino norte-americanos na transição entre as concepções pestalozzianas – as lições de coisas – e as concepções da Educação Progressiva – o método de projetos. As críticas parecem se ater à fase final do ciclo de circulação das ideias herbartianas, na qual as características negativas foram ressaltadas a fim de anunciar as supostas qualidades da renovação então pretendida, dinâmica comum nos processos culturais.
O estudo aqui apresentado junta-se a outros que, contemporaneamente, revisitam as contribuições desse autor para a reflexão educacional (DALBOSCO, 2018; ENGLISH, 2013) e adota a perspectiva histórica para, primeiramente, descrever a interpretação dos princípios e das práticas derivadas das proposições de Johann Friedrich Herbart produzidas por um de seus principais divulgadores nos Estados Unidos da América – Charles Alexander McMurry – a fim de ampliar o conhecimento acerca dessa vertente educacional. Além disso, pretende analisar o ciclo de difusão das ideias herbartianas, acompanhando-o desde suas pretensões renovadoras até sua capitulação frente a outras tendências e teorias. Por meio desses procedimentos, espera-se compreender as inter-relações dinâmicas entre agentes, instituições formadoras e impressos pedagógicos na produção de sentidos de uma concepção educacional específica e identificar movimentos de inovação, acomodação e reinterpretação que conformaram sua difusão.
As fontes documentais que amparam a análise dessas questões são dois manuais didáticos norte-americanos produzidos para orientar a prática de ensino de professores da escola elementar – em formação e em exercício – e que indicam, desde o título, conexões com diferentes movimentos pedagógicos. São eles: The elements of general method based on the principles of Herbart (nas edições de 1893 e 1907) e Teaching by projects, publicado em 1920, ambos de autoria de Charles A. McMurry.
No discurso desses manuais estão entrelaçados valores, finalidades e teorias pedagógicas que, traduzidas em procedimentos e atividades, aspiram a estabelecer continuidades práticas4 e um repertório de conhecimentos a ser objetivado em organizações curriculares e programas de ensino. Nesse discurso, podem ser detectadas modulações, revisões e reinterpretações destinadas a conferir-lhe relevância e sentido em diferentes contextos de uso (CARVALHO, 2001; CERTEAU, 2005; ESCOLANO BENITO, 2017).
Caminhos da inovação: Alemanha e Estados Unidos da América
A circulação das ideias educacionais de Johann F. Herbart dependeu de mediadores e de vetores de mediação (SIRINELLI, 1998) tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos da América. Ele foi aluno de Fichte (1762-1814), contemporâneo de Schelling (1775-1854) e de Hegel (1770-1831), tendo desenvolvido suas teorias em um período em que a filosofia alemã era bastante profícua e, na Europa, se tornara sinônimo de sistemas de pensamento complexos e rigorosos.5 O sistema filosófico proposto por Herbart abrangia lógica, metafísica (de onde derivava a psicologia) e estética (fonte dos preceitos éticos).
Ao rejeitar a concepção da mente humana como uma estrutura composta por um conjunto de funções (observação, comparação, classificação, associação) que, mediadas pelos sentidos, levariam à formação das ideias, Herbart desenvolveu o conceito de apercepção. Nele, a mente é concebida como estrutura moldada pelas experiências individuais formadoras da massa aperceptiva que, por sua vez, estaria em constante mudança devido a novos conhecimentos que se juntariam àqueles já existentes. Dessa massa apercetiva decorreriam os julgamentos e as escolhas dos indivíduos e, amparada nesse esquema de funcionamento psicológico, à educação caberia interferir, pela seleção de informações e experiências, para o estabelecimento de um círculo de pensamentos que contribuísse para a formação do caráter. Nessa mecânica, à psicologia – os meios – se juntava a ética – os fins – para enfatizar a educação moral.
Apesar de propor uma sequência de procedimentos dividida em quatro passos (clareza na apresentação das novas ideias, associação aos conhecimentos prévios, formação de um sistema integrador das ideias e aplicação), as proposições de Herbart não se disseminaram ao tempo de sua elaboração (entre 1806 e 1829). Dunkel (1970) arrola possíveis causas para isso: tratava-se de um sistema exposto de modo pouco claro, não era uma obra propriamente original e faltavam-lhes bases empíricas.
Em 1861-1862, Tuiskon Ziller retomou as ideias de Herbart e criou um Seminário Pedagógico, vinculado à Universidade de Leipizig, e uma instituição educacional dedicados à formação de professores; o primeiro oferecia discussão e aprofundamento teóricos, a segunda, constituía espaço para que os participantes do seminário desenvolvessem atividades práticas voltadas para a educação elementar, nível educacional ao qual Herbart pouco se dedicou. Investindo na aplicabilidade do sistema geral proposto por Herbart, Ziller adotou a concepção dos estágios culturais (culture epochs) e a concentração dos estudos para organizar o currículo do ensino elementar e os passos formais da instrução para guiar sua prática (DE GARMO, 2001), a fim de enriquecer o círculo de pensamentos e moldar o caráter infantil. Outra iniciativa importante foi a fundação, em 1868, de uma Sociedade para o estudo científico da educação que, rapidamente, se tornou fonte de publicações e aglutinou estudantes e professores, contribuindo para a difusão das atividades do Seminário.
Além de Tuiskon Ziller, dois outros educadores alemães foram relevantes para a divulgação do pensamento de Herbart ou para a constituição do que veio a ser denominado de herbartianismo. Um deles, Karl Volkmar Stoy, ex-aluno de Herbart, criou também um Seminário Pedagógico e uma Escola Prática vinculados à Universidade de Jena (1874), sem introduzir grandes alterações nas teorias do mestre. O outro foi William Rein, ex-aluno de Ziller, que sucedeu Stoy na direção do Seminário (1885) e estabeleceu os cinco passos formais do método de ensino que ficaram identificados a essa vertente - preparação, apresentação, associação, generalização e aplicação - explicando-os em linguagem depurada de academicismos. Além disso, elaborou detalhados programas de ensino nos quais os passos formais tinham seu uso exemplificado. O seminário dirigido por Rein recebia grande contingente de estudantes estrangeiros que criaram sociedades herbartianas fora da Alemanha, alargando o raio de sua repercussão.
Foi a interpretação das proposições de Johann F. Herbart produzidas por seus sucessores, principalmente no Seminário de Jena, que chegou aos Estados Unidos da América. Entre os muitos estudantes que fizeram na Alemanha parte de sua formação, estavam Charles de Garmo e os irmãos Charles e Frank McMurry que, ao retornarem, traduziram obras vinculadas ao Seminário, produziram bibliografia voltada aos professores e criaram o Herbart Club, tornando-se as principais lideranças norte-americanas do herbartianismo (KLIEBARD, 2004; DUNKEL, 1970; HARPER, 1970, RANDELS, [s. d.]; CRUIKSHANK, 1998).
Desse trio, Charles Alexander McMurry (1857-1929) foi o autor mais prolífico6 e por meio de sua produção (ou de parte dela) pode-se analisar o ciclo de difusão da concepção educacional herbartiana e acompanhar suas modulações. Além da produção bibliográfica, atuou em diferentes níveis do sistema escolar, o que lhe permitiu dirigir-se a um grande público de leitores. Cursou a Illinois State Normal University e a Universidade de Michigan; na Alemanha, estudou na Universidade de Halle e, numa segunda estadia, obteve o doutorado (1887) e juntou-se ao irmão, Frank McMurry, no Seminário Pedagógico da Universidade de Jena. Foi professor, diretor e superintendente de escolas primárias e de cursos para formação de professores em diferentes estados norte-americanos. Foi um dos fundadores, em 1892, do National Herbart Club que se transformou (1895) na National Herbart Society, atuando como seu secretário. Em 1899, implementou, na Northern Illinois State Normal School, em DeKalb, um programa baseado nas ideias de Herbart; entre 1906 e 1907, foi diretor da California State Normal School (Pennsylvania); retornou a DeKalb como superintendente em 1911 e desenvolveu um programa de formação de professores integrado às escolas municipais; em 1915, tornou-se professor do Peabody College of Education, na Universidade Vanderbilt.
As viagens de estudo de Charles McMurry e a produção de bibliografia pedagógica estavam integradas, nas décadas finais do século XIX, ao conjunto de demandas de um sistema educacional que se expandia rapidamente. Entre 1870 e 1898, a população geral norte-americana dobrou numericamente com adensamento das zonas urbanas. Para atender sua população escolar, foi criada em cada estado uma estrutura educacional composta por diferentes graus e modalidades de instrução. Linhas férreas, imprensa e indústrias que então se disseminavam contribuíram para criar o maior bem conquistado pelo sistema público de ensino dos Estados Unidos: uma população que lê jornais e livros, tem conhecimentos gerais e interesse por questões nacionais e internacionais, vitais para uma nação governada principalmente pela opinião pública, como descrevia orgulhosamente o Comissário Geral da Educação William T. Harris (HARRIS, 1900).
Relatório oficial apontava que em 1895-6, havia 130.366 professores e 269.959 professoras exercendo a profissão; 362 Escolas Normais em funcionamento, com 67.380 estudantes e 7.184 bibliotecas públicas com 34.596.258 volumes (DRAPER, 1900, p. 30). Tais dados eram relacionados ao incremento da literatura educacional, aí incluídos relatórios estatísticos oficiais e resultados de estudos acerca de diferentes problemas, tais como teoria educacional, procedimentos de ensino, desenvolvimento infantil e higiene (BUTLER, 1900).
Esses indicadores delineiam um ambiente propício ao questionamento dos métodos de ensino e da organização curricular então em vigor. A concepção pestalozziana, bastante disseminada entre professores e superintendentes escolares (HARPER, 1970), passou a ser criticada pela insuficiência de fundamentos científicos que, no período, começavam a ser identificados ao conhecimento sobre os processos psicológicos da aprendizagem. Apesar de suas contribuições, tais como fixar a importância dos sentidos e dos fatos na aquisição do conhecimento, apontava-se sua transformação em treinamento formal do intelecto por enfatizar mais o processo do que o conteúdo a ser ensinado. Nos anos de 1890, as proposições herbartianas pareciam oferecer uma pedagogia sistematizada, erudita e com status acadêmico7; as orientações para a prática escolar, acréscimo que lhe deram seus sucessores, afiançavam seu potencial renovador e introduziam um novo vocabulário pedagógico nas Escolas Normais (HARPER, 1970). O manual de Charles McMurry desempenhou função estratégica nesse processo.
No prefácio do livro The elements of general method based on the principles of Herbart, Charles McMurry (1893) esclarece sua intenção de explicar a teoria pedagógica herbartiana desenvolvida e praticada no Seminário de Jena. Essa explicação é constituída por um conjunto de princípios mutuamente relacionados dos quais são derivadas orientações práticas passíveis de serem adotadas no sistema escolar norte-americano.
O livro tem cerca de 200 páginas e está organizado em 8 capítulos que tratam das finalidades da educação, do valor educativo dos diferentes campos de conhecimento e dos princípios que fundamentam a concepção de aprendizagem, quais sejam, o interesse, a concentração dos estudos, a indução e a apercepção que, juntos, possibilitariam a formação do caráter, objetivo maior a ser alcançado com a escolarização. O último capítulo arrola bibliografia comentada para, segundo o autor, ampliar a compreensão dessa teoria educacional.8
Após breve exame de diferentes sistemas pedagógicos, o autor afirma que o principal objetivo da educação, buscado tanto pela sociedade em geral quanto pelos pais em particular, deve ser a formação do caráter e a esse elemento moral devem estar subordinadas todas as ações que as escolas desenvolvem. O livro, então, apresenta uma proposta organizativa para a educação primária juntamente com a descrição dos meios para efetivá-la.
Entre esses meios, estaria a seleção dos conhecimentos. Ao indagar-se sobre o valor intrínseco de cada conteúdo escolar, McMurry responde que o mais valioso é a História, seguido das Ciências Naturais e dos estudos formais - Gramática, Escrita, Aritmética e os símbolos usados na leitura.
Segundo o autor, a história deve ser o conhecimento mais valorizado, porque está diretamente relacionado à formação moral dado que seu conteúdo revela a ação humana. Mediante a escolha criteriosa de episódios simples e claros, seria possível mostrar as pessoas agindo, de modo nobre ou pouco virtuoso, e compreender as motivações sociais e individuais que moldaram suas condutas. Tal conhecimento serviria ao propósito de evidenciar a base empírica dos julgamentos morais que, pela repetição, poderiam se transformar em convicções.
As ciências naturais derivam seu valor do fato de contribuírem para evitar a tendência, solidamente enraizada, de substituir palavras por ideias, pois constituem matéria-prima para o exercício do pensamento indutivo. Para o autor, constituem campo de observação e de desenvolvimento das necessidades humanas, materializam o resultado do trabalho e das habilidades criativas, trazendo para a escola informação, utilidade, treino dos sentidos e da capacidade de julgamento. Nessa perspectiva, não deveriam ser ensinadas apenas pela utilidade que lhes é intrínseca, mas pelas contribuições que trazem à formação do espírito científico e à conquista de uma cultura multifacetada, interdependente e transversal, características que alguns temas, bem escolhidos, poderiam tipificar.
Nessa classificação, os estudos formais ocupam o terceiro lugar e deveriam estar a serviço de estudos reais e não apenas da memorização, deixando, portanto, de ocupar o centro dos programas escolares. Para enfatizar seu argumento, o autor descreve como o currículo, então em vigor, fazia uso formal das obras literárias (prática da leitura, escrita, fluência e expressão retórica) e propõe que sua finalidade educacional fosse ampliada para que elas pudessem ser apreciadas pelos hábitos que podem encorajar e pelo valor que trazem à cultura moral e artística. Biografias, obras-primas e poemas, entre outros gêneros literários, expressam os pensamentos, hábitos, disposições e instituições humanas e, por isso, deveriam ser vistos como contribuições ao ensino da História e não apenas como linguagens.9
Os capítulos seguintes do manual abordam o arcabouço conceitual sobre o qual foi estruturada a organização do conteúdo escolar. O interesse, definido por Herbart como a inclinação natural da mente para encontrar satisfação em uma matéria, atuaria como motor da aprendizagem. Dado que ele pode ser especulativo, empírico ou estético, pode ser alimentado pela história e pelas ciências naturais e é mais facilmente captado por pessoas e objetos particulares do que por proposições gerais, leis ou classificações. Desde que devidamente apresentados nas atividades escolares, esses campos e seus temas manteriam a ação mental dos estudantes em funcionamento, pois dizem respeito às ações humanas e, assim, promoveriam a energia necessária ao desenvolvimento do caráter.
O princípio organizativo, segundo o autor, mais propício ao desenvolvimento do interesse é a concentração dos estudos. Sua adoção visa a estabelecer relações entre os campos de conhecimento para gerar unidade na mente infantil, sem prescindir da variedade (cultura de interesses múltiplos), uma vez que nenhuma matéria pode ser bem compreendida em si mesma, mas sim na relação com outros campos e com a experiência. Um plano de estudos organizado segundo o princípio da concentração baseia-se na seleção dos melhores (moralmente educativos) temas e materiais que funcionariam como centros das diversas séries escolares, a partir dos quais poderiam ser estabelecidas múltiplas relações. Essa organização ampara-se na convicção de que apenas os pensamentos resultantes de forte impressão permanecem na mente e podem ser conectados a outros. O teste final do valor da concentração dos estudos é a habilidade para usá-los prontamente na experiência cotidiana, que também é constituída como rede de conexões.
Os estágios culturais (culture epochs) seriam a chave para objetivar a concentração dos estudos, afirma McMurry amparado nos herbartianos alemães. Tal proposição advoga a existência de similaridade entre o desenvolvimento da espécie humana e o desenvolvimento infantil:
[...] a criança começa onde o homem primitivo começou, sente o que ele sentiu e avança como ele avançou, apenas com passos mais rápidos porque seu físico é o resultado hereditário de centenas de anos de história. (MCMURRY, 1893, p. 111, tradução nossa)10.
De acordo com essa proposição, seria possível encontrar, nos diferentes períodos históricos, material intelectual e moral para compreender o estágio em que se encontrava a sociedade.
Para adaptar os estágios culturais ao programa escolar norte-americano, McMurry sugere quatro períodos principais - dos pioneiros, navegadores e exploradores; dos acordos da história colonial e das lutas com os índios; da revolução sob os confederados à adoção da constituição, do autogoverno e da ideia federalista - acompanhados de bibliografia abundante, tanto de cunho biográfico como de cunho literário. Tendo esses períodos como eixos, os vários tipos de conhecimento seriam a eles articulados para a efetivação da concentração dos estudos. O critério de seleção seria a harmonia orgânica entre os conhecimentos, isto é, as conexões entre os temas e os esclarecimentos mútuos que podem propiciar.
Essa forma organizativa da instrução adota a indução, que é a tendência da mente para progredir da observação dos objetos particulares aos conceitos abstratos e que, segundo McMurry, consiste em um caminho sólido para, gradualmente, transformar a tendência indutiva inconsciente em escrutínio cuidadoso, qualidade essencial para a formação intelectual e moral. Ao caracterizar o processo indutivo, o autor procura expandir o alcance e o sentido que lhe conferiam as lições de coisas, método de ensino de orientação pestalozziana em uso no ensino primário:
Lições objetivas usualmente significam coisas da natureza percebidas por meio dos sentidos. Mas é necessário estender essa ideia além de objetos e fenômenos do mundo físico, aos quais ela tem sido usualmente limitada. (MCMURRY, 1893, p. 143, tradução nossa)11.
Tal expansão deveria abranger o exercício direto dos sentidos na aquisição de experiências de todo tipo, que incluem objetos, pessoas e eventos cotidianos, sobre os quais seria possível ancorar o progresso do conhecimento e a reflexão. Tratar-se-ia, portanto, de lições de coisas extensivas e sistemáticas aplicadas também à educação moral. Esse processo cognitivo seria facilitado pela adoção dos períodos culturais como conteúdo e da concentração como estratégia. Os processos mentais descritos levariam à apercepção, definida como “o processo de adquirir novas ideias com o auxílio de ideias já existentes” (MCMURRY, 1893, p.157, tradução nossa)12, estágio mais complexo do processo de aprendizagem.
Concluindo, o autor afirma que os princípios expostos servem ao propósito de evidenciar a relação mútua e dependente entre objetivos educacionais, concepção teórica e método de ensino, todos voltados para a formação do caráter.
Assim, foi sob o signo da renovação que as ideias de J. Herbart foram postas em circulação nos Estados Unidos da América, contando com o respaldo de autores e instituições estrangeiras. Tanto a tradução quanto a produção das obras eram dirigidas a um grande contingente de leitores – profissionais que precisavam ser formados para atuar em um sistema escolar que se expandia - e nelas, como exemplifica o manual de Charles McMurry, estavam entrelaçados os procedimentos práticos e as justificativas teóricas conferindo-lhes coesão e profundidade. Nesse arranjo, que transformava exemplos em argumentos, o autor, simultaneamente, fazia a defesa segura das inovações junto a outros intelectuais também interessados na mudança educacional e aproximava-se dos professores por meio de detalhadas prescrições amparadas em sua experiência profissional.
Adaptações do herbartianismo
O longo ciclo editorial do manual The elements of general method based on the principles of Herbart permite acompanhar o embate com outras concepções que entravam em circulação. Nas sucessivas edições, as alterações constituem indícios de conflitos intelectuais e entre intelectuais, bem como dos significados que o autor conferiu ao fluxo das inovações.
Na 5a. edição, publicada em 190713, podem-se identificar revisões e supressões, por meio das quais o autor se mostra um herbartiano não ortodoxo. Quando comparada à versão de 1893, já analisada, as alterações podem ser observadas desde a diagramação da primeira página: letras maiores dão destaque à expressão Elements of general method e letras menores transformam em subtítulo os princípios de Herbart nos quais ele se baseia. Os autores referenciados no corpo do texto corroboram essa inflexão: diminuem as citações de Herbart, quase desaparecerem as menções a Tuiskon Ziller, Karl Volkmar Stoy e Wilhelm Rein e predominam as referências a obras de William James e John Dewey. Houve, portanto, um giro do polo conceitual alemão para o polo norte-americano.
Permaneceram inalterados o objetivo principal da educação, isto é, a formação do caráter, bem como o valor relativo dos diferentes campos de estudos. No entanto, a compreensão de dois princípios centrais ao arcabouço teórico herbartiano – interesse e concentração - foi modificada.
McMurry explica que John Dewey, com base nas pesquisas desenvolvidas na Escola Laboratório da Universidade de Chicago, classificou o interesse infantil em quatro tipos: comunicação, pesquisa, atividades construtivas e expressão artística, enfatizando a relação da criança com o mundo natural e com a sociedade, o que permitia incorporar ao programa escolar as atividades industriais. Essa classificação parecia ao autor mais abrangente do que aquela proposta por Herbart (empírico, especulativo e estético), que atribuía pouca importância às relações fora da escola e ao desenvolvimento físico e motor da criança e concedia centralidade à atenção no processo de aprendizagem. Segundo esse entendimento, as duas concepções sobre o interesse teriam traço comum: ambas consideravam as sínteses da cultura, que conformavam os conteúdos escolares em vigor, insuficientes para o desenvolvimento das capacidades intelectuais.
A outra alteração significativa refere-se ao princípio organizativo do currículo. McMurry afirma que vários termos estavam sendo utilizados para nomear a necessidade de estabelecer relação entre seus componentes - coordenação, concentração e correlação – o que traduziria a importância que diferentes vertentes conferiam ao tema. Na edição de 1893, o capítulo do livro e o processo nele descrito foram denominados concentração, mas na edição de 1907 foram nomeados como correlação, com a seguinte explicação: coordenação significaria atribuição de igual importância aos diferentes ramos de estudo presentes no currículo escolar; concentração dizia respeito às conexões e à dependência entre esses ramos e correlação expressaria o propósito de conectar os estudos entre si, mas também à experiência da criança, conforme demandava a nova definição de interesse.
Os programas baseados nos estágios culturais foram suprimidos dessa edição, juntamente com as indicações dos materiais a eles relacionados. Em seu lugar, foram apresentados outros exemplos cujo tratamento metodológico pretendia operacionalizar a conexão entre os diferentes campos de conhecimento, a dependência mútua entre eles e a incorporação de fatos da vida fora da escola, a fim de incrementar o poder prático do conhecimento.
Kliebard (2004) descreve a disputa pelo significado da concentração dos estudos como um dos elementos do embate entre renovadores e defensores do currículo escolar tradicional. William T. Harris, que ocupava o posto mais alto na hierarquia educacional (Comissioner of Education), apropriou-se do termo central ao herbartianismo para enfatizar os conteúdos escolares tradicionais, justamente o ponto no qual os herbartianos propunham mais alterações. Pode-se depreender que, abrindo mão do termo concentração, McMurry fazia movimentos para distanciar-se do grupo conservador e manter-se junto a outros que também procuravam renovar o currículo.
Mas, as críticas mais incisivas parecem ter vindo justamente do espaço criado para a difusão das ideias herbartianas, a National Herbart Society, evolução do Herbart Club, que aglutinou intelectuais sem lhes exigir afiliação teórica.14 A sociedade demandava textos preparatórios sobre temas específicos para serem discutidos nas reuniões anuais que aconteciam durante os Congressos da National Education Association, e publicava, sob a coordenação de McMurry, tanto os textos quanto os debates, nos respectivos YearBooks.15 Os dois primeiros, referentes a 1895 e 1896, tematizaram a concentração dos estudos e a teoria dos estágios culturais. A relação entre interesse e formação do caráter, publicada como Suplemento, foi redefinida por John Dewey16; as relações entre cidadania e educação foram discutidas em 1896 e 1897, o que implicava reexaminar as finalidades educacionais propostas por Herbart. O deslocamento do foco do caráter individual da educação para sua relação com a sociedade foi mais aprofundado na edição de 1898 por meio de discussões sobre conhecimento e conduta. A edição de 1899 (a última) testemunhou a redução das ambições iniciais do herbartianismo: o volume apresenta contribuições a respeito de tópicos pontuais, quais sejam, metodologia e organização curricular para o ensino de História e de Geografia.
A teoria dos estágios culturais foi a primeira a tombar nos debates da Herbart Society, o que pode explicar sua eliminação do manual de McMurry; os novos entendimentos sobre o interesse e a psicologia infantil tornavam teoricamente insustentável sua prescrição para a prática escolar. Outras mudanças conceituais, tais como a incorporação dos estudos de William James e John Dewey aos processos de aprendizagem, ficaram encobertas pela manutenção do mesmo título no manual e pela ausência de demarcação das diferenças entre o idealismo de Herbart e o pragmatismo, teoria sobre o conhecimento que começava a ganhar força no campo educacional.
Externamente, outros fatores tensionavam as concepções herbartianas. A psicologia que integrava seu esquema filosófico era criticada e contestada, inclusive na Alemanha, pelo trabalho de Wilhelm Wundt, em cujo laboratório experimental foi formada uma geração de estudantes norte-americanos que, ao retornar, passaram a atuar em diferentes universidades, conforme têm mostrado as análises de Mirian Warde (2018). As novas explicações acerca do funcionamento da mente induziam ao questionamento do arcabouço especulativo da concepção de Herbart e revelavam que muito do que lhe era reputado constituía criação de seus sucessores, cujo foco era o método de ensino.
Mudanças institucionais também marcaram a década que separa as duas edições do manual aqui cotejadas. A formação de professores e de lideranças educacionais não ficou restrita às Escolas Normais, locus de irradiação do herbartianismo, e passou a integrar o nível superior de instrução com a criação de departamentos, escolas ou faculdades de educação nas grandes universidades (FRASER, 2007; RIBEIRO, 2016). A introdução dos estudos educacionais nessas instituições se deu por meio do atendimento de padrões acadêmicos que passaram a modelar o campo pedagógico; o desenvolvimento de pesquisas e a produção de conhecimento transformou-as em centros de ensino e de experimentação (VALDEMARIN, 2016). Pode-se dizer que a concepção a respeito da ciência havia mudado e o herbartianismo não preenchia mais os requisitos para ser identificado com ela.
A permanência residual do herbartianismo
As adaptações apontadas não impactaram negativamente a circulação do manual The elements of general method based on the principles of Herbart, pois ele foi publicado até, pelo menos, 1915 sem novas alterações. Simultaneamente, o autor participou de impressos voltados para a orientação de práticas e métodos de ensino sem filiação teórica explícita.
Um conjunto de volumes denominados Public School Methods17 circulou nas décadas de 1910 e 1920, nos Estados Unidos da América e no Canadá, contendo Planos de Ensino para a instrução elementar – o que ensinar, como ensinar. Os volumes eram organizados por séries escolares e os planos eram escritos por professores, supervisores e diretores escolares que atuavam em diferentes estados norte-americanos, conferindo respaldo técnico e, provavelmente, repercussão às prescrições neles contidas. Charles McMurry participava dessas publicações, que tinham a pretensão de oferecer aos leitores uma “Escola Normal na forma de livro”, como autor dos Estudos-tipo (Type Studies) sobre Leitura, Geografia, História e Agricultura Elementar. Quando esses volumes foram publicados no Canadá, em 1913, ele foi apresentado no prefácio como a maior autoridade norte-americana na elaboração de Estudos-tipo e, destituída da conotação laudatória, essa contribuição metodológica é reconhecida também por analistas (FUJIMOTO, 2014; AKENSON; LERICHE, 1997).
Na expressão estudos-tipo, com a qual as contribuições do autor foram identificadas, é possível detectar traços residuais18 do herbartianismo, uma vez que ela foi utilizada para explicar a operacionalização do princípio da correlação e do processo de indução. Na edição de 1893 do manual já analisado, McMurry afirmava que para operar com o princípio da concentração era preciso selecionar temas passíveis de ilustrar casos similares: “Se o objeto concreto e particular for cuidadosamente selecionado ele será um tipo, isto é, ele ilustra toda uma classe de objetos similares” (MCMURRY, 1893, p. 73, grifo do autor, tradução nossa).19 Outro registro encontra-se no programa para o ensino de Geografia, publicado no último suplemento da National Herbart Society: “Os tópicos centrais para discussão nas séries devem ser tipos. Outros exercícios gerais são necessários para suplementar os estudos-tipo” (MCMURRY, 1899, p. 121, tradução nossa)20. No livro The method of recitation (1903), os tipos são considerados a estratégia para operacionalizar o movimento indutivo de modo a combinar os dados concretos com as verdades gerais, tal como fazem os cientistas. Os planos de ensino apresentados sob essa denominação correlacionavam objetos, fatos e informações para desenvolver diferentes temas, tais como, as colônias britânicas, o lago Michigan, o canal do Panamá, uma viagem de navio a vapor de Nova York para Hamburgo, por exemplo.
Esse descolamento constitui indício de que as prescrições práticas adquiriram certa autonomia em relação às concepções a que estiveram, originalmente, vinculadas, e sobreviveram, provavelmente, pelas contribuições que ofereciam às demandas da atividade docente, cujo ritmo é diferente daquele que move o debate conceitual e acadêmico.
O princípio da correlação ainda provou sua versatilidade em outro contexto teórico. Em 1920, Charles McMurry publicou o manual Teaching by projects. A basis for purposeful study (MCMURRY, 1920), um alentado volume de 257 páginas, dividido em 13 capítulos contendo minuciosos planos para orientar os professores no uso de projetos no ensino.
O vocabulário conceitual caracterizador da Educação Progressiva, desde o título, permeia o discurso desse manual. O autor afirma que a organização do ensino por meio de projetos levaria à consecução de objetivos intencionalmente definidos e amparados na premissa de que o conhecimento não é formal e estático, mas sim progressivo. Os projetos teriam o mérito de proporcionar organização autodirigida dos recursos físicos e mentais dos estudantes e, dadas suas bases práticas e suas relações com a experiência, estimulariam o pensamento reflexivo para a obtenção de bons resultados. Para desenvolver bons projetos, diz McMurry, é necessário que o professor estude as tendências e características infantis, bem como o mundo e as atividades nele desenvolvidas, a fim de direcionar as práticas educativas aos problemas reais da educação. O termo projeto, emprestado da linguagem dos negócios e da indústria, lembraria à escola suas ligações com o mundo exterior, sugerindo um retorno à ciência aplicada, às obrigações diárias comuns e às forças operativas do mundo real e, nesses aspectos, residiriam seus méritos.
A análise de Teaching by projects permite afirmar que, independentemente da denominação recebida – concentração de estudos, estudos-tipo ou projetos – os planos de ensino propostos por McMurry operacionalizam o princípio da correlação. Envolvem diferentes campos de conhecimento em torno de um tema que, por sua vez, consiste em uma demonstração em escala (local, nacional ou mundial) de processos industriais ou ligados à vida cotidiana. Podem voltar-se para temas simples (como a criação de uma horta) ou mais complexos, como aqueles que abordam a construção de pontes, estradas de ferro e usinas, a canalização de rios, o estudo de biografias, obras da Literatura ou eventos históricos.
Nas explicações do autor, essa permanência adquire sentido evolutivo. Situando-se entre os conservadores, que defendem manter os velhos programas e métodos, e os progressivistas, que pretendem introduzir novos conteúdos, McMurry insere o método de projetos num processo contínuo de aperfeiçoamento das práticas escolares. Afirma que a leitura dos projetos contidos no manual revelaria que seus temas já estavam presentes em alguns livros escolares, mas que receberam um tratamento mais aprofundado:
Eles não são novos e, mesmo assim, algo neles é surpreendentemente novo. Eles estão vestidos com as roupas apropriadas. Nós não os reconhecemos imediatamente porque nunca antes os vimos em detalhes completos e num arranjo adequado. (MCMURRY, 1920, p. 15).21
Amparado nessa justificativa, McMurry estabelece equivalência entre expressões e, simultaneamente, resiliência às prescrições para a prática. Apresentados nessa obra, primeiramente, como projetos de ensino, os planos são integrados à nova concepção pedagógica, mas ao longo do texto são designados também como grandes unidades de estudo, como grandes projetos, como estudos tipo ou como lições de coisas ampliadas22. A pretendida reversibilidade das expressões constitui indício do final do ciclo de circulação da concepção herbartiana; na dinâmica da inovação pedagógica ela revela ainda a consolidação da concepção progressiva ou deweyana da educação ante a qual houve a capitulação.
Considerações finais
O tempo em que as fontes aqui analisadas permaneceram em circulação, cerca de três décadas, foi condição para a percepção de que a dinâmica de difusão das ideias herbartianas, objetivadas em diferentes impressos dirigidos aos professores, foi composta por vários ciclos.
Foi sob o signo da renovação que essa concepção foi introduzida nos Estados Unidos da América e, nesse primeiro movimento, o prestígio acadêmico estrangeiro e o intercâmbio intelectual desempenharam papel relevante. Por meio da produção de impressos com clara identificação institucional – a Normal State University e a Herbart Society - a estrutura conceitual herbartiana era explicada e, ocupando o primeiro plano, conferia coesão e profundidade à proposta de uma nova ordenação curricular cuja viabilidade era demonstrada pela exemplificação detalhada dos procedimentos e das rotinas escolares a ela articuladas, configurando, assim, um repertório novo de conhecimentos e práticas.
No entanto, o embate com outras correntes teóricas alterou a coesão desse discurso pedagógico. A experiência profissional do autor dos manuais, sua posição no campo educacional (angariada, inclusive, com as publicações) e a acolhida dos leitores parecem ter balizado esse movimento. O sentido da concepção foi determinado mais fortemente por meio das prescrições para a prática docente e adaptou-se ao novo e variado contexto teórico. A correlação de estudos permaneceu como o princípio organizativo dos exemplos e dos planos de lições, mas sob a denominação de estudos-tipo que, simultaneamente, camufla seus vínculos originais e substitui seu vetor de inovação pelo investimento nas continuidades práticas.
O movimento final da circulação do herbartianismo, identificado na produção de Charles McMurry, consistiu na tentativa de manter sua relevância em um contexto teórico que lhe era adverso e se tornava hegemônico – a educação progressiva. Por meio da incorporação dos termos-chave da nova teoria, de reversibilidades no léxico pedagógico e de pequenas reformulações nas prescrições metodológicas para o ensino, o autor buscava vestir as práticas já conhecidas com o novo referencial teórico. Assim, conferia resiliência à correlação dos estudos e à própria obra e minimizava o impacto da inovação, atribuindo-lhe sentido de continuidade, objetivo para o qual não logrou êxito (NULL; RAVITCH, 2006).
O ciclo de difusão das ideias herbartianas, aqui particularizado em diferentes movimentos, não é, no entanto, exclusivo dessa concepção pedagógica e pode ser identificado – com especificidades – na difusão de outras vertentes ou contextos. A inovação apresentada por seus autores, em geral, como um sistema quando de sua proposição, é amparada na crítica aos problemas teóricos e práticos que pretende superar; nos ciclos de adaptação ou de permanência residual, como descritos aqui, adquire a conotação de versão possível de concepções emergentes.
Os manuais didáticos desempenham papel central nessa estratégia, conforme já indicaram outros estudos (VALDEMARIN, 2010; SILVA, 2007), ora introduzindo inovações praticáveis, ora distanciando-as das rupturas por meio de sua inserção num código geral de significação pré-existente.