1 INTRODUÇÃO
Linda, linda Nova Almeida
Aqui mora meu coração [...]
Na festa dos reis magos é uma grande emoção
O morro acorda com os tambores na mão
E quando o mestre apita começa o congo
‘quebra, quebra gabiroba quero vê quebrar
Quebra lá que eu quebro cá quero vê quebrar’ [...]
Este texto emerge de reflexões sobre a formação e as práticas docentes na relação com elementos da cultura do Espírito Santo, estabelecidas nos diálogos entre a universidade, a comunidade e a escola, com base em trajetórias individuais, testemunhos históricos (BLOCH, 2001) e elementos da cultura popular que envolvem o congo, produzidos no/com o distrito de Nova Almeida, Serra/ES - uma vila de pescadores do município da Serra/ES2, onde se celebra, anualmente, uma das diversas festas de congo realizadas no Espírito Santo.
Dialoga também com registros (auto)biográficos que começaram a ser produzidos por um professor, quando ainda estava em processo de formação inicial, e que ganharam força e sentido em suas primeiras experiências docentes. Vividas na escola pública da comunidade onde cresceu, essas experiências misturam-se a processos coletivos e ampliados de formação. Este texto narra, analisa e problematiza, assim, a relação com o lugar e os significados produzidos com a cultura local, bem como os modos como esse sentido de pertencimento afeta a formação, a docência e as práticas curriculares.
A reflexão sobre a identidade com o lugar começou a ser tematizada por nós mediante um trabalho solicitado em uma disciplina do curso de licenciatura em Educação Física3 da Universidade Federal do Espírito Santo. A tarefa proposta naquela ocasião seguia os rastros daquilo que Neira (2015, p. 295) denomina currículo cultural da Educação Física, no qual “[...] a experiência escolar é um terreno aberto ao debate, ao encontro de culturas e à confluência da diversidade de práticas corporais dos variados grupos sociais”.
No caso de nossa proposta, essa abordagem compreendeu o mapeamento das práticas corporais comuns nos bairros e nas comunidades onde cada um dos estudantes do curso, envolvidos com a experiência, residia. Na sequência, o trabalho abrangeria visitas à escola do bairro e planejamento de oficinas a serem ofertadas nas instituições, para estudantes do ensino fundamental. Buscávamos, no processo formativo para a docência, tecer, juntos, uma autoria curricular por meio de mapeamento, tematização e problematização das práticas locais, com o propósito de provocar a reflexão sobre o modo como a escola e as aulas de Educação Física podem dialogar com o meio de que fazem parte.
Como lembra Neira (2018), esse movimento implica o cuidado na seleção de temas e de situações didáticas que se orientam por princípios ético-políticos, tais como: o reconhecimento da cultura corporal da comunidade; a articulação com a proposta pedagógica da escola; a justiça curricular; a descolonização do currículo; e a fundamentação social dos saberes. Esses princípios orientam o professor a eleger as práticas corporais e a “[...] planejar situações didáticas que respondam ao caráter multifacetário do contexto escolar” (NEIRA, 2018, p. 43).
Do mapeamento realizado por um desses licenciandos4 emergiu o congo; e, na relação com ele, iniciaram-se não somente a construção de uma tarefa curricular, mas também a redescoberta e o reencontro com o lugar onde vive e a identificação com ele. Desse modo, a partir de um processo investigativo pessoal e coletivo, que tem se estendido pelos últimos anos e ganhado lugar nos diferentes espaços de discussão e práticas dos quais temos participado5, o congo, entre outros elementos que compõem a diversa cultura local, tem atravessado os processos constitutivos de nossas identidades docentes, como professores da escola ou da universidade, em busca do reencontro com elementos que confiram outros sentidos aos nossos processos formativos e às nossas práticas.
Para nós, o congo apresenta-se como forte expressão da cultura e dos saberes das localidades onde se manifesta, constituindo a formação identitária da comunidade e da vida dos sujeitos que a integram. Ele reúne um conjunto de práticas - entre danças, músicas, saberes, fazeres e religiosidades - que permeiam histórias de vida, formação e práticas.
Para analisar essas relações, propomo-nos a dialogar com fontes diversas, que constituem um acervo produzido e acumulado ao longo desse percurso, entendendo, com base em Bloch (2001, p. 79), que: “Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”. Nesse entendimento, um primeiro conjunto de fontes inclui produções artísticas e literárias dos membros da comunidade, sob a forma de livros, poemas, letras de músicas, obras de arte, monumentos que se configuram como espaços de registro daquilo que até bem pouco tempo era transmitido apenas pela tradição oral.
O segundo conjunto de documentos compõe-se de registros produzidos em tempos mais distantes e por sujeitos não pertencentes àquela localidade. Englobam desde o diário de D. Pedro II, em visita ao Espírito Santo em 1860, até textos publicados, nos anos 1930, em um impresso capixaba. Em uma perspectiva indiciária (GINZBURG, 1989), buscamos escrutinizar os processos de constituição histórica do congo de Nova Almeida, permeado de memórias, considerando as relações de força que atravessam a produção desses documentos.
Essas fontes são cotejadas com um terceiro conjunto constituído por narrativas (auto)biográficas e registros produzidos por um professor durante seu percurso formativo e docente entre 2015 e 2019. São escritas que se estendem e se aprofundam desde suas primeiras incursões como estagiário até o exercício da docência na escola da comunidade de Nova Almeida e envolvem memórias de infância, registros do processo formativo, registros das primeiras experiências da docência e relatos produzidos com estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental, durante os processos de ensino e aprendizagem do congo na escola.
O movimento de aproximação com o congo como prática corporal tem, portanto, neste texto, um caráter tanto analítico das fontes quanto (auto)biográfico e (auto)formativo, visto que integra o lugar de onde falamos e se funde às nossas histórias de vida. Estabelecemo-nos, assim, como autores e atores das problematizações que fazemos, na medida em que falamos do congo e dos processos formativos para a/na docência, como elementos que atravessam as nossas trajetórias. Nesse sentido, dialogamos com a metodologia da pesquisa-formação (JOSSO, 2004), à medida que nos colocamos diante de nossas experiências formadoras, ao buscarmos relações entre passado e presente e com outras experiências.
Investigar processos formativos de adultos/docentes e de crianças atravessados por uma prática cultural embrenhada na vida comunitária, como é o caso do congo, implica revisitar memórias, identificar perspectivas possíveis de apropriação da cultura local, inicialmente marcada por relatos orais, entre os quais estão aqueles que se perderam no tempo e nas memórias e aqueles que têm sido ressignificados no transcurso das gerações. Também significa encontro e reencontro com essa prática, uma vez que, de longe ou de perto, consciente ou inconscientemente, ela está amalgamada às nossas trajetórias.
Em vista do exposto, este texto organiza-se em dois movimentos: a) uma análise da constituição histórica do congo de Nova Almeida como parte das formas de expressão que compõem processos identitários no Espírito Santo; e b) uma incursão nos modos como ele atravessa/pode atravessar processos formativos e práticas docentes, como caminho de ressignificação da vida em comunidade e das formas de pertencimento.
2 O CONGO DE NOVA ALMEIDA ENTRE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
O município da Serra
Naturalmente festeiro
No dia seis de Janeiro
Reis Magos é uma festança [...]
Pular Congo é tão bonito
Todo o povo cai na dança [...]
(SANTOS, 2012, p. 102).
As primeiras buscas sobre o congo e sua história levaram-nos a compreender que, mais do que um acontecimento pontual materializado em uma festa no começo de cada ano, na localidade de Nova Almeida, consiste em uma expressão da cultura capixaba que tem lugar em diferentes municípios do estado do Espírito Santo, constituída historicamente pelas trocas culturais entre comunidades afro-brasileiras, indígenas e até as de origem europeia. Atualmente, o congo envolve um conjunto de práticas que mobilizam comunidades inteiras, mas que se mantêm vivas em território capixaba há mais de um século.
O Atlas do Folclore Capixaba (ESPÍRITO SANTO, 2009) retrata o congo como banda ou conjunto musical típico que se apresenta em festas de santos - especialmente naquelas que homenageiam São Pedro, São Sebastião e São Benedito - e se constitui por homens e mulheres
[...] que tocam, cantam e dançam em homenagem ao santo, orago da igreja da localidade. Os componentes se apresentam devidamente uniformizados, os homens com calça comprida e camisa e as mulheres com saia rodada e blusa, e ostentam estandartes que identificam o grupo e o santo de sua devoção. A banda conta com vários instrumentos musicais: tambores, caixa, cuíca, chocalhos, ferrinho, pandeiros, apitos, mas dentre estes merece destaque a casaca (ESPÍRITO SANTO, 2009, p. 70).
Esses grupos apresentam-se em ocasiões diversas, mas a manifestação mais profunda e completa ocorre nas chamadas Festas de Congo6, que incluem ritos como a puxada do mastro7, num ritual que se prolonga por meses e envolve a comunidade em sentido amplo, em práticas que excedem a festa e os ritos religiosos. Em 2009, quando o Atlas foi organizado, havia, em todo o estado do Espírito Santo, 61 grupos de congo em atividade. Boa parte deles sediada em regiões litorâneas e vinculada a alguma organização/associação municipal ou estadual.
Entre as bandas listadas, 18 se localizam no município da Serra, onde ocorre aquela que é considerada “[...] a mais movimentada e tradicional festa de puxada e fincada do mastro de São Benedito no Estado do Espírito Santo” (ESPÍRITO SANTO, 2009, p. 84), na vila de Nova Almeida. O evento, denominado Festa de São Benedito, reúne anualmente cerca de 20 mil pessoas.
Como marco dos costumes locais, essa festa é o ápice de um movimento que se estende - por vezes, silenciosamente - ao longo de todo o ano, constituindo-se de saberes e modos de fazer que envolvem rituais, bandas, danças, procissões, músicas, relações com a natureza, com as atividades de trabalho e de consumo, produção de instrumentos, confecção de artefatos, religiosidades. São, portanto, práticas constituídas de histórias e memórias e de saberes transmitidos, oral e corporalmente, entre as gerações.
Da tradição oral dos antigos mestres, sobretudo do mestre Antônio Rosa8, emergem pistas sobre as possíveis origens do congo no Espírito Santo e, em particular, na localidade de Nova Almeida. A narrativa mais conhecida é também, em termos históricos, a mais controversa. Situa no ano de 1856 a ocorrência do naufrágio de um navio chamado Palermo (que vinha de Palermo, na Itália), na costa de Nova Almeida. A bordo, 25 africanos, agarrados aos mastros da embarcação, teriam se salvado após um pedido feito a Deus, por intercessão do santo italiano São Benedito - cuja imagem estampava a bandeira do mastro - e de São Sebastião (COSTA; MATTOS, 2017; MACEDO, 2013; NASCIMENTO, 2014; QUINTINO, 2018).
A festa de congo teria nascido como forma de agradecimento ao primeiro santo, que era negro. Segundo as narrativas reunidas por Nascimento (2014), os homens escravizados que estavam na embarcação foram distribuídos em fazendas dos arredores e paulatinamente iniciaram festejos destinados aos santos locais, com a autorização de seus senhores. Essas narrativas informam também que a primeira banda foi criada, em 1862, em Putiri, por Crispiniano da Silva e, com a abolição dos escravizados em 1888, a festa se popularizou e ganhou as ruas. O rito era o seguinte:
Para iniciar os festejos os negros iam à mata com uma junta de bois para derrubar um guanandi (árvore) e ao fazê-lo, o traziam nos ombros dando vivas ao santo. Depois preparavam o madeiro (tronco do guanandi) fazendo-o de mastro para erguê-lo e colocar a bandeira de São Benedito. Passados alguns dias, os escravos retiravam o mastro e anualmente repetiam as festividades (NASCIMENTO, 2014, p. 54).
A música do artista local, Santana (2001), que narra rituais e simbolismos ainda vivos na festa do congo de Nova Almeida, reafirma essa narrativa, sedimentada nas memórias inventivas dos membros da comunidade e indica a constituição da celebração entre elementos sagrados e profanos e entre a história dos processos de escravização dos africanos no Brasil e sua resistência:
Hoje é dia do São Padroeiro
Folia e fé é festa na Serra
Carregando o navio negreiro chamado Palermo em cima das costas
Uma mão segurando a vela
E a outra na corda
Lá vem os romeiros puxando o Palermo
Numa procissão, pagando promessa
Pra saudar vem as bandas de congo
Com devoção e o povo agita (viva São Benedito)
Vou fazer uma canção pro negro que vem da África
E subiu para os Palmares pra fugir da escravidão
Oh, oh, oh, oh, traz oferendas pra fazenda do senhor
Oh, oh, oh, oh este lamento foi o negro que cantou
Ímpeto da capoeira, paranauê
É cultura brasileira, paranauê Paraná
E gritaram liberdade lá do alto do quilombo
E ouvir uma resposta feita no tambor de congo
Esse som vem bem de longe, vem, vem, vem
Vem do Espírito Santo, vem ver meu bem
Eles estão nos convidando, tão também
Pra cantar nosso enredo, no repique da casaca,
Ao som do tambor de congo pra mostrar pra toda gente
Que é só lá que tem congada, oh, oh, oh, oh.
Entre os diversos elementos dessa narrativa - muitos não confirmados do ponto de vista historiográfico -, seria possível questionar a tão imediata relação dos africanos recém-chegados com a religiosidade local - herdada dos jesuítas - e com o santo católico, italiano. Ela provavelmente não existia quando aqui chegaram e talvez tenha ocorrido de forma muito mais lenta, em busca de esconder ou disfarçar elementos da cultura originária, diante das opressões sofridas. Além disso, da história colonial, pouco se sabe sobre os navios naufragados na costa capixaba9, e caberiam, ainda, questionamentos à presença de São Sebastião nessa história.
À parte das contradições que envolvem toda tradição oral, importa pensar no que essas memórias e as narrativas que delas decorrem abrem de possibilidades para compreender os sentidos do congo para os moradores de Nova Almeida, de modo que
[...] o passado possa ser tanto recordado quanto reinventado. Desse modo, a história de um sujeito, individual ou coletiva, pode ser a história dos diferentes sentidos que emergem em suas relações. Ou, de outro modo: abre-se a possibilidade de que a memória, ao invés de ser recuperada ou resgatada, possa ser criada e recriada, a partir dos novos sentidos que a todo tempo se produzem tanto para os sujeitos individuais quanto para os coletivos - já que todos eles são sujeitos sociais. A polissemia da memória, que poderia ser seu ponto falho, é justamente a sua riqueza (GONDAR, 2008, p. 5).
Para além da tradição oral reproduzida em livros e canções, indícios da constituição histórica do congo como forma de expressão da comunidade de Nova Almeida aparecem no diário de viagem de D. Pedro II, na parte em que o monarca narra sua passagem pelo Espírito Santo em 1860. Na visita que fez à igreja local, para conhecer a tela Adoração dos Reis Magos10, o monarca encontrou o congo.
Ao analisar o diário, Rocha (2008) indica que, naquela ocasião, ele assistiu a uma das festas do congo da vila, tendo-se admirado pela casaca. Como lembra o autor, é dele “[...] a primeira representação particularizada da hoje famosa casaca, instrumento típico da nossa música popular e, salvo engano, somente existente em terras capixabas”11 (ROCHA, 2008, p. 27).
A Igreja dos Reis Magos12, visitada por D. Pedro II, vincula-se à constituição histórica multifacetada do congo. Construída por indígenas tupiniquins da região, que estavam em processo de catequização, foi fundada pelos jesuítas em 1580 e tornou-se, paulatinamente, espaço de referência para as práticas que envolvem a Festa de São Benedito até os dias atuais: a igreja é o ponto de partida e de chegada de uma procissão que compõe os festejos e também é a guardiã dos mastros, que são símbolo da festa que, em síntese, organiza-se, até os dias atuais, com base nos seguintes ritos:
No dia 6 janeiro em especial, [...], ocorre o ritual de derrubada/cortada do mastro, que segue em cortejo para um local onde ficará guardado para outros momentos da festa do Congo. Nessa mesma data, na Folia de Reis os componentes se apresentam na igreja e nas casas, havendo atuações de participantes da Folia de Reis no Congo e vice-versa. Todo esse processo, que ocorre no entorno da Igreja matriz de Reis Magos, pode parecer simples, mas visto de perto, demonstra em seus sujeitos, que há uma linha muito tênue, entre essas duas representações da cultura popular da Serra (SERAFIM, 2020, p. 69).
Outras fontes indiciam outras possíveis raízes do congo ou sua apropriação por outros grupos que viviam na região de Nova Almeida. No começo do século XIX, a vila era prioritariamente habitada por indígenas, como lembram os relatos de viagem do príncipe prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied e do francês Auguste de Saint-Hilaire13.
Em finais daquele mesmo século, a relação entre os indígenas e o congo aparece no diário de D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, que esteve em missão religiosa pelo interior do Espírito Santo entre 1880 e 1886. Em sua passagem pela Freguesia dos Santos Reis Magos, da Vila de Nova Almeida, o religioso registrou, entre agosto e setembro de 1880, o contato que teve com grupos musicais formados por indígenas daquela região. Segundo Neves (2008), os registros indicam que se tratava de “bandas de congo”, ainda que a expressão não seja mencionada no diário. Sobre um desses episódios, o bispo narrava:
Os Índios, desde que cheguei à porta da Matriz, em número de seis, com seu capitão à frente, estavam à porta da Igreja a bater seus guararás (tambores), a esfregarem seus cassacos (paus dentados) e a agitarem seu manacá (chocalho) e a soltarem monótonas e lúgubres vozes sem modulação, como usam.’ O capitão estava de calças brancas, sobrecasaca cor de rapé, velha, com dragonas de retrós amarelo, e chapéu mal ornado, tendo na mão sua varinha com fitas, e era ele que dançava compassadamente e com graça, a seu modo; os mais estavam vestidos com suas jaquetas e sem sapatos, e só tocavam seus instrumentos de sons surdos. Eu, da janela, estive vendo um pouco aquela dança. E lá se foram para o lado oposto a tocarem seus instrumentos, a soltarem seu canto, com o capitão a dançar à frente (LACERDA, apudNEVES, 2008, p. 72).
Diante da complexidade dessa história, é possível dizer que o congo nasceu dos encontros e das trocas recíprocas entre os diferentes grupos que habitavam Nova Almeida e outras regiões do estado. Quase cinco décadas mais tarde, encontramos, na imprensa local, relatos sobre a continuidade das festas e das bandas de congo capixabas, bem como dos modos como elas eram representadas localmente.
A revista Vida Capichaba, um periódico de cunho cultural, nascida de relações com o Movimento Modernista14, circulou no Espírito Santo entre 1923 e 195715 e veiculou algumas matérias, poemas, trechos de obras literárias e imagens que tematizavam ou tangenciavam o tema das festas de congo. Nessa publicação, que por sua origem era mais aberta à diversidade cultural local, o congo continuava a aparecer vinculado a celebrações religiosas e a festejos populares, como a festa de São Pedro na Praia do Suá e a festa de Santa Catarina no Penedo. Vem desses registros, em fins dos anos 1930, uma descrição do que acontecia numa festa de congo, vinculando-a aos grupos de origem africana:
Naqueles tempos inda se viam alguns pretos africanos, reunidos em grupos, a recordar suas danças e cantigas nativas.
Formavam um semi-círculo, cantando e batendo em primitivos tambores feitos de troncos ôcos, alguns com eles pendurados ao pescoço, e outros sentados sobre os tais instrumentos.
As pretas velhas rodopiavam ao som do comasso monótono e da cantiga dolente com muito mais compostura do que as mestiças nos congos modernos.
Estes compostos de mestiços de pretos, caboclos e raríssimos brancos debochados, eram mais trepidantes, puxando um farrancho fedorento de negras e mulatinhas, embriagadas de um fervor carnavalesco e infernal.
Havia o congo do Saco, de Caminho de Jacaraípe, de Campinho, de Patiri e outros mais (NEVES, 1939, n.p.).
Eram tempos de circulação de um discurso eugênico no Brasil, de discussões sobre o processo de imigração europeia, de mestiçagem, de branqueamento, bem como de inferioridade racial da população negra, que emanava de discursos médicos, como os de Renato Khel (1889-1974) (SOUZA, 2016). O Espírito Santo era um daqueles estados brasileiros que havia recebido, em meados do século XIX, um significativo número de imigrantes europeus que povoavam as regiões montanhosas, enquanto as comunidades de origem africana e indígena pareciam empurradas para as margens, para a região litorânea, onde práticas como o congo se desenvolveram. A partir dessas localidades, o congo ocupava lugar na imprensa de cunho cultural, assim como parecia ganhar espaço na cidade, como lembra um texto publicado na Vida Capichaba, em 1935, narrando o que seriam os festejos do mastro em Vitória, em começos do século XVIII:
E, vae a festa em meio. Toda animação.
Dois guardas provinciaes se espixam para dentro da roda e aceiram Anninha - mulatinha destorcida e bonita, vestida á bahiana, que espera a hora da virada do jongo, marcando levemente, cadencia, com o pé pequeno calçado em chinela de salto, rendada e vistosa...
Negros magros e fortes, corpo reluzindo de suor, vestidos de índios, balançam a cabeça e o corpo em galeios, agitando chocalhos que atroam o espaço...
Anninha, agora, inicia a virada.
Tira o chale do pescoço. Amolece o corpo. Mexe e remexe as cadeiras bem feitas, torce e contorce o ventre geitoso, treme os braços roliços e carnudos, e lá vae, mexendo e mexendo, remexendo e dansando...
Pretos espigados e velhas lacrecanhas abrem cantigas e batem com as mãos... Forma-se um cortejo.... Naturalmente... imperceptivelmente...
O povo move-se. Move-se o congo. A musica. O carro... e lá vae todo o mundo movendo-se, ruas afóra, cidade á dentro... (FRANCO, 1935, n.p.).
Mais tarde, já nos anos 1980, o congo aparece como elemento da cultura local que marca a militância do Movimento Negro no Espírito Santo, configurando-se como um dos pontos de partida para mudanças nos modos de os sujeitos se compreenderem e se identificarem como pessoas negras. Isso aparece nos relatos de Mozart José Serafim, militante do movimento no estado, em entrevista concedida a Forde (2016), em 2014:
Então, o movimento negro utilizou muito a cultura e os segmentos culturais para poder conscientizar a sua população. [...] Então, a dança, a música, o teatro, todos os segmentos culturais começaram a desnudar essa vergonha nacional que é o racismo e a discriminação racial. Pela dança, muitas meninas negras e meninos negros começaram a se aproximar e, assim, foi possível conscientizá-los. Por meio da música, da capoeira e do Congo, muitos negros que não tinham nada de consciência, no dia a dia, e na conversa foram se conscientizando e foram entendendo que eles são negros, mesmo (SERAFIM, 2014, apudFORDE, 2016, p. 76, grifo nosso).
O Congo capixaba foi reconhecido e registrado, em 20 de novembro de 2014, como Patrimônio Imaterial pela Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo (SECULT). Além disso, a Lei 10.363, de 6 de maio de 2015, declara as Bandas de Congo como patrimônio imaterial do estado16. Passos como esses podem ser considerados importantes no processo de identificação, documentação e salvaguarda dessa forma de expressão, visando sua inscrição no Livro de Registros de Bens de Natureza Imaterial, do IPHAN17, como reconhecimento em âmbito federal, conforme lembra Quintino (2018, p. 24):
O registro [do] Congo Capixaba como Patrimônio Imaterial do Estado do Espírito Santo, como modo de divulgar essa cultura, foi a principal forma de ação alimentada por diversos grupos da comunidade local no sentido de valorizar e dar visibilidade a manifestação.
A reconstituição histórica do congo de Nova Almeida estabeleceu o percurso investigativo de uma docência engajada, mas encontrou-se também com as nossas histórias de vida, ressignificando-as na relação com nossos percursos formativos e nossas práticas docentes. Ao tecer essa história, o congo passou a ser compreendido, cada vez mais, como saber e forma de expressão de um povo, que nasce de intercâmbios possíveis entre diferentes grupos étnicos e, sendo uma prática ainda viva em Nova Almeida e presente na comunidade, é também um saber que deve ser problematizado nas escolas capixabas, em geral, e nas escolas das comunidades em que se manifestam, em particular.
3 HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E PRÁTICAS FORMATIVAS E DOCENTES NO (RE)ENCONTRO COM O CONGO
Saí do ventre da minha mãe
Ouvindo a batida de congo
Sou filho do sol que aquece o tambor
Na hora do parto minha mãe chorou
Um menino tão novo disse mamãe
Mas gosta de casaca e tambor
Então vou seguindo essa multidão [...]
Pensar práticas escolares numa comunidade que respira o congo requereu de nós, desde a formação inicial, a busca constante pelas nossas memórias. Num exercício de inspiração benjaminiana, que considera o “movimento infinito da memória” (GAGNEBIN, 1994) e a importância de seu compartilhamento, o reencontro com o congo, suas formas de expressão e os festejos que o envolvem começaram a ganhar outro sentido em nossos percursos:
Quantas vezes, embaixo das castanheiras, brinquei de casinha, soltei pipa, joguei futebol, pulei corda, brinquei de ciranda. Minha avó mora ao lado da Igreja dos Reis Magos e eu sempre ia lá com meu primo beber água [...] sempre via os dois mastros no suporte. Lembrava do congo. No dia do congo a praça era lotada de gente, o barco parado na frente da Igreja enfeitado de bandeirolas embelezava ainda mais o patrimônio. As barraquinhas em volta da praça; eram muitas e as bandas de congo chegando, desembarcando dos ônibus, marcando o som do congo, que se misturava com os sons na memória de quem ficava na calçada cantando, tocando e esperando a descida do Palermo no morro dos Reis Magos (NARRATIVA 1, 2017).
Ao nos encontrarmos com as reminiscências de nossa infância e adolescência durante o processo formativo e com outros relatos - produzidos ao longo desse percurso - que permeiam as problematizações deste texto, demo-nos conta do modo como estamos envolvidos no congo desde o nascimento. Mais do que isso, compreendemos como as trajetórias dos membros da comunidade são profundamente marcadas pelos saberes e fazeres que envolvem essa forma de expressão tão antiga e tradicional naquele meio e do entendimento de que a vida se organiza em torno dela e com ela. Deparamos, então, com uma história em processo, constituída, a cada nova experiência, pelos indivíduos e grupos que compõem a comunidade.
No caminho percorrido entre a produção dos registros e as experiências docentes, a proposta das práticas pedagógicas culturalmente orientadas abriu passagem para ressignificarmos também a compreensão de escola, passando a considerá-la como parte, e não como ente separado da vida comunitária. Outrossim, passamos a ver a história e a cultura local como elementos que ganham vida no contexto escolar, pelas experiências dos sujeitos que o compõem. Assim, entendemos:
Na contemporaneidade, a diversidade cultural, em sentido politicamente afirmativo, tem desencadeado mudanças políticas que alcançam o conteúdo e as formas de elaboração de propostas educacionais em regimes democráticos. O reconhecimento da multiplicidade de atores, culturas e identidades culturais oferecem subsídios para a elaboração de programas democráticos para as políticas, ao passo em que dinamizam processos e metodologias de intervenção pautadas pela justiça social e pelo enfrentamento das desigualdades socioculturais (SILVA, 2016, p. 485).
Ao compreender a escola como lugar do múltiplo e do diverso, Neira (2018) propõe uma prática que seja capaz de desestabilizar o viés colonialista das relações. Uma prática que, mais do que trazer para a cena escolar saberes e práticas dos grupos locais, produza espaço para as histórias de luta dos grupos e valorize a diversidade, proporcionando “[...] o ambiente necessário para que as narrativas sejam efetuadas a partir da própria cultura, de forma a relatar as condições enfrentadas e partilhar formas de resistência e superação” (NEIRA, 2018, p. 49).
É esse o lugar que práticas como o congo, tão presentes na vida da comunidade, podem ocupar na escola, com todos os desafios que isso implica, tendo em vista, por exemplo, o caráter religioso que o perpassa. Nesse sentido, o processo de preparação para as ações docentes, (re)descobertas pela via das memórias, intensificava-se ao (re)encontrar também um acervo que se compunha de artefatos e obras com os quais sempre tivemos contato e para os quais nunca atentamos. São artefatos que descrevem o dia da festa de congo e abordam elementos das culturas africana e indígena, conferindo a eles sentidos antes pouco observados.
Entre esses elementos está um dos quadros da artista capixaba Ângela Gomes, que, entre outras de suas obras sobre a cultura do Espírito Santo, retrata o congo em frente à Igreja dos Reis magos.19 A pesquisa para a compreensão do congo reuniu também livros20, vídeos, documentários e músicas de congo. Um rico acervo da cultura local produzido, em parte, pelos próprios membros que apresentam versões variadas de sua história.
Essas fontes fornecem pistas para a compreensão tanto do congo quanto de uma identidade cultural capixaba multifacetada. Indicam, ainda, a composição dessa prática dentro de uma perspectiva de diversidade, marcada por “[...] aspectos geográficos, da herança cultural dos colonizadores, dos imigrantes, dos negros e dos povos indígenas, da culinária, das manifestações populares, das expressões musicais e artísticas” (COSTA; MATTOS, 2017, p. 276). Incluem a devoção aos santos, a presença das religiões de matriz africana, a relação com os orixás, práticas e rituais indígenas, entre outros elementos. São diversas as possibilidades que se abrem para pensar os hibridismos religiosos que compõem o congo de Nova Almeida. Parece impossível pensá-lo desprendido das religiosidades e dos elementos profanos que o envolvem na dança, na música, nos ritos seculares da festa:
Vejo muitas senhoras segurando uma mão na corda do navio, mas a outra mão na vela não vejo mais. São muitos os aspectos que giram em torno disso. Não consigo orar em meio a tamanha cantoria. O que faço, de verdade, é comemorar com dança e alegria. O que importa é (re)viver o negro que celebra a vida a cada dia (NARRATIVA 2, 2017).
Como lembram Costa e Mattos (2017), é importante considerar que o congo é uma manifestação que reúne matrizes étnicas distintas da formação cultural do povo brasileiro, entre as quais estão a africana, a indígena e a europeia, de modo que o conhecimento histórico das raízes culturais e religiosas dessa forma de expressão é fundamental para compreendê-la. Apesar de a religiosidade católica de herança jesuítica estar fortemente presente pela relação com os santos21, “[...] a expressão cultural do Congo transita entre o sagrado e profano” (COSTA; MATTOS, 2017, p. 330), misturando aspectos religiosos com outros tipos de celebração: “Os praticantes tocam, brincam e mantem as tradições culturais dançando e cantando também toadas não religiosas, o que consolida o ritmo como um estilo musical que influencia músicos do cenário cultural regional e nacional” (COSTA; MATTOS, 2017, p. 330).
Além disso, como forma de atrair turistas, a versão atual da festa de congo de Nova Almeida inclui, ao final, um show com uma banda ou cantor conhecido nacionalmente. Promovem-se as chamadas “concentrações de congo”, comercializam-se ingressos e vendas de abadás, com direito a open bar. Um movimento que, aos poucos, atualiza os modos de existir do congo e distancia das ruas de Nova Almeida alguns daqueles praticantes mais antigos e vinculados com a tradição. Para esse público, esses atravessamentos têm produzido mudanças e perdas no cenário da festa do congo:
Antigamente, não tinha maldade, todo mundo ia e brincava. Nova Almeida não tinha asfalto, a gente se divertia, ficava barro puro. Quando chegava em casa a gente jogava a roupa fora porque não dava conta de lavar, era bom demais. A gente bebia, vinha carregado, um de um lado e o outro do outro, no dia seguinte olhava pros pés e não tinha mais as unhas. Mesmo assim, havia muito respeito um pelo outro. Mas hoje em dia se você se esbarra sem querer em alguém o pessoal já quer brigar (NARRATIVA 3, 2017).
Ao tratar dos processos de espetacularização do congo, Macedo (2013) trabalha com as noções benjaminianas de vivência e experiência. Assim, a lógica do consumo conduzir-nos-ia a vivências superficializadas que condicionam as práticas populares como objetos de espetacularização, o que afastaria os sujeitos da história e da tradição da festa do congo, por um artifício capitalista do mundo moderno urbano-industrial. Em contraposição, a noção de experiência colabora para pensar na reconexão do sujeito com sua comunidade e com a tradição, por se engendrar nos campos existenciais, estéticos, emocionais, intelectuais e afetivos (MACEDO, 2013).
Esse percurso de reflexão sobre o congo estendeu-se à escola, onde vislumbramos potencialidades para uma prática culturalmente orientada, em diálogo com as experiências, com a história e com a tradição. Nossas reflexões emergem das experimentações com a Educação Física, mas não a vemos de forma fragmentada. Entendemos que a relação com o congo na escola é possível por diversas vias: em todos os níveis de ensino, no campo das artes, das práticas corporais, da língua e da literatura, das ciências. Acreditamos ser possível partir dos saberes comunitários para pensar um projeto de escola e práticas curriculares inter e transdisciplinares que considerem as culturas locais e valorizem as constituições identitárias (SILVA; NASCIMENTO; ARAÚJO, 2018; COSTA, 2017).
Para socializar esse elemento da cultura em um espaço tão plural e diverso como a escola, tematizamos o congo em aulas de Educação Física. A mesma Educação Física que tem reproduzido práticas curriculares calcadas em modelos euro-estadunidenses masculinos e brancos, como lembra Lins Rodrigues (2013), tem conferido aos conteúdos que diferem disso caráter folclorizado. Além disso, pelas relações que essas práticas mantêm com as religiosidades - especialmente as de matriz africana -, são conteúdos geralmente recebidos com certo preconceito.
Uma primeira experimentação nesse sentido foi produzida e acompanhada em 2017 e inspirou o processo investigativo do congo do qual resulta este texto, como atividade curricular do curso de formação inicial em Educação Física, já apresentada. Aconteceu, naquele momento, o retorno à comunidade, a uma escola pública, na qual nos propusemos, com uma turma do ensino fundamental, a trilhar um percurso pedagógico experimental.
O processo partia da apresentação da história do congo, tomando como referência as músicas e a arte. Incluía nas conversas com os estudantes imagens da Igreja e Residência dos Reis Magos e do quadro Adoração dos Reis Magos, apontados como elementos do patrimônio histórico-cultural. Os mesmos elementos que motivaram a visita de D. Pedro II à vila em 1860, que gerou um dos primeiros registros históricos preservados sobre o congo de Nova Almeida, com o desenho que fez da casaca e com uma carta que enviou a Portugal, contando a descoberta. Essa história tornou-se parte das conversas com os estudantes.
Depois disso, vinha a apresentação da casaca e, a partir dela, do ritmo, dos passos de congo e das músicas: primeiro, as mais recentes e midiáticas22; depois, as cantigas tradicionais, dos mestres locais23. Ainda como parte da proposta pedagógica, experimentávamos os instrumentos utilizados pelos congueiros e construíamos casacas, utilizando canos, palitos de madeira e pedaços de vassouras. Por fim, tocávamos, dançávamos, reconstituíamos a dança e reproduzíamos a festa, tudo com cautela para evitar tocar nas questões religiosas.
Uma parte daquela experimentação docente foi replicada na universidade mais de uma vez, de modo a compartilhar com os colegas licenciandos os saberes dos quais estávamos nos reaproximando. Foi assim que o congo passou a integrar, pela via das práticas corporais, as tematizações da disciplina Educação Física no ensino fundamental com outros elementos locais compartilhados por colegas de outras comunidades, que passaram a ser debatidos e problematizados no processo de formação inicial, na perspectiva de uma Educação Física culturalmente orientada. Naquela ocasião, narrava o futuro professor:
Mesmo participando das festas de congo desde pequeno, por meio da história oral, pouco sabia da história do congo. Sabia apenas que era para celebrar são Benedito e são Sebastião. Não sabia, também, o significado da casaca, mas sempre tocava na procissão, ao lado da banda Amores da Lua, com minha camisa azul da banda de congo mirim, que eu ganhava do meu pai, integrante da organização (NARRATIVA 4, 2017).
Mais tarde, essa reflexão se aprofundaria no memorial de formação, no qual o professor em formação trazia à tona reflexões diversas sobre os impactos dessas experiências em seu processo formativo:
O Congo capixaba é uma prática corporal com o qual tenho contato desde pequeno, por morar em Nova Almeida, local de nascimento dessa manifestação, segundo a tradição oral, mas, mesmo assim, não sabia de vários desses significados e nunca aprendi na escola. Mesmo dizendo no início do trabalho que não tinha uma experiência em que era sociocorporalmente favorecido, ao desenvolver este trabalho, percebi que era, sim, pela relação afetiva que tenho com essa prática. Pretendo trabalhar com ela em minhas futuras aulas, e é claro, outras tantas e tantas (SOEIRO, 2018, p. 106-107).
As primeiras experiências de docência desse professor, depois de formado, aconteceram na mesma comunidade, em 2019, na escola municipal onde havia estudado e na qual não se recorda, enquanto era estudante, de uma tematização do congo em qualquer situação de socialização do conhecimento. Diante disso, as buscas sobre o congo ganharam outra dimensão: o acervo foi ampliado e novas experiências com essa prática foram realizadas. Também se produziram significados para o processo formativo contínuo, profissional e pessoal, na constituição identitária com o lugar, pelo reencontro com o congo. Aquela experimentação do processo formativo virou proposta de ensino, que nascia das experiências dos estudantes, registradas pelo professor em seus portfólios profissionais.
O congo tornou-se ponto de partida para as primeiras experimentações docentes, e o percurso metodológico expandia-se no tempo dos acontecimentos escolares, que agora poderiam ser acompanhados com mais calma. Partia das músicas, das bandas e artistas locais, das obras de arte, do patrimônio histórico-cultural. Retomava os aspectos históricos e focalizava os instrumentos das bandas de congo produzidos na própria comunidade. Veio a estranheza: “- Eu hein! Deus me livre de casaca... - Por quê? - Você sabe o que significa a casaca? Deixa pra lá...” (CONVERSA 1, 2019).
Em nossos movimentos pedagógicos, era perceptível o estranhamento de alguns estudantes com respeito aos elementos do congo. Então, construímos com eles um entendimento desses artefatos como instrumentos reinventados por diferentes grupos étnicos: a casaca vinha do reco-reco indígena, com o acréscimo de uma cabeça pelos africanos, criada para representar seus senhores, e um pescoço longo, para segurar com firmeza o instrumento24.
Das conversas com os estudantes emergiu o que se apresentaria como o maior desafio do trabalho com o congo: as preconcepções em torno da religiosidade que atravessa aquela prática. No processo de seu ensino-aprendizagem, esbarramos em narrativas que reproduziam concepções oriundas de outros espaços de socialização dos estudantes, a dizer da família e das religiões cristãs evangélicas. Em uma conversa com o professor, dizia um estudante:
- Eu toco congo desde 5 anos e até hoje eu gosto de tocar, mas tem gente que acha que é macumba, eles têm que conhecer a cultura para depois falar. Eu sei que congo não é de Deus, mas depois que você for conhecendo você vai gostar e não vai sair da igreja para conhecer.
- Mas por que você acha que o congo não é de Deus?
- Porque tem briga, bebidas alcoólicas tem homenagem a outros deuses, mas é assim que eu vejo o congo, com amor (CONVERSA 2, 2019).
Também, nesse sentido, alcançavam a escola as intervenções familiares, direta ou indiretamente:
Um aluno pediu aos seus colegas para ir buscar um tambor para ele e começamos a apresentação. Em poucos minutos sua mãe aparece na escola e fala para ele não tocar. Ao perguntar aos seus colegas, eles me disseram que antigamente ele tocava bem e na banda mirim, mas sua mãe não gostava e não o deixava tocar, por causa da religião. Eu conversei com ele e pedi para obedecer a sua mãe, mas ele insistiu que sabia tocar, gosta de tocar e não tem nada a ver ele tocar congo (NARRATIVA 1, 2019).
Questões complexas não podem ser tratadas com respostas simples. É preciso problematizar o congo em suas diversas dimensões, a começar por seu processo histórico. Essa história, repleta de riquezas e belezas, envolve também o doloroso processo colonizador: as imposições a que foram submetidos os indígenas “civilizados” pelos jesuítas e os processos de escravização dos africanos que chegavam a terras capixabas em finais do século XIX e dos quais somos descendentes. Também é importante refletir, com os estudantes, sobre os encontros, os hibridismos e as trocas estabelecidas entre os diferentes grupos étnicos.
É necessário que dialoguemos com o presente, com as memórias dos mestres e congueiros, em busca da proximidade que esses indivíduos têm com os estudantes. Convidar e ouvir os mestres, pais, tios e avós é um caminho profícuo para compreender proximidades e distanciamentos com a cultura. Lembramos que foi no processo de rememorar que o professor se deu conta da profundidade da presença do congo em sua vida:
Meus familiares sempre foram muito participativos. Meu pai e tio carregaram o barco durante muitos anos; os braços travados eram efeitos de muita tensão. Um ficou ajudando na organização, mas sem puxar mais o barco e o outro mudou de religião, mas no coração, o congo pulsa forte nos dias 20 de janeiro. Sei que a vontade de voltar é maior que ele (NARRATIVA 5, 2017).
Em práticas curriculares culturalmente orientadas, os saberes são organizados e concebidos de outro modo, realizando um
[...] deslocamento da dança, música e religiosidade para a cultura [no sentido de movimentar] o jogo de centramento e descentramento realizado na prática do currículo cultural. No movimento entre sagrado e profano [...], vão se produzindo as camadas dos corpos/conhecimento (GEHRES; BONETTO; NEIRA, 2020, p. 10).
O movimento das reflexões e problematizações de sentidos e significados do congo, por meio da cultura corporal, parecia provocar o efeito de acolhimento. A cada conversa e a cada batuque, quebrávamos paradigmas e preconceitos, questionávamos colonialismos e materializávamos outro princípio do currículo cultural da Educação Física: a descolonização desse currículo (NEIRA, 2018), que limitava os corpos às experiências com o congo. Ao trabalharmos com a história, as memórias, a arte, as músicas e os artefatos - muitos já conhecidos pelos estudantes - e seus significados, os preconceitos eram tomados como objeto de análise coletiva e iam, aos poucos, esvaindo-se, conforme é possível observar nas avaliações dos estudantes:
Eu gostei muito de aprender a tocar os instrumentos e saber da história do congo, mas eu tenho vergonha de cantar essas músicas, algumas são engraçadas. Falam de coisas de gente velha, tipo isso, mas é legal, eu gostei (ESTUDANTE 1, 2019).
[...] essa cultura é bem interessante. Não sabia da história nem nada, achei massa os meninos tocando, mas eu mesma não levo jeito não (ESTUDANTE 2, 2019).
Eu achei interessante o que é a casaca. Eu pensava que era cabeça de santo, essas coisas. Tinha até medo (ESTUDANTE 3, 2019).
No processo de ensinar-aprender o congo em uma prática que se proponha culturalmente orientada, é possível ler a identificação com o lugar e a desconstrução de certas imagens que se produzem sobre ele: “A tematização das práticas corporais com base na sua ocorrência social e a problematização dos significados que lhe são atribuídos objetiva imergir os estudantes nas águas da realidade” (NEIRA, 2018, p. 81). Desse modo, afirmar a importância de tematizar nas escolas do município da Serra/ES elementos da cultura imaterial local, como é o caso do congo, implica deixar adentrar na escola as “gentes que produzem essas culturas”, o que significa
[...] falar do povo negro presente nas periferias do município, que com insistência e resistência, fazem ecoar de seus guetos socioculturais suas vozes. Portanto, tratar do Congo e da Folia [na escola e] na formação docente, é apontar para uma escola que tem a necessidade de transcender as práticas preconceituosas, problematizando questões ‘engessadas’ na escola, como a detratação da cultura afro-brasileira em velhas frases como ‘congo é macumba’, ‘macumba é do diabo’, ‘isso não é cultura’ etc. (SERAFIM, 2020, p. 43).
Tratar dos saberes locais na escola leva-nos, por fim, a uma reflexão sobre as relações entre a escola e a comunidade. Como lembra Silva (2016), a comunidade não é apenas o entorno da escola. A escola é parte dela. Comunidade é contexto, lócus e conteúdo educativo sob as mais diversas possibilidades. E o currículo escolar estende-se e complexifica-se quando tensionado pelas questões comunitárias:
Era dia de caminhada contra a dengue. Reuniram-se na praça do centro de Nova Almeida (praça redonda) todas as escolas públicas municipais do distrito. À frente, um carro de som da prefeitura, professores, diretores, pais e alunos de várias escolas. Aquela multidão se colocava a caminhar com seus cartazes e faixas nas mãos. Em meio ao som do carro da campanha de dengue, soa um apito. Olho para trás, e um (re)encontro acontece: eram meus alunos do morro com seus tambores e suas casacas nas mãos... Som do congo e sensações diversas... Era o congo na rua, como costuma acontecer nos dias 20 de janeiro.... A banda mirim junto aos mais velhos... uma aula de cultura local (NARRATIVA 2, 2019).
Outro episódio ocorrido em um dia em que a escola se abriu para a comunidade e o congo entrou deve ser mencionado: na finalização de um projeto promovido pela prefeitura municipal, o professor propôs uma apresentação de congo com base nos aprendizados construídos nas aulas de Educação Física. Com um grupo de estudantes que tocam na banda mirim, saiu da escola para buscar os instrumentos em uma casa próxima:
Ao sairmos da casa, um aluno puxou a música: ‘São benedito é santo, eu também sou rezador’. Continuamos com a mesma música até a esquina próxima a escola. Ao atentar para o teor das músicas, parei um pouco e conversei com eles como fiz na aula, explicando que não cantaríamos as músicas que falam de santo. Mas a cena foi engraçada, pois percebi a empolgação de como ele clama a canção na rua, sobretudo, a rua de onde, durante as festas, saem as bandas de congo de Nova Almeida. Talvez por isso seja difícil para ele, naquele espaço, diferenciar o congo da escola e o congo na escola. Nesse curto caminho nos encontramos com uma senhora, que logo disse: ‘Pode parar! Tá muito rápido!’. Um aluno, então, falou: ‘fulana é fera, sabe muito’. Então, ela pegou uma casaca, autorizou os tambores e as demais casacas e foi ajustando o ritmo de nossa batucada. Naquela esquina, cantou conosco mais duas músicas. Convidamos ela para ir à escola e ela disse que só não ia conosco porque o feijão estava no fogo (NARRATIVA 3, 2019).
Poderiam os meninos do morro separar o suposto congo da escola do congo na escola do morro? Encontramo-nos diante de uma complexidade que envolve a coexistência do congo em seus corpos. Crianças que vivem o congo, direta ou indiretamente, naquele lugar, no morro, naquela escola do morro, próximos àquela igreja. Escola que não tem muros (ALVES, 2001), mas que parecia fechada às vibrações e batucadas de casacas e tambores que ecoam ali do lado. O congo, que é expressão de vida na comunidade de Nova Almeida há mais de um século - a partir de movimentos de matriz africana e indígena que sofre descontinuidades e permanências, como costuma acontecer nos processos históricos -, insiste e resiste na vida da comunidade, na voz da senhora da esquina.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto narrou e problematizou o percurso investigativo que envolveu processos de formação e práticas curriculares na relação com o congo de Nova Almeida, entre 2017 e 2019, em dois movimentos concomitantes: a) o de reconstituir historicamente, na relação com fontes diversas, o congo de Nova Almeida como elemento da cultura capixaba, nos sentidos que tem produzido para aquela comunidade há quase dois séculos; e b) o de narrar memórias do congo e questionar práticas curriculares que o tematizem na escola.
Esse percurso de pesquisa-formação (JOSSO, 2004) guiou-se pela junção de ferramentas teóricas e metodológicas que propuseram estabelecer o diálogo entre incursões historiográficas e a pesquisa-formação, de caráter (auto)biográfico. Ao pensar possibilidades de trabalho com o congo na escola, guiou-se principalmente pela proposta de uma prática culturalmente orientada. No entendimento das práticas corporais como práticas cultural, social e historicamente situadas, a Educação Física tornou-se
[...] um campo aberto ao debate, ao encontro de posicionamentos distintos, à mercê de agenciamentos variados [...]. Uma arena de disseminação de sentidos, de polissemia e de produção de identidades voltadas para a análise, significação, questionamento e diálogo entre e a partir das culturas corporais (NEIRA, 2018, p. 15).
No que concerne à articulação com a Educação Física, o congo, neste texto, foi lido em seus processos históricos, contínuos e descontínuos e tematizado de formas diversas, que excederam as práticas corporais. Isso nos leva ao entendimento de que um currículo culturalmente orientado pode tanto potencializar componentes curriculares isolados quanto proporcionar encontros entre os diferentes campos do conhecimento na escola. Mais do que isso, pode orientar propostas curriculares e projetos escolares mais abertos, desde que a escola se compreenda como ente comunitário e abra suas portas aos saberes e às experiências da comunidade que integra.
É certo, entretanto, que pensar as práticas curriculares numa perspectiva cultural não significa fechar-se na comunidade, mas partir dela e do conhecimento de si, para então abrir-se ao conhecimento dos outros, dos saberes e dos fazeres dos outros, de outros grupos, de outras comunidades e de outras instâncias da vida.
Cabe reafirmar, por fim, que a busca pelas práticas corporais tradicionais dos bairros e comunidades, instigada durante a formação inicial, e o processo que se seguiu até o começo da atuação docente de um professor promoveram a descoberta/redescoberta do congo como elemento vital das culturas e das produções identitárias capixabas, possibilitando a produção e a ampliação de seus sentidos na própria vida dos professores envolvidos. Produziu em nossas práticas docentes - na educação básica e no ensino superior - outros afetos e outras marcas e a identificação com a história do Espírito Santo. Moveu-nos, assim, ao desejo de uma investigação formativa conjunta, no diálogo entre memórias, narrativas e elementos da história local. Um percurso que fez deste texto algo de (auto)biográfico, no encontro entre processos individuais e coletivos.