1 INTRODUÇÃO
Este texto foi organizado a partir de reflexões suscitadas pela pesquisa que resultou na dissertação de Mestrado intitulada Discursos docentes atribuídos à educação de jovens e adultos a partir de tensionamentos provocados pela juvenilização da modalidade: analisando o contexto de uma escola municipal de Duque de Caxias (RJ) (OLIVEIRA, 2018), que se dedicou a investigar sentidos que os docentes de uma escola pública de Educação de Jovens e Adultos (EJA), na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, atribuíam ao que se tem significado como “juvenilização” da EJA.
Com aportes da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, entendemos que tais sentidos são marcados por uma série de discursos que têm disputado hegemonia na modalidade e atravessam as formas de significá-la. Unem-se a isso as idealizações em torno da ação educativa que nos empurram ao fetiche do controle, que pressupõe a possibilidade de construção do sujeito ideal, emancipado.
Com a homologação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a educação passou a ser assegurada como direito público subjetivo, inclusive para aqueles que não tiveram acesso na idade certa1. Isso significa que as oportunidades de escolaridade obrigatórias deveriam ser disponibilizadas também para pessoas jovens e adultas não como ato de benevolência, mas como direito. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), em seus Capítulos 37 e 38, trata da EJA como uma modalidade da Educação Básica, reafirmando ao seu público o direito de oferta tanto quanto ao de outras etapas da Educação Básica.
Esse direito não surge ao acaso; ele é resultado de disputas políticas que assumem a existência de pessoas que não tiveram o acesso ou a permanência dos seus percursos escolares assegurados naquilo que se normatiza como idade certa. São discussões que extrapolam a educação nacional e que têm como território de disputas também o cenário internacional.
A Declaração de Hamburgo, documento resultado da V Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea)2, que ocorreu na cidade da Alemanha, em 1997, reafirma internacionalmente que a educação é um direito de todos e reconhece o potencial de transformação que ela possibilita em seus processos formais e não formais, destacando as duas dimensões da EJA para essa oferta (UNESCO, 1998).
Uma das dimensões relaciona-se a processos de aprendizagem formais, voltados à oferta de escolarização para as pessoas que tiveram negado o direito à educação formal na idade estabelecida pela legislação. Outra dimensão é relacionada aos processos de aprendizagem não formais, aqueles que dizem respeito às atividades laborais.
No Brasil, a dimensão formal é privilegiada nas políticas públicas de EJA, tendo em vista o grande quantitativo de pessoas, jovens e adultas, que não tiveram a oportunidade de concluir o seu processo de escolarização formal. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (PNAD Contínua), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre as pessoas de 25 anos ou mais de idade, apenas 48,8% concluíram o Ensino Básico obrigatório. O mesmo documento aponta que a média é de 9,4 anos de estudos para esse mesmo recorte etário (IBGE, 2020).
São dados que revelam a necessidade da oferta de escolaridade para as pessoas jovens e adultas. No entanto, como argumentam Fávero e Freitas (2011), a EJA é uma modalidade da Educação Básica historicamente secundarizada nas políticas públicas educacionais. Podemos observar, assim, a dificuldade de a dimensão reparadora da EJA3 ser assumida como direito legítimo daqueles que, por diferentes razões, não tiveram acesso à escolarização na idade certa.
Fávero e Freitas (2011) nos provocam a refletir sobre o contexto no qual a modalidade se institui a partir da necessidade de minimizar os efeitos provocados pelos mecanismos de exclusão da escola brasileira, que afetou e ainda afeta não apenas os adultos, mas também os mais jovens.
O problema fundamental diz respeito à transferência obrigatória, na verdade à “expulsão” dos alunos do ensino fundamental com mais de 14 anos para as classes de EJA, o que vem ocorrendo desde a promulgação da Lei nº 5.692/71. Nos municípios nos quais tem sido adotado sistematicamente, este procedimento normativo tem ocasionado problemas na organização da EJA. Concebida inicialmente como educação de adultos - designação que perdura até hoje nos eventos internacionais - está sendo obrigada a atender um contingente de jovens para os quais as propostas pedagógicas adotadas mostram-se inadequadas (FÁVERO; FREITAS, 2011, p. 384).
O autor pontua que a presença dos mais jovens em processos de escolarização de adultos não é recente. Ele relembra que a Lei Nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), já trazia essa recomendação. Esses dados sinalizam que o público jovem já se configurava como demanda de espaços educativos compartilhados com adultos. Isso nos fez refletir sobre o que vem sendo significado atualmente como processo de juvenilização da EJA. Buscamos, assim, problematizar a figura dos mais jovens que é assumida por docentes no trabalho na EJA: São portadores desse direito? São um problema? Comprometem o que se assume como identidade para a modalidade?
Diversos autores (ANDRADE, 2004; ARROYO, 2006; BRUNEL, 2004; CARRANO, 2007; HADDAD; DI PIERRO, 2000, dentre outros) têm se dedicado à pesquisa sobre a juvenilização da EJA, que se refere à transferência ou à matrícula de estudantes ainda muito jovens para a modalidade. Haddad e Di Pierro (2000) afirmam que a juvenilização foi um processo que começou a se evidenciar a partir da década de 1980, produzindo tensionamentos no campo da educação de adultos relacionados aos objetivos da oferta e das identidades dos estudantes. Notadamente, segundo os autores, trata-se do
[...] perfil crescentemente juvenil dos alunos em seus programas, grande parte dos quais são adolescentes excluídos da escola regular. Há uma ou duas décadas, a maioria dos educandos de programas de alfabetização e de escolarização de jovens e adultos eram pessoas maduras ou idosas, de origem rural, que nunca tinham tido oportunidades escolares. A partir dos anos 80, os programas de escolarização de adultos passaram a acolher um novo grupo social constituído por jovens de origem urbana, cuja trajetória escolar anterior foi malsucedida (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 15).
Os autores levam-nos a indagar sobre a forma que a EJA tem sido organizada para atender a esses desafios. Se assumirmos uma das funções da modalidade, a função reparadora, que se relaciona com o direito das pessoas excluídas da escola, seja por quais motivos forem, há legitimidade na presença dos mais jovens. Ao mesmo tempo, se considerarmos que a EJA tem servido como legitimadora de processos excludentes da escola, ao naturalizar-se como estratégia de correção de fluxo dos mais jovens, nos parece que há problemas.
Em ambas as reflexões, somos atravessadas pelas críticas que temos feito ao controle pedagógico como estratégia de assegurar a qualidade da educação. A forma controladora do currículo como a escola tem se organizado repele qualquer ponto de fuga ao que se normalizou. Assim, jovens da EJA estão nesse não lugar, seja na modalidade - quando não se inserem naquilo que se espera como identidade para seu público -, seja na escola regular, porque os anos de retenção revelam sua “não adequação” àquele espaço.
2 ASSUMINDO UMA IDENTIDADE PARA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: NOSSA BUSCA PELO PADRÃO
Consideramos importantes as informações apresentadas sobre os dados relacionados à escolarização da população jovem e adulta brasileira e as ponderações de Fávero e Freitas (2011) e Haddad e Di Pierro (2000), que problematizam a entrada de jovens na EJA como consequência de processos de exclusão da escola brasileira. Os mais jovens que atualmente acessam a modalidade tiveram oportunidade de matrícula na escola, mas sua permanência foi inviabilizada.
Retomamos os dados da PNAD Contínua de 2019 (IBGE, 2020) sobre abandono escolar ou de nunca o indivíduo ter frequentado a escola (pessoas de 14 a 29 anos de idade com nível de instrução inferior ao Ensino Médio completo). Há um índice de 39,1% de pessoas nessas condições que justificam o abandono da escola pela necessidade de trabalhar, seguido de 29,1%, que apontam a falta de interesse em estudar. Segue-se com 9,9% com gravidez como justificativa, 5,2% por necessidade de afazeres domésticos ou pelo cuidado com outras pessoas, 3,7% por problemas de saúde e 3,2% não tinham escola perto ou vaga no turno desejado (IBGE, 2020).
Os dados apontam que o número de estudantes que deixaram a escola por inexistência de oferta é baixo. Entretanto, a necessidade de trabalhar destaca-se como primeira justificativa para o abandono; isso aponta que as desigualdades sociais têm forte impacto na continuidade dos percursos escolares. A segunda maior justificativa, ainda com altos percentuais, refere-se ao não interesse pela escola. Nesse aspecto, há de questionarmos: Em que medida a escola passa a ser desprestigiada pela população mais jovem e que currículos têm sido praticados que os empurram para fora?
O Parecer CNE/CEB Nº 11, de 10 de maio de 2000, documento que orientou a institucionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2000), sinalizou preocupação com a juvenilização da EJA, relacionando esse processo às condições adversas enfrentadas pela escola pública brasileira.
As presentes condições sociais adversas e as sequelas de um passado ainda mais perverso se associam a inadequados fatores administrativos de planejamento e dimensões qualitativas internas à escolarização e, nesta medida, condicionam o sucesso de muitos alunos [...]. Expressão desta realidade são a repetência, a reprovação e a evasão, mantendo-se e aprofundando-se a distorção idade/ano e retardando um acerto definitivo no fluxo escolar (BRASIL, 2000, p. 4).
Com a Resolução No 3, de 15 de junho de 2010, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a EJA (BRASIL, 2010), veio a deliberação sobre a idade mínima do público atendido pela EJA, seja na matrícula para cursar a modalidade, seja para inscrição nos exames para obtenção de certificações (Ensino Fundamental aos 15 anos e Ensino Médio aos 18 anos).
A medida trouxe muitos questionamentos sobre a naturalização da juvenilização da EJA, o que se entendeu ser um estímulo para a transferência de estudantes muito jovens, em distorção série/idade, para a modalidade. Essa Resolução, entretanto, é fruto de um debate tão tenso quanto a temática. No jogo das disputas discursivas, a matrícula na modalidade de pessoas ainda na adolescência mostrou-se mais coerente; dessa forma, entendemos que a Resolução Nº 3/2010 (BRASIL, 2010) pode ser entendida como uma forma de assegurar o direito à educação. Isso porque, antes da Emenda Constitucional Nº 59, de 11 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009), a obrigatoriedade da Educação Básica abrangia a população de 6 até 14 anos de idade, deixando jovens de 15 a 17 anos, embora menores de idade, em vulnerabilidade.
Andrade (2004) chama atenção para o fato de que a incorporação, no Brasil, das juventudes nas pesquisas sobre EJA ganharam destaque a partir da década de 1990, justificadas “[...] pela presença cada vez maior de jovens nas classes de EJA, particularmente nos grandes centros urbanos” (ANDRADE, 2004, p. 15). Segundo Carrano (2007), é importante pensar que nem sempre a preocupação com a presença dos mais jovens está relacionada aos sujeitos jovens em si na modalidade EJA, até porque a presença deles na antes chamada “educação de adultos” era recomendada. Entretanto,
[...] para além da dimensão quantitativa expressa pela presença cada vez mais significativa desses jovens, parece haver certo ar de perplexidade - e, em alguns casos, de incômodo revelado - frente a sujeitos que emitem sinais pouco compreensíveis e parecem habitar mundos culturais reconhecidos por alguns professores como social e culturalmente pouco produtivos para o desafio da escolarização (CARRANO, 2007, p. 1).
O autor alerta para a complexidade por trás da temática da juvenilização da EJA e destaca as dificuldades que a escola encontra para dialogar com estudantes das camadas populares, sobretudo das áreas urbanas. Sua estética, seus desejos, sua leitura de mundo fogem das expectativas do que é ser estudante. Nesse sentido, cria-se uma normatização também para o estudante adulto da EJA, um formato daquilo que ele deveria ser (CARRANO, 2007).
Assumimos, com Laclau e Mouffe (2015), uma perspectiva pós-estrutural, compreendendo que essas dificuldades se relacionam com as expectativas de escola e de estudante ideal, forjadas com base em referenciais realistas e essencialistas modernos, que sustentam a existência de um horizonte possível de ser alcançado se os processos forem controlados. Entendemos por horizonte aquilo que estabelece, simultaneamente, “[...] os limites e o terreno de constituição de todo objeto possível e, como resultado, impossibilita qualquer coisa além de si” (LACLAU, 2011, p. 152-153).
No entanto, a significação desses jovens que chegam à EJA como um outro indesejável no contexto da modalidade é favorecida na medida em que a intensificação desse fluxo, ou a percepção de sua intensificação, tem sido favorecida pela estratégia de correção de fluxo de que diferentes redes de ensino têm lançado mão, visando garantir melhores índices de desempenho nas avaliações em larga escala. Esse contexto evidencia a fragilidade de políticas universalizantes que são anunciadas e celebradas como instrumentos garantidores de qualidade da educação, quando, de fato, contribuem para perpetuar exclusões engendradas nos e pelos processos de escolarização como muitos autores denunciam (BARRIGA, 2003, 2014; RAVITCH, 2011, dentre outros).
As políticas curriculares universalizantes tornam-se imprescindíveis dentro da lógica de uma perspectiva de controle daquilo que deve ser ensinado e aprendido na escola, encarnando modelos ideais de estudante, professor e currículos. A escola organiza-se como instituição para seguir modelos performáticos.
Parecem-nos legítimas as discussões que problematizam a juvenilização como crítica ao modelo de escola excludente, mas nos preocupamos com discursos que assumem a problemática da juvenilização pela construção de ideais do que seria o público e a identidade da EJA, possivelmente abalados pela presença dos mais jovens. Argumentamos que currículos universalizantes favorecem processos de exclusão daqueles que escapam aos padrões estabelecidos a priori. São esses os “outros” excluídos que alimentam o chamado processo de juvenilização.
As formas pelas quais nos acostumamos a pensar os processos de escolarização tendem a ser condicionadas por uma lógica realista que tem como pressuposto a ideia de um fundamento de realidade capaz de atestar a verdade sobre o mundo e, a partir dessa verdade, arbitrar sobre o melhor ou o mais adequado para todas as pessoas. A educação teria, então, a tarefa de possibilitar aos sujeitos o conhecimento dessa verdade, que lhes possibilitaria a construção de um mundo melhor. Essa verdade pode até ser concebida como histórico social, mas não deixa de se constituir como alguma coisa capaz de ser acessada pela linguagem de forma transparente. Trata-se de uma perspectiva idealista, na medida em que, como alertam Laclau e Mouffe (2015), ela só pode ser afirmada quando se atribui ao real uma dada racionalidade.
Essa lógica possibilita a afirmação de um tipo de conhecimento como epistemologicamente superior, uma articulação discursiva que legitima o conhecimento e a escola como instituição social responsável pela sua transmissão. Trata-se de um tipo de conhecimento
[...] dotado de uma racionalidade, que precisa ser apropriado pelos sujeitos para que eles possam se engajar na tarefa emancipatória de transformação do mundo. Um sujeito pensado como fonte da transformação social. Uma identidade dotada de uma racionalidade que lhe possibilitaria “ver” além das aparências. E que, por ser capaz de “ver além”, seria capaz de operar as transformações necessárias para reorientar o funcionamento do mundo em uma nova direção previamente estabelecida (PEREIRA, 2017, p. 601).
Por sua vez, perspectivas discursivas como a Teoria do Discurso assumem que “[...] o ‘ser’ dos objetos é diferente da sua mera existência e que objetos nunca são dados como meras ‘existências’, mas são sempre articulados dentro de totalidades discursivas”, e “[...] que nenhuma totalidade discursiva é absolutamente autocontida” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 48).
São contribuições das quais nos apropriamos para pensar sobre os limites das promessas de emancipação e de plenitude da escola moderna. O discurso educacional moderno, em suas diferentes matrizes teóricas e filosóficas, opera na lógica daquilo que se denomina “metafísica da presença”. Esta sustenta concepções que atribuem ao ser de coisas o caráter de uma essência fixa e, sendo fixa, pode ser moldada em dada direção. São escolhas e/ou apostas que não acontecem sem consequências (PEREIRA, 2017). Argumentamos que elas podem ajudar a compreender os processos de exclusão engendrados na e pela escola e os sentidos que têm sido atribuídos ao processo de juvenilização da EJA.
3 O ZIGUE-ZAGUE DOS DISCURSOS DOCENTES SOBRE A JUVENILIZAÇÃO
Interessa-nos compreender como os sentidos de juvenilização afetam os discursos docentes e suas produções curriculares, assumindo que não há qualquer linearidade nesse processo. Ele é negociado com uma série de discursos que circulam no social. Nós nos debruçamos na “[...] busca por encontrar uma outra linguagem para dizer dos currículos e por inspirar em nós mesmos um outro pensamento sobre educação” (PARAÍSO, 2014, p. 37).
Assim, o que buscávamos era interpretar quais sentidos os docentes atribuíam à EJA, interrogando, ao analisar suas narrativas, como eles definiam a identidade da modalidade, tentando entender se a juvenilização se revelava para eles como um problema e quais argumentos usavam para defender seus posicionamentos. Estariam eles em busca do ideal de estudante para a modalidade ou assumiam, em alguma medida, uma normatividade esperada para aquele contexto? Paraíso (2014) nos provoca ao afirmar que narrar não significa descrever momentos vividos, mas produzir enunciações que, ao reativar sentidos de experiências, podem assumir (outras) significações.
Colaboraram com a pesquisa cinco docentes que trabalhavam em uma escola municipal de EJA na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O local escolhido foi a escola na qual uma das autoras trabalhava, embora, durante a pesquisa, se encontrava licenciada para fins de estudo. A licença colaborou para o seu afastamento do contexto, possibilitando estranhamentos diante dos achados da pesquisa. Além disso, o conhecimento prévio do contexto como docente não significou assumir a mesma posição quando pesquisadora. São formas distintas de produção de subjetividades. Velho (2003) chama atenção para os riscos de produzir pesquisa em um local de trabalho; entretanto, o autor argumenta que há essa possibilidade se mantiver atenção sobre discursos naturalizados no cotidiano.
O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pela Secretaria de Educação responsável pela unidade escolar para que a pesquisa pudesse ser desenvolvida. Apenas com esse aval as entrevistas foram realizadas.
Com base em aportes pós-estruturais, assumimos que não há hierarquia entre escolas, pois interessa-nos compreender os limites e as possibilidades, entendendo que não é possível isolar o que se significa como experiência positiva ou negativa. Assim, afastamo-nos de qualquer tentativa de padronizar a escola pesquisada por dicotomias como boa ou má; com ou sem qualidade; excludente ou includente.
Foram utilizadas entrevistas narrativas com os cinco docentes. Esse instrumento de pesquisa deu-se com a formulação prévia de um roteiro pela pesquisadora, mas não é ela que define os rumos que a entrevista toma, mas, sim, aquilo que os pesquisados narram. Ao narrarem suas experiências, os docentes acabam por atribuir significado a elas, elaboram sentidos sobre o que viveram e vivem (FERRAROTI, 1988).
O uso de entrevistas narrativas exige do pesquisador respeito ao que é narrado, tanto no momento no qual acontece quanto quando parte para a interpretação dos dados. O narrado não define o docente ou a sua prática. Não é sobre isso que nos debruçamos, mas, sim, para tentar compreender os sentidos que são atribuídos a um contexto. As narrativas são consideradas produções assumidas contingencialmente, não por sujeitos autocentrados, mas por aqueles que se revelam a partir da articulação com o outro, seja por diferenciação, seja por equivalência (LACLAU; MOUFFE, 2015).
As entrevistas narrativas foram realizadas em diferentes dias com cinco docentes que se encontravam na faixa etária de 35 a 55 anos. Como critério mínimo, estabelecemos que tivessem experiência de pelo menos cinco anos no magistério e matrícula efetiva na escola pesquisada. O tempo de experiência como critério se deu por considerarmos que esse profissional acumulou significativa experiência na área, não apenas na EJA, mas na educação, sendo assim atravessado pelos muitos discursos.
Dos entrevistados, quatro atendiam aos anos finais do Ensino Fundamental e um atuava na equipe diretiva. A escola atende na EJA todo o Ensino Fundamental; seu público, no momento da pesquisa, era formado por adolescentes, adultos e idosos, grupos etários que apresentavam diferentes interesses geracionais, o que, por vezes, causava conflitos nas salas de aula.
No Projeto Político-Pedagógico da escola visitada, os estudantes adolescentes eram anunciados como socialmente vulneráveis e destacavam-se a necessidade de parcerias com as famílias e a atenção às questões relacionadas à saúde, ao lazer e ao mercado de trabalho. Essa significação aproxima-se do que Léon (2005) aponta sobre os jovens das camadas populares serem compreendidos como transgressores, e o papel da escola seria afastá-los de problemas.
Laclau e Mouffe (2015) nos auxiliam na compreensão de que as enunciações docentes são produzidas com o outro, não como um processo individual, autocentrado. Essas produções discursivas são contingenciais e dizem respeito aos significados que conferem às suas experiências quando interpelados. Não há pretensão de conferir positividade ou negatividade às narrativas docentes, forjando um juízo de valor. Assumimos, entretanto, que seus discursos carregam marcas de sentidos que são atribuídos à modalidade e a seu público.
Os estudantes presentes na juvenilização carregam marcas de problemáticas para a EJA por sua estética, pelas atitudes transgressoras ou por, de alguma forma, desestabilizar as expectativas do que seria a identidade da EJA? Observemos a fala do Docente C4:
E não só pelo fato de muitas vezes eles serem alunos que tiveram, causaram problema, né, no regular, de manhã e tal, de tarde, e estão sendo jogados pra noite, né, como mesmo quando não estão sendo problema, muitas vezes quando eles estão interessados, como eles não largaram a escola, como eles têm uma, teoricamente, às vezes, uma facilidade melhor para compreender algumas coisas, né, aquela pessoa mais idosa, que tem mais dificuldade acaba ficando inibida na presença deles, né. Então eles podem, às vezes, gerar problema nos dois sentidos, né. Mas, assim, a questão é muito mais complexa que essa, isso é só um aspecto que eu estou colocando (Docente C).
A compreensão do Docente C sobre o processo de juvenilização revela uma identidade prévia assumida para a EJA como local de educação de pessoas adultas. Isso porque, ainda que seus comportamentos não gerem conflitos disciplinares, o conflito geracional se estabeleceria, ainda assim, pelo constrangimento dos adultos diante dos mais jovens. Assumir essa posição não se dá em um terreno pacífico, visto que ele é marcado por conflitos desse docente sobre o direito dos mais jovens àquele espaço, como está expresso na fala a seguir.
No caso da EJA, eu sinto essa dificuldade maior de, ao mesmo tempo que eu tenho que agradar àquela senhora que está vindo para estudar, mais até para fazer uma social, para manter uma vida ativa, que não tem muita perspectiva em termos acadêmicos dali, com o cara que de repente pensa também em fazer um ensino médio e entrar numa faculdade ou fazer um ensino técnico, alguma coisa assim (Docente D).
Ainda que em sua fala a priori signifique a EJA como educação para adultos, o Docente D assume também os mais jovens como demandantes desse direito, o que o leva a mobilizar uma estratégia de garantia, explicitando que
[...] se você conseguir criar alguma identificação com eles, de distanciar, tirar o máximo as barreiras socioculturais, socioeconômicas que existem entre o professor e o estudante, né, mais você consegue ganhar. Então o que eu costumo fazer é aprender com eles, aprender a linguagem deles (Docente D).
Outro docente sinaliza os desafios que os mais jovens têm apresentado para a prática docente, considerando os estudantes que não têm interrupções da trajetória escolar, mas são marcados por experiências de reprovação e, como estratégia de correção de fluxo da rede, promovem sua “transferência” para a EJA.
O fato é que esse jovem que vem para a EJA para estudar, ele não é necessariamente aquele jovem que compreendeu que o estudo é fundamental na vida dele, embora tenha alguns que entendam isso, sabem que estudar é importante, planejam fazer uma graduação, planejam se aprimorar no estudo até para poder trabalhar, mas alguns parecem que não percebem ainda a importância que o estudo tem para a vida deles (Docente A).
O Docente B avança na tentativa de compreensão da juvenilização na EJA:
O que eu percebo é que a minha primeira visão do que aconteceu na EJA é que a EJA é a porta de saída do aluno. A forma com que as coisas aconteciam ou elas são, parecem planejadas ou não planejadas para acontecer, acaba sendo assim, “bom, eu tenho um aluno que não se adéqua ao diurno, então esse aluno sairia da escola, mas, para ele não sair, ele continua, então ele vai até a EJA”. E, aí, a EJA tem muito esse perfil já com o abandono, do aluno com um abandono. E do professor que, se não tiver um pouco de sensibilidade para isso, legitimar esse abandono, fortalecer ainda mais esse abandono e tudo o mais (Docente B).
A narrativa do Docente B traz novamente a questão da transferência dos estudantes para a EJA como estratégia de eliminá-lo da escola regular, na medida em que foge ao padrão que se normatizou como estudante ideal. Ao mesmo tempo, sua fala revela a compreensão do direito desses estudantes àquele espaço.
A escola regular sustenta-se em processos de escolarização organizados com base na definição de padrões curriculares comuns a que se atribui a pretensão de traduzir as aprendizagens mais adequadas a todos. Essa normatização imposta a todos tende a ser celebrada pelos discursos pedagógicos de diferentes matrizes teórico-filosóficas como promessa de uma educação de qualidade capaz de garantir maior desenvolvimento social, econômico ou o exercício pleno da cidadania. No entanto, como afirma Macedo (2014), trata-se de uma forma de conceber uma qualidade da educação que não leva em conta o imponderável e que acaba por subtrair do outro a possibilidade de realizar-se como singularidade.
A ideia de uma educação para todos pressupõe uma universalidade, um “comum universal” que apresenta inúmeras dificuldades (MACEDO, 2014, 2015). Dificuldades que, segundo a autora, são, de alguma forma, contornadas pela criação de exceções. A EJA, no nosso entendimento, enquadra-se como uma dessas inúmeras exceções. É necessária porque o projeto universalizante falhou, não se realizou como promessa capaz de garantir a aprendizagem de todos em um contexto de inserção de direitos.
Por aquilo que narram, os entrevistados demonstram compreender que o processo de juvenilização é resultado de um sistema escolar excludente. Ao mesmo tempo, há a compreensão de que a transferência é uma tentativa de continuar assegurando o acesso à educação a esses jovens caracterizados como indisciplinados e pouco comprometidos com a dinâmica da escola regular. Para o Docente B:
O professor do EJA [tinha] um compromisso um pouco maior e aí eu vou falar mesmo um compromisso político, não um compromisso só educacional, não o compromisso só de vir à escola para dar aula, que eu acho que esse é o compromisso que todo mundo tinha que ter mesmo. É o compromisso da gente com o trabalho, não faltar e aquela coisa toda, mas o que eu estou dizendo é que, assim, se esse professor que dá aula, se nós, se eu, que dou aula durante a noite, não percebo que existe todo um outro entorno do meu aluno, dessa criança, não que justifica só, mas que contribui de maneira significativa para que ele tenha esse tipo de coisa, a gente vai viver negando esse cara e empurrando mais ele, e querendo desesperadamente que ele vá embora. E, eu não vou negar para você, tem vezes que você... (Docente B).
Apesar de as falas indicarem que os docentes entrevistados não desconhecem ou são insensíveis aos processos de exclusão sofridos por esses jovens, também, em sua maioria, significam os mais jovens como “desordeiros e/ou desinteressados”, como alguém diferente daquele que idealizamos e com o qual não conseguimos lidar. Sentimentos e percepções que também justificam a “expulsão” desses jovens da escola regular. Nós nos perguntamos, então: O que a escola de EJA teria de especial para dar conta de uma formação da qual a escola regular abdicou?
O Docente E tem uma percepção mais ampla em relação aos colegas, como é possível observarmos em sua fala: “A EJA é, para mim, ensinar e aprender. Eu com eles e entre eles [...]; enfim, cada um relata a história contida na sua identidade cultural [...]. A EJA sempre foi uma verdadeira família em que os mais velhos ensinam lições de vida e os mais novos participam mais das aulas práticas” (Docente E).
Essa fala não significa que apenas o Docente E é sensível às particularidades de cada estudante, pois, nas falas dos demais docentes, há também um desejo de atender a essas especificidades, mesmo como posição política de comprometimento com os estudantes, considerando como as desigualdades sociais os atravessam. Entretanto, a fala do Docente E dá pistas de que o conflito geracional nem sempre é a emoção que balizará essa relação.
Assumimos o pressuposto de que pouco podemos esperar da EJA e da escola regular se não enfrentarmos o desafio de problematizar os fundamentos a priori que organizam as formas de pensar e de organizar os processos de escolarização. Como afirma Macedo (2015), a ideia de uma escola pronta a atender a todos, de oferecer tudo a todos, é a ideia de uma instituição destinada ao fracasso. Esses são fundamentos que sustentam compreensões essencialistas e realistas e favorecem a proliferação de práticas e de currículos universalizantes e homogeneizadores comuns nos processos de escolarização.
Lopes (2015) questiona essa pretensão e afirma que as políticas curriculares são forjadas por uma intencionalidade, resultado da articulação entre diferentes demandas; portanto, aquilo que se institui como necessário que todos os estudantes aprendam, da mesma forma é algo totalmente arbitrário, na medida em que é uma decisão social. A seleção de determinados conteúdos em detrimento de outros, a partir do pressuposto de que garantiriam dada qualidade à educação, acontece em meio a articulações que possibilitam a hegemonia de um discurso (MATHEUS; LOPES, 2014).
No entanto, como destacam Laclau e Mouffe (2010), essa hegemonia é sempre arbitrária e precária. Não se sustenta em qualquer fundamento fixo a priori. Matheus e Lopes (2014) também alertam que a própria qualidade atribuída à educação pode ser significada de formas diversas, por isso citam Laclau (2011) para afirmar que se trata de um significante vazio.
Não se nega que determinados conhecimentos acumulados ao longo da história sejam importantes e necessários de constar nas propostas curriculares, dada a legitimidade atribuída a eles em nossa sociedade. O questionamento, entretanto, é quanto à centralidade dada a determinados conhecimentos como impulsionadores de qualidade na educação (LOPES; MACEDO, 2012). O questionamento é também sobre as formas de controle exercidas com base nela, controle que tende a favorecer o apagamento de outras formas de pensar o currículo que levem em conta o imponderável (MACEDO, 2014).
São políticas com forte viés universalizante, que se constituem como ameaça às diferenças, que tendem a produzir o diferente como antagônico, como ameaça. É como ameaça que contingentes significativos de jovens têm sido “convidados” a migrar da escola regular; jovens que não se enquadram no padrão estabelecido como o mais adequado, pois, em nome da falsa ilusão da igualdade de oportunidades, essas políticas tendem a padronizar as aprendizagens, o que, além de impossível, favorece a manutenção de processos de exclusão na escola.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de juvenilização da EJA mobiliza sentidos que podem favorecer a produção do jovem como o outro que se antagoniza à proposta da modalidade. Isso não significa que os docentes não compreendam que a escola regular falha e, por isso, descarta contingentes significativos de jovens que, por diferentes caminhos, chegam à EJA. Isso, por sua vez, não implica uma reflexão radical sobre o problema.
A lógica que estrutura os processos de organização da escola é naturalizada. Sem essa reflexão, o discurso educacional assume uma dimensão de sagrado de totalidade autocontida que precisa ser preservada e protegida daquilo que a distorce e a impede de constituir-se como plenitude (LACLAU; MOUFFE, 2015).
No entanto, recorremos a esses autores para afirmar que a possibilidade mais essencial da escola, ou da educação, é a instabilidade, a precariedade, o caráter puramente relacional ou diferencial de todas as estruturas de significação. Os discursos educacionais estão carregados de sentidos de mundo; sentidos em processo incessante de negociações e de traduções. Esse outro, uma diferença que é significada como ameaça, muitas vezes tem na modalidade da EJA a única possibilidade de concluir os estudos.
Entendemos que, na medida em que o jovem é significado como o outro, como o intruso, ele se alimenta de uma ilusão que também não colabora para o enfrentamento dos desafios pedagógicos. Trata-se de um discurso que não leva em conta as diferenças e reforça os essencialismos que vêm sendo questionados pelas perspectivas pós-estruturalistas.
São reflexões que realizamos no contexto da EJA, mas que entendemos que precisam ser aprofundadas se desejamos de fato operar na tessitura de um projeto democrático de escola, assumindo que esse desafio pressupõe compromissos com um mundo de pluralidade, de diferença e de alteridade.
Voltando à Teoria do Discurso, entendemos que, ao propor pensar o social como textualidade, ela possibilita o rompimento com perspectivas realistas e essencialistas para explicar os fenômenos sociais a partir de uma perspectiva pós-estruturalista (MARCHART, 2008). Nesse movimento, a Teoria do Discurso insere-se no campo de aportes teóricos que, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de leituras de um problema, se voltam para sua problematização radical, inclusive das diferentes possibilidades de leituras totalizantes sobre eles (LOPES, 2013).
Como afirmamos anteriormente, o projeto de escolarização moderno é fortemente marcado por perspectivas realistas e essencialistas do social, o que justifica a apropriação do potencial analítico da Teoria do Discurso para pensar os problemas educacionais, principalmente a partir da compreensão da educação como um fenômeno e uma prática social - logo, carregada de significados (LACLAU; MOUFFE, 2015). É dessa perspectiva que nos apropriamos das contribuições da Teoria do Discurso para assumirmos o fenômeno da juvenilização como processo de produção discursiva do jovem; nesse sentido, podemos nos articular para significá-lo para além da ameaça, mas em sua potência na produção curricular na EJA.