INTRODUÇÃO
Este artigo é resultante da pesquisa de Doutorado (HICKMANN, 2019)3, realizada entre o período de 2015 a 2019, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), cujos participantes foram adolescentes, regularmente matriculados em escolas da RMC e que frequentam o Programa Jovem Aprendiz, na instituição parceira da pesquisa, em cujas instalações ocorreu a coleta de dados. A questão norteadora da investigação foi a compreensão de adolescentes aprendizes sobre: como os valores humanos cultivados no ambiente familiar são percebidos por adolescentes, nas suas relações interpessoais com os apares e na escola?
Não foram formuladas hipóteses ao problema de pesquisa, visto que se trata de pesquisa qualitativa de cunho exploratório. Entretanto, houve o pressuposto de que a qualidade das relações familiares afeta os processos relacionais que os adolescentes estabelecem nos diversos contextos nos quais transitam, no decorrer do desenvolvimento. A pesquisa foi conduzida sob o enfoque da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), com a perspectiva metodológica da Inserção Ecológica (IE).
A pesquisa do doutorado foi subsidiada inicialmente pelo aporte teórico construído durante os estudos de mestrado (HICKMANN, 2015), que buscou entender como as relações interpessoais se configuram na Teoria Histórico-Cultural (THC) de Vigotski. Dessa forma, o conjunto da investigação do mestrado e doutorado constitui o seguinte escopo de pesquisa (Figura 1):
O motor do escopo de pesquisa reside em entender como as características humanas contribuem para relações interpessoais saudáveis. Consideramos que qualquer tipo de violência constitui uma crise nessas relações. Vigotski nos permitiu avançar em relação à compreensão sobre as funções psicológicas superiores, a Psicologia da Arte, as emoções e vivências que permeiam as relações humanas e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Todavia, pela morte prematura de Vigotski, algumas lacunas permaneceram em aberto, como, por exemplo, as relações dos fatores genéticos com o ambiente.
[...] nossa primeira tarefa consiste em seguir a influência da hereditariedade no desenvolvimento infantil, por meio de todos os seus elos intermediários, de modo que quaisquer fenômenos neste desenvolvimento, quaisquer momentos da herança sejam colocados em relações geneticamente claras. A segunda é que a análise da herança deve ser efetuada na pedologia com uma amplitude muito maior do que na patologia.
(VIGOTSKI, 2012, p. 322, tradução nossa).
Apesar de levantada e discutida por Vigotski (2012), a relação dinâmica das características do indivíduo com o ambiente não foi analisada com maior profundidade pelo autor, devido à morte precoce. Por essas e outras incompletudes, somos concordes que os trabalhos de Bronfenbrenner (1979, 2005), em especial sobre as interações, as características individuais, o contexto e o tempo, constituem uma continuidade científica das propostas de Vigotski (TUDGE, 2008).
Onde Vygotsky escreveu em termos gerais sobre cultura, Bronfenbrenner construiu uma teoria que incluía uma visão muito mais variada do contexto, distinguindo quatro ‘sistemas’ diferentes, do imediato (o microssistema, no qual a pessoa em desenvolvimento gasta bastante tempo engajada em atividades e interações) ao distante (o macrossistema, o equivalente à cultura).
(TUDGE, 2008, p. 66-67, tradução nossa).
Com base nesses aspectos, neste artigo, apresentaremos apenas nos dados gerais da pesquisa de doutorado (HICKMANN, 2019). Por isso, a seguir, apresentamos brevemente as linhas teóricas que respaldaram tal estudo.
1.1 A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH)
No contexto do presente estudo, o Desenvolvimento Humano é entendido como: “[...] fenômeno de continuidade e mudança nas características biopsicológicas dos seres humanos, tanto no indivíduo como no grupo. (BRONFENBRENNER, 2011, p. 44 – grifos do original). Nossa escolha em relação à TBDH se fundamenta no entendimento de que: “O autor da TBDH ofereceu um modelo diferenciado que identificou as influências da família, da escola, do trabalho, da cultura e a disponibilidade de reforços para a criança, proporcionando um modelo empírico abrangente para prever as diferenças individuais no desenvolvimento.” (HICKMANN, 2019, p. 32). Além disso, ao logo de sua carreira como cientista, Bronfenbrenner demonstrou, de forma prática, consistente e autêntica, que as relações interpessoais são fortemente iniciadas e influenciadas pelo contexto familiar. Os valores humanos constituem esse alicerce que se constrói de maneira colaborativa entre os membros da família, inicialmente, e que se expandem nas relações que os seres humanos vão estabelecendo ao longo de suas trajetórias.
Os estudos empírico-científicos de Bronfenbrenner, seu rigor metodológico e suas articulações persuasivas são destacados e caracterizados pelo “[...] compromisso de compreender a dinâmica das relações entre indivíduo e os diversos e integrados níveis ecológicos do desenvolvimento humano” (LERNER, 2011, p. 19). Esse é um dos muitos exemplos de reconhecimento da comunidade científica pela dedicação de quase seis décadas de pesquisa empreendidos por Bronfenbrenner.
Condizente com a Teoria Geral dos Sistemas (BERTALANFFY, 2015), a TBDH é o resultado da última fase da pesquisa desse autor. Segundo declarou (BRONFENBRENNER, 1999), desde 1958, ele empreendeu um esforço conjunto para desenvolver um modelo teórico que desse conta de investigar as relações entre o ambiente e os indivíduos no decorrer do ciclo vital. Nesse percurso, publicou a Ecologia do Desenvolvimento Humano (BRONFENBRENNER, 1979/2002), na qual propôs a metáfora das bonecas russas: “O ambiente ecológico é concebido como um conjunto de estruturas aninhadas, uma dentro da outra como um conjunto de bonecas russas.
No nível mais interno está a configuração imediata que contém a pessoa em desenvolvimento.” (BRONFENBRENNER, 1979, p. 3). Os quatro níveis do contexto ecológico, articulados entre si e mais diretamente ligados à pessoa em desenvolvimento, são descritos conforme a seguir.
Um microssistema é um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais experienciadas pela pessoa em desenvolvimento nos contextos nos quais estabelece relações face a face com suas características físicas e materiais, e contendo outras pessoas com distintas características de temperamento, personalidade e sistemas de crenças.
(BRONFENBRENNER, 2011, p. 176 – grifo nosso).
No decorrer das pesquisas, no nível do microssistema, o autor deu importância para determinados aspectos do temperamento e da personalidade das pessoas que podem traduzir efeitos interativos poderosos, os quais denominou de “características desenvolvimentalmente instigadoras”. Para a pesquisa de doutorado, esse elemento representou um elemento estratégico na análise das relações interpessoais dos adolescentes, tanto no contexto escolar, quanto em outros ambientes.
O mesossistema é formado pelas ligações e processos que ocorrem entre os diversos ambientes ou microssistemas, como: casa e escola, escola e local de trabalho. Ele constitui um sistema relacional entre microssistemas.
O exossistema traduz as interações e processos que acontecem entre diferentes contextos. Apesar de, em pelo menos um deles, o adolescente não estar contido, os eventos que neles ocorrem influenciam o ambiente imediato. Por exemplo, na relação casa e ambiente de trabalho dos pais, o que acontece no ambiente de trabalho não é vivenciado pelo adolescente, mas pode exercer influência bioecológica no adolescente.
O macrossistema representa a confluência global das características do micro, meso e exossistema, considerando o contexto social mais amplo, como a cultura, os padrões de vida, os valores, o sistema de crenças, os intercâmbios sociais. Para se caracterizar como um macrossistema, é preciso que existam características específicas, tais como: sistemas de crenças semelhantes, recursos sociais e econômicos de oportunidades, estilos de vida, valores e expectativas.
A partir de 1980, Bronfenbrenner empreendeu novos esforços para aprimorar a própria teoria. Como resultado, publicou uma série de artigos, empenhou-se em pesquisas e análises com foco nos processos de desenvolvimento. Como resultado, na terceira fase de sua pesquisa (1993-2005), apresentou dois constructos fundamentais para a nascente TBDH: os processos proximais e o modelo Processo, Pessoa, Contexto e Tempo (PPCT). Os processos proximais forma descritos interações recíprocas que ocorrem entre a pessoa e o ambiente bioecológico:
Ao longo do curso de vida, o desenvolvimento humano ocorre por meio de processos de interações recíprocas, progressivamente mais complexas, entre um organismo humano ativo, em evolução biopsicológica, e pessoas, objetos e símbolos no seu ambiente externo imediato. Para ser efetiva, a interação deve ocorrer numa base consideravelmente regular, em longos períodos de tempo.42
(BRONFENBRENNER, 2005, p. 6, tradução nossa, grifo do original).
O segundo constructo, o modelo PPCT, traduz a sinergia de quatro núcleos inter-relacionados. Ele é descrito do seguinte modo: o Processo – ocupa posição central no modelo. Enfoca as diferentes interações recíprocas que ocorrem entre a pessoa e o ambiente; a Pessoa – envolve as características biopsicológicas da pessoa e as que se constroem em interação com o ambiente; o Contexto – traduz a interação dos quatro níveis de ambientes ecológicos, articulados concentricamente; o Tempo – revela os aspectos inerentes às mudanças que ocorrem com a pessoa, o ambiente e a dinâmica entre esses dois elementos. (NARVAZ; KOLLER, 2011). A figura 3, a seguir, exemplifica essas interações.
Esse entrelaçamento teórico é uma tentativa de apresentar sinteticamente, a base teórica principal sobre as qual a pesquisa de doutorado se desenvolveu. Nosso esforço investigativo foi deixar um legado escrito sobre os principais elementos da TBDH e as referências correspondentes para futuras pesquisas. Por isso, incentivamos os leitores a conhecer o trabalho completo da pesquisa (HICKMANN, 2019) para aprofundar conhecimentos sobre esse e outros assuntos abordados.
1.2 A Inserção Ecológica (IE)
Apesar de a TBDH ter sido extensivamente referenciada e utilizada em pesquisas (TUDGE, 2016), Bronfenbrenner não formulou um método de pesquisa sistematizado que pudesse guiar os passos do pesquisador na atividade de coleta de dados. Nesse sentido, a Inserção Ecológica (IE), constitui um método de coleta e análise de dados de pesquisas-no- contexto, proposto por Cecconello e Koller (2003) e proporciona ao pesquisador um estudo sistematizado e estruturado que é baseada nas quatro dimensões que formam a TBDH, proposta por Bronfenbrenner.
O modelo PPCT é sistematizado na Inserção Ecológica, que ressalta o processo proximal visto que ele é o eixo da pesquisa e também o que permite que ela aconteça. No Processo, são considerados não apenas o desenvolvimento dos pesquisados, mas também o do pesquisador, que participa das trocas de experiências no contexto de pesquisa. Ademais, Tudge (2016) ressaltou a importância da IE quanto às possibilidades relacionais entre os pesquisadores de campo e os participantes da pesquisa.
Para que se estabeleçam os processos proximais, é preciso que ocorram simultaneamente cinco aspectos: a) interação e engajamento de tarefa comum entre a equipe de pesquisa e os participantes; b) regularidade de encontros da equipe de pesquisa com os participantes, por um período considerável de tempo; c) informalidade nas interações, cujos temas se tornem progressivamente mais complexos; d) os diálogos, isto é, os processos proximais são base para todo o processo de pesquisa; e) as entrevistas devem abordar conteúdos interessantes e estimulantes para ambas as partes, a equipe de pesquisa e os participantes. Além disso, reforça-se a importância de ambos, posto que ajudam na construção de um campo comum de desenvolvimento, onde relações recíprocas da Pessoa são estabelecidas. (CECCONELLO; KOLLER, 2003; PRATI et al, 2008).
No que se refere ao Contexto, mesmo considerando os quatro níveis de interação, a Inserção Ecológica dá maior ênfase aos microssistemas, nível em que ocorrem os processos proximais. Ademais, as alterações no desenvolvimento do pesquisador e do pesquisado precisam ser analisadas ao longo do Tempo. Esse elemento é considerado na constituição e análise dos processos proximais. (CECCONELLO; KOLLER, 2003; PRATI et al, 2008).
Para realização da pesquisa-em-contexto, utilizando o método de Inserção Ecológica, faz-se necessária a observação de algumas condições mínimas: a) a TBDH deve ser a base de todas as etapas da pesquisa; b) equipes de pesquisa se tornam primordiais, não só pela variedade nas interpretações e análise de dados, mas também devido à necessidade de observações que auxiliam no acesso à informações não verbais; c) é preciso haver um período de vinculação, que é o contato para a realização da pesquisa. Momento que antecede a coleta de dados, onde serão fornecidas todas as informações relativas à pesquisa e como está será realizada e d) coleta de dados realizada em ambiente natural, revelador de atividades do dia a dia, o que torna possível captar o ambiente e como os envolvidos na pesquisa o percebem (CECCONELLO; KOLLER, 2003; PRATI et al, 2008).
Tendo em vista esses critérios e com base nos estudos anteriores da Inserção Ecológica (IE), foi lançada uma obra (KOLLER; PALUDO; MORAIS, 2016) que sistematizou o percurso metodológico da IE e apresentou estudos recentes que adotaram a IE como método de estudo, de forma aplicada, relacionados à TBDH, consistentes com os propósitos e critérios expostos por Bronfenbrenner. Nesse sentido, a presente pesquisa tem se inspirado em tais empreendimentos científicos e subsequentes experiências (COSCIONI et al., 2018), ao aplicar esses conceitos ao contexto para a compreensão dos processos proximais e das interações, na visão do modelo PPCT, conforme a TBDH.
2 MÉTODO
A pesquisa qualitativa, de cunho exploratório, adotou como método, para a coleta de dados, a IE, de acordo com as características já descritas. Condizente com os procedimentos metodológicos da IE que sugere a maior diversidade possível na amostragem, foi escolhida, de forma intencional a Instituição Participante da pesquisa, uma vez que, estrategicamente, ela nos ofereceu a oportunidade de termos uma amostragem de adolescentes estudantes da Região Metropolitana de Curitiba (RMC). A pesquisa pôde trabalhar com uma turma de 30 estudantes, dos quais oito aceitaram voluntariamente participar da pesquisa, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pelos pais, e do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), pelos adolescentes.
Dividimos as entrevistas em três partes: abertura, intermediárias e conclusivas. Utilizamos perguntas preferencialmente abertas, fortemente evocativas e que requereram respostas baseadas nas experiências dos participantes. (TAROZZI, 2011). O roteiro básico foi o seguinte:
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Abertura
Poderia contar-nos o que você entende por valores humanos?
Quem são as pessoas que vivem com você em sua casa e que você considera como família?
Em que se baseiam as relações interpessoais na sua família?
Pode dar um exemplo, explicar melhor isso?
Quem são as pessoas com as quais você convive na escola?
Dessas pessoas, com quem você tem relações de amizade?
Além desses, que outros tipos de relações você estabelece na escola?
Em que se baseiam as relações interpessoais na escola?
Pode dar um exemplo, explicar melhor isso?
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Intermediárias
Quais são os seus pensamentos e sensações a partir das relações estabelecidas na escola?
Nesse tempo de convívio, descreva algum fato marcante que ocorreu na escola, a partir das suas relações interpessoais.
Que elementos provocaram ou foram responsáveis por esses fatos?
Como você se sentiu durante esse evento?
Quais foram as consequências disso?
Você já presenciou algum tipo de violência na escola?
Quais foram os elementos que contribuíram para essas situações?
Como as relações interpessoais podem diminuir ou aumentar as violências na escola?
Do ponto de vista de suas relações interpessoais, que tipo de pessoa você se percebe?
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Conclusivas
Existem coisas sobre as quais falamos que você não havia tido oportunidade de compartilhar e refletir sobre, antes desta entrevista?
Hoje, analisando esse fato, o que você faria diferente? Por quê?
Você tem algo a mais que gostaria de acrescentar?
Tem alguma pergunta a nos fazer?
Como você se sentiu durante a entrevista?
Que fatores contribuíram para que você aceitasse e participasse da pesquisa?
Antes do início da realização da pesquisa de campo, tomamos o cuidado de submeter o projeto de pesquisa, via Plataforma Brasil, ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa recebeu a aprovação do CEP, por meio do Parecer Consubstanciado, sob o número: 2.189.356, dia 27/07/2017.
Os instrumentos de coleta de dados foram: a) entrevistas semiestruturadas; b) observação etnográfica; c) análise documental de dados fornecidos pela intuição participante. As entrevistas ocorreram no ambiente da instituição, em local disponibilizado para tal fim, e foram gravadas, posteriormente transcritas, analisadas mediante a técnica da Análise de Conteúdo (AC), proposta por Bardin (2016). Para auxiliar na análise, foi utilizado o software estatístico Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), proposto por Ratinaud (2009, 2012), traduzido para a Língua Portuguesa e divulgado no Brasil pelo Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição (LACCOS), UFSC (CAMARGO; JUSTO, 2013, 2018).
Além dessas análises, foi utilizado o software NVIVO (ESTEVÃO, 2019) para análises estatísticas complementares. Utilizamos ainda as informações das observações etnográficas e a análise documental para realizar a validade ecológica dos dados. Essa validade, nos termos de Bronfenbrenner (1979/2002) significa a confirmação ecológica de fatos que ocorrem em diferentes ambientes. Em termos práticos e em conformidade com a TBDH, são elementos e ações, expressos por processos proximais, observados em determinado ambiente bioecológico (microssistema), que se repetem ou se confirmam nas relações interpessoais e no discurso que ocorrem em outro microssistema.
3 RESULTADOS
Pelo espaço destinado ao texto do artigo, optamos por apresentar alguns resultados mais significativos da pesquisa, em forma de grafos (terminologia estatística) que representam as análises centrais da pesquisa. Novamente, para os pesquisadores interessados em conhecer mais detalhes procedimentais de análise e outras informações minuciosas, incentivamos a leitura da pesquisa já referenciada.
O primeiro resultado mostra a análise de especificidades, em conjunto com a análise fatorial de correspondência (AFC). A primeira ajuda a associar textos com suas correspondentes modalidades de caracterização. Consequentemente, possibilita o contraste entre essas modalidades e oferece uma análise fatorial de correspondência (LEBART; SALEM, 1988; CIBOIS, 1983, 1990).
O corpus das respostas às perguntas das entrevistas gerou, entre outras, a análise descrita na Figura 4. Esses dados revelaram, pelo discurso dos adolescentes, coletado e analisado por meio das entrevistas, a validade ecológica dos valores familiares nas relações interpessoais em outros microssistemas. A família apareceu como elemento central das relações interpessoais dos adolescentes entrevistados.
No quadrante superior direito, em vermelho, ocorre a presença dos componentes da família, circundados pelos elementos: relações, moradia, tempo, trabalho, medo, visão, papel, entre outros. Como se percebe, o elemento “mãe” está em maior destaque em relação a todos os demais. Observamos ainda que “No plano cartesiano, as aproximações/distâncias entre as classes podem ser identificadas com precisão de acordo com o posicionamento nos quadrantes.” (RAMOS; LIMA; ROSA, 2019, p. 66). Com base nessa informação, observamos que há homogeneidade entre os elementos em cinza, que representam as relações escolares dos adolescentes, e o grupo de elementos em vermelho.
Além de a aproximação mostrar que a família se mantém como referência, tendo como centro a mãe, importa lembrar que o posicionamento superior direito tem significância algorítmica. Conforme nos ensinam Cobo et al.:
Os temas no quadrante superior direito são bem desenvolvidos e importantes para a estruturação de um campo de pesquisa. Eles são conhecidos como os temas motores da especialidade, uma vez que apresentam forte centralidade e alta densidade. A colocação de temas neste quadrante implica que eles estão relacionados externamente a conceitos aplicáveis a outros temas que estão conceitualmente relacionados.
(COBO et al., 2011, p. 151).
Justamente, um dos temas motores de Bronfenbrenner foi a família. Ele entendia que o cerne dos problemas e das soluções da sociedade reside nesse importantíssimo microssistema. Para Bronfenbrenner, a família constitui “[...] o coração do sistema social.” (BRONFENBRENNER, 2011, p. 277). O que não sabíamos, até analisarmos os resultados, era que a mãe teria um destaque em relação aos demais elementos, como observamos em outro grafo.
O elemento emergente nessas análises foi justamente o papel exercido pela mãe em todas as relações dos adolescentes e da família. Ela é central nessas relações: não somente estabelece vínculos entre os membros da família, como também é o ponto de convergência entre nas relações mesossistêmicas (entre os microssistemas).
Como podemos observar na Figura 5, a seguir, o papel da mãe sobressai em relação ao do pai. Segundo os achados, nos casos de composição em que os pais moram juntos, como o caso do entrevistado 1, o adolescente entende o pai como provedor, como referência de autoridade e de determinados valores provenientes da família.
Entretanto, questionado sobre quem é a referência “na hora do aperto”, indicou que é a mãe. “Porque o meu pai sempre valorizou os irmãos, os mais novos, a mãe e pai dele. Tudo isso, eu acho que eu me baseei no meu pai. É a mãe. Eu acho que a minha mãe entenderia o que eu estou passando.”(ENTREVISTADO 1, destaque nosso).
Após o período de análise dos dados (2018-2019), no início de 2019, tivemos a oportunidade de fazer algumas análises comparativas dos mesmos dados coletados nas entrevistas por meio de outro software: o NVIVO. Nossa intenção foi verificar como os dados coletados se comportam em outro software. Dessa maneira, os resultados das análises, conforme mostra a Figura 6, a seguir, acrescentaram maior riqueza de detalhes ao que já verificamos pelo IRAMUTEQ.
A análise mostra o porquê da centralidade da mãe nas relações familiares, conforme vimos nas análises anteriores. Os resultados foram comprobatórios de tudo o que foi exposto até aqui e complementares, no sentido de apresentarem disposições gráficas diferentes das que vimos no IRAMUTEQ.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa de doutorado, parcialmente apresentada neste artigo, teve como tema os valores humanos e as relações interpessoais de adolescentes escolares. O problema de pesquisa que permeou todo o trabalho foi: como os valores humanos cultivados no ambiente familiar são percebidos por adolescentes, nas suas relações interpessoais com os apares e na escola?
Para dar conta disso, apresentamos uma parcela da revisão de literatura feita na pesquisa que contemplou os aspectos principais do estudo. Brevemente apresentamos a linha geral das pesquisas de Bronfenbrenner. As relações interpessoais, focadas no desenvolvimento humano e em como melhorar as condições de vida das pessoas, tendo como centro a família, estão presentes em toda a extensa, densa e consistente obra de desse autor. Além disso, apresentamos uma proposta metodológica, de origem brasileira, que apresenta consistência em relação à continuidade e compromisso teórico com Bronfenbrenner e a TBDH. Esse esforço tem sido o desenvolvimento pela metodologia da Inserção Ecológica (IE).
Sobre a questão central da pesquisa, no momento das entrevistas, os adolescentes tiveram dificuldades em responder o que são valores humanos. Isso poderia representar uma debilidade na formação de valores. Todavia, verificamos que os adolescentes, para além do aspecto formal do que eles entendem por valores, evidenciaram a presença dos valores humanos nos diversos aspectos de suas relações, em diferentes falas.
Como vimos, a mãe exerce um papel essencial e central nas relações familiares, influenciando fortemente na formação inicial dos seres humanos. Por conta da dinâmica familiar atual, essa centralidade permanece clara ao longo do ciclo vital, em especial quando os indivíduos estão em situações desafiadoras, pois ela figura como a pessoa de referência para os adolescentes da pesquisa.
Consequentemente, sobre os achados em relação à centralidade mãe na no desenvolvimento de crianças e adolescentes, o governo brasileiro precisa rever as políticas públicas sobre o cuidado – mais do que com a mulher, com a mãe, com o preparo da mulher que pretende ser mãe – por meio de uma mudança de cultura que valorize o ser mãe, e o ser humano mãe, pelo fato de ela ser mãe. É preciso valorizar as relações do ponto de vista bioecológico, fomentando pesquisas sobre os processos proximais no desenvolvimento humano, em especial na infância e na adolescência. Isso pode começar por meio de um sistema integrado de cuidado básico com as famílias, a partir das famílias mais carentes, como mostrou o projeto Head Start nos EUA.
O adolescente de hoje ou de amanhã é, e será sempre, o resultado de uma criança que foi amada, afetada, cuidada, acolhida e amparada primeiramente pelos pais, mas mais fortemente pela mãe. Por isso, é preciso lembrar que todas as mães carregam em si as marcas de uma história, de vivências de amores e de dores que a constituíram e que refletem o modo como ela é hoje. Diante da realidade brasileira, entendemos que, em geral, as mães, especialmente as mais carentes financeiramente e menos favorecidas socialmente, enfrentam problemas relativos aos seus relacionamentos matrimoniais, ao modo como devem cuidar dos filhos, à falta de conhecimentos e de apoio socioeconômico-político.
A pesquisa evidenciou também a validade de pesquisas que utilizam o referencial teórico da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), de Bronfenbrenner (2011), apoiada pelo método de coleta de dados de pesquisas-no-contexto, conforme a Inserção Ecológica (IE), proposta Cecconello e Koller (2003) e recentemente discutida por Koller, Paludo e Morais (2016). A eficácia da pesquisa também foi potencializada ao utilizarmos, para a análise dos dados, a Análise de Conteúdo (AC), de Bardin (2016) e os
Softwares IRAMUTEQ e NVIVO. Condizente com a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), a harmonização desse conjunto de teorias, métodos e técnicas constitui um processo de interação válido para pesquisas em educação. Acreditamos que esse conjunto de informações pode suprir futuros pesquisadoras no campo das relações interpessoais e da Educação.