1 INTRODUÇÃO
A eleição de 2018 colocou o timão das proposições para a educação nas mãos de navegadores que se orientam pela bússola de uma política neoliberal de Estado. A extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) como um dos primeiros atos do governo Bolsonaro (2019-2022), a vontade anunciada de ampliar as ações de educação à distância e a recente implementação de uma comissão para a revisão das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com vistas ao estabelecimento de uma faxina ideológica, são algumas das tantas ações a indicar uma direção política que não guarda lugar para o sujeito - o qual, desde sua posição desejante, pode se inscrever como protagonista da história - em suas diretrizes. Diante de cenário tão preocupante, lançar a pergunta: ‘O que se pode dizer sobre formação de professores nas condições atuais, quando a educação se vê desguarnecida, abandonada e rebaixada em sua função humanizante?’, constitui, em si, um gesto político, um convite a manter a abertura necessária para que opere o pensamento e, com ele, mantenham-se as condições de emergência do sujeito.
Em um tempo guiado pela vontade de se fazer terra arrasada da história, cabe-nos lembrar do que nós, psicanalistas e educadores contemporâneos, temos teoricamente construído e implementado desde os estudos seminais de Anna Freud, Zulliger, Pfister, Bernfeld e Aichhorn - psicanalistas da geração heroica de Freud que se dedicaram de maneira incansável à interface entre as práticas pedagógicas e psicanalíticas. Não podemos deixar de mencionar outros intelectuais igualmente inspiradores que os sucederam e se consagraram, ao longo do século XX, ao colher os efeitos da psicanálise na prática e na formação de professores, mostrando seus limites e sua potência. Entre muitos, são eles: Maud Mannoni, Jean-Claude Filloux, Mireille Cifali, Jeanne Moll, Catherine Millot, Hebe Tizio; além daqueles que se reuniram em grupos inspirados em Balint e em Pichon-Rivière. Não menos importantes, também no Brasil somos muitos a abordar a interface formação de professores, educação e psicanálise. Entre esses contamos com trabalhos seminais de Porto-Carrero, Arthur Ramos, Maria Folberg, Elisabeth Mokrejs, Maria Cristina Kupfer, Sandra Almeida, Leandro de Lajonquière, Eliane Lopes e Leny Mrech.
Como se pode perceber, não foram e não são poucos os que se colocaram - e os que tomaram para si - a responsabilidade de tecer um campo de pesquisa ali onde se tocam duas das profissões que Freud ([1925], 2011, p. 201) nomeou como “impossíveis”, a psicanálise e a educação. É no ponto de convergência desses impossíveis que se situa o que nos move como tema de trabalho: a singularidade do ser professor em sua formação, seus vínculos educativos, suas relações transferenciais, seus sintomas, sua política, sua arte, seu ato, enfim, seu desejo.
Dos fios que sustentam e alinhavam o campo de pesquisa conjugado a partir da pergunta sobre a formação do professor, operada desde os pressupostos éticos da psicanálise, alguns pontos se destacam como zonas que concentram o pensamento - espaços para onde convergem diferentes estudos, mesmo quando erguidos por arquiteturas conceituais distintas. Propomos que essas zonas de convergência tomem a função do que Lacan ([1957-58], 1999, p. 202) denominou de “ponto de basta” (por vezes, traduzido como ponto de estofo).
Ao abordar o enlace entre significante e significado, recorrendo ao legado de Saussure, para subvertê-lo de forma a indicar a primazia do primeiro na produção do sentido, Lacan recorreu à imagem do estofador que, em seu ofício, domina a técnica necessária para articular um tecido a outro. Se Saussure nos indica que há um “duplo fluxo paralelo do significante e do significado, distintos e fadados a um perpétuo deslizamento de um sobre o outro” (LACAN [1957-58], 1999, p. 15), Lacan atenta para a necessidade de contar com amarrações que, paradoxalmente, funcionam como cortes, e que nos permitem articular pontos de detenção, zonas de valor diferenciado nesse fluxo, o qual, sem elas, tenderia ao infinito.
É preciso que em algum ponto, com efeito, o tecido de um se prenda ao tecido do outro, para que saibamos a que nos atermos, pelo menos nos limites possíveis desses deslizamentos. Existem pontos de basta, portanto, mas eles deixam uma certa elasticidade nas ligações entre os dois termos (LACAN [1957-58], 1999, p. 15).
Ao avançar na proposição de uma estrutura de articulação entre significante e significado que interessaria à psicanálise, Lacan referirá à dimensão temporal implicada no discurso: “um discurso não é apenas uma matéria, uma textura, mas requer tempo, tem uma dimensão no tempo, uma espessura” (ibidem, p. 17). A frase dita só verá um sentido possível decantar-se quando o ponto lhe trouxer fim. Estamos diante do operar temporal próprio dos processos psíquicos: o a posteriori. É pela consideração do já dito que podemos articular o sentido presente. Daí fazer sentido evocarmos, mais uma vez, Lacan, “quando reordenamos as contingências passadas damos a elas o sentido das necessidades por vir. Isto é, ao interpretar o passado, decidimo-nos quanto ao futuro, pois toda interpretação é sempre uma interpretação de desejo”. (SAFATLE; MANZI, 2008, p. 91).
Deste modo, é como pontos de basta - zonas de detenção que nos permitem ler um passado de investigações no campo da psicanálise, especificamente da zona em que psicanálise, educação e formação de professores se tocam - que propomos ler a herança produzida por quem nos antecedeu de forma a, com nosso trabalho de atualização das premissas éticas que nos guiam, dar ao já produzido ‘o sentido das necessidades por vir’. Assim, destacamos quatro princípios que funcionam para nós, e na organização deste dossiê, como pontos de basta:
A formação de professores pensada a partir dos pressupostos da psicanálise, associa-se aos anseios de romper com métodos e práticas discursivas que reduzem a educação - como instituição, como prática e como desejo social - à lógica capitalista, a qual não inclui o outro e tampouco faz justiça à sua singularidade. No quadro em que essa perspectiva se escreve, trata-se de pensar a educação em outra lógica de inscrição social e, também, de agir em seu nome.
A inclusão do sujeito do inconsciente no pensamento sobre a educação produz descentramento, desestabilizando certezas imaginárias. Tematizar o não educável, o inclassificável, o impossível de ser dito e, ao mesmo tempo, necessário de se nomear, indica um caminho em que o Real se situa na causa do operar simbólico. Como tal, é também a esse registro que podemos imputar o motivo e o limite de toda empresa que busca organizar meios - a pedagogia almeja responder a esse ensejo - capazes de conduzir a um fim inscrito de forma antecipada. Colocar o Real na causa tem efeitos, constrói caminhos e demanda implicação - ou ainda, traz a potência de fazer despertar de uma anestesia ética e política. Isso porque, situar a empresa educativa como um caminho cujo ponto de chegada nunca se alcança de todo - nem mesmo se sabe precisar suas coordenadas antes de percorrê-lo -, gera efeitos na subjetividade do professor, no seu exercício de desejo e na sua condição de responsabilização por recolher os efeitos dos atos que sustenta. A função de professor não se exerce, assim, de forma anônima e sem consequências.
A educação não se restringe à escolarização e ganha o sentido de transmissão de um traço simbólico de filiação, o qual permite a constituição de um sujeito (humanização), sua diferenciação de um outro (singularização) no mesmo movimento que abre a possibilidade de um encontro com o outro (socialização). A educação pode ser pensada como processo que promove laço social, capaz de sustentar um ethos comum. Nesse sentido, uma geração - encarnada no professor, nos pais e nos adultos responsáveis - tem para si a tarefa de colocar em causa seu desejo de transmissão dos traços que constituem o comum de sua cultura. Aos que chegam, caberá o trabalho de apropriação dessa herança, uma vez que não nos tornamos herdeiros sem pagar o preço de empenhar algo próprio.
A educação pode dizer algo sobre os estados precários da existência, sobre aqueles que, frequentemente, fazem cicatriz no tecido social: crianças, mulheres, pessoas com deficiência, adolescentes, etc. É o mal-estar e suas múltiplas faces. Aquele que o diz pode também ser o mesmo que busca, por meio de seus sintomas, as condições para deslocar a precariedade, a fragilidade, na direção de uma zona na qual um novo venha a emergir. A educação pode trabalhar no sentido de uma extensão significante que propicie, cada vez mais propiciadora de modos de ser e estar no mundo que ganhem a consistência que o compartilhamento e o testemunho conferem àquilo que nomeamos como singular.
Cada um desses pontos de costura argumentativa encontra-se tematizada neste dossiê de forma articulada com um pensar sobre o lugar da subjetividade na formação de professores e no exercício da prática docente. Dessa tessitura, nascem operadores que querem contribuir para o desenho de políticas educacionais que deem guarida à emergência de um sujeito desejante, pensante e responsável - seja ele aluno; seja ele professor.
2 A PROPOSTA DESTE DOSSIÊ
O dossiê “Formação de Professores, Educação e Psicanálise” conjuga sete artigos substanciais, dos quais, cinco são assinados por pesquisadores brasileiros de referência (UFRGS, UFMG, UFF, USP e UFOP) e dois por pesquisadores estrangeiros com reconhecida inserção no tema (Paris 8 e Paris 10). Tais pesquisadores abordam, em perspectivas distintas, a precariedade dos processos escolares e educacionais contemporâneos. Entretanto, não apenas constatam as mazelas e os impasses de tornar-se professor e sustentar com seu corpo e sua política um ato educativo, mas incidem também sobre os fatos e os contextos em pauta, pensando-os a partir do ponto em que fragilidades inscrevem frestas capazes de convocar mudanças. Trata-se de um conjunto de artigos que tem como fio condutor a marca ético-política da psicanálise: atentar aos estados precários da existência, quando o caos, a desesperança, a covardia e o ressentimento emudecem, paralisam e retiram da cena [escolar] a possibilidade de fazer o exercício da alteridade; sem, no entanto, se fixarem no ponto em que a impotência aniquila o sujeito.
Todavia, sublinhando, numa escuta atenta do cotidiano, aquilo que se estabelece como ruptura, abertura, criação para um novo não passível de antecipação. É pelas linhas, sobretudo, de Freud, Lacan, Mannoni e psicanalistas contemporâneos - em diálogo com a filosofia, a literatura, a pedagogia e as ciências sociais - que são tecidos a escrita e o compartilhamento dessas pesquisas que performam a ética psicanalítica. De modo a indicar no lapso, naquilo que escapa ao estabelecido, no que resta fora do abrigo simbólico, a potência de nos colocar no trabalho de inventar e transmitir formas de viver juntos, contando-se na vida e contando o mundo. São artigos que buscam colocar em debate as condições necessárias à construção e à sustentação de umethoscomum - um lugar para viver, ensinar e aprender - que seja colocado em causa na transmissão educativa. Vamos a cada um:
Em “Quando o sonho cessa e a ilusão psicopedagógica nos invade, a escola entra em crise”, Leandro de Lajonquière propõe algumas notas comparativas entre Argentina, Brasil e França para se reler as referências críticas de Freud à pedagogia. Segundo o autor, embora todo ideário pedagógico se estruture com base num ponto cego - que é o desconhecimento do desejo em causa no laço educativo escolar -, caberia a toda criança inverter a demanda adulta a fim de conquistar para si um lugar de palavra numa história e, assim, adentrar no conhecimento. No entanto, essa operação haveria de reclamar um trabalho psíquico suplementar por parte da criança a depender de como o sistema pedagógico se enderece a ela. O endereçamento adulto deve interpelar a criança como aluno para que assim ela possa se lançar dignamente ao aprendizado escolar. A eficácia simbólica dessa interpelação pedagógica foge ao gabarito do desenvolvimento das competências docentes e, portanto, a todo programa de formação profissional. O esboço de uma comparação entre os sistemas escolares franceses, brasileiros e argentinos, e suas transformações na história, permite precisar, por um lado, o valor heurístico da noção de ilusão psicopedagógica e, por outro, afirmar que cada um deles desconhece, de forma singular, que todo processo massivo de escolarização bem-sucedido é animado pelo sonho moderno de uma escola para todos sem distinção de origem familiar.
Carla K. Vasques e Wladimir Brasil Ullrich, em “Correspondências sobre o outro na educação especial”, problematizam justamente como o outro, enquanto tema na educação especial, provoca um impasse no campo das licenciaturas. Os autores dirão que algo no encontro com a deficiência causa estranhamento, e esta não parece subsumida nem mesmo às diretrizes inclusivas. Nesse contexto, buscam compreender a perplexidade e mesmo a impossibilidade envolvida no processo de tornar-se professor desse outro considerado estranho, quando a racionalidade moderna afirma um mundo dividido em dualismos e dicotomias que dão contornos ontológico e moral à noção de identidade, além de reforçarem o primado da subjetividade. A fim de abrir espaço para a estranheza que precede e persiste na lição dos nossos alunos, e divergindo de tal racionalidade, os autores adotam como referencial metodológico e teórico o ensaio freudiano:O inquietante. Acreditam que a conversão de Freud ao literário é capaz de justificar a escrita de uma carta como experiência formativa: uma carta envolve a presença do outro, faz-se pela suposição de um interlocutor. Em resposta ao chamado por implicação, a correspondência se apresenta como possibilidade de uma racionalidade diversa na formação docente.
Em “Será mesmo que o magistério atual é formado pela ‘seleção dos péssimos’?”, Marcelo Ricardo Pereira, revela as precárias condições da organização e da prática docente de boa parte da educação básica no país, associadas ao reduzido trabalho coletivo de professores com pares e gestores, às problemáticas relações com o saber, com o conhecimento e com a formação, bem como aos reconhecidos dilemas de proletarização, remuneração e reconhecimento social e de carreira. O autor acredita que isso tem contribuído severamente para produzir certos modos de ser professor que podem condenar o desenvolvimento das novas gerações e de todo um projeto de nação. Com aportes de autores do campo da formação docente, Marcelo Pereira introduz saberes psicanalíticos, como a noção do sintoma subjetivo e do método de orientação clínica na escuta de professores, para qualificar seus argumentos, pondo em questão se selecionamos ou se realmente produzimos aqueles que haveriam de ser ajuizados como ‘péssimos’, sem deixar de mostrar o que se pode fazer diante desse indisfarçável fenômeno.
Luciana Gageiro Coutinho, em “Mal-estar na escola: o discurso dos professores diante dos imperativos educativos contemporâneos”, apresenta uma pesquisa realizada no ambulatório infantojuvenil do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, em parceria com as faculdades de educação da UFRJ e da UFF. A autora parte da constatação de que as condições sociais que sustentam o laço educativo e a transmissão têm sofrido grandes transformações nas últimas décadas. Tece, então, uma reflexão acerca do cenário contemporâneo - sobretudo à luz dos trabalhos em psicanálise e educação - sobre o mal-estar docente no contexto brasileiro. Nesse sentido, Luciana Coutinho mapeia esse mal-estar na escolarização de crianças e adolescentes, mais especificamente, a partir do discurso de educadores, apostando nos ideais de aluno e educação como aspectos importantes para a análise desse mal-estar.
Rinaldo Voltolini, em “Uma pedagogia esquecida do amor”, aborda a temática do amor como fato estrutural na educação e o obscurecimento de seu papel e sua relevância na educação. Essa discussão evocada pelo autor tem sido propiciada pelas teorias pedagógicas contemporâneas que, centradas na aprendizagem e no desenvolvimento do aluno, deslocaram o papel do professor a uma posição tal que sua presença subjetiva não conta entre os elementos determinantes da aprendizagem ou da transmissão do conhecimento. Contaria apenas seu papel funcional de intermediário entre o aluno e esse conhecimento.
No artigo “O tempo de elaboração de um ‘eu professor’”, Claudine Blanchard-Laville e Arnaud Dubois, mostram, com base em investigações conduzidas por uma corrente clínica de orientação psicanalítica em ciências da educação na França, que a construção da identidade de um professor se estende ao longo de vários anos. É um processo progressivo marcado por uma etapa que se assemelha a uma crise da adolescência profissional, durante a qual a relação com os saberes profissionais toma formas específicas. Os autores apontam para as formas de acompanhamento que parecem mais adequadas à analise dos resultados de pesquisas com tal orientação, acerca dos primeiros anos de exercício de trabalho do professor.
Em “A escrita autoral de mulheres-professoras”, Margareth Diniz e Natália Goulart revelam como algumas expressões - entre elas: mãe espiritual, sagrada, solteira, pura, mulher de vocação no trato com os alunos e alunas, carinhosa e mãe da família escolar - podem figurar como representações que marcaram e ainda marcam a mulher-professora e seus exemplares atributos. Mesmo considerando o gênero antes de sua implosão, tais atributos parecem estar associados, amiúde, aos papéis sociais clássicos de homens e mulheres. Também à mulher-professora estaria associada a missão de ser mãe, mesmo sem ser mãe, na esteira do que se encontrava na literatura e na imprensa. No cenário escolar, esse acontecimento se deu igualmente de forma lenta e nada tranquila. A escola, como espaço social de formação de meninos e meninas, homens e mulheres, “é, ela própria, um espaço generificado, isto é, um espaço atravessado pelas representações de gênero”. Assim, uma vez que nos atenhamos a uma formação docente implicada, é inexorável atentar aos discursos das mulheres-professoras.
3 UM CONVITE À LEITURA: CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Existem limites na compreensão; [pois] não imaginamos que compreendemos a vida autêntica ou real dos docentes” (LACAN [1962-63], 2005, p. 27). É certo que o presente dossiê não visa à compreensão de qualquer vida real de professores, mas partir da premissa de que reside no ato de educar uma impossibilidade; qual seja, a impossível garantia de um desempenho elevado, técnico e regular dos gestos profissionais de todo aquele que ensina. Cada um sabe que, diante das incertezas de seu ato, das ambivalências, das pulsões, das manifestações da sexualidade de si e do outro, das invariantes diagnósticas, das irrupções da violência, da apatia e do desinteresse discentes, além de estar diante de sujeitos em sua radical diferença, tendo de exercitar o legítimo imperativo social de fazê-los incluídos, tudo isso não é vivido sem angústias. E a psicanálise soube bem revelar que “as pessoas não percebem muito bem o que querem fazer quando educam [...] e são tomadas pela angústia quando pensam no que consiste educar” (LACAN [1974], 2005, p. 58)
Trata-se de uma prática com angústias e contradições difíceis de ultrapassar: privilegiar a diferença ou a igualdade? Ser pelo particular do sujeito ou pelo universal dos métodos? Amar a todos ou exprimir seus desafetos? Controlar sua mestria ou expor sua vontade de domínio? (PEREIRA, 2016).
Como reconhece Philippe Perrenoud, eminente teórico do campo da sociologia da educação,
[...] qualquer teoria da prática docente depende, num certo sentido, de uma aproximação psicanalítica, devido a fortes componentes relacionais e afetivos da profissão, mas também à tensão entre um ideal de mestria, de integridade, de coerência e de competência e uma realidade concreta com nuances muito distintos (PERRENOUD, 1993, p. 23-24).
Tendo em vista os sentidos dessa tensão posta pela experiência real, já nos encontramos longe de muitos pioneiros do campo da psicanálise e educação, que não esconderam o intuito colonial de aplicar conhecimentos das teorias freudianas às práticas pedagógicas de sua época. Longe também nos encontramos dos psicanalistas que insistem em se afirmar mostrando a insuficiência dos saberes, conteúdos e métodos de outros campos aos quais se opõem, tais como a pedagogia, as teorias do desenvolvimento, da aprendizagem ou afins.
De modo oposto, admitimos que ensinar é conseguir fazer com que o sujeito fabrique artesanalmente seu saber, sempre um a um, cuja singularidade deve levar “o profissional docente a mobilizar um capital de saberes [...], que não estanca, pelo contrário, cresce constantemente, acompanhando a experiência e, sobretudo, a reflexão sobre a experiência” (PERRENOUD, 1993, p. 186).
Com os artigos que compõem esse dossiê, notamos não apenas o tom ricamente reflexivo no que concerne à psicanálise associada à formação docente e à educação como um todo, mas associada também a modos de intervenção, de extensão e de pesquisa em estudos e experiências que ofertam a palavra e a escuta a professores e a outras pessoas do âmbito educativo para que tenham a chance de elaborar subjetivamente seus obstáculos pedagógicos, de transmissão e de gestão do “impossível”.
Nesse sentido, o campo da psicanálise e educação não viria apenas dizer o que outros campos deixam de fazer ou considerar, e passaria a propor intervenções efetivas na realidade pedagógica em que se insere. Aqui se tem o cerne do que Ponnou (2015) vai chamar de “o trabalho social à prova da clínica psicanalítica”, isto é, uma prática da psicanálise menos inibida ou menos restrita aos espaços exclusivos dos consultórios e mais afeita à ordem social. Isso não seria outra coisa senão levar a psicanálise à cidade, ao vínculo social e ao debate de muitos: “há que se passar do analista reservado, crítico, a um analista que participa, a um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora” (LAURENT, 2007, p. 143). Eis em que consistirão as reflexões que este dossiê apresenta a seguir.