1 INTRODUÇÃO
Desde a época hipocrática, a medicina reconhece a narrativa da doença como parte do encontro clínico, lugar onde o médico deve analisar tanto o doente quanto a doença, a fim de aliviar o sofrimento.
A partir do século XVIII, entretanto, impõe-se na área médica uma nova cosmovisão, em que, em nome da obtenção de dados objetivos, exclui-se a autonomia do doente, cujos projetos de vida, vivências, experiências, expectativas, deixam de ser privilegiados. Nesse novo paradigma, o foco da atenção do médico passa a ser unicamente alcançar a doença, priorizando-se a análise pautada pelas ciências biológicas, o que favorece a fragmentação e a hiperespecialização. A finalidade médica é, dessa forma, a obtenção de um diagnóstico e correspondente tratamento centrado nos órgãos, sistemas, células, genes. O adoecimento é tido como uma universalidade, afastando-se assim a subjetividade de quem padece. É o modelo que permeia os currículos universitários e a prática médica desde então, consolidando um saber-poder, e que engendra um distanciamento entre o médico-único detentor do saber e o enfermo-considerado um paciente (Good, 1994; Foucault, 2001; Fernandes, 2014).
Essa forma de pensar foi transplantada para todos os cursos da área da saúde, sendo, no Brasil, reforçada pela legislação para a educação superior até que, no ano de 2001, foram aprovadas novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), as quais propõem um distanciamento desse modelo. Essas diretrizes destacam a crítica ao modelo hegemônico anteriormente comentado, o qual prioriza a relação profissional de saúde-paciente realizada preferencialmente na atenção hospitalar. As novas DCN ressaltam a necessidade de mudar a abordagem das doenças para as pessoas que adoecem, deslocando a atenção à saúde do hospital para a atenção à saúde de forma integral, a ser realizada preferentemente na atenção primária (Brasil, 2001a; 2001b; 2014).
As DCN vigentes trazem ainda a importância de não apenas modificar a grade curricular ou a metodologia de ensino, mas também a premência na mudança da forma como os educandos percebem o adoecer, o qual deve ser entendido como um processo singular, subjetivo, inscrito na cultura, socioeconômica e historicamente condicionado. É preciso de igual modo possibilitar aos graduandos vivências do trabalho em equipe e propiciar, na prática, a formação de vínculo e o respeito à autonomia de quem procura o serviço de saúde, entre outras competências e habilidades (Brasil, 2001a; 2001b; 2014).
O adoecer pode ser traduzido como uma “síndrome de experiência” (Good, 1994, p. 28), um conjunto de palavras, significados, vivências, representações, sentimentos, que ocorrem juntos. Essa síndrome insere-se em redes de significação e interação, multiplicando-se em uma série de modelos que justificam, tanto para quem adoece quanto para seu grupo social, o porquê de estar enfermo.
Dessa forma, existirá uma illness, doença-sujeito ou doença na primeira pessoa, que expressa o que o indivíduo enfermo reconhece como seu processo de adoecimento, mas, para o profissional de saúde, haverá uma disease, doença-objeto ou doença na terceira pessoa, construída por meio do aprendizado da anatomia, fisiologia, patologia, entre outras disciplinas. Quando ocorre o encontro profissional de saúde-enfermo, nem sempre esses dois modelos explicativos coincidem. O profissional de saúde, seguindo um roteiro preestabelecido e concebido para chegar à disease, cala o saber do enfermo, desvalorizando-o (Kleinmam, 1980; Laplantine, 2010; Stewart et al., 2010).
A fim de apreender a experiência com a enfermidade, as narrativas de adoecimento ganham relevância como método de ensino que pode fortalecer a capacidade do profissional de saúde de compreender o adoecido, suas representações e vivências (Kleinmam, 1980; Charon et al., 2017; Biglino et al., 2019). A prática terapêutica pode ser, portanto, considerada como interpretativa, um constante trabalho hermenêutico, a fim de alcançar as narrativas dessa experiência que o sujeito que padece evoca.
Consideradas como um conjunto de estruturas linguísticas, as narrativas de adoecimento ganham forma a partir de vários processos mentais, corporais e sociais, inseridos em um contexto cultural e sócio-histórico. Essas estruturas fornecem sentido à vivência da doença, ao integrarem representações sociais, estereótipos, informações, aspectos da vida, conhecimentos e práticas, tanto próprias ao sujeito quanto ao grupo familiar e social. Mediante a narração, o fato se transforma em experiência, permitindo a análise das perturbações advindas do adoecer e a reconstrução da realidade. Traduzidas em linguagens verbais e não verbais, propiciam a análise dos desequilíbrios advindos do adoecer (Carelli; Pompílio, 2013; Manso et al., 2019).
Desde a metade do século XX, narrativas de adoecimento são aplicadas no ensino médico como ferramenta que estimula a escuta ativa, a empatia, a formação de vínculo, a humanização da relação médico-paciente (Charon et al., 2017). No Brasil, há relatos de seu emprego na formação de médicos, enfermeiros e psicólogos, tanto na graduação quanto na pós-graduação (Souza et al., 2014; De Benedetto; Gallian, 2018; Manso et al., 2019; Manso; Torres, 2020). As narrativas romperiam a tecnicidade dos currículos médicos, incorporando saberes populares e permitindo ir além do biológico, contextualizando o adoecimento como um fenômeno complexo, multifacetado, não redutível, protagonizado por quem sofre.
A fim de consolidar a implementação dos pontos trazidos pelas novas DCN até aqui destacados para os cursos da área da saúde, foi gestado e implementado o projeto denominado “Ensino Baseado em Narrativas”, envolvendo os cursos de fisioterapia, medicina e nutrição de um Centro Universitário privado, localizado na cidade de São Paulo. O objetivo primordial do projeto é transformar a prática do educando no momento do encontro com o outro, a fim de apreender as necessidades de saúde dos adoecidos. Para tanto, ocorre a coleta, por cada educando participante do projeto, de narrativas de adoecimento de pessoas portadoras de doenças crônicas.
O propósito desta pesquisa é apresentar como os graduandos do curso de medicina vivenciaram essa coleta de narrativas e qual o impacto causado por essa vivência.
2 METODOLOGIA
Trata-se uma pesquisa qualitativa realizada com 11 educandos do curso de medicina participantes do projeto “Ensino Baseado em Narrativas” desenvolvido durante os anos de 2018 e 2019.
Esses graduandos foram selecionados segundo os critérios constantes de um edital público, aberto a toda a comunidade discente. Após aprovação, os educandos tomaram ciência que, de acordo com os objetivos do projeto “Ensino Baseado em Narrativas”, sua produção pessoal (diários de campo, participação em rodas de conversa e em grupos) seria analisada. Para tanto, assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Em seguida, o projeto foi iniciado, tendo os educandos coletado narrativas de adoecimento de pessoas portadoras de afecções crônicas em um serviço de saúde localizado no município. Depois da coleta, os graduandos participantes eram recepcionados pelos professores envolvidos no projeto em rodas de conversa de acolhimento, as quais foram gravadas e posteriormente transcritas. O material resultante das transcrições das rodas de conversa e dos diários de campo escritos pelos educandos compôs o corpus utilizado nesta pesquisa, o qual foi validado por eles e, somente após, analisado. Consideraram-se apenas as falas dos alunos, sendo as demais retiradas.
Buscou-se analisar as representações trazidas por esses graduandos. Representações sociais traduzem a forma como os sujeitos produzem sentido a suas práticas por meio de um conjunto de conceitos, proposições e explicações gerados em seu cotidiano e em seu grupo social. Explicitam-se nos discursos e moldam comportamentos e atitudes (Moscovici, 2009). Podem ser apreendidas pela análise lexicométrica por meio de softwares (Sousa et al., 2020).
Assim, para a análise dos dados do corpus, utilizou-se o software IRaMuTeQ® (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), software livre, desenvolvido na linguagem Python e que utiliza funcionalidades providas pelo software estatístico R (Camargo; Justo, 2013). No Brasil, é utilizado desde 2013 e disponibiliza processamento de dados qualitativos obtidos a partir de entrevistas ou documentos. Considera a palavra como unidade, permitindo análise lexical a partir da inserção dela no corpus, composto por conteúdos semânticos que formam o banco de dados analisado (Camargo; Justo, 2013; Souza et al., 2018).
Para utilização do software, o corpus foi revisto e salvo como documento de texto com codificação de caracteres-padrão UTF-8 (Unicode Transformation Format 8 bit codeunits).
O IRaMuTeQ® executa estatísticas descritivas, tais como o cálculo do número e frequência de palavras; reconhece palavras únicas (coeficiente de Hapax); agrupa segmentos de texto conforme classes gramaticais e com base na raiz (lematização); e propicia a criação de nuvem de palavras. Efetua também análises multivariadas, entre elas a Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Para variáveis com, pelo menos, três modalidades, realiza a Análise Fatorial por Correspondência (AFC), representação gráfica das relações em um plano fatorial de duas dimensões, possibilitando identificar oposições. A fim de revelar a força associativa entre as palavras e sua respectiva classe, usa o teste Qui-quadrado (χ2): quando o teste for maior que 3,84, representando p<0,0001, a força associativa é relevante (Camargo; Justo, 2013; Souza et al., 2018).
Para esta pesquisa , os segmentos de texto foram analisados quanto à frequência e cálculo do χ2, gerando a CHD que agrupa as palavras estatisticamente significativas em classes. Esse grupamento traduz as representações sociais comuns ao grupo, permitindo interpretações. A CHD é graficamente representada por um dendrograma, mas o programa ainda traça um filograma de palavras para cada, em que quanto mais no topo da lista e maior o tamanho da palavra, maior influência esta tem para aquela classe (Camargo; Justo, 2013; Souza et al., 2018).
Realizou-se, por fim, a AFC, a qual foi desmembrada conforme as variáveis sexo e semestre cursado. Todos esses passos foram feitos pelo software, sendo a posterior análise realizada pelos pesquisadores. Para tanto, utilizou-se Análise do Conteúdo (Bardin, 2016) em etapas sequenciais: análise prévia, exploração do material e inferência e interpretação a partir do referencial teórico-científico atual.
3 RESULTADOS
Dos onze graduandos selecionados seis eram do sexo feminino (55%) e cinco (45%) do sexo masculino. Quanto ao semestre cursado: (i) três alunos estavam, respectivamente, nos semestres 7.º e 6.º do curso; (ii) dois nos semestres 4.º e 3.º, nesta ordem; e (iii) um no segundo semestre. Ressalva-se que o curso apresenta duração de 12 semestres.
O corpus foi composto pelos 11 diários de campo e 11 transcrições de rodas de conversa de acolhimento, totalizando 22 Unidades de Contexto Inicial (UCI), com número total de palavras de 5.332, das quais 749 apresentaram uma única ocorrência. Geraram-se 151 segmentos de texto ou Unidades de Contexto Elementares (UCE), das quais foi possível um aproveitamento de 79,47%. Ressalta-se que, caso o aproveitamento fosse abaixo de 70% dessas UCE, o resultado não seria considerado representativo do grupo estudado.
A CHD trouxe dois grandes subcorpora como se observa na Figura 1. O primeiro subcorpus, denominado “Empatia e Escuta Ativa”, que representa 48,3% dos segmentos de texto, foi, por sua vez, desmembrado em três classes: “A escuta ativa”, “O paciente como sujeito” e “Empatia”, estas duas últimas inter-relacionadas.
O segundo subcorpus, “O que não percebo”, evidenciou, por sua vez, 51,7% dos elementos textuais, com as classes “Aspectos psicossociais” e “Emoções” interligadas e agrupadas com a classe “As narrativas”. Na Figura 2, pode-se visualizar o dendograma com as palavras geradas para cada classe a partir do teste χ2.
Serão apresentadas apenas as palavras com p<0,0001 e serão transcritos somente textos que possuem os maiores escores, apesar de todos terem sido analisados.
A classe “A escuta ativa” traduz 13,3% do corpus, tendo as palavras com maior destaque: informação, deixar, importante, história, perder, mostrando a comparação feita por esses educandos entre a anamnese médica tradicional e a utilização de narrativas. Os alunos ressaltam aspectos apreendidos da vida dessas pessoas que entrevistaram aos quais não teriam acesso seguindo apenas o roteiro da anamnese, porém evidenciam que os instrumentos podem ser complementares. Para esses graduandos, a coleta da anamnese, como aprendida por eles, é marcada por interrupções e direcionamentos para a doença, procedimento considerado normal. Durante a coleta das narrativas, porém, os pacientes puderam se expressar livremente, protagonizando assim suas experiências com o adoecer, conforme se observa nos textos a seguir transcritos:
Eu me senti feliz por deixar o paciente falar. Eu achei uma forma eficiente de guardar a história, de obter as informações. Quando direcionamos a entrevista, precisamos conduzir o paciente enquanto ele fala, repetir as informações a fim de que nenhuma ideia se perca e eu diria que nós construímos a história. Parece artificial. Deixar o paciente falar tornou a situação mais real. Eu me senti conversando com uma pessoa (A9, 3.º semestre, escore 178,89).
Deixei ela conduzir a conversa e construir uma história que é dela. Isso me surpreendeu, porque eu não acredito que poderia obter esse nível de detalhamento das informações se eu ficasse interrompendo o paciente (A9, 3.º semestre, escore 128,78).
“O paciente como sujeito”, classe com a mesma representação percentual da anterior (13,3%), traz comentários desses educandos sobre o quanto se sentem distanciados dos pacientes, vistos no dia a dia apenas como uma doença e/ou uma pessoa sem autonomia. Aqui é novamente destacada a importância de deixar o paciente falar e comentar livremente sobre sua vida e suas vivências. As palavras mais citadas foram mais, relevante e paciente (p<0,0001), como exposto nos textos a seguir:
[...] não restringir o paciente apenas ao tratamento em questão, mas sim tratar o paciente como um todo. Isso foi algo bem relevante, ainda mais vindo da boca dele, então eu acho que seria muito relevante eu relatar aqui (A3, 7.º semestre, escore 116,67).
Acredito ainda mais que muitas vezes a conversa é a melhor terapia e quero levar isso adiante no modo como lidar com os pacientes. Julgo a maneira como fazemos a medicina bastante errada, olhamos os pacientes como objetos e os restringimos meramente às suas doenças, enquanto o certo seria observá-los como autores de todo seu processo de adoecimento (A8, 2º semestre, escore 114,67).
Empatia é a única palavra com p<0,0001 na classe “Empatia”, a qual exprime 21,7% do corpus, categorizada pelo software com a classe anterior. Nesta, os educandos do grupo destacam o quanto se emocionaram ouvindo as histórias dos pacientes. Os graduandos evidenciam ainda seu espanto por poderem sair de uma postura que consideram normal para um profissional de saúde, distante e fria, e ressaltam a falta de empatia que observam em suas práticas, como se nota a seguir:
E isso deve ser o nosso maior bem, eu serei médica, meus colegas serão médicos e antes de tudo eles são seres humanos. Há uma necessidade de empatia, algo que não é trabalhado conosco e que muitos profissionais não possuem (A1, 6.º semestre, escore 59,08).
Esta empatia automática e intensa fez com que me emocionasse em vários momentos e me segurasse para não chorar junto ao paciente. Foi bem legal, eu senti que a gente sai daquela postura de médico, do normal do profissional de saúde (A7, 3.º semestre, escore 40,14).
Eu acho que essa conversa que eu tive com o paciente e todas as conversas que nós tivemos desde o início da iniciação científica foram muito relevantes para o meu crescimento pessoal, para uma ideia de ampliar os espaços, de buscar atrelar outras áreas à área que eu vou seguir, são essas situações, e a situação da empatia, que foi algo que ficou muito pertinente para mim (A3, 7.º semestre, escore 39,75).
Analisando-se as três classes que compõem o subcorpus “Empatia e escuta ativa”, evidencia-se que esses graduandos, apesar de identificarem que o curso busca trabalhar a humanização, observam-na pouco durante suas vivências no curso.
Quando se verifica o segundo subcorpus “O que não percebo”, que aglutina mais da metade dos segmentos de textos trabalhados nesta pesquisa, a classe “Aspectos psicossociais” (12,5%) aponta novamente para a preocupação desses educandos com a falta de escuta, principalmente além dos aspectos físicos trazidos por esses enfermos. As dores e as perdas das pessoas entrevistadas são ressaltadas e esses alunos salientam o quanto isso não surge nas anamneses que fazem. As palavras que se destacam nessa classe são filho, pergunta, focar e dor.
Eu acho que ouvir o paciente muda tudo. Por exemplo, hoje eu comecei focando na parte física dela e só depois que eu fui descobrir que ela tinha perdido um filho, sendo que isso para ela é muito pior do que todas as dores dela, numa consulta rápida de 15 minutos, essa informação não vai chegar para o médico, ele vai ver as dores, prescrever um remédio e não vai adiantar muito, porque muitas vezes o problema não é somente físico (A5, 6.º semestre, escore 114,97).
Eu acho que todos os alunos deveriam fazer isso, pelo menos uma vez por ano, todos, deveria ser obrigatório na faculdade, você só sentar pra escutar, sem ter aquela obrigação do atendimento, sabe? (A6, 7.º semestre, escore 32,7).
Por sua vez, a classe “Emoções”, 16,7% dos elementos textuais, representa o impacto causado pela escuta das narrativas nesses alunos. A emoção de conhecer o outro além da doença e de se permitir ver a emoção, tanto em si quanto no outro, são os destaques. Os segmentos de texto que a caracterizam são emocionado e falar.
Aí eu percebi que quando ela começava a falar de como as pessoas em volta dela estavam se sentindo, o olho dela enchia de água, ela ficava muito emocionada, porque é uma coisa que ela tem vergonha, de ter essa dor (A6, 7.º semestre, escore 103,81).
Eu acho que é isso que falta, não basta ficar lá e dizer vou fazer seu diagnóstico, agora toma o remédio que você tem que tomar, agora pode ir embora. Eu não quero, se for para ser assim, eu nem quero ser médica, desse jeito, sei lá. Eu não chorei, eu fiquei emocionada várias vezes, de o olho começar a lacrimejar, mas eu estava emocionada de contente, não estava emocionada de triste, sei lá, eu gostei (A10, 4.º semestre, escore 78,23).
Pode-se inferir que as classes “Aspectos psicossociais” e “Emoção” estão relacionadas pela emoção, tanto sentida pelos educandos quanto percebida nos pacientes, e como isso é considerado significativo, pelos primeiros, para seu futuro profissional. Os sentimentos surgem como algo que ainda não haviam experienciado quando colhem anamneses, mas que reputaram relevante. Por sua vez, a classe “As narrativas” volta-se novamente para a comparação entre a coleta da anamnese, destacando-se o quanto essas narrativas impactaram esse grupo de educandos e suas práticas. Os graduandos ressalvam a importância de considerar a pessoa nos aspectos psíquicos-físicos-sociais e o quanto priorizar o aspecto físico restringe a atenção à saúde dessas pessoas entrevistadas. As palavras aqui são totalmente e mudar.
Esse tipo de abordagem com o paciente é muito melhor do que a anamnese comum, pois o paciente conta sobre a vida dele, a trajetória dele, a experiência dele com a doença, como ele foi afetado, como a vida dele mudou e isso transforma totalmente a visão do profissional, você começa pensar em outros tipos de tratamento que poderiam melhorar a qualidade de vida dele sem ser apenas com o uso de remédios (A2, 7.º semestre, escore 76,09).
[...] tinha milhares de coisas ligadas que eu não ia perguntar na anamnese. Isso pode mudar totalmente a conduta que o médico teria (A4, 4.º semestre, escore 62,47).
[...] porque o paciente está se entregando ali pra gente, mas ele não tá só se entregando de corpo físico e doença, ele tá se entregando inteiro, então acho que vai mudar nesse sentido, acho que já me ajudou a ter um olhar mais... não digo humano, mas sem dúvida mais profundo, sobre o processo de adoecimento, o processo de vida do paciente, isso ficou bem marcado pra mim com essa narrativa (A7, 3.º semestre, escore 59,23).
Apresenta-se na Figura 3 a AFC do corpus categorizado em classes, o que permite verificar, no plano fatorial, as palavras que diferenciam e caracterizam cada classe e observar suas intersecções.
No subcorpus “Empatia e escuta ativa”, nota-se a inter-relação importante entre as classes “O paciente como sujeito” e “Empatia”, podendo-se inferir que, para esse grupo de graduandos, a empatia é um veículo para que se alcance o sujeito. A classe “A escuta ativa” assume um papel de oposição a essas duas, o que parece demonstrar que o grupo vê a escuta atenta como um ferramental para o alcance das demais classes que compõem esse subcorpus, porém ainda distante de seu cotidiano.
No subcorpus “O que não percebo”, por seu turno, todas as classes aparecem bem interpenetradas, quase que totalmente sobrepostas, mostrando o quanto a coleta de narrativas proporcionou para esses alunos um momento de vivência de empatia e escuta ativa, mobilizando afetos e emoções.
Ainda no plano fatorial, observa-se que as palavras com maior destaque no corpus foram informação e emocionado, reforçando que esses alunos puderam perceber, com a coleta das narrativas de adoecimento, o quanto deixam de conhecer as pessoas que os procuram e como essa coleta os afetou.
Ressalta-se que, quando realizada a AFC segundo sexo ou semestre cursado, a análise não apontou diferenças.
4 DISCUSSÃO
Anamnese, trazer de novo à memória, é uma entrevista realizada pelos profissionais da saúde que busca conduzir à tona fatos que permitam a elaboração de um diagnóstico. Em semiologia médica, é considerada o núcleo pelo qual se efetiva a relação médico-paciente, base para a decisão clínica. Não se trata de uma conversa livre, e sim da reconstituição de fatos relacionados à doença, sendo comum seguir um roteiro predeterminado, dirigindo-se a entrevista (Porto; Porto, 2019). O roteiro da anamnese é o mesmo em qualquer especialidade médica, com algumas diferenças relacionadas à idade e sexo do enfermo. Pressupõe que a doença é uma universalidade, que sua causalidade é linear e que a partir da soma das partes pode-se reconstituir o todo (Camargo Jr., 2005).
As pessoas procuram os médicos em momentos de fragilidade e as narrativas que trazem são complexas, porém pesquisas demonstram que, durante uma anamnese, esses profissionais escutam os pacientes, em média, 16 segundos antes de interromperem seu relato livre e iniciarem o interrogatório-padrão. Este, feito com perguntas diretas, busca apenas respostas, e não a experiência do adoecimento (Mallet et al., 2016).
Essa prática reduz o indivíduo que tem alguma enfermidade, o qual passa a ser um objeto passivo, e não mais um sujeito ativo. Durante a graduação, isso propiciaria um “tipo de surdez” (Masana, 2015, p. 54), consequência do processo de se tornar estudante de medicina e, principalmente, vir a ser médico. Dessa forma, a doença é ressaltada e se deixa de ouvir o doente.
Good e Delvechio Good (2000) assinalam que os médicos são treinados desde o início da graduação a limpar e padronizar a narrativa do enfermo, descontextualizando as pessoas. Seguir um roteiro de atendimento prefixado e universal impede que o vínculo se estabeleça, distanciando o saber e as experiências vividas pelo adoecido. A fim de diminuir esse distanciamento, hoje se propõe a modificar a formação do futuro médico, a qual deve priorizar os vínculos e o aprender a ouvir o doente, tendo por base um binômio competência/cuidado, em que o primeiro polo diz respeito ao conhecimento cognitivo e habilidades técnicas e o segundo trata da compaixão, empatia, atitude, relações.
Ouvir atentamente envolve saber como perguntar, como responder, não interromper indesejavelmente, respeitar os tempos da história, todas essas ações implicadas em uma relação de comunicação. É parte de qualquer interação social, associada a respeito, sensibilidade e empatia. O modelo médico atual, por não propiciar a escuta, torna-se um modelo de poder sobre o outro, desvalorizando o doente e produzindo distanciamento (Good; Delvechio Good, 2000).
Esse distanciamento médico-paciente e a não escuta são ressaltados pelo grupo de alunos participantes. Os educandos narram as interrupções e os direcionamentos que aprendem, procedimento que consideram normal na busca pela objetivação e certezas que os levem a um diagnóstico, e se mostram surpresos ao praticarem a escuta atenta. O grupo ainda ressalva o quanto ouvir as narrativas foi importante para o entendimento da experiência de adoecimento dessas pessoas que entrevistaram e destacam pontos que não observam na coleta da anamnese, tais como a importância dos aspectos psicossociais. A restrição do sujeito que ocorre ao conversar somente sobre a doença ficou evidente, assim como a descoberta das emoções, tanto nas pessoas das quais colheram as narrativas quanto em si próprios.
Em pesquisas realizadas com coletas de narrativas de adoecimento de pessoas que têm alguma afecção crônica, observa-se que muitos entrevistados sofrem ao reviver momentos passados, o que pode ser notado por esses alunos. Essas emoções nem sempre são valorizadas quando da obtenção da anamnese tradicional, impedindo assim a criação de um vínculo (Kleinmam, 1980; Good; Delvechio Good, 2000; De Benedetto; Gallian, 2018).
Ao trabalhar com narrativas, nota-se ainda a relevância das percepções e sentimentos que a escuta atenta provoca. Esse grupo de alunos sensibilizou-se com essas escutas, mas pesquisas ressaltam que os graduandos, apesar de admirarem os pacientes, têm dificuldades de lidar com as emoções e com o sofrimento, podendo haver, inclusive, sobrecarga emocional (Claro; Mendes, 2018; De Benedetto; Gallian, 2018). Daí a importância do acolhimento feito aos educandos participantes do projeto logo após a coleta pelos educadores.
Esses graduandos participantes apontam ainda a falta de empatia que percebem em seu dia a dia como futuros médicos e que a coleta de narrativas surgiu como uma oportunidade que propiciou reflexões sobre suas práticas atuais e futuras. Empatia pode ser definida como uma qualidade pessoal necessária para que ocorra o entendimento, por parte do profissional de saúde, das experiências e sentimentos das pessoas que os procuram. Envolve domínios cognitivos, afetivos e emocionais, caracterizando-se, na área médica, por três componentes: cuidado compassivo, colocar-se no lugar do outro e tomada de perspectiva. A sociedade reconhece médicos empáticos como melhores cuidadores, valorizando-os (Hojat et al., 2009).
A queda da empatia em alunos de medicina é ressaltada por várias pesquisas, as quais atribuem essa progressiva diminuição a vários fatores, tais como: (i) excesso de competitividade e estresse durante a graduação; (ii) tempo de duração do curso; (iii) sobrecarga de atividades; (iv) não priorização de discussões sobre empatia e humanização durante a formação; (v) condições adversas de trabalho, como excesso de responsabilidades, despreparo e pressão do tempo para realização de múltiplos atendimentos; e (vi) interação com pares e/ou professores, com destaque para a importância do currículo oculto (Hojat et al., 2009; Ahrweiler et al., 2014; Rios; Sirino, 2015; Batley et al., 2016; Aguiar; Formiga; Cantilino, 2017).
Para a formação do futuro médico, o currículo oculto mostra-se de extrema relevância. Portanto, além do currículo formal, adequado conforme a legislação vigente e anseios sociais, há outro currículo, inscrito na cultura, reprodutor de comportamentos, normas e atitudes. Esse currículo oculto, nascido da cosmovisão que se forma a partir do século XVIII já comentada, molda e dita normas de como os futuros profissionais devem agir, comportar-se, falar e exercer seu papel de médico, sendo socializado e aprendido durante a graduação (Giroux, 1997; Araujo, 2018; De Benedetto; Gallian, 2018).
Pesquisas demonstram que, aproximadamente a partir da metade dos cursos de medicina, conforme se intensifica o contato com médicos já formados, os alunos passam a ser fortemente influenciados pelo currículo oculto. Estimula-se a negativa da autonomia do sujeito adoecido, a ênfase na doença e o distanciamento entre médico e paciente, ressaltando-se que o médico não deve ter emoções nem sentimentos (Batley et al., 2016; Aguiar; Formiga; Cantilino, 2017; Milota; Van Thiel; Van Delden, 2019), todos esses fatos evidenciados pelos graduandos participantes em suas reflexões. Observa-se que alguns desses educandos já colocam esse comportamento como normal, esperado e até desejado e estimulado por boa parte dos professores médicos.
Essa construção cultural do que é ser médico, trazida pelo currículo oculto, dita ainda a importância curricular dada ao ensino das humanidades. Ainda persiste a visão de que estas são acessórias, não essenciais para a formação do futuro médico. Essa visão compreende também qualquer disciplina que demande um olhar mais cuidador, voltado para a pessoa e para os determinantes sociais do adoecer, tidas como de menor importância (Ayres et al., 2013).
O excesso de treinamento biológico parece ser o responsável pela formação de profissionais médicos distantes e frios, causador da diminuição da capacidade de sentir empatia e compaixão (Aguiar; Formiga; Cantilino, 2017; Milota, Van Thiel; Van Delden, 2019). Por sua vez, reconhecer as dimensões psicossociais do cuidado; exercer a interdisciplinaridade; participar de práticas ativas de interações diferenciadas com pacientes; envolver-se em atividades extracurriculares; buscar o autodesenvolvimento estimulado por práticas reflexivas e interagir com colegas e/ou professores que demonstram comportamento empático, são questões associadas a um aumento da empatia nos graduandos de medicina (Aguiar; Formiga; Cantilino, 2017).
As narrativas buscam estimular o ensino e o resgate da empatia em estudantes de medicina, ao trazerem não só as experiências dos narradores, mas por propiciarem reflexões. Há autores que ressalvam que não seria possível ensinar empatia, pois esta é um atributo pessoal, porém outros destacam ser possível, porquanto as narrativas se constituem uma ação educacional direcionada. Para tanto, podem ser utilizadas diferentes formas de narração, além das narrativas de adoecimento, tais como: obras literárias (Charon et al., 2017; De Benedetto; Gallian, 2018), fotografias (Tapajós, 2002) e cinema (Blasco, 2010). Deve-se também incentivar o ensino das humanidades (Ayres et al., 2013).
Salienta-se ainda a necessidade de realização de diários de campo pelos educandos que participaram do projeto. O hábito de escrever sobre experiências não é uma atividade estimulada nos cursos de medicina (Stelet et al., 2017), porém pesquisas demonstram que, quando a escrita trata de sentimentos, ideias, vivências, os graduandos refletem sobre sua vida, o que os torna mais empáticos e disponíveis (Charon et al., 2017; Claro; Mendes, 2018; De Benedetto; Gallian, 2018).
Há muito se discute a reconstrução do conhecimento pelos educandos, que necessitam encontrar significado, pessoal e próprio, no que aprendem. Além de significado, devem relacionar novas informações com as que já possuem, com as novas exigências postas pelo exercício profissional e, principalmente, com as necessidades da população com a qual vão trabalhar (Gimeno Sacristán, 2000).
Aprender é um processo de crescimento e desenvolvimento pessoal em sua totalidade, não bastando conhecimento teórico, mas também afetivo-emocional, de habilidades humanas, de atitudes e valores (Masetto, 2015). Acredita-se que esses objetivos foram alcançados com esse projeto, como se pode observar em várias falas dos graduandos.
Outro ponto importante a assinalar quanto à aprendizagem é a utilização de outros espaços que não a sala de aula, como aqui ocorreu. O aprendizado na prática é inclusivo, não apenas um transmissor de conhecimentos, e permite compartilhar experiências e resultados, por ser problematizador. Consente a troca de ideias, trajetórias, experiências e propicia condições para a inovação e reflexão crítica, um saber-fazer e saber-ser constantes, um movimento ação-reflexão-ação. Aprender é tido como muito mais do que apenas apreender um conceito técnico-científico, e sim como um processo de transformação e reconstrução. Como ressalta Freire (1988), a práxis é a conquista da colaboração dos sujeitos para efetuarem uma análise crítica da realidade.
Ressalva-se a necessidade de os educandos se colocarem respeitosamente perante os saberes trazidos pelos narradores, não os menosprezando e propiciando o protagonismo destes. Valorizar os saberes acumulados pelas pessoas, a experiência de vida, traduz “o saber de experiência feito” (Freire, 2006, p. 70). Assim, rompeu-se o paradigma de que o profissional de saúde detém o conhecimento e os demais devem apenas ouvi-lo e receber informações. “Não sou se você não é, não sou, sobretudo, se proíbo você de ser” (Freire, 2006, p. 100).
Por fim, vale ressaltar que, como o software utilizado trabalha com a força das palavras, as críticas ao uso das narrativas, por serem poucas, não se mostraram representativas, mas devem ser citadas. Dois alunos se sentiram “invadindo a intimidade” da pessoa que narrava, e mencionaram ter experiências de adoecimento semelhantes na família, o que muito os incomodou.
Esse é um processo denominado contratransferência e se trata de um conjunto de sensações, sentimentos, percepções, que emergem no profissional de saúde a partir da pessoa por ele atendida. Pode ser desencadeado por acontecimentos ou aspectos que foram demasiadamente penosos para esse profissional de saúde, principalmente no âmbito familiar, e leva ao bloqueio da relação profissional de saúde-pessoa adoecida. Assim, o não escutar com atenção, o interromper precocemente a fala do outro, o julgar, são seus efeitos (Stewart et al., 2010). Fenômenos raramente discutidos durante a graduação afetam a relação profissional de saúde-pessoa atendida ao trazer questões irracionais, inconscientes, irrealistas para esta, daí a importância de seu reconhecimento, de reflexionar sobre o fato e do acolhimento aos graduandos feito por educadores-mediadores.
5 CONCLUSÃO
Acredita-se que a atividade aqui descrita alcançou seus objetivos, despertando nesse grupo de educandos do curso de medicina onde foi desenvolvido a preocupação com a escuta ativa, a relevância de incorporar aspectos psicossociais para o entendimento da pessoa, o quanto as emoções estão presentes na experiência de adoecimento e a necessidade da empatia. A importância do currículo oculto e as representações sociais sobre o ser médico também se destacaram nesse corpus. Pode-se ainda perceber o impacto do projeto como propiciador de reflexões a esse grupo de graduandos.
Por fim, aponta-se como limitações a esta pesquisa seu próprio desenho, o qual não permite generalizações. Destaca-se ainda a opção metodológica deste estudo que utilizou o software IRaMuTeQ® para auxílio na análise de conteúdo, ferramenta ainda pouco usada em pesquisas na área da educação.