1 INTRODUÇÃO
A posição arbitrária do real como mundo não fará ao mesmo tempo aparecer o centauro como objeto real. Para que o centauro apareça como irreal é necessário precisamente que o mundo seja apreendido como mundo-onde-o-centauro-não-é, e isso somente pode se produzir se diferentes motivações levarem a consciência a apreender o mundo como sendo precisamente tal que o centauro nele não tenha lugar.
(SARTRE, 1996, p. 234)
Os centauros, na mitologia grega, são seres que amalgamam duas naturezas: a de ser humano e a de cavalo; a de ser pensante e a de ser de movimento e carga. Esse amálgama, por unir naturezas diferentes, a razão e o instinto, por vezes, faz com que o ser sofra fissuras na sua produção simbólica. Tendo a imagem do centauro como inspiração, da união colaborativa nem sempre possível entre as diferenças, neste texto, aborda-se a noção de trabalhador como sujeito3, em sua subjetividade e em seu trabalho, em sua possibilidade e/ou impossibilidade de se constituir autônoma e socialmente. Para isso, considera-se o sujeito e sua forma de se constituir no social. Em outras palavras, considera-se o sujeito em sua relação com os demais sujeitos, com a família, a escola, a religião, a política, a arte, as instituições e, como elemento mediador dessas relações, o trabalho. Enfim, considera-se o sujeito que socialmente se autoproduz e elabora historicidade, uma vez que se constitui na e pela imersão social através do trabalho. Naturalmente, para tanto, requer considerar a história ou o modo como se elaborou a sociedade, e também que o que constitui a sociedade são espaços e tempos, demarcados por singularidades dialeticamente produzidas na relação social - individual - social. Então, os sujeitos se produzem no tempo social e todo tempo presente revela em si a possibilidade de ser história ao ser síntese de um passado e poder ser consumido pelo futuro.
Trabalho é a categoria relevante porque é o que há de concreto e deveria ser o que torna concreta a presença social humana no mundo. Entretanto, os sujeitos, em especial os sujeitos professores (pois são os sujeitos sobre os quais se apresenta referências nesse artigo), parecem não se enxergar mais em seu trabalho4, tampouco parecem dimensionar sua posição como trabalhadores no discurso social. Em consequência, parecem não se sentir reconhecidos pelo que fazem. O discurso social é composto por objetificações, modos de expressão amplas que visam à completude e à totalidade dos sentidos (por exemplo, “os professores devem preparar para o futuro, para o vestibular, para o emprego”), em vez de remeter esses sujeitos a explicitar seus sentidos e elaborar seus próprios discursos legitimadores. Não se evidencia mais também o intervalo entre o sujeito e o objeto, eles se confundem (“os professores são seu trabalho5, são competentes ou não são competentes). Por isso, a palavra e os discursos não são mais autônomos, são arbitrários, apenas designam o objeto, então, dependem do objeto. É aqui que se percebe o início da dessimbolização.
O processo de dessimbolização talvez seja, no momento, bem mais amplo do que denunciava Dufour, em 2005, atingindo já a maior parte dos valores subjetivos (incluindo a crença no trabalho como produção do ser humano), que passam a ser desacreditados, minimizados e substituídos por sentidos implícitos em discursos generalizantes. Os sujeitos, cada vez mais acríticos, movem-se a partir de suas vontades imediatas, denotando senão a perda, a minimização da função simbólica. Na época, Dufour (2005) descrevia a dessimbolização como processo, em meio ao neoliberalismo, que ele considerou como “novo estado do capitalismo”, associado à troca de mercadorias, na qual os objetos apresentam-se desprovidos de um valor simbólico. Ressaltou: “De modo geral, toda figura transcendente que vinha fundar o valor é doravante recusada, há apenas mercadorias que são trocadas em seu estrito valor de mercadorias” (DUFOUR, 2005, p. 13). Nesse processo, o que faz os seres humanos se relacionarem entre si não são os “valores simbólicos transcendentes”, mas a expansão cada vez maior da troca de mercadorias. Estas se encontram no estágio “aliviado de excesso de sentido que o impedia de figurar como simples produto no ciclo neutro e expandido das trocas” (DUFOUR, 2005, p. 13). Ao mesmo tempo, o tão divulgado “mercado”, inclusive o mercado de trabalho, assume o lugar de referência para que os sujeitos se estabeleçam, sendo, portanto, um Mercado, então, um falso Outro6, incapaz de, efetivamente, dar sustentação ao sujeito (DUFOUR, 2005). Ora, somente pode haver um sujeito, isto é, alguém em referência a Outro, se houver dimensionamento desse Outro, que implica na função simbólica, a possibilidade de, pela linguagem, inserir-se e ser influenciado pelo social. A linguagem, nesse sentido, estabelece o contato entre os sujeitos e possibilita a elaboração dos imaginários, dos simbólicos, estabelecendo as relações entre o real e o possível. Se a linguagem passa a ser interceptada, controlada, omitida como contato legítimo entre os sujeitos, contribui, cada vez mais, para uma declinação dos sentidos elaborados a partir dos processos decorrentes da condição de sujeito, entre estes, especialmente do trabalho.
Assim, o processo de dessimbolização tem consequências imediatas para a caracterização do sujeito contemporâneo e, desse modo, para o trabalho. O sujeito torna-se “precário, acrítico e psicotizante” (DUFOUR, 2005, p. 21). Como psicotizado, o autor descreve um sujeito que denota “flutuações identitárias” e, por isso, em estado de adequação às “conexões mercadológicas”, gerando-se um sujeito com “um vazio aberto a todos os ventos” (DUFOUR, 2005, p. 22). O inverso de tal situação seria a simbolização, o que tem a ver com o retorno da função simbólica, entendida como “um ponto de apoio ao sujeito para que seus discursos repousem num fundamento, mesmo que fictício” (DUFOUR, 2005, p. 33). O ponto de apoio referido está diretamente relacionado à “[...] questão do pai, dos pais como nome, aquele que nomeia, aquele pelo qual advém o acesso ao simbólico, o pai que funciona como referência a partir da qual se atrelam os desapontamentos espaciais e temporais, as linhas narrativas, as histórias, o tempo, o espaço” (DUFOUR, 2005, p. 57).
Coincidem esses processos com o fim das ficções explicativas, confirmando o desaparecimento do Outro, “no sentido do Outro simbólico: um conjunto incompleto no qual o sujeito possa verdadeiramente enganchar uma demanda, formular uma pergunta ou apresentar uma objeção” (DUFOUR, 2005, p. 59). Tal processo é explicativo, para o autor, do que se denomina pós-modernidade, na qual, há “semblantes de Outros”, mas não há mais Outro, e, sim, um assujeitamento7 simbólico, convocando os sujeitos para um estado de psicotização (DUFOUR, 2005, p. 59).
Tendo por base essas considerações, esse artigo discute a dessimbolização e o processo corolário, a desinstituição (neologismo que pretende expressar a desconstrução do instituído), no trabalho pedagógico realizado pelos professores na escola, com base nas proposições, inicialmente, de dois autores, aproximados sob a perspectiva de uma leitura do social como instituição imaginária, na qual os sujeitos se produzem. Tratam-se de Dufour (2005) e Castoriadis (1982, 1999, 2007). A partir de suas obras, há diálogo também com outros autores e apresentam-se os argumentos em seções inter-relacionadas sobre a desinstitucionalização relacionada à dessimbolização, os efeitos desses processos no trabalho pedagógico e, como possibilidade, o trabalho como simbolização. Tal sequência argumentativa tem como procedimento a sistematização, em contínuo processo, do que se lê, do que se vivencia na condição de pesquisador sobre o tema trabalho e do se passa a elaborar como considerações. Sistematizar significa produzir sentidos acerca do lido, estudado, vivido. Para tanto, são necessárias técnicas de leitura, fichamento de argumentos, análises comparativas para chegar-se a novos argumentos que são, em si, sínteses dos anteriores e a eles referenciados. Dessa vivência, vão-se produzindo argumentos apresentados de modo inter-relacionado, com o intuito de aprofundar entendimentos acerca do trabalho pedagógico8, aqui recortado como o trabalho dos professores na escola e, em decorrência, elaborar questionamentos que darão continuidade aos estudos, pois este é o objetivo central de uma sistematização, organizar o já produzido para lançar à frente.
2 A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO COMO PROCESSO RELACIONADO À DESSIMBOLIZAÇÃO NO TRABALHO PEDAGÓGICO
O trabalho permite a passagem dos seres humanos a estágios superiores: primeiro, porque produzem; segundo porque transformam o mundo ao redor, de maneira intencional. Assim, “o trabalho se torna não simplesmente um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do ser social, mas, ao contrário, precisamente no plano ontológico, também se converte no modelo de toda a nova forma de ser” (LUKÁCS, 2009, p. 230). Nesse sentido, trata-se de um elo entre o sujeito e o mundo, permitindo que se complementem, se interponham, interajam, podendo, até mesmo, repelirem-se. Dito de outro modo, não há sujeito sem trabalho. Essa indispensabilidade acarreta um processo de simbolização, pois o sujeito produz e pode se reconhecer no que produz, ampliando sua possibilidade de enxergar-se para além de si próprio, projetando-se no mundo.
Em Marx (2004), o trabalho dos professores é considerado produção não material, não realizado objetivando com exclusividade a troca, nem criando mercadorias diretamente. As mercadorias produzidas existem separadamente do produtor, ou seja, “[...] podem circular como mercadoria no intervalo entre a produção e o consumo; por exemplo, livros, quadros”. Do mesmo modo, não há separação entre o produto e sua produção, o que possibilita se pensar que os professores são trabalhadores como quaisquer outros: “Nas instituições de ensino, por exemplo, para o empresário da fábrica de conhecimentos, os docentes podem ser meros assalariados” (MARX, 2004, p.119-120). E para demarcar a diferença com o trabalho produtivo, Marx afirma: “[...] O trabalhador produtivo é aquele que aumenta a riqueza de seu patrão” (2004, p.119-120). Para melhor compreender essa afirmação, são necessárias breves considerações sobre a teoria de valor na obra marxiana. Para Marx, o trabalho visa à produção de valores de uso em geral. Entretanto, na medida em que se modificam as características sociais, há necessidade de se considerar também que cada mercadoria, além de valor de uso, possui valor de troca. Diz o autor:
Em todos os estágios sociais, o produto do trabalho é valor-de-uso; mas só um período determinado do desenvolvimento histórico, em que se representa o trabalho despendido na produção de uma coisa útil como propriedade “objetiva”, inerente a essa coisa, isto é, como seu valor, é que transforma o produto do trabalho em mercadoria. Em consequência, a forma simples de valor da mercadoria é também a forma-mercadoria elementar do produto de trabalho, coincidindo, portanto, o desenvolvimento da forma-mercadoria com o desenvolvimento da forma do valor. (MARX, 2008, p. 83)
O autor apresenta ainda a diferença entre o valor de troca e o valor de uso, explicando como a mercadoria pode ser a objetificação do trabalho. Acrescenta, ainda, que a força de trabalho é mercadoria, subsumindo-se também no valor de troca. Desse modo, a força de trabalho é potencialidade humana “subjetiva e objetiva de trabalho e produção de valores de uso se transforma em capacidade de trocar alguma coisa, capacidade de trocar a mercadoria força de trabalho por outras mercadorias de valores equivalentes” (FRIZZO, 2012). Transpondo para o trabalho pedagógico, o conhecimento produzido pode ser considerado mercadoria força de trabalho (FRIZZO, RIBAS & FERREIRA, 2013, p. 558):
No modo como se organiza a lógica do capital, ao subsumir a vida humana à condição da mercadoria, força de trabalho que também tem valor de troca, elabora-se uma concepção de conhecimento destinado a retroalimentar essa produção, valorizando o capital e gerando maior e melhor produção de mercadorias. Nesse sentido, o conhecimento pode ser considerado força produtiva, e é produzido hegemonicamente para ampliar a valorização do capital. Associado à produção. O capital contribui para intensificar a exploração da força de trabalho, através da lógica da formação profissional em detrimento da formação humana, por exemplo. Esse é um imperativo que tem organizado o modo como a escola capitalista tem se estruturado, contribuindo para transformar os sujeitos do trabalho pedagógico em objetos, ao reduzir a produção do conhecimento escolar em produção da mercadoria força de trabalho. (FRIZZO, RIBAS & AUTOR, 2013, p. 558)
Os modos sociais capitalistas, ao comprometerem-se demasiadamente com a exploração e, consequente, desanaturalização do trabalho, permitem o afastamento entre entre o produtor e o produzido, processos, inicialmente, vistos como naturais, mas que, tornam-se perniciosos, pois geram modos de assujeitamento. Tratam-se de processos sociais, entretanto, paradoxalmente, são processos anti-humanos. Descreverei um que considero diretamente relacionado ao trabalho pedagógico, a desinstitucionalização e os consequentes impactos no trabalho na escola.
O trabalho pedagógico, realizado por professores na escola, é a ação desse sujeito em relação a outro, no sentido de que ambos produzam9 conhecimento. Surgiu, a partir, inicialmente, da inserção natural no grupo, e, após, como atividade de um religioso que se apropriava do direito inalienável de ensinar. Na Antiguidade Clássica, passou a ser o trabalho do filósofo, um ser capaz de produzir o conhecimento com o qual trabalhava, um mestre, e o conhecimento era entendido como uma das dimensões ontológicas do ser humano. Com a expansão da cultura cristã, tornou-se a atividade do padre, ou de alguém que representasse o interesse da Igreja, ao ensinar e divulgar os princípios do cristianismo. E, somente na Modernidade, ao expandir sua atitude em relação ao mundo, renascendo da condição de ser assujeitado pelo poder da Igreja, é o que o ser humano elaborou a imagem de professor como aquele que, a serviço do Estado, estaria contratado para ensinar quem não sabe, em um ambiente denominado escola, recebendo um salário por este trabalho (CAMBI, 1999). Esta é a concepção de professor que perdura até a contemporaneidade: um ser que se apresenta como quem detém o conhecimento e sabe como produzir aula. Então, apresenta-se como força de trabalho e a vende, como qualquer mercadoria, para que outros sujeitos também possam conhecer.
Vale dizer, o trabalho dos professores é pedagógico, se este for entendido por suas características pedagógicas as quais o diferem dos demais trabalhos. Isto porque o pedagógico é sempre político, por implicar escolhas e ações humanas, dentro dos contextos sociais onde se produz. Nesse sentido, exige do sujeito que se movimente entre o que lhe é demandado pelo contexto capitalista e o que acredita como trabalhador. Do mesmo modo, pedagógico é a soma de todas as características que, amalgamadas, contribuem para que se produza conhecimento, desde a infraestrutura escolar até o olhar dos professores em relação aos estudantes, das cores que decoram o ambiente ao modo como se organiza esse ambiente, passando por todos os aspectos culturais e sociais que possibilitam haver uma relação entre sujeitos que visam a conhecer. Reitera-se, então, que trabalho pedagógico é, como todo trabalho, um modo de o sujeito estar no social como sujeito, mas, complexo e permeado por contradições, um modo de o sujeito contribuir para a reprodução das características desse social (AUTOR, 2008). E o trabalho pedagógico dos professores pode, ainda, ir além, tornando-se práxis pedagógica, quando não é somente a imbricação entre teoria e prática, de modo indissociável, mas a sua aplicação social na transformação e até na superação da sociedade capitalista. Considera-se, com Kuenzer (2005, p.39), por práxis as ações pedagógicas, que o ser humano, como “[...] indivíduo e humanidade, desenvolve para transformar a natureza, a sociedade, os outros homens e a si próprio, com a finalidade de produzir as condições necessárias à sua existência”.
Em suma, objetivando resumir o que se afirmou até agora, acredita-se que o ser humano pode trabalhar com base em um projeto social composto a partir de si em correlação dialética com os demais sujeitos. No contexto específico do trabalho pedagógico, uma vez que vise ir além, pode convergir para um trabalho que se apresente como práxis pedagógica, considerando a prática humana como um todo, tanto em sua ação objetiva como transformação do natural e do social quanto no fato de produzir a subjetividade humana. A práxis pedagógica, esse estágio mais elaborado do trabalho pedagógico, trata-se de um trabalho ampliado; e, por ser demasiadamente humano, inclui os tempos humanos, as ações, os modos de pensar e sentir produzidos a partir do trabalho e que, portanto, integram a práxis (LEFEBVRE, 1975).
Esse é o estágio ideal: a práxis pedagógica. Entretanto, paulatinamente, a sociedade capitalista modificou-se ao longo dos últimos cinco séculos, produzindo fissuras na forma como se compreende o trabalho e o trabalhador. E, em decorrência, sobretudo, nos últimos trinta anos, o trabalho pedagógico atrelou-se demasiadamente à lógica capitalista. Os professores passaram a funcionários e, com isso, a vivenciar a empregabilidade como processo de inserção no que tem sido denominado mercado de trabalho, no qual todos são mãos de obra suscetíveis a venderem sua força de trabalho e, em troca, receberem um salário. A funcionarização no trabalho pedagógico quebrou o elo entre os professores e a escola, sendo esta seu lugar original de trabalhar. A escola configura-se, a partir de então, no lugar do emprego, onde se cumprem horas trabalho, nem sempre criativas ou mesmo geradoras de bem-estar. Complica ainda mais esta situação, quando são introduzidas no cotidiano educacional escolar, tecnologias até então desconhecidas (apostilas, máquinas, informática, Internet, etc.), que, embora pudessem enriquecer os modos de realizar o trabalho pedagógico, acabam (às vezes, somente) por modificar a relação entre professores e estudantes, antes direta, e, agora, intermediada, afastando ainda mais os professores do que e como produzem. Essa inserção acirra o estranhamento entre quem produz e o que é produzido. Dito de outra forma: a pedagogia tradicional, sobretudo, naturalizou que, na aula, há alguém que sabe e há alguém que não sabe e na “transmissão” do que sabe, há o aprender. Com a mediação da tecnologia há uma cisão nessa transmissão e nem sempre há condições e tempos de os professores transcenderem essa cisão, produzindo outros modos de trabalho (SAVIANI, 2010).
Até aqui foram apresentados aspectos que permitem descrever a dessimbolização. Passar-se-á ao processo corolário, a desinstitucionalização.
Os impactos da desinstitucionalização assemelham-se e integram a dessimbolização, se se entender que “A sociedade não pode existir sem instituição, sem lei” (CASTORIADIS, 1999, p. 113). Quando se refere à instituição, Castoriadis está nomeando o estabelecimento “da linguagem, da religião, do poder, estamos a falar daquilo que é o indivíduo em cada sociedade. Estamos até a falar do homem e da mulher, que são visivelmente instituições” (1999, p. 114). Acrescenta que existe uma “instituição primeira da sociedade”, que diz respeito à autoinstituição da sociedade. Para tanto, existem implicitamente as “instituições segundas”, que ele divide em “trans-históricas”: a linguagem, o indivíduo; e as “específicas”, que sustentam o social, garantem-lhe significações imaginárias (CASTORIADIS, 1999, p. 118). Há, nesses argumentos, um pressuposto interessante para o que se quer debater:
A instituição fornece, pois, o “sentido” aos indivíduos socializados; mas fornece-lhes igualmente os meios de fazerem ser esse sentido para si próprios, e fá-lo restaurando ao nível social uma lógica instrumental ou funcional, que existia certamente, mas de outra maneira, ao nível animal, mas que no homem foi destruída pelo desenvolvimento sem freio da imaginação. (CASTORIADIS, 1999, p. 117)
O que se está denominando desinstitucionalização do trabalho pedagógico é este descolamento entre o lugar original que a sociedade moderna criou para o trabalho pedagógico e este trabalho. Geram-se, em decorrência, como já foi citado, alternativas tecnológicas que afastam professores e estudantes, do ponto de vista do espaço e do tempo, mantendo-os somente interligados por uma produção do conhecimento também virtual. Ao mesmo tempo, há a alienação, não no sentido marxista, mas como “modalidade de relação com a instituição e, por seu intermédio, da relação com a história” (CASTORIADIS, 1982, p. 139). Também não é no sentido marxista a abordagem de Castoriadis de instituição, pois naquele sentido, a considera um tanto funcionalista, caracterizada em acordo com a necessidade de “adaptar-se às exigências da ‘infra-estrutura” (1982, p. 140). Nos seminários desenvolvidos nas décadas de 1980 e 1990, Castoriadis retomará muitas das proposições. Desses seminários, recupera-se a explicação sobre o funcionalismo que “supõe que todas as instituições sociais e todos os atos dos indivíduos que compõem uma sociedade existem para realizar uma determinada função; e deve-se tomar o termo no sentido estrito: função do sistema circulatório em um organismo etc” (CASTORIADIS, 2007, p. 15) Este argumento está na base das críticas formuladas ao texto marxiano. Ainda que critique Marx, e, contrariamente, neste texto, retome muitos princípios da literatura marxista, entendidos fundamentais na explicação do trabalho como categoria central para qualquer abordagem do social, Castoriadis desenvolveu uma obra elucidativa quanto aos aspectos linguagem, simbolização que são caros também para esta abordagem.
A desinstitucionalização, assim, nesse modo de raciocinar, é a perda simbólica do trabalho, uma vez que, tanto a instituição, como a linguagem, são a matriz do simbólico (CASTORIADIS, 1982, p. 142). Volta-se, portanto, ao início: alienado, e, paulatinamente, assujeitado, o trabalho pedagógico vai se dessimbolizando, ou seja, se desinstitucionalizando, tornando-se mera repetição de práticas, descoladas de um projeto humano mais amplo.
Não se pretende qualquer avaliação destas configurações, apenas a análise dos impactos no entendimento do trabalho pedagógico que objetiva a produção do conhecimento em um espaço social, ainda que necessitado de reelaboração, reconhecido por todos, denominado escola.
3 DESSIMBOLIZAÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA, DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NO TRABALHO PEDAGÓGICO NA ESCOLA.
Considera-se que as instituições se alteram nos espaços e nos tempos, mediante a ação humana social. Nessa perspectiva, a escola, como instituição eminentemente social e humana, altera-se cotidianamente. Estas alterações são do âmbito instituinte10 (CASTORIADIS, 1982), e, somadas, podem representar também alterações institucionais. Tome-se, por exemplo, o uso de uniformes escolares. Pode ser algo instituído em uma escola. Entretanto, instituintemente, a cada dia, os grupos contrários a esta prática, vão resistindo, ao ponto de haver uma resistência coletiva geradora de uma nova institucionalização: abdicar da prática do uniforme ou mesmo transformá-la. Este é um exemplo ameno. Há processos mais violentos, mais rápidos e nem sempre privilegiados pela reflexão acerca de suas origens, apenas passam a existir e se instituem.
É nesse espaço e nesse tempo, na escola, que, majoritariamente (pois existem outros espaços profissionais), os professores produzem seu trabalho. Entende-se o trabalho pedagógico como a produção da aula e, nela, a sua própria produção do conhecimento e a dos estudantes. Não é um trabalho simples, tampouco ingênuo. Acontece em meio a situações política e culturalmente elaboradas, que exigem escolhas e sustentação, exigem conhecimento e estudo contínuo, exigem participação e comprometimento com o coletivo, e, sobretudo, exigem ações em acordo com a cultura.
Entretanto, nem sempre a escola permite aos sujeitos serem autônomos e realizarem seu trabalho nessas condições. Pode-se entender que um dos aspectos ideológicos de a escola, como instituição, corroborar para que se alienem os sujeitos-professores em relação ao seu trabalho, está no próprio sentido de escola. Como já referido, a escola é uma construção social e humana. Entretanto, ao apresentar-se também como construção racional ou uma instituição externa ao social, apresenta “o melhor meio de subtraí-la à ação humana, de garantir sua conservação permanente, sua duração” (CASTORIADIS, 2007, p.69). Garante, deste modo, um lugar de não acessibilidade, o para-si: “finalidade de autoconservação, de autocentramento e a construção de um mundo próprio” (CASTORIADIS, 2007, p.71). Romper com esta lógica implica em os professores, em seus coletivos, reconsiderarem que são sujeitos e são humanos, de um lado, “como subjetividade em pleno direito e, de outro, a sociedade vista no projeto de autonomia” (CASTORIADIS, 2007, p. 71). Por subjetivo, se quer dizer criado “pelo sujeito e não pertencentes ao “objeto” (CASTORIADIS, 2007, p.85). Trata-se aqui do sujeito entendido como “um projeto, ainda está por fazer, por fazer acontecer, é uma possibilidade de qualquer ser humano, mas não uma fatalidade” (CASTORIADIS, 2007, p. 72). Então, tornando-se autônomo em sua condição de sujeito individual, podem os professores coletivamente questionar (e, quem sabe, alterar) os aspectos ideológicos da escola. Esse é um projeto subjacente e implicado ao cotidiano dos trabalhadores-professores, porém nem sempre tem sido analisado e enfrentado por esses sujeitos.
Paralelamente, os sentidos de seu trabalho pedagógico para os próprios professores estão por demais atrelados às “significações imaginárias sociais” (CASTORIADIS, 2007, 40), que estes sujeitos partilham nos espaços e tempos escolares e, por isto mesmo, acessíveis a esta comunidade. Portanto, uma observação que não provenha de quem viva neste lugar pode ser pura cogitação, suscetível de ser considerada com cuidado, pois, muitas vezes, é vaga como elemento de análise. No interior desses espaços e tempos escolares, com certeza, há um imaginário que organiza os professores no seu entendimento de si: quem são eles como trabalhadores? A resposta a esta questão é variada, e, de acordo com diferentes proveniências: ou condizente com um imaginário individual, ou com um imaginário social ou imaginário instituinte (CASTORIADIS, 2007, p. 28). Na escola, estes imaginários confluem, acabando por serem determinantes na produção do trabalho pedagógico, na medida em que produzem com base em um imaginário de si.
Essas discussões dificilmente acontecem nos coletivos de professores na escola. Nesses espaços e tempos, são buscados discursos mais simplificadores para explicar e orientar o trabalho pedagógico, dada a falta de discussão.
Do mesmo modo, no atual momento do capitalismo, no sistema flexível de produção, em vez de se destacar o trabalho pedagógico como elaboração dialeticamente individual e coletiva, fala-se muito em qualificação. No discurso corrente, a qualificação reduz-se à operacionalização das condições de trabalho, da empregabilidade e da profissionalidade. Compreende-se este discurso da qualificação do trabalho dos professores também como ideológico e reitera-se esta compreensão com a afirmação de Antunes, para quem, em grande parte, considera a qualificação “[...] instrumental e ideológica para subordinar o trabalho ao capital” (ANTUNES, 2003, p. 50). Como operacionalizar, instrumentalizar os professores para um trabalho essencialmente humano e imprevisível e, por isto, pedagógico? É uma qualificação com tendências a excluir e a alienar os trabalhadores.
Contrariamente, a qualidade do trabalho pedagógico é uma condição cultural, apropriada a um ambiente cultural e somente nele pode ser constatada, em um movimento dialético do individual para o coletivo. O trabalho pedagógico é uma “atividade ao mesmo tempo teórica e prática, reflexiva e ativa [...], pois a decisão e a ação são momentos inseparáveis” (KUENZER, 1999, p. 18). É também política e, quando se afirma que ação profissional dos professores é essencialmente política, afirma-se que “não é somente a contestação da lei existente, mas a afirmação da possibilidade e da capacidade de estabelecer uma outra” (CASTORIADIS, 2007, p.63). São, na verdade, vários processos simultâneos: contestar, afirmar o diferente, comprometer-se e agir, este é o trabalho pedagógico, como se vê, ético em sua natureza, embora imerso em condições de trabalho marcadas pelos contextos capitalistas e neoliberais, para os quais o trabalho e o trabalhador são cada vez mais explorados e espoliados de sua natureza humana.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TRABALHO PEDAGÓGICO COMO POSSIBILIDADE DE SIMBOLIZAÇÃO
O artigo objetivou até esta seção, sistematizar argumentos relativos à dessimbolização e à desinstitucionalização do trabalho pedagógico dos professores na escola. Cabe agora, antes de encerrar - e todo encerramento é sempre provisório, pois escreve-se para responder a algumas perguntas e estas geram outras, em um processo de produção dos conhecimentos que se expande -, atribuir sentidos, por enquanto, finais, aos aspectos abordados.
Se a historicidade constitui o sujeito, e o motor da história é o trabalho, é possível pensar em um valor simbólico que organiza a profissão de cada um. Trazer para a educação, seria como que se perguntar o que estaria movendo os anseios e sonhos dos professores. Atualmente, com as contínuas mudanças no campo social e cultural, o trabalho pedagógico tornou-se alvo de uma discussão pertinente. Isto porque nada mais importante do que a educação nos dias de hoje, o que ressalta a necessidade de debate e reformulação de perspectivas práticas e teóricas. Trabalho que supõe um lugar para o desejo, e no qual o sujeito o tome como fonte de representação de sua subjetividade. Aos professores, naturalmente, demandará a representação via desejo, o que buscarão através de seu trabalho, que é sempre pedagógico. O que move o sujeito professor estar atrelado a sua história de vida, a qual não somente se faz no campo objetivo, também denota a constituição subjetiva baseada na historicidade de cada um.
Nesse sentido, quando se fala no trabalho pedagógico, como possibilidade de reencontrar as condições de autoria, pertença e possibilidade de novos significados para a escola e para a produção do conhecimento na aula, longe de reforçar o discurso neoliberal que destaca a autonomia e a democratização de modo ambíguo, como forma de transferir responsabilidades relativas à educação, está-se encontrando possibilidades de retorno e de rebeldia necessários para que os professores voltem a se entender profissionais e não meramente funcionários.
No trabalho pedagógico cotidiano, os professores vão aprendendo a trabalhar como professores. Neste contexto, a produção do conhecimento é diversificada, incluindo aprender a pensar sobre a profissão, o que implica transcender ao dado, ao pronto, sem se ater à mera reprodução tão-somente. Assim, vai elaborando a aula, sua efetiva criação. A aula é um trabalho por meio da interação e, portanto, da linguagem, em relação aos outros, implicando aspectos decisivos: o tom de voz, a seleção das palavras, das linguagens, a lógica, a argumentação, o olhar, entre tantos outros aspectos. Principia e evolui em torno de saberes organizados em discurso, amalgamando historicidade e subjetividade para produzir conhecimentos. Enfim, a aula é um espaço e tempo para diálogo entre seres, entre saberes, oportunizando a superação da transmissão, buscando a criticidade, a criação, em processos individuais e coletivos, dialeticamente possibilitados.
Nessa perspectiva, o trabalho pedagógico realizado por professores se expande para além da aula, é impossível saber o alcance que tem, pois, como já se afirmou, acontece na e pela linguagem, essa potencialidade humana que prolonga e pereniza a aula, reproduzindo-a e produzindo-a para além do tempo e do espaço escolar. Uma aula, este trabalho pedagógico, é expansível, portanto, planejada como síntese de desejos e possibilidades de aprender e vivenciada como síntese de momentos individuais e coletivos que se potencializam na linguagem. É uma atividade política por excelência, regulada, e pode ser também uma atividade criativa, cujas características revelam-na como atividade social, coletiva e impregnada de intencionalidades. Em uma perspectiva ontológica, de acordo com Tassigny, a educação “[...] pode ser mediação fundamental de sujeitos conscientes, decidindo-se, entre os valores em luta, por aqueles que confirmam o desenvolvimento do gênero humano, na direção da afirmação de uma personalidade autêntica e livre” (2006, p. 37).
Então, se pode finalmente abordar o que se entende por trabalho pedagógico na escola. Trata-se do trabalho dos professores, “[…] ao selecionar, organizar, planejar, realizar, avaliar continuamente, acompanhar, produzir conhecimento e estabelecer interações […] (FERREIRA, 2018, p. 605). Como já argumentado, este trabalho está “[…] imerso em um contexto capitalista, no qual a força de trabalho dos professores é organizada pelas relações de emprego e no qual os sujeitos agem em condições sociais, políticas” (FERREIRA, 2018, p. 605). Porém, ainda assim, pautado pelas relações capitalistas, devido às suas características, o trabalho pedagógico dos professores “[...] apresenta possibilidades de o sujeito trabalhador ir além, projetar-se no seu trabalho de modo a confundir-se e movimentar-se humanamente com ele, uma vez que uma matéria-prima é a linguagem” (FERREIRA, 2018, p. 605).
Cabe frisar, que os professores realizam o trabalho pedagógico, e este não é apenas romântico, é intenso, implica produzir conhecimentos e autoconhecimentos, historicidades, suas e dos estudantes, uma produção humana e subjetiva.
O processo de trabalho - fim, reflexo, seleção e busca dos meios, escolha entre alternativas e decisão - irá demandar o surgimento/aperfeiçoamento de mecanismos sociais de apreensão da gama de conhecimentos acumuladas ao longo da história. O complexo da educação é um destes mecanismos sociais surgidos da necessidade de socialização e organização destes conhecimentos nas relações sociais. Por outro lado, a própria divisão do trabalho passa a demandar, crescentemente, a organização de mecanismos sociais de transmissão de conhecimentos. Então, em certa etapa do desenvolvimento social surge também a necessidade de controle destes mecanismos de transmissão social dos conhecimentos. Daí a organização do ensino nas escolas. Com a organização dos conhecimentos oriundos da práxis social, coube, inicialmente, à Educação (sentido amplo) a função social de garantir, em escala social, a continuidade/reprodução de certos saberes em atendimento às necessidades do próprio desenvolvimento social. (TASSIGNY, 2006, p. 35)
Em suma, no intuito de promover espaços e tempos para os professores se constituírem professores, acredita-se que, na escola, podem ser elaboradas condições para a recuperação dos sentidos da profissão, através, inicialmente, do resgate e socialização das narrativas de vida. Uma vez renovados seus sentidos como seres sociais e históricos, também na escola, os professores têm condições de iniciar processos de educação, produzindo conhecimento também na escola, porque lá estão seus colegas, sua cultura de trabalho, os estudantes e a comunidade com a qual trabalha. Com estes processos, pode, então, elaborar seu projeto pedagógico individual e, a partir dele, participar da elaboração do projeto pedagógico da escola. A elaboração do projeto pedagógico individual, base epistêmica e metodólogica da profissão, somente tem espaço e condições, uma vez recuperada a historicidade, envidados esforços de educação e instaurado o espaço da linguagem e da pesquisa cotidianas (FERREIRA, 2017). Todos esses aspectos convergem para que se entenda que o trabalho pedagógico dos professores, quando assim vivenciado na escola, é um processo que simboliza e institucionaliza, reintegrando o caracol e sua concha (MARX, 2008; ANTUNES, 2005).
Importante ainda frisar que a educação é produzida com base em sentidos e, do mesmo modo, todo trabalho pedagógico gera sentidos. Por isto, acontece na dialogicidade, de modo que os professores que não dialogam sobre seu fazer, com o intuito de melhor compreender-se, de atribuir sentido ao como se constituem profissional da educação, ao seu conhecimento, acabam por reproduzir tão somente fazeres ou porque são simples, ou porque perderam o gosto pelo seu trabalho
Para finalizar, por enquanto, retomando o ponto de partida, cabe ponderar que o centauro somente é centauro por unir diferenças. Os professores constituem-se em centauros, ao amalgamar em seu trabalho, seu desejo e sua possibilidade, transcendendo aos processos de dessimbolização e desinstitucionalização, o que é o possível em movimentos entre o individual e o coletivo, dentro da escola, esse tempo e lugar marcados pelas condições capitalistas, mas possível ser transformado pelo trabalho pedagógico.