1 INTRODUÇÃO
O Homo Sapiens evoluiu e realizou a sua humanidade ao longo de 600 mil anos de errância nômade (HARARI, 2016), sem convenção de fronteiras. Apenas nos últimos 12 a 10 mil anos, com a chamada revolução agrícola, o territorialismo começou a se firmar como hábito e, dentro de fronteiras, intensificou-se o desenvolvimento de variados modos de produção e formas culturais e políticas: modos e formas identitariamente delimitados.
O feudalismo europeu levou ao extremo esse modo de organização econômica, política e social delimitado, divisório, fronteiriço: muros e fossos de castelos e vilas foram a expressão literal das demarcações conceituais religiosas, morais, políticas e culturais dominantes. A subjetividade moderna emergente, em contra, constituiu-se como ruptura dessas fronteiras, e a partir dessa ruptura, como uma autodeclaração de emancipação de fronteiras, manejando um discurso de liberdade universalista em todos os campos: estético, afetivo, religioso, moral, científico, político. Não obstante, tal ímpeto de liberdade universalista não tardou a (re)construir fronteiras identitárias: para a economia (toda propriedade privada é um território ou objeto delimitado e cercado); para a sociedade (as classes sociais são separadas e antagonizadas por proprietários e não proprietários); na ciência (as demarcações epistemológicas definem as fronteiras da validação e os critérios de razoabilidade); na filosofia (mediante demarcações das disciplinas e campos do saber); na política e na cultura (mediante demarcações entre nações, povos, raças/etnias, “selvagens” versus “civilizados” etc.).
A Modernidade, na sua origem, foi ao mesmo tempo um grande empreendimento de ultrapassagem das fronteiras dos conquistadores europeus, visando anular as demarcações originais dos territórios culturais conquistados, anulando os Outros na sua Alteridade ética, reposicionando-os redutivamente como colonizados no interior das fronteiras do Mesmo, tal como definidas pelo conquistador (DUSSEL, 1993).
Esse movimento colonialista de expansão das próprias fronteiras encontrou a sua talvez mais indisfarçável expressão jurídico-política na Conferência de Berlin (1884-1885), quando a Europa assumiu para si o suposto direito de repartir a sua suposta propriedade sobre a África, para atender às novas demandas internas do surto econômico desencadeado pela segunda revolução industrial. Tratava-se de mais um passo da globalização, na modalidade que Boaventura de Souza Santos chamou de “globalismo localizado” (Santos, 2010): a extensão expansionista de uma forma cultural local (particular) sobre o global. Desse ponto de vista, foi flagrante o caráter contraditório da partilha da África em ‘novas nacionalidades’ (cujas fronteiras violentaram cruelmente as tradicionais distribuições e repartições de espaços ambientais-culturais de povos e culturas ancestrais): tratava-se do mesmo protagonista - o capital - que, ironicamente, após a Segunda Guerra Mundial, veio a intensificar o movimento contrário, de supressão de fronteiras nacionais, agora visando alcançar mundialidade para o mercado, em cumprimento à sua inerente pulsão de internacionalizar-se, já apontada em 1848.
O processo de globalização, sempre operando em modo neocolonial, entrou no século XXI com uma agenda extremada no que se refere ao tema das fronteiras. Os conflitos, atravessamentos, nebulosidades, diluições e, no limite, apagamentos de fronteiras, vieram impondo novos e decisivos desafios à governança mundial, ao mercado globalizado e às interculturalidades - no interior das nações e nas relações internacionais, afetando diretamente todas as instituições, mas de modo especial a escola e, portanto, o Currículo.
Verifica-se um deslocamento de identidades culturais, com produção de novas contradições: ao tempo em que a narrativa politicamente correta exalta a diluição das fronteiras nacionais e os mercados exaltam sua desejada abertura, instituem-se novas fronteiras de cunho nacionalista com as medidas econômicas protecionistas sobre commodities e com as políticas migratórias restritivas.
O discurso progressista pelo fim das fronteiras territoriais, étnicas, linguísticas e culturais e pelo advento definitivo de uma mundialização aberta e sem fronteiras, vem coexistindo com movimentos e discursos neoconservadores, que insistem em (re)delimitar fronteiras reais (veja-se o surpreendente Brexit, em 2020) e simbólicas, e que (re)instituem grupos de identidade reacionários, não raro antidemocráticos, supremacistas e violentos.
Não obstante, os tempos-espaços sociais e, mais especificamente, os educacionais, já não têm outro modo de funcionamento sustentável que o da convivência plural e do hibridismo cultural, que reflitam e, ao mesmo tempo, gerem novas identidades, mais fluidas, mais individualizadas, saudavelmente conflitivas e contraditórias, em permanente (re)construção.
Esses processos histórico-culturais impõem uma reflexão sistemática acerca das relações educacionais - o Currículo, nesses contextos heterogêneos, tendo em vista o imperativo ético da convivência, da empatia, do diálogo, da solução pacífica de conflitos, da solidariedade, do respeito ao Outro nas suas diferenças.
Partimos da premissa de que uma reflexão sistemática acerca das fronteiras físicas e simbólicas tenha se tornado indispensável e urgente para a compreensão das relações culturais e, especialmente, do Currículo, na contemporaneidade brasileira e latino-americana e, analogamente, africana e asiática, numa perspectiva decolonial (MIGNOLO, 2017; WALSH, 2019).
O presente artigo emerge desse contexto e a partir dele repensa as fronteiras do Currículo. Encontra-se ordenado em quatro partes: na primeira, são apresentadas as diversas faces do conceito de fronteira; na segunda, as fronteiras limiares entre os conceitos de identidade e diferença; na terceira, as fronteiras que permeiam o Currículo; na parte final, algumas considerações conclusivas e de novas aberturas.
2 FRONTEIRA: UM CONCEITO POLISSÊMICO NA DELIMITAÇÃO DE ESTADOS-NAÇÕES E EM SEUS DESDOBRAMENTOS CULTURAIS
Não terá sido por casualidade etimológica que o termo ‘fronteira’ foi trazido dos registros militares de guerra para a marcação dos territórios nacionais, e daí se estendeu metaforicamente para o campo da cultura. O termo deriva do francês frontière, que indicava a vanguarda de um exército; por seu turno, frontière proveio do latim frons, frontis, que significa literalmente frente, rosto, e serviu de base a front, agora metaforicamente de volta à linguagem bélica, que se estabeleceu nas línguas contemporâneas, para designar a frente dos exércitos nas batalhas (SILVA, 2004).
“[...] Vê-se, pois, que na origem da palavra fronteira mesclam-se vocábulos vinculados às lides militares e guerreiras. Carlos de Meira Mattos, general do exército brasileiro [...] sustenta que as guerras têm estreita relação com as fronteiras [...]” (SILVA, 2004, p. 375).
Na modernidade, o conceito se ampliou para designar os limites territoriais entre os Estados-Nações, terminologia associada à geopolítica e, por conseguinte, às relações de poder e de soberania.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa apresenta três conceitos de fronteira: fronteira-faixa, “que se caracteriza pela existência de fortificações e de obstáculos defensivos”; fronteira-linha; “que se caracteriza pela utilização de linhas geodésicas e/ou por acidentes naturais”; e fronteira-zona, “caracterizada pela imprecisão de uma linha demarcatória” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 932).
O que está presente no conceito de fronteira, de partida, mormente no senso comum, é a ideia de fronteira como a linha (física ou imaginária) que faz a divisão entre Estados-Nações e, por extensão metafórica, os marcadores simbólicos que segregam classes sociais, culturas, religiões etc. A fronteira seria o separador físico ou simbólico que demarca os limites entre um “Eu” e um “Outro” (um Eu nacional e um Outro estrangeiro, um Eu rico e um Outro pobre, um Eu branco e um Outro negro ou índio, um Eu religioso e um Outro não crente, ateu etc.). Mas a ideia de limites, numa fronteira é, ela própria, ironicamente, limitada, como se verá.
A pesquisadora Carla Águas considera três modelos de análise sobre a fronteira, que comportam três distintos significados: “fronteira que separa, fronteira como frente e fronteira que une” (2014, p. 3). E descreve:
[...] O primeiro [fronteira que separa] reúne as abordagens que a descrevem como uma linha divisória que marca a separação entre diferentes espaços - tenham eles a forma concreta dos territórios nacionais, ou sejam simbólicos, como a diferenciação de identidades.
Já a fronteira como frente é um espaço que, à semelhança do front de batalha, avança para ganhar terreno. Vincula-se, portanto, à noção de frontier. Contrariando a aparente fixidez da concepção anterior, é uma fronteira em movimento, em progressivo distanciamento do centro. Em função desta distância, este é um espaço marcado por certa fluidez e criatividade, mas também por relações desiguais e pelo poder sem limites (Ribeiro, 2001).
[...] a fronteira que une revela-se como um lugar de encontro e negociação. Não é linear, não avança. Portanto, deixa de lado a concepção de frontier para abraçar a ideia de borderland, que vem sendo tratada pelos estudos pós-coloniais como espaço in-between. Esta fronteira pode surgir e desaparecer, mudar de forma, e tem na fluidez uma das suas principais caraterísticas. Nesse sentido, o aquém da fronteira é um espaço ocupado, bem como o além da fronteira. E é na fronteira que esses mundos se encontram (ÁGUAS, 2014, p. 3, grifos da autora).
As três distinções não são excludentes, segundo a autora, de maneira que num mesmo tempo e espaço é possível conviverem diferentes formas de fronteira, pois a linha divisória que separa (ou a zona na qual reciprocamente se imiscuem) é a mesma que propicia o cruzamento - o encontro, união.
Nesse sentido, enquanto linha demarcadora de espaços, a fronteira é intrínseca a todas as relações humanas, pois as sociedades, mormente as modernas, pautadas por marcadores de limites, incluem uns e excluem outros. De um lado da linha, alguns (privilegiados) têm acesso aos direitos sociais; do outro lado, outros (carentes) têm seus direitos negados. Essa concepção rígida e fixa de fronteira não resiste à crítica de uma concepção dinâmica que envolva os entrecruzamentos e as inter-relações humanas, isto é: cabe ultrapassar a ideia de fronteira intransponível, como limite cristalizado, e avançar para uma concepção de fronteira como fluxos (de pessoas, culturas, ideias etc.), como espaços de encontro, de interação e de aprendizagem mútua.
Pensar em fronteira é tratar de limites, demarcações, o que pressupõe o dentro e o fora, o mesmo e o diferente. Tratar de fronteira é discutir a diferença e refletir sobre as formas de lidar com ela. No entanto, a ideia de fronteira que aqui se discute está além do sentido dicionarizado de limite geográfico, de demarcação física de espaços (SOUZA, 2014, p. 476).
Em suma, o conceito de fronteira como espaço físico geográfico pode remeter à demarcação segregadora; mas como espaço político-cultural mostra-se como conceito multifacetado, que agrega e/ou conflita pessoas em suas múltiplas e diversas relações.
No Manual de Direito Internacional Público, Silva e Accioly apresentam a sutil diferença entre limite e fronteira: “o limite é uma linha, ao passo que a fronteira é uma zona” (2002, p. 259). Os autores destacam ainda que a demarcação das fronteiras comumente resulta de acontecimentos históricos ou de acordos mútuos, sem necessariamente requerer princípios absolutos.
O conceito de “zona”, oriundo mais proximamente da geografia, evoca o reconhecimento de ocupação humana no limite, o que implica misturas, conflitos e integrações, ao tempo em que convoca o conceito sociológico-antropológico de ‘campo’, de Bourdieu (1989). O sociólogo francês refere-se aqui aos distintos espaços simbólicos, tais como da religião, arte, economia, política etc., nos quais as lutas dos seus sujeitos determinam e legitimam representações que em última instância operam para garantir o domínio de uma classe sobre outra, como eficácia do poder simbólico.
[...] O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama conformismo lógico, quer dizer, “uma concepção homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências" [...] (BOURDIEU, 1989, p. 9, grifos do autor).
Não é por acaso, ademais, que o conceito de ‘zona’ remonta etimologicamente à demarcação da ‘linha da cintura’ do corpo humano (em grego: zóne designava a linha da cintura), que identificava modos de funcionamentos orgânicos distintos entre as pulsões instintivas do baixo-ventre e as partes corpóreas superiores, onde se situavam o peito (sede da vontade) e a cabeça (sede da razão) - tal como descrito por Platão em A República (PLATÃO, 1981). Ou seja, o conceito de “zona”, na sua acepção original, não funcionava para distinguir espaços indiferenciados, e sim, ao contrário, âmbitos simbolicamente bem significados e identificados, ainda que intrinsecamente integrados.
Assim, nessa ‘zona’ de territórios fronteiriços de nacionalidades dá-se uma significação de delimitações geográficas e culturais/institucionais (rios, escolas, casas, trabalhos etc.) em três âmbitos mesclados: de um lado, de outro e no próprio campo/zona fronteiriço/a. Isso porque as relações possíveis de serem aí travadas se fazem dentro do campo particular de significações: em fronteira(s). Trata-se de relações cujas significações não podem ser prévia e imovelmente definidas: seus contornos semânticos flutuam e oscilam na imprecisão e permeabilidade do campo, que é atravessado simultaneamente por significações de, ao menos, duas nacionalidades e culturas, sendo inevitável o enlaçamento contraditório de integrações e conflitos.
Por isso, cabe convocar o conceito de “entrelugares” de Bhabha (2013), pois a fronteira como zona se mostra como esse campo de fluxos de mão dupla, de atravessamentos recíprocos, do ambivalente estar dentro e fora simultaneamente.
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo”, que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABBA, 2013, p. 29, grifos do autor).
Esse conceito de “entrelugares” de Bhabha (2013) não se reduz, evidentemente, ao eixo diacrônico de continuidades entre passado e presente; ele convoca com similar dramaticidade o “entrelugar” sincrônico da interculturalidade: onde o novo se apresenta na exterioridade da alteridade. Nessa perspectiva, todo Currículo é “entretempos, entrelugares, entrepessoas” (CASALI, 2021).
A exaltação exacerbada das fronteiras é efeito da exaltação dos Estados-Nações, tendo em vista a garantia da soberania territorial e a defesa de países e povos. O conceito de fronteira se vincula ao de Estado-Nação, de modo que o espaço de delimitação das linhas fronteiriças possa ser justificativo tanto para a paz quanto para a guerra entre as nações (FERREIRA, 2017).
De um ponto de vista ético e do direito, porém, introduz-se uma nova contradição: se os Estados-Nações se assentam sobre fronteiras geográficas e só logram sustentar suas identidades mediante remissão aos seus limites territoriais, “a República - que é um dos possíveis projetos políticos das Nações - encontra sua identidade própria apenas enquanto projeto inclusivo, intercultural, aberto ao supranacional, universal, sem fronteiras” (CASALI; CAMARGO, 2020, p. 169).
No Direito Internacional, o conceito de fronteira remete à geopolítica, e implica um território localizado na divisa entre dois ou mais Estados ou ainda linhas que demarcam o exercício da soberania e as competências de um Estado e de outro. Cortês (2005) apresenta a concepção de Fronteira Jurídica como “limite legal entre as jurisdições soberanas de dois Estados”. E acrescenta ainda:
As fronteiras jurídicas são regidas por normas do Direito Internacional Público e por Atos Internacionais, inclusive acordos e tratados bilaterais. Elas são visíveis, ainda que, em determinados casos, essa “visibilidade” exista em função de alguma convenção (por exemplo, uma linha geodésica). As ações de violação de uma fronteira jurídica são detectáveis, às vezes até mesmo antes de se efetivar a violação. Quando não chegam a ser previamente detectadas, as violações e seus resultados são fisicamente perceptíveis (CORTÊS, 2005, p. 2-3).
Na sociologia, a fronteira física se ampliou para o espaço social e político, e constituiu-se como o lugar da liminaridade, da identificação e dos conflitos inerentes ao encontro com a humanidade, o que converge no desencontro. Transcendeu-se a concepção geográfica para uma compreensão de fronteira humana (MARTINS, 2018). É como o cientista social José de Souza Martins se expressa: a fronteira como o espaço da alteridade, do limite do humano, pelo confronto das manifestações sociais, culturais e étnicas.
[...] Em sentido mais amplo a fronteira étnica se manifesta nos conflitos que põem em confronto grupos étnicos ou frações de grupos étnicos, geralmente quando os respectivos territórios se superpõem. Esse é basicamente o território do confronto entre o nós e os outros, quando ainda não se estabeleceu um acordo de convivência no mesmo espaço. [...] (MARTINS, 2018, p. 66, grifos do autor).
O conceito de fronteira cultural surgiu na antropologia, associado à descrição das culturas, de partida como a interface entre o pesquisador e a cultura dos sujeitos pesquisados (a fronteira entre o familiar e o estranho) e entre as diferentes culturas que se relacionam, que se encontram sob estudo. A etnografia, esforço de aproximação à cultura do Outro, implica o atravessamento de uma fronteira; sempre apenas até um certo ponto, com apenas um certo alcance. Pois a completa imersão na cultura do outro, dirá Geertz (2015), é impossível: a fronteira dos significados da cultura é intransponível. Pois para Geertz o conceito de cultura é semiótico: a antropologia “não é uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa à procura do significado” (p. 15), que poderá ser, no máximo, descrito. A etnografia, assim, consiste numa “descrição densa” (p. 20). Seu objeto é “uma hierarquia estratificada de estruturas significantes” (p. 17), razão pela qual “a análise cultural é intrinsecamente incompleta” (p. 39).
Ainda assim, com todas essas intransponíveis limitações, o adentramento no campo de significados e sentidos do Outro exige o desenvolvimento de uma capacidade prévia, a saber: a capacidade de estranhar a familiaridade da própria cultura. E o estranhamento daquilo que é familiar ao pesquisador - o "estranhamento crítico diante do próximo" -, dirá Guilherme Velho (2003, p. 18), é o enfrentamento mais difícil dos estudos em Antropologia.
3 IDENTIDADE E DIFERENÇA: LIMIARES DE FRONTEIRAS CULTURAIS
O tema da identidade e diferença é um dos mais antigos e complexos da filosofia, tendo raízes mais explícitas e sistemáticas já nos pré-socráticos, particularmente no confronto entre Heráclito (540 - 470 a.C.) com sua filosofia do devir, e Parmênides (515 - 460 a.C.) com sua filosofia do ser uno, idêntico e imutável. O tema segue tão nebuloso que, mesmo aquele filósofo (referimo-nos a Hegel e seu método dialético - inerentemente não identitário) que mais impacto produziu sobre o tema com a grande guinada de método no pensar filosófico, segue sendo conhecido como ‘a filosofia da identidade’, uma vez seu grande movimento de pensamento em última instância não evade o âmbito de uma totalidade previamente pensada: movimento do pensamento a partir do Saber Absoluto e de retorno ao Mesmo (HEGEL [1830], 1995 apudCASALI, 2021).
A modernidade ocidental fez nascer um sujeito moderno, o qual se reconhecerá e se expressará como um ser incompleto, inacabado, que constrói sua identidade ao longo da sua existência.
A construção social da identidade e da modernidade ocidental é pautada naquilo que Boaventura de Sousa Santos (2010) chama de “raízes e opções”, que gera um pensamento moderno com caráter duplo. “Raízes” é o pensamento de tudo que é profundo, sólido e permanente, que remete segurança e consistência; é o pensamento do passado. “Opções”, por sua vez, é o pensamento de tudo o que é variável, efêmero e indeterminado; por isso, é o pensamento do futuro. Como afirma Santos (1994, p. 50):
O contexto global do regresso das identidades, do multiculturalismo, da transnacionalização e da localização parece oferecer oportunidades únicas a uma forma cultural de fronteira precisamente porque esta se alimenta dos fluxos constantes que a atravessam. A leveza da zona fronteiriça torna-a muito sensível aos ventos. É uma porta de vai-e-vem, e como tal nunca está escancarada, nem nunca está fechada (grifos nossos).
O debate acerca das fronteiras implica o esclarecimento sobre identidade e diferença; pois a fronteira, física ou simbólica, é um espaço de fluxos, de tensões, de afirmação e/ou de negação de identidades e diferenças.
A afirmação da identidade remete ao seu limiar, a diferença, pois é a partir do Outro, na relação de heteronomia, que a identidade é construída, para sustentar a construção da autonomia. O Outro é estruturante para o sujeito, é constitutivo para a sua formação, o gerador de referências identitárias, o que propicia a experiência fundante do Mesmo e da Diferença. Todo sujeito é originariamente heterônomo, na medida em que sua identidade é - e só pode ser - definida pelo olhar e pela palavra do Outro; e apenas na convivência do “Eu” com um “Outro” as percepções e experiências da diferença podem ser construídas.
Quando surge um novo ser humano, ele se forma no seio de sua mãe. Essa é a matriz onde é recebido e vai tomando forma todo o ser biológico. Sem o apoio dessa matriz biológica e psicológica, esse novo ser não poderia sobreviver.
[...]
Graças a essa matriz, o novo ser humano não precisa sempre reinventar tudo do nada. As pessoas de seu meio e esse próprio meio vão lhe fornecendo pistas, normas e soluções práticas para a imensa maioria de problemas comuns da vida. [...] Partindo daí, ele também - junto com os que o rodeiam - irá acrescentando sua própria experiência e sua criatividade a essa imensa e crescente bagagem cultural (ALBÓ, 2005, p. 15-16, grifos do autor).
A transição da heteronomia para a autonomia (que Kant consagrou como sendo a marca da maioridade (KANT [1784], 2004), coincide com o processo de apropriação (construção) de uma identidade, a partir da autoconsciência, que converge em uma identidade radical.
O conceito de identidade é contestado por Bauman (2005, p. 83-84), porque remeteria a uma ambiguidade: constitui-se em um grito do indivíduo ao ataque de um grupo, e de um grupo menor e fraco contra uma totalidade maior: “[...] A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado”. Há, destarte, uma natureza a ser considerada sempre provisória.
Ainda segundo o autor polonês, a passagem da fase “sólida” para a fase “fluida” da modernidade teve implicações na formação das identidades, pois assim como os fluidos que não conseguem manter a forma por muito tempo, estas passam a ter formações líquidas e reversivas. Assim sendo, a Modernidade deve encontrar meios - sempre precários - de realizar seu grande projeto econômico-político, que requer regularidades e previsibilidades, com a imprecisão das identidades de seus sujeitos (CASALI, 2021). Bauman (2005) fez um balanço crítico completo do grande projeto identitário da Modernidade e concluiu que ele se liquefez. A Modernidade não terá como evitar incertezas e atravessará insolúveis crises de identidade.
O sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall (2015) não estranha os desconfortos que o tema segue provocando contemporaneamente. Ao contrário, argumentou o quanto as identidades modernas há tempos já estão sendo “descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas” (p. 9); como essa fragmentação já se mostrava no sujeito do Iluminismo e segue no sujeito sociológico e antropológico e, especialmente, no sujeito “pós-moderno” (p. 10). Ou seja: as sociedades da modernidade tardia são distintivas pela mudança constante, rápida e permanente, o que resulta na formação de identidades abertas, inacabadas, contraditórias e fragmentadas.
Essa mudança de cenário originou-se do processo de globalização que atravessou a vida das pessoas e provocou deslocamentos e desligamentos das identidades nos lugares, tempos e tradições históricas:
[...] Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem aos quais se pode “falar”. [...] (HALL, 2014, p. 111-2, grifos do autor).
Identidade e diferença resultam de sistemas simbólicos e políticos e das relações sociais que os indivíduos neles estabelecem: é a partir do modo como certos significados são construídos socialmente que os sujeitos se afirmam e se constituem. Pelo inverso: os significados das relações de identidade e diferença entre os indivíduos revelam os sistemas de relações simbólicas e políticas em que estão envolvidos.
A afirmação da identidade só ganha relevância num contexto de diversidade e de diferenciação, ou seja, nos contextos fronteiriços, no qual o “Eu” se diferencia do “Não Eu”, que é o “Outro”. Por exemplo: a identidade brasileira só tem sentido ser destacada num contexto de distinção, marcado pela presença de outras, a argentina, a canadense ou a francesa, enquanto não brasileiras.
A identidade implica uma concepção posicional, pois demarca aquilo que o Outro não é em relação a si, e vice-versa; por isso mesmo, a identidade depende da diferença e se encontra em constante processo de (re)significação, a partir das relações sociais e da cultura.
A tensão entre identidades e diferenças, enquanto demarcadores culturais, é atravessada pelos demarcadores éticos da igualdade e da não inferiorização. Os demarcadores éticos se impõem em consequência da ambiguidade inerente a toda identidade-igualdade, assim como a toda diferença. A solução proposta pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos tornou-se um clássico aforismo: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2003, p. 56).
Santos (2010) propõe, assim, uma articulação entre políticas de igualdade e de identidade, superando a tradição das políticas da homogeneidade cultural, que historicamente provocou um assimilacionismo linguístico de vários povos, sobretudo indígenas e imigrantes. A perda da língua materna resulta, consequentemente, no desaparecimento da cultura e das marcas identitárias e diferenciadoras dos sujeitos.
Candau (2013) destaca que a perspectiva intercultural promove uma educação que reconhece o Outro, propicia o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais e constitui-se em uma educação para a negociação cultural, a qual enfrenta os conflitos provocados pelas desigualdades entre os diferentes grupos e possibilita a construção de um projeto, em que as diferenças sejam valorizadas e incluídas.
Tal política de igualdade não inferioriza, tampouco subordina a diferença, ao contrário, promove uma articulação horizontal de valor entre identidades e entre as diferenças. Analogamente, uma política de identidade se assenta no reconhecimento das diferenças. A igualdade que cabe prevalecer é a que concerne às condições de acesso aos direitos básicos de todas as pessoas.
4 AS FRONTEIRAS DAS CULTURAS: FRONTEIRAS DO CURRÍCULO
Todo Currículo é fronteiriço, pois todo Currículo é um percurso de formação que se realiza na confluência (fronteiras) de um eixo temporal, diacrônico, entre um passado e um futuro, uma tradição e uma inovação, com o eixo espacial, sincrônico, sobre o qual se estendem as presentes alteridades individuais e culturais - o eixo das diferenças, da diversidade.
Nesse sentido, assim afirma Macedo (2006, p. 288):
[...] o currículo é um espaço-tempo em que sujeitos diferentes interagem, tendo por referência seus diversos pertencimentos, e que essa interação é um processo cultural que ocorre num lugar-tempo cujas especificidades me interessam estudar.
Para a autora citada, o currículo escolar é pensado como um espaço-tempo de fronteira, como práticas ambivalentes que incluem o mesmo e o outro, espaço de negociação. No espaço-tempo do currículo há a presença da homogeneidade, herança das culturas do Iluminismo e do mercado capitalista, as quais não pensam a diferença, além disso subordinam a subjetividade (diferenças individuais) ao coletivo que é homogeneizado.
A transicionalidade temporal foi classicamente enfatizada por Durkheim, em chave sociológica, como “socialização”, isto é, afirmação identitária das velhas gerações, que buscam reproduzir-se por meio da formação das jovens gerações. Estava posta a tensão entre tradição e inovação, que entrou definitivamente para o campo das práticas (e estudos) curriculares e que vem intensificando-se com a aceleração das novas tecnologias.
O “sistema” econômico hegemônico mostra-se diretamente interessado e implicado nessa tensão fronteiriça diacrônica, pois depende, para reproduzir-se, de uma adequada solução entre “algo a reproduzir-se” e “algo a inovar-se”, para garantir que toda inovação realimente a substância do que deve ser reproduzido: em síntese, trata-se da formação das competências necessárias à reprodução do modo de produção capitalista. Por extensão, as políticas culturais hegemônicas, na medida em que são extensão do mesmo modo de produção hegemônico, em última instância buscam o Mesmo, produzindo homogeneidades, embora não sem o atravessamento das contradições sincrônicas que exercem pressão para dissolver essas fronteiras e abrir oportunidades para a diversidade e a inovação histórico-cultural.
Do ponto de vista das subjetividades, encontram-se as mesmas tensões, ainda que em condições menos rígidas, mais indeterminadas: nesse campo, as fronteiras identitárias das subjetividades mostram-se na plenitude das suas ambivalências e contradições: pois os sujeitos são dóceis, miméticos e identitários (vulneráveis à homogeneização), mas ao mesmo tempo desejantes de diferença; são autocentrados (egóicos) na sua pulsão autônoma de sobrevivência e necessidade de segurança, ao mesmo tempo que inevitavelmente dependentes do Outro para se realizarem.
O Currículo resulta, assim, numa prática social que promove em cada sujeito o conhecimento dos bens produzidos socialmente e amplia sua inserção no mundo dos processos e dos produtos culturais. Essa dinâmica encontra-se inscrita na própria etimologia latina do verbo educar: educere significando o conduzir para fora, para além, de um estado para outro, de uma condição para outra, o que inscreve essa prática no registro das fronteiras e estabelece que a educação genuína é aquela que impulsiona transformações no sujeito, conduzindo-o ao atravessamento e transposição (superação) de limites.
Por ser um tempo-espaço de disputas e de escolhas subjetivas, institucionais e políticas, considerando que não há neutralidade no ato educativo, o currículo escolar constitui-se em um campo de tensão fronteiriça, que separa e incorpora, desagrega e agrega, exclui e inclui. As fronteiras são parte da substância do Currículo. Por isso, vale a reiteração de todo Currículo como “entretempos, entrelugares, entrepessoas” (CASALI, 2021, p. 174).
Assim sendo, no Currículo, a concepção estática de fronteira, como limite ou linha divisória e de separação, deve ser ressignificada para uma concepção dinâmica, interativa, dialógica, transicional. As fronteiras do Currículo, isto é, as fronteiras das culturas, devem ser convertidas em espaços de entrecruzamentos e de inter-relações humanas em toda a sua amplitude subjetiva, institucional, política, cultural. Ou seja: no Currículo, as fronteiras não separam e sim articulam.
Essas demarcações inscrevem, necessariamente, o Currículo no campo da interculturalidade, que impõe o enfrentamento (no sentido literal fronteiriço) do diálogo entre as diferenças, as culturas, as alteridades. O tema se liga à proposição de Santos (2010), da construção de uma “hermenêutica diatópica”, um procedimento pautado na ideia de que todas as culturas são incompletas e, por assim o serem, podem/devem ser enriquecidas pelo diálogo intercultural:
[...] O objectivo da hermenêutica diatópica é maximizar a consciência da incompletude recíproca das culturas, através de diálogo com um pé numa cultura e outro pé, noutra. Daí o seu carácter diatópico. A hermenêutica diatópica é um exercício de reciprocidade entre culturas que consiste em transformar as premissas de argumentação de uma dada cultura em argumentos inteligíveis e creditáveis noutra cultura [...] (SANTOS, 2010, p. 87).
Sob esta orientação, os topoi (ponto de partida ou conjunto de normas) de certa cultura são tão incompletos quanto a cultura a que pertencem; por essa razão, as trocas recíprocas de saberes podem proporcionar um enriquecido diálogo intercultural, como meio de evitar o que o próprio Santos (2010) designou de “epistemicídio” - a destruição de saberes e conhecimentos das culturas subordinadas, pela ação homogeneizadora da cultura dominante ou hegemônica.
O diálogo intercultural, ao abrir espaços para a manifestação da diferença/outridade apresenta-se como uma proposta humanitária e um caminho para a realização de direitos humanos básicos. Pela alteridade, isto é, pelo reconhecimento de que todo ser humano é um ser dependente do Outro, emerge a afirmação do valor positivo da diferença e torna-se possível a desconstrução de práticas arraigadas na sociedade e nos espaços educacionais, como o etnocentrismo, a xenofobia, o racismo e demais manifestações preconceituosas, discriminatórias e violentas que produzem o aviltamento, a marginalização e a exclusão do Outro.
O reconhecimento da alteridade, na sua igualdade que não descaracteriza e na sua diferença que não inferioriza (SANTOS, 2003), emerge, assim, como um princípio ético de corresponsabilidade com a reprodução e o desenvolvimento da vida do Outro, prioritariamente daqueles que são vítimas (DUSSEL, 2012), excluídos, que têm suas identidades negadas e assimiladas pela totalidade hegemônica.
Como afirma Uchôa (2022, p. 88),
desse modo, sendo a ética, essencialmente praxeológica, isto é, vinculada com a ação humana, a educação constitui-se na execução da virtude ética quando inclui o Outro excluído, aquele afetado e que vive sob uma condição marginal ou periférica, fora do sistema vigente.
Posto isso, o desafio da escola, que emerge, é o de articular em modo fronteiriço os conhecimentos e saberes das diferentes culturas no Currículo, sem subordinação dos saberes do senso comum aos conhecimentos científicos, e articular as culturas, mormente as mais marginalizadas e negadas, mediante um diálogo entre as diferentes constituições culturais.
O diálogo, um dos eixos principais da teoria-prática freireana, materializa a ação ética pedagógica e permite o percurso do sujeito rumo à sua libertação, em comunidade. A dialogicidade, que nasce de uma relação horizontal e simétrica, converge para uma prática de libertação e para o despertar de uma consciência crítica originária dos próprios oprimidos (FREIRE, 1987).
A esse respeito, sob a perspectiva da interculturalidade no Currículo, Vera Candau (2012) enfatiza que os educadores devem se empenhar para: desconstruir e desnaturalizar o preconceito e a discriminação; revelar e questionar os significados de igualdade e diferença; questionar e problematizar o monoculturalismo e o etnocentrismo inseridos nos currículos escolares; resgatar os textos das culturas que historicamente foram negadas e promover o diálogo entre os saberes dos distintos grupos socioculturais; por fim, devem favorecer o empoderamento dos/as sujeitos/as, em vista da sua autoria, autonomia e participação em movimentos sociais.
A escola deve, pois, valorizar as diversas manifestações culturais, transformar-se em um espaço de inclusão de diferenças e de convivência, onde os sujeitos possam estabelecer um diálogo intercultural, aberto às mútuas contribuições das culturas.
É premente que o Currículo adote o compromisso sistemático de desenvolver nos sujeitos atitudes proativas de empatia e de respeito diante das diferenças e da diversidade, uma vez que não basta o reconhecimento inerte da pluralidade como marca constitutiva da contemporaneidade: torna-se necessário criar mecanismos para que se desenvolvam diálogos interculturais, de modo que as culturas possam se abrir às provocações e contribuições mútuas.
A realização do Currículo, incorporando essas referências epistemológicas e éticas em torno dos eixos da identidade e da diferença - um Currículo pautado na interculturalidade -, abre perspectivas de contribuição à justiça social, mediante a realização da justiça curricular, que segundo Torres Santomé (2013, p. 9) é:
o resultado da análise do currículo que é elaborado, colocado em ação, avaliado e investigado levando em consideração o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito em sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; ajuda-lhe a ver, analisar, compreender e julgar a si próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis por um projeto de intervenção sociopolítica mais amplo destinado a construir um mundo mais humano, justo e democrático.
A justiça curricular, para o autor espanhol, implica considerar as necessidades do presente e analisar criticamente os conteúdos dos diversos componentes e das propostas de ensino e aprendizagem que se pretende educar. Ou, como postulam Ponce e Neri (2017, p. 1215),
[...] a justiça curricular como uma prática de currículo que respeite as necessidades dos educandos, suas diferentes formas de aprender, seu direito a conhecimentos vivos que afirmem os seus contextos de vida e lhes garanta uma visão crítica do mundo, e que, finalmente, lhes dê garantia de acesso aos bens culturais como parte do seu pleno desenvolvimento.
Para a efetividade da justiça curricular, Gimeno Sacristán (1999) enfatiza a ideia de um “relativismo sadio”, para o trabalho com as culturas na escola, sem relativizá-la, o que representa a abertura do espaço escolar para textos variados e negados historicamente. O texto na escola é o que materializa as culturas. Assim, o que se propõe não é o abandono às tradições clássicas, mas que haja uma abertura às novas formas culturais, consequentemente, aos problemas mais próximos e às novas formas de comunicação.
Estas reflexões nos colocam no centro do debate curricular contemporâneo, pois, enquanto considerado um território de poder e de disputa, o Currículo mostra-se como uma zona fronteiriça permeável de trocas, negociações e interculturalidades, fundada no reconhecimento de um êthos comum onde a vida humana realiza-se e desenvolve-se.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se houve tempo em que a constituição dos espaços sociais era marcada, predominantemente, pela uniformização e homogeneidade cultural, na contemporaneidade os campos sociais mostram como característica o reconhecimento da pluralidade e do amálgama cultural, realidade esta que impacta decisivamente as relações, intensificando conflitos e soluções no convívio multicultural das diferenças, sejam estas de nacionalidade, de classe, gênero, raça/etnia, religião, valores, hábitos, ideias etc.
O processo de globalização, intensificado pelas tecnologias digitais da informação e da comunicação, gerou uma ilusão de fraternidade universal, de aproximação entre os distantes e de diluição de fronteiras. O que efetivamente se observa, porém, sobretudo nos países em que vem se dando a ascensão de grupos ultraconservadores ao poder, é o acirramento de políticas restritivas que impõem obstáculos aos fluxos nas fronteiras nacionais, e políticas de estandardização cultural que impedem ou restringem a manifestação das diferenças e de comportamentos sociais divergentes da totalidade hegemônica. A consequência desse ultraconservadorismo emergente tem sido a (re)construção de estereótipos sociais - “pré-conceitos” na plena acepção da palavra -, opiniões, atitudes e condutas sem conhecimento a priori ou fundamentação científica ou racional, que condenam as chamadas minorias e grupos marginalizados à segregação, quando não à eliminação.
Essas tensões vivenciadas nas sociedades da modernidade tardia desembocam, inevitavelmente, na escola - espaço de excelência para o encontro e o convívio com a diversidade -, o que torna o Currículo um campo mais intensamente conflitivo, ao mesmo tempo que paradoxalmente um terreno fecundo para disputas e debates construtivos em torno da finalidade da educação e do tipo de sociedade e de ser humano que se quer formar.
Em ambiente de hibridismo cultural, peculiar das novas constituições dos campos sociais e, sobremaneira, dos ambientes educacionais, é função da escola realizar um Currículo que possa mediar os conflitos decorrentes do convívio com a multiculturalidade, tornando-se um espaço fronteiriço de trocas e interculturalidade, que valorize a alteridade e reconheça o valor positivo das diferenças.
Em consonância com Uchôa (2017, p. 753):
A garantia da democracia passa pelo sistema de educação público e democrático, por conseguinte, o currículo, como o centro das discussões pedagógicas, e pelos conteúdos culturais que desenvolve, assume um papel crucial no processo de emancipação social do indivíduo, pela tomada de consciência dos sistemas de opressão e pela luta para a transformação da realidade.
A perspectiva intercultural no Currículo é central para a construção de um pensamento crítico que desvela toda forma de opressão e hierarquização resultante dos processos de colonização a que estiveram submetidos os povos, sobretudo os da América Latina. Ao dar voz aos conhecimentos e saberes produzidos pelas culturas negadas e invisibilizadas, constrói-se um discurso contra-hegemônico e uma proposta que rompe e transcende a colonialidade histórica, afirmando um projeto ético, político e libertador, por isso mesmo, de estabelecimento de fronteiras de encontro, troca e interculturalidade.