1 INTRODUÇÃO
No século XXI, as políticas públicas educacionais, que incidem diretamente sobre a formação de professores (Brasil, 2002, 2015, 2019, 2020), têm trazido para o debate acadêmico a possibilidade de se interpretar suas intenções e finalidades, seja pela insistência de uma proposta vinculada à pedagogia das competências (Brasil, 2002, 2004, 2018, 2019, 2020), ou mesmo pelo alinhamento previsto entre as políticas educacionais da educação básica e do ensino superior (Brasil, 2017, 2018, 2019, 2020) - e/ou, ainda, pelo seu questionamento (Brasil, 2015).
Neste sentido, a Resolução CNE/CP nº2/2015 apresentou uma mudança de rota ao propor um continuum entre a formação inicial e a formação continuada, bem como uma base nuclear de conteúdo, na tentativa de estabelecer princípios que balizariam a ideia de uma base nacional comum para a formação de professores (Rufino; Souza Neto, 2022), assim como estabeleceu uma ponte com a Lei nº 13.005/2014 - Plano Nacional de Educação, em processos e etapas de profissionalização. Mas Rufino e Souza Neto (2022) assinalaram, no entanto, que o processo sofreu revisões com a Resolução nº CNE 2/2019 e, posteriormente, com a Resolução CNE nº1/2020, no que tange à Resolução nº CNE 2/2015. Revisões que foram duramente questionadas no que se refere à “perda do caráter público das políticas educacionais [...] na perspectiva de moldar-se a lógica privatista e mercadológica” (ANPEd, 2019, p. 2), em um “reducionismo sem precedentes na história da educação nacional” (p. 3), pois se desconsideraram a construção de um projeto coletivo e o desenvolvimento da autonomia docente e sua capacidade de tomar decisões e atender aos desafios escolares e suas diferenças (Reis; André; Passos, 2020). Dessa forma, se há reducionismos, compete aos conselhos de cursos (e mesmo aos corpos docente e discente), assim como aos sindicatos, não caírem em projetos de formação em que se propõe um currículo mínimo para a formação de um professor mínimo (Zeichner, 2013). Frente aos desafios impostos pelo profissionalismo ocupacional e profissionalismo organizacional, há a necessidade de se desenvolver um profissionalismo social (Larson, 2014), enfim, adotar uma postura de resistência.
Cabe registrar que Saviani (2009) já chamava a atenção para essa discussão, tanto no que se refere às políticas educacionais na metáfora do ziguezague (uma política avançava, enquanto a outra retrocedia ou entrava em estagnação), bem como sobre os modelos de formação e sua relação com as políticas públicas. O autor coloca que no Brasil prevaleceu, ao longo do século XX, uma forte influência do Modelo Pedagógico-Didático na educação infantil e no ensino fundamental - anos iniciais; enquanto no ensino fundamental - anos finais e ensino médio, a influência foi do Modelo dos Conteúdos Culturais Cognitivos, negligenciando as contribuições didático-pedagógicas, pois esta preparação se faria na forma de uma formação em serviço.
Ainda, Saviani (2009) menciona que, no âmbito da formação docente, desde a década de 1990 o Brasil vem fazendo referências a propostas que consideram a lógica da reestruturação produtivista, como, por exemplo, o debate sobre o resultado das avaliações de larga escala, a questão do que significa qualidade na educação ou mesmo a incidência das ideias de profissionalização do ensino (Tardif; Morales-Perlaza; Lessard, 2022). Portanto, tem-se assistido ao desafio de se propor um modelo para a formação inicial de professores que considere tanto o conteúdo como a forma, na relação teoria e prática, mas que não seja isolado deste contexto.
Contudo, neste ensejo reformista, um ponto que nos chama atenção é o lugar ocupado pelo Estágio Curricular Supervisionado (ECS) dentro das propostas de formação, bem como o esforço que se faz na tentativa de elucidar, a partir do ECS, os limites, mas também os avanços na tentativa de construção de um projeto integrado de formação. Parte-se da perspectiva de que os ECS evidenciam, no cenário da formação inicial de professores, práticas de ensino que colocam as instituições envolvidas (universidade e escola) em uma relação formal, mas mediada por diversos dilemas, como a concepção de ECS e formação, a relação entre os dois espaços de formação e o papel de cada um dos envolvidos (Issie; Molina Neto, 2016; Silva Junior; Oliveira, 2018; Autor, 2021), além de evidenciar a discussão sobre diferentes espaços híbridos de formação (Zeichner, 2010; Nóvoa, 2019).
Nesta direção, propôs-se o estudo com três instituições de ensino superior (IES) que oferecem cursos de formação de professores, a saber: Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-Campus de Rio Claro (Unesp/RC), considerando as propostas de formação no ECS, projetos e mediação na relação universidade-escola (Vedovatto; Souza Neto, 2022; Benites et al., 2020; Souza Neto; Benites, 2013), assim como por trabalharem no âmbito do compromisso com a escola pública (Contreras, 2002).
No âmbito desse processo, apresenta-se como questão de pesquisa: quais são os dispositivos utilizados no ECS que permitem pensar a profissionalização do ensino na Educação Física? E, como objetivos de estudo, identificar e analisar as modalidades de organização e supervisão dos ECS em Educação Física, a partir da profissionalização do ensino. Mais precisamente, espera-se, através de análise documental, conhecer os dispositivos, os métodos de organização e supervisão dos ECS que foram instituídos por essas diferentes IES, bem como o papel atribuído aos vários agentes envolvidos na formação inicial de professores, tendo em vista a alternância entre universidade e escola. Para tal, o quadro de referência aqui posto se baseia nos escritos sobre modelo de formação (Oliveira, 2010); profissionalização do ensino (Borges, 2008; Souza Neto, Cyrino, Borges, 2019); prática docente como lugar privilegiado de formação profissional (Altet, 2001; Nóvoa, 2017; Tardif, 2013); estágio curricular supervisionado (Vedovatto; Souza Neto, 2020; Iza, Souza Neto, 2015; Cyrino, Souza Neto, 2017;); e políticas públicas de formação de professores (Souza Neto, Cyrino, Borges, 2019).
2 QUADRO DE REFERÊNCIA: FORMAR PARA UMA PROFISSÃO
No Brasil, os estudos, vinculados ao século XXI, sobre a constituição da profissão docente apontam para duas propostas de modelos de formação de professores: a primeira, o Modelo Pedagógico Humanista; e a segunda, a Perspectiva Sociológica (Oliveira, 2010). Cabe ressaltar que, se essa tradição pedagógica humanista tem o seu embrião com os jesuítas do Ratio Studiorum, também se baseia na concepção de conhecimento científico de Aristóteles (Penteado; Souza Neto, 2021), assim como pode incorporar algumas contribuições do Modelo Pedagógico-Didático (Saviani, 2009).
A tradição pedagógica humanista tem como foco a formação compreendida como um “processo de constituição do sujeito no seu fazer pedagógico, atribuindo grande ênfase aos saberes adquiridos na experiência, à prática pedagógica e aos processos formativos” (Oliveira, 2010, p. 21). Neste modelo, a profissionalização do ensino se pauta no processo de formação, colocando ênfase no desenvolvimento profissional docente. Porém, se levado ao extremo, atribui demasiado peso à formação como elemento central da profissionalização, bem como pode reduzir a profissão docente a um conjunto de competências e capacidades com forte ênfase na dimensão técnica da ação pedagógica (Nóvoa, 2000).
Assim sendo, tanto as diretrizes de formação de professores do início dos anos 2000 quanto a mais atual (Brasil, 2002, 2019) têm dado margem para uma centralidade na dimensão técnica da ação pedagógica. Essas propostas direcionam alterações para os currículos, estrutura e organização da formação inicial dos docentes (Maués; Camargo, 2016); trazem consensos quando se pensa na adesão a um currículo por competências (Moraes; Soares, 2005); mas também apresentam distinções sobre o lugar dado à universidade e à escola (Dourado, 2015).
No entanto, um dos vieses de discussão tem se dado sobre a proposta do modelo da epistemologia da prática (Schön, 1992), principalmente propondo revelar quais são os saberes utilizados, mobilizados, produzidos e integrados pelos docentes em suas tarefas cotidianas. Ao se tomar a epistemologia da prática como base da formação, insere-se a docência em uma categoria profissional, e não mais vinculada a um ofício, admitindo que a profissionalização é uma tentativa de reconstruir os princípios e fundamentos que embasam a profissão docente (Tardif, 2013). Porém, este processo de reflexividade precisa superar a análise individual e chegar a uma análise da reflexividade coletiva (Tardif; Moscoso, 2018).
Por sua vez, a perspectiva sociológica tem se desenvolvido colocando como foco os estudos sobre a identidade profissional no âmbito da sociologia do trabalho e/ou na sociologia das profissões (Oliveira, 2010). Na abordagem da sociologia do trabalho, Oliveira (2010) aponta que a identidade profissional é perpassada pelos estudos que buscam explorar as relações de trabalho na proletarização do magistério, na desvalorização e na desqualificação do trabalho docente, tendo como horizonte a autonomia e o controle sobre o trabalho e como base a matriz marxista ou a confluência das duas propostas.
Na abordagem da sociologia das profissões, o processo de profissionalização não seria sinônimo de “capacitação, qualificação, conhecimento, formação”, mas a “expressão de uma posição social e ocupacional, da inserção em um tipo determinado de relações sociais de produção e de processo de trabalho” (Oliveira, 2010, p. 23). Na análise de Oliveira (2010), a profissionalização emerge como uma saída defensiva dos trabalhadores da educação aos processos de perda de autonomia no trabalho e de desqualificação. Assim sendo, o foco da profissionalização passa pela universitarização da formação, colocando a sua ênfase não na invisibilidade do conhecimento pedagógico do conteúdo específico (Shulman, 1987); no saber experiencial (Tardif, 2002); no saber da ação pedagógica (Gauthier et al., 1989); no conhecimento profissional docente (Nóvoa, 2019); mas na sua visibilidade, contribuindo para uma base de conhecimentos/saberes cujo desafio passa pelo processo de fundamentar a prática - que, enquanto prática intencional, traz, necessariamente, a reflexão teórica.
Tardif (2013, p. 561), ao falar da profissionalização, coloca que o grande desafio enfrentado pela docência “é fazer com que o ensino passe do estatuto de ofício para o de profissão em sua integralidade”, no qual o modelo de formação possa oferecer uma formação inicial de professores (FIP) que contemple a aquisição dos conhecimentos e práticas, mas que, sobretudo, amplie a visão de mundo e de concepção de profissão. Porém, o autor não deixa de questionar se no Brasil já chegamos à idade do ofício na prática profissional dos professores.
O movimento pela profissionalização do ensino e da docência, inspirado, em particular, nos relatórios norte-americanos do Holmes Group (1986), abalou a sociedade e os políticos nos Estados Unidos, tendo o seu impacto nas reflexões realizadas no Brasil em torno da formação de professores. Particularmente, esse movimento contribuiu para um questionamento dos antigos modelos, visando à profissionalização da docência. Na Europa, este processo também teve a sua discussão com Bourdoncle (2000), na França; Contreras (2002), na Espanha; e Nóvoa (1992, 2017), em Portugal.
Para Altet (2001, p. 29), pensar a docência como profissão significa posicionar os professores numa perspectiva diferenciada com relação ao trabalho desenvolvido/ofertado. Trata-se de uma “transição da profissão artesanal, onde se aplicam técnicas e regras, para a profissão”, onde se constroem “as próprias estratégias, apoiando-se no conhecimento racional e desenvolvendo sua expertise na ação em uma situação profissional, bem como sua autonomia”. Nesse sentido, a docência, entendida como profissão, não pode ignorar o desenvolvimento profissional (Libâneo; Pimenta, 1999), nem o desenvolvimento de uma cultura ou identidade profissional (Cardoso; Batista; Graça, 2016).
Pensar a formação de professores nesta perspectiva significa também colocá-la num cenário mais amplo de socialização profissional, em que o professor é visto como pessoa, mas também como profissional capaz de pensar, organizar e mobilizar os seus próprios saberes para integrá-los em situações de ensino (Sarti, 2012; Souza Neto, 2019). Ou seja, tentar aproximar a formação inicial do trabalho docente em ambiente escolar através, entre outras coisas, dos ECS, que, pelo menos em teoria, deveriam permitir esta articulação entre os conhecimentos acadêmicos teóricos e os saberes.
A exemplo do movimento de profissionalização do ensino, torna-se necessário pensar a profissionalização dos professores para além da influência dos organismos internacionais nas políticas educacionais, visando um processo de transformação dos programas de formação (Maués, 2003).
De qualquer forma, entre o discurso político e o científico, a legislação em vigor e as práticas dos que trabalham na área, especialmente dos que estão na linha de frente nos programas, há um longo caminho a percorrer.
No Quadro 1, nota-se que, ao longo do tempo, houve uma evolução na legislação brasileira sobre a formação de professores. Quando nos atentamos para aspectos como: o objeto ou conteúdo da lei; a duração da formação de professores; o ECS, entre outros, observa-se que as orientações que definem a base de conhecimentos para a formação tiveram o seu contorno delineado a partir das diferentes diretrizes, em especial no caso da formação de professores para a Educação Física.
Ano | Lei | Diretriz para os programas de FIP | ECS e PCC |
---|---|---|---|
1969 | Resolução nº 9 - Educação Física | Objeto: Formação de professor. Duração (total/mínimo): 1.800 h. Base de conhecimento: gímnico-desportivo e matérias pedagógicas. |
ECS = 90 h 5% da carga horária do programa Momento: último ano |
1987 | Resolução nº 3 -Educação Física | Objeto: Formação do profissional de educação física. Duração (total/mínimo): 2.880 h. Base de conhecimento: Formação Geral (***humanista e ***técnica) e Aprofundamento de Conhecimentos. ***De cunho Humanístico: conhecimento do ser humano, conhecimento da sociedade e conhecimento filosófico; ***De cunho Técnico (desenvolvido de forma articulada com os conhecimentos das áreas de cunho humanístico): conhecimento técnico. |
ECS = 133 h (150 h) 5% da carga horária do programa Momento: último ano |
1996 | Lei nº 9394 LDB | Objeto: Formação de profissionais de educação. Base de conhecimento para a formação profissional e para a educação básica. Política Nacional de Educação: formação dos profissionais da educação. |
ECS = 300 h Definido como prática de ensino |
2002 | Resoluções nos1 e 2 - Formação de Professores | Objeto: Formação do profissional de educação Duração (total/mínimo): 2.800 h. Formação de professores de educação básica. A prática de ensino na base da identidade docente. Base de conhecimento: cultura geral e profissional; sobre a infância, juventude e adultos; pedagógico; domínio de estudo; experiência. |
ECS/PCC = 800 h ECS = 400 h (2a metade do curso) PCC= 400 h (a partir do 1º ano e ao longo do FIP para disciplinas de intervenção) |
2004 | Resolução nº 7 - Educação Física | Objeto: Formação do profissional de educação física e de ensino de educação básica. Duração (total/mínimo): entre 3.200 h e 2.800 h. Base de conhecimento: Formação Ampliada (relação ser humano-sociedade; biologia do corpo humano; produção científica e tecnológica); Formação Específica (cultura do movimento; conhecimentos didático-pedagógicos e técnico-instrumentais). |
Segue as Resoluções nos1 e 2/2002 ECS = 400 h (2a metade do curso) PCC= 400 h (a partir do 1º ano e ao longo do FIP para disciplinas de intervenção) |
2008 | Lei nº 11788 | Objeto: O estágio visto como um ato educativo escolar supervisionado. Art. 1º §1º [...] integra o programa de formação e o itinerário do estudante. §2º [...] visa a aprendizagem de competências inerentes à atividade profissional [...]. Art. 3º §1º[...], deve ser efetivamente supervisionado por um professor tutor ou professor colaborador de instituição de ensino e por um supervisor da parte concernente[...]. |
Incorporam-se estas medidas da Lei nº 11.788. |
2018 | Resolução nº 6 - Educação Física | Objeto: Formação do profissional de educação física. Duração (total/mínimo): 3.200 h. Base de conhecimentos: conhecimentos biológicos, psicológicos e socioculturais ao ser humano; conhecimentos das dimensões e implicações da biologia, psicologia e estudos socioculturais à motricidade humana; conhecimento instrumental e tecnológico; conhecimentos processuais e éticos de intervenção profissional na educação física. |
ECS = 640 h (1º ao 8º semestre do programa) Obs.: do 1º ao 4º sem. -estágio:240 horas (podendo-se usar a extensão); 5º ao 8º semestre: 400h (Educação Básica/Resolução CNE/CES nº 2/2019) - escola. PCC = 400 h (1º ao 4º ano) |
2019 | Resolução nº 2 - Formação de Professores | Objeto: Formação profissional de educação. Duração (total /mínimo): 3.200 h. Base de conhecimentos: conhecimentos/ensino; núcleos articuladores; interdisciplinaridade; estágio de gestão docente e gestão escolar; análise das práticas. |
ECS = 400 h (5º ao 8º semestre) PCC = 400 h (1º ao 8º semestre) |
Fonte: Construção própria.
Assim, contata-se, no Quadro 1, que existe um conjunto de leis e resoluções específicas para a formação dos profissionais de Educação Física, definindo a base de conhecimentos nesta área e as orientações para a formação prática ou ECS (Brasil, 1969, 1987, 2004, 2018). Além disso, tomando como referência as leis e resoluções relativas à educação e formação de professores em geral (Brasil, 1996, 2002a, 2002b, 2008, 2019), observamos orientações específicas estipulando duas grandes transformações:
1) A definição de uma base de conhecimento para a formação de professores e para a educação básica, bem como a definição dos estágios como prática docente, isto é, confinados ao ambiente escolar na forma de ECS; e
2) O reforço da ideia da prática docente como base da construção da identidade do professor e da reestruturação dos estágios, que, além de integrarem o ECS, seriam compostos também por práticas como componente curricular (PCC).
Desde a década de 1990, a legislação brasileira tem gradativamente circunscrito as bases de conhecimento para os programas de formação de professores, mas, particularmente sobre os ECS, é importante ressaltar que, de acordo com a Resolução nº 6 (Brasil, 2018), cada programa de Educação Física deve oferecer um total mínimo de 640 horas de ECS, além de 400 horas de PCC. Esses ECS dizem respeito àqueles que acontecem na escola e são supervisionados tanto pelos professores colaboradores (PC), também chamados de formadores de campo, como por professores supervisores universitários (PSU).
Por fim, a análise das políticas mencionadas no Quadro 1 também sugere uma evolução da formação de professores na Educação Física no Brasil. Na verdade, estamos tentando visualizar um modelo de formação alinhado às orientações do movimento pela profissionalização do ensino e da docência, que se afasta de modelos precursores, como, por exemplo, o modelo gímnico-desportivo proposto pela Resolução nº 9 (Brasil, 1969).
Observa-se que, na Educação Física, a menção a uma perspectiva pedagógica humanista aparece desde 1987, ao se propor, nesta base de conhecimentos, o conhecimento sobre o ser humano, o conhecimento da sociedade, o conhecimento filosófico, ficando a questão técnico-científica permeada pelo conhecimento técnico e pelo conhecimento científico, mas a questão didático-pedagógica relacionada ao ECS é ainda negligenciada a 50 horas de estágios (Brasil, 1987), situação esta que só mudaria oficialmente a partir da LDB nº 9394/96 (Brasil, 1996).
No entanto, considerando a proposição de Tardif (2013) sobre as três idades do magistério - vocação, ofício, profissão -, perguntamo-nos se, por meio dessas diferentes políticas, o ensino atingiu a idade da profissão, ou seja, o próprio ideal de profissionalização da docência.
Precisamente em relação à formação de professores na Educação Física, questionamo-nos também sobre a forma como as três IES aqui estudadas, a partir do seu contexto particular, se apropriam, integram e compõem com estas orientações relativas ao ECS, que é um dos componentes centrais no modelo profissional de formação de professores.
3 METODOLOGIA
A pesquisa desenvolvida foi qualitativa do tipo exploratória. Ela visou se apropriar de um fenômeno, a fim de torná-lo mais claro e preciso, indo além de sua simples descrição. No âmbito de uma pesquisa qualitativa exploratória, espera-se, no futuro, produzir resultados que permitam a realização de estudos mais detalhados, levando a uma compreensão mais aprofundada do fenômeno estudado (Piovesan; Temporini, 1995).
Como técnica de pesquisa, optou-se pela pesquisa documental e análise de conteúdo. As fontes de dados resultantes dos documentos analisados constituem vestígios materiais, que permitem compreender processos históricos, mas também apreender um determinado problema (Savoie-Zajc, 2004). Mais precisamente, os documentos que integram as análises foram as políticas públicas de formação inicial de professores no Brasil e da Educação Física, mas também os documentos produzidos pelas três instituições - Udesc, UFSCar e Unesp/RC - no que diz respeito aos programas específicos de formação de professores.
O critério de seleção das três instituições, como mencionado anteriormente, se deu em função de elas apresentarem propostas diferenciadas e complementares com relação ao desenvolvimento dos estágios supervisionados nos cursos de licenciatura em Educação Física, considerando: a) o trabalho na perspectiva de formação do formador da escola que recebe estagiários na escola; b) a realização de uma amostra anual do estágio envolvendo a parceria universidade-escola; c) o desenvolvimento de elementos para se perspectivar uma pedagogia do estágio supervisionado. Desse modo, os três cursos analisados podem oferecer contribuições para se pensar uma pedagogia da formação no âmbito do estágio supervisionado. Cabe colocar, ainda, que as três IES, nos últimos anos, vêm promovendo esforços em termos de estudos, debates e adequações com relação ao ECS nos cursos de Licenciatura em Educação Física, envolvendo: (a) eventos acadêmicos: Congresso Nacional de Estágio e Práticas de Ensino (Conespe), Simpósio Sul-Brasileiro de Estágio Curricular Supervisionado, Encontro de Estágio nas Licenciaturas; (b) estudos e pesquisas por meio de editais financiados- CNPq e Capes; e (c) interlocução nacional e internacional. Essas experiências têm possibilitado a essas IES figurarem em um lugar de debate sobre aquilo que vem sendo preconizado para os ECS e os aspectos da formação de professores de Educação Física.
Assim, os documentos considerados como corpus foram: (1) Leis e Resoluções para o FIP em geral; (2) Resoluções específicas para programas de Educação Física; e (3) os projetos educacionais de três programas de FIP em Educação Física: da Udesc, UFSCar e Unesp/RC. Todos esses documentos são públicos e podem ser consultados on-line no site do governo brasileiro, bem como das instituições citadas. Quanto ao processo de análise, procedeu-se primeiro a uma leitura aprofundada de todos os documentos e, em seguida, foram realizadas as conexões entre esses documentos e suas perspectivas, tal como recomenda Prior (2003, p. 77), ao mencionar que a análise documental deve centrar-se principalmente na “linguagem consubstanciada nos documentos como meio de pensamento e expressão” e na sua relação com o próprio contexto em que foi produzida.
Por fim, a análise de conteúdo visou à verificação e interpretação dos dados, levando em conta que a técnica de análise tem, de um lado, a função de descoberta e, de outro, a função de análise sistemática das informações obtidas, podendo essas duas funções se complementarem (Bardin, 1977).
4 RESULTADOS
A partir da análise dos documentos consultados, inicialmente constatamos que as três IES, embora convergentes quanto aos sistemas de formação, organizam os seus ECS de forma diferenciada, nomeadamente no que diz respeito à sua estrutura. Em seguida, identificamos vários desafios subjacentes à implementação dessas diferentes políticas, que as três instituições devem cumprir e enfrentar.
É importante dizer que as IES estudadas oferecem os cursos de Licenciatura em Educação Física alinhados às leis e resoluções que balizam a formação de professores, em acordo com as especificidades da Educação Física e do ECS. Essas três universidades são instituições públicas e estão localizadas nos estados de São Paulo (UFSCar e Unesp/RC) e Santa Catarina (Udesc).
O curso de Licenciatura em Educação Física da Udesc, localizado em Florianópolis, foi criado em 1973 e atualmente possui a carga horária de 3.315 h, distribuídas em quatro anos, sendo 414 h dedicadas ao ECS - 12,5% da carga horária total do programa.
Quanto ao programa de Licenciatura em Educação Física da UFSCar, situado em São Carlos, foi criado em 1995. Sua carga horária total é de 3.240 h, também distribuídas em quatro anos, sendo 480 h dedicadas ao ECS - 15% da carga horária total do programa. Ressalte-se, porém, que o FIP de Educação Física já existia em São Carlos em 1959, mas era de competência municipal, sendo no ano de 1995 incorporado à UFSCar.
Finalmente, o programa de Licenciatura em Educação Física da Unesp/RC, situado na cidade de Rio Claro, foi criado em 1984. À semelhança das universidades anteriores, este programa está distribuído em quatro anos. Apresenta uma carga horária de 3.600 h, das quais 420 h estão vinculadas ao ECS - 12% da carga horária total do programa.
4.1 Os ECS nos cursos investigados: estrutura, organização e temporalidade
Como se pode verificar, todos os programas estão distribuídos em quatro anos e atendem ao mínimo de 3.200 h, das quais o ECS ocupa no mínimo de 12% a 15% do tempo da carga horária total de formação. Porém, se considerarmos as 400 h do PCC, esse percentual sobe para 25% do total de horas do programa em que os alunos estão em contato com o campo ou com o ambiente escolar.
Além disso, conforme indicado no Quadro 2, nos três cursos, os ECS ocorrem nos últimos dois dos quatro anos de formação. Considerando que o percurso é semestral, os estágios acontecem do 5º ao 8º semestre, sendo que a carga horária possui especificidade na sua distribuição.
Modalidade Ano/Sem. | ECS | Universidade: duração do ECS | ||
---|---|---|---|---|
UDESC (414 h) | UFSCar(480 h) | UNESP/RC (420h) | ||
3ºano/5ºsem. | ECS 1 (PE)* | 90 h | 120 h | 120 h |
3ºano/6ºsem. | ECS2 (PE-2)* | 90 h | 120 h | 90 h |
4ºano/7ºsem. | ECS 3 | 90h | 120 h | 90 h |
4ºano/8ºsem. | ECS 4 e ECS5** | 2 x 72h | 120 h | 120h |
*Na UNESP, o ECS1 é chamado de prática de ensino 1 (PE1) e o ECS2 de prática de ensino 2 (PE2).
** Na UDESC, o ECS 4 e 5 se desenvolvem no mesmo semestre.
Fonte: Construção própria.
As três instituições respeitam ou mesmo ultrapassam o mínimo de 400 horas para os ECS, de acordo com as Resoluções nos1 e 2 (Brasil, 2002a, 2002b) e a Resolução nº 2 (Brasil, 2019), mas nenhuma delas atinge as 640 horas, conforme proposto na Resolução nº 6 (Brasil, 2018), específico para a área de Educação Física.
O que pode explicar esse atraso é que as instituições têm até dois anos para implementar qualquer nova política, e atrelado a isso há o debate sobre a atual Resolução nº 2 (2019), pois ainda pairam desacordos sobre sua disposição, bem como a situação do momento pandêmico (pós-pandêmico) que se vive.
No entanto, do ponto de vista da profissionalização dos professores, como vimos através da evolução das várias políticas, um longo caminho foi percorrido e os avanços são notáveis. Porém, o tempo dedicado ao ECS representa uma percentagem bastante baixa em comparação com a carga horária total dos programas.
Nesse sentido, Lüdke e Scott (2018) argumentam que, no Brasil, os ECS não apenas ocupam uma porção relativamente pequena dos programas de formação de professores, mas também sofrem de várias limitações que os tornam ineficazes. Já a formação teórica sob responsabilidade das universidades é muito mais densa, pelo menos em termos de carga horária. Além disso, ainda segundo os autores supracitados, nos programas brasileiros, os cursos de formação disciplinar específica (no campo da Educação Física, por exemplo) e de formação pedagógica (no campo das ciências da educação, pedagogia) se desenvolvem em paralelo e em desarticulação. Assim, os ECS muitas vezes se configuram sem uma articulação entre universidades e escolas.
Deve-se destacar também que o ECS é simultâneo aos demais requisitos da universidade. Ou seja, embora alternem períodos na escola e na universidade, os estágios são realizados concomitantemente com aqueles. Por exemplo, nas três universidades, um aluno poderia fazer seu ECS pela manhã no ensino fundamental e, à tarde ou à noite, retornar à universidade para fazer as disciplinas obrigatórias do curso de licenciatura. Nesse sentido, cada universidade possui uma organização particular e um sistema de ECS específico, uma vez que também aloca um horário escolar nas diferentes etapas da educação básica e suas modalidades.
Essa organização permite considerável troca de experiências e descobertas, no entanto, a carga de trabalho, especialmente para alunos, pode aumentar rapidamente entre as atribuições exigidas em um e outro. Como resultado, eles se deparam com uma dupla tarefa: integrar-se à escola e sistematizar suas experiências, participar de reuniões e de todas as atividades requeridas pelo ECS e, em paralelo, atender às demais demandas do curso.
Em suma, essa organização simultânea ilumina o modo como as temporalidades dos ECS e dos cursos se alternam e se entrelaçam nas idas e vindas dos estagiários entre escola e universidade. Além disso, traz à tona diferentes formas de parceria que acontecem entre estabelecimentos de ensino e universidades.
Estas diferentes parcerias geram processos colaborativos mais ou menos formais e/ou informais entre o PSU e o PC; entre estes e os estagiários; o estabelecimento de acordos jurídicos entre universidades e escolas; e vínculos entre as universidades e secretarias de educação, com base na legislação em vigor. Essa flexibilidade e formas de conexão, oscilando entre formalidades e informalidades, fazem parte da cultura de estágios no contexto brasileiro.
Da mesma forma, estabelecer o conceito de parceria se torna uma tarefa difícil, pois muitas vezes ela acontece em ‘parte’ do processo ou mesmo envolvendo alguns dos participantes, mas não sua totalidade, configurando-se como uma possibilidade (Kaddouri, 1997), mas não necessariamente como algo robusto e de longo prazo (Landry, 2013).
Embora “os programas de formação inicial, a profissionalização docente [...] exijam uma grande articulação, coordenação e colaboração entre os vários agentes formadores” (Borges; Portelance; Pharand, 2009, p. 3), não se pode deixar de dizer que esta flexibilidade pode ser considerada benéfica, pois revela certa autonomia dos atores envolvidos na formação e principalmente nos ECS.
4.2 As propostas dos ECS e suas modalidades e dispositivos
De acordo com a Lei de Estágios (Brasil, 2008), as Resoluções nos1 e 2 (Brasil, 2002a, 2002b) e a Resolução nº 2 (Brasil, 2019), os ECS visam a preparação para o trabalho e a aprendizagem de competências inerentes à atividade profissional. Nesse sentido, conforme mostra o Quadro 3, as três instituições privilegiam as modalidades de estágio (individual, díade ou tríade) que vão desde a observação, passando pelo co-ensino até o comando da turma, bem como uma diversidade de experiências em diferentes níveis educacionais e grupos de classe.
Os ECS são também ofertados desde a educação infantil até o ensino médio. Ressalte-se que a Unesp/RC é a única instituição que oferece estágio voltado para gestão escolar e a Udesc é aquela que oferece estágios para a educação de jovens e adultos (EJA) e a educação especial.
Universidade Estágio | UDESC | UFSCar | UNESP/RC |
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ECS1: 5ºsem. | Etapa: Educação Infantil Forma: duplas |
Etapa: Educação Infantil Forma: individual, duplas ou trios |
Etapa: Educação Infantil e Ensino Fund. anos iniciais Forma: individual, duplas ou trios |
ECS2: 6ºsem. | Etapa: Ensino Fund. anos iniciais Forma: individual | Etapa: Ensino Fund. anos iniciais Forma: individual, duplas ou trios |
Etapa: Educação Infantil e Ensino Fund. anos iniciais Forma: individual, duplas ou trios |
ECS3: 7ºsem. | Etapa: Ensino Fund. anos finais Forma: individual |
Etapa: Ensino Fund. anos finais Forma: individual, duplas ou trios |
Etapa: Ensino Fund. anos finais Forma: individual, duplas ou trios |
ECS4: 7º e 8ºsem. | Etapa: Ensino Médio e Gestão Forma: individual, duplas ou trios |
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ECS4: 8ºsem. | Etapa:Ensino Médio e EJA Forma: individual |
Etapa: Ensino Médio Forma: individual, duplas ou trios |
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ECS5: 8ºsem. | Modalidade: Educação Especial Forma: duplas ou trios |
*Em todos os estágios apresentados, nas três instituições, existe o modo de organização da atuação e intervenção dos estagiários balizados pela observação, coparticipação e regência da classe.
Fonte: Construção própria.
Para apoiar a articulação entre a universidade e o ambiente escolar, as leis e resoluções aqui analisadas também definem diretrizes quanto ao estabelecimento de condições de estágio adequadas para os estagiários, principalmente no que diz respeito a designar um PSU e ter um PC, inclusive mencionando a necessidade de aproximação destes dois formadores, como é o caso da Resolução nº 2 (Brasil, 2019).
As três instituições estabelecem um acordo de colaboração para cada um dos períodos de estágio, que incluem: 1) alocação em ambiente de estágio; seguida de 2) ingresso na escola; 3) acolhimento; 4) apropriação da realidade do meio; 5) desenvolvimento do projeto de estágio; 5) desenvolvimento do estágio; 6) avaliação e 7) encerramento do estágio. Todas seguem essas fases e, embora os ECS possuam semelhanças, as respectivas responsabilidades das universidades e escolas variam ligeiramente, devido ao grau de formalização da parceria.
Por exemplo, na Udesc, é a rede escolar que faz a oferta de horários e vagas disponíveis para o ECS e a universidade se acomoda, enquanto na UFSCar é a universidade que apresenta sua solicitação de vagas à rede escolar e esta última responde de acordo com sua disponibilidade. Já na Unesp/RC, existe um convênio de colaboração entre a universidade e as secretarias de educação do município de Rio Claro e do Estado de São Paulo, e suas respectivas redes escolares balizam as alocações.
Nos três casos, as escolas estão envolvidas no acolhimento, integração, desenvolvimento e apoio aos estagiários, por meio do trabalho do PC. Na Udesc, é ofertada pela universidade uma grade de avaliação ao PC. O PSU também a utiliza e a composição da nota final é feita pela média das notas do PSU e do PC. Já na UFSCar, a avaliação é baseada em relatos de práticas sobre o ensino, e conta também com a avaliação do PC, de modo que a nota final é realizada pelo PSU, enquanto na Unesp/RC se tem um portfólio e esse material é usado tanto pelo PSU quanto pelo PC, mas a nota final é de responsabilidade do PSU.
Por fim, estratégias como gravação de vídeo, fotografia, observação, monitoramento da lista de tarefas (checklist), uso de grades, organização de uma conferência de fim de curso etc. - um rol de elementos que se constituem como dispositivos de análise de práticas - parecem estar no centro dos mecanismos dos três programas. O Quadro 4 apresenta essas estratégias para as sete fases mencionadas anteriormente e que ora se alinham à universidade e ora às escolas.
ECS Fases |
Lugar | Estratégia | |
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Universidade | Escola | Dispositivo | |
1-Alocação dos estagiários | Contato com as escolas | Secretaria de educação/escola (autoriza o estágio e o estabelecimento de ensino) | Contrato de ECS (termo de consentimento) |
2-Entrada nas escolas | Orientação dos estagiários | Recepção ou acolhimento do estagiário | Carta de apresentação Reuniões iniciais |
3-Conhecimento da realidade | Apresentação das características da etapa/modalidade | Atividades de observação | Cadernos de estágio Trabalho de campo |
4-Projeto de estágio | Estagiário sob a orientação de um PSU | Planejamento de ensino em parceria com o PC da escola | Projeto pedagógico de escola Planejamento de ensino do PC Proposição municipal Orientações da secretaria de educação do estado |
5-Desenvolvimento do estágio | Orientação ou supervisão Análise do desenvolvimento do estágio |
Supervisão das atividades dos estagiários nas escolas |
Checklist (guia de acompanhamento) Portfólio, relatório de estágio |
6-Avaliação do estágio | Avaliação do PSU | Avaliação do PC | Relatórios de estágio e grade de avaliação |
7-Fechamento | Seminário de estágio | Apresentação de estágio nas reuniões pedagógicas | Relato de experiência vivida, comunicação de trabalho pedagógico |
Fonte: Construção própria.
Cada momento do ECS é, portanto, uma oportunidade de alcançar aprendizagens diferentes, variando de acordo com o espaço (escola ou universidade) e o tempo em que as atividades acontecem. O tempo passado nas escolas é, portanto, um tempo de imersão que se complementa com um tempo de reflexão e análise de práticas ou do contexto escolar, no âmbito de cursos e seminários.
Nos casos das três universidades examinadas, os mecanismos instituídos contribuem à sua maneira para o processo de formação dos futuros professores e, consequentemente, para a profissionalização do ensino.
O Quadro 4 acaba por apresentar, de forma resumida, um esforço na consolidação de propostas de ECS que melhor articulem a relação entre a universidade e a escola, possibilitando, assim, uma maior adesão do professor da escola tanto na reinterpretação do ECS como no reconhecimento enquanto alguém que também é um coformador.
Isso não é feito, no entanto, sem dificuldade. Em primeiro lugar, embora haja um aumento da participação do PC, ele não está preparado para apoiar e supervisionar os estagiários. As universidades estão se esforçando ao máximo para superar esse desafio. É o caso particular da Unesp/RC, que criou uma escola de formação de professores para prepará-los para o apoio a estagiários; enquanto, na UFSCar, foram desenvolvidas oficinas de formação de coordenadores pedagógicos de escolas estaduais na Diretoria de Ensino, para eles atuarem como formadores na recepção de estagiários nas escolas; bem como, na Udesc, se fazem amostras anuais de ECS na universidade, envolvendo professores universitários, estudantes e professores de escolas.
No entanto, essa participação é voluntária e os professores não recebem remuneração para esse fim, de modo que a atratividade para se tornar um PC é baixa. Em segundo lugar, como os ECS são simultâneos aos cursos universitários, muitas vezes os calendários da escola e da universidade não coincidem, o que representa um problema para a distribuição dos estagiários, bem como das horas alocadas para o estágio nas escolas. Por fim, e em terceiro lugar, o próprio estabelecimento da parceria é um desafio, visto que o ambiente escolar é mais reservado para um maior envolvimento na formação dos professores.
5 DISCUSSÃO
A análise de documentos governamentais das três IES (UFSCar, Udesc e Unesp/RC) atesta o esforço de vincular a formação de professores em Educação Física ao movimento pela profissionalização do ensino e da docência.
Um sinal desse esforço pode ser encontrado na evolução da legislação, pois ao longo dos anos isso estabeleceu uma base de conhecimento, definiu o professor como profissional e concedeu aos ECS um lugar privilegiado na formação, por meio de diretrizes que definem as responsabilidades das universidades e das escolas. A formação na escola passa, assim, a ser entendida como um espaço de produção e formação de conhecimento da profissão e de apropriação da própria profissão, à semelhança da universidade. Como resultado, os agentes e a comunidade escolar também são vistos como parceiros no processo de FIP.
Na prática, a experiência das três instituições analisadas corrobora essa constatação do alinhamento da formação atrelada aos princípios preconizados pelo movimento de profissionalização, considerando tanto o engajamento, como uma postura crítica. O aumento da carga horária do ECS nas três instituições e as diferentes modalidades e mecanismos implementados pelas universidades são a prova disso. Isso pode ser considerado uma conquista para as três instituições, principalmente por terem conseguido colocar o ambiente escolar como parceiro nos diferentes períodos do ECS em alternância, ao mesmo tempo em que destacam a participação do PC como acompanhante dos estagiários.
Outra constatação é o fato de que o ECS em Educação Física abrange todas as etapas da educação básica e, ainda, abarca algumas modalidades, como a EJA e a educação especial. Isso amplia a experiência dos estagiários, mas também o quadro de recrutamento dos PC, que, no entanto, não têm formação, nem recebem salário ou incentivo para assumir essa tarefa. Neste sentido, apesar das dificuldades encontradas, através das várias parcerias, arranjos e modalidades de estágio, as três instituições estão aptas a oferecer uma formação universitária que pretenda ser de alto nível, como preconizado pelo movimento pela profissionalização do ensino e da docência, uma vez que, por meio da alternância do ECS, buscam desenvolver competências profissionais relacionadas ao conhecimento e respeito às rotinas escolares, ética profissional (Tardif, 2013) e diferentes fases do ECS, pois trazem à tona a especificidade da formação profissional na docência, que se baseia no pensamento e ato de ensinar (Shulman, 2005).
Com o aumento da duração dos estágios e do tempo que os estagiários passam nas escolas, vai se tornando cada vez mais evidente que a colaboração entre universidades e escolas é imprescindível, pois cada espaço desenvolve atividades complementares e de socialização na construção da identidade docente- perspectiva sociológica.
A ampliação do tempo dos estagiários nas escolas pode favorecer a promoção da “articulação entre a teoria e prática para a formação docente, fundada nos conhecimentos científicos e didáticos, contemplando a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão” (Brasil, 2019, p. 03), com vistas ao desenvolvimento dos estudantes.
Entretanto, embora a ampliação do tempo dos estagiários na escola seja de grande importância, ela não produz, necessariamente, a articulação entre teoria e prática. Para essa articulação, é preciso ir além do tempo, e visualizar as ações implementadas no tempo do estágio. Estas ações podem ser visualizadas por meio dos dispositivos que auxiliem em diferentes procedimentos, tanto os burocráticos, como aqueles para a entrada na escola e os registros didático-pedagógicos, por terem a função de fomentar a reflexão sobre os processos formativos ocorridos durante o ECS.
Em especial, os dispositivos compõem as ações de acolhimento e acompanhamento nos ECS das três IES aqui tratadas. Eles apresentam a função de produzir uma ‘reflexividade social’, que, de acordo com Tardif e Moscoso (2018), se encontra no centro das práticas docentes, com destaque para as práticas profissionais. Estas práticas formam o cerne da reflexão para dar sentido ao trabalho dos professores a partir de suas narrativas (relatos de experiências, casos de ensino, portfólios, entre outras). Assim, a formação se organiza em torno de dispositivos formativos que podem incitar e organizar a reflexão sobre a prática e a tomada de consciência dos saberes elaborados (Iza, Souza Neto, 2015).
Ações conjuntas e principalmente parcerias são necessárias para garantir o apoio aos estagiários. O projeto de estágio realizado em colaboração com as escolas e presente nas três instituições pode ser um motor para aumentar o envolvimento da comunidade escolar nos ECS. As duas instituições (universidade e escola) devem, no entanto, “assumir responsabilidades e ajudar-se mutuamente” (Brasil, 2001, p. 01).
Este é um grande desafio, pois tanto as escolas quanto as universidades também têm seus problemas e agendas, bem como suas diversas perspectivas e funções sociais. Desse modo, compartilhar compromissos e responsabilidades é um caminho a percorrer, no sentido de abarcar e se manifestar por todos os envolvidos no processo formativo, para que as decisões sejam tomadas coletivamente, a fim de evitar o surgimento de relações de poder (Day, 2001).
Além disso, no que se refere aos desafios e complexidades, a precariedade dos ECS é vista como uma limitação presente em muitos programas de formação de professores (Gatti; Barreto, 2009), e em particular nas relações universidade-escola, pois essa colaboração ainda é frágil, uma vez que se baseia na ideia de que o papel da escola é abrir as portas aos futuros professores e ponto final. Por outro lado, é pouco profissional, pois não há alocação de verbas para apoiar o trabalho do PC da escola, reconhecimento oficial de seu trabalho ou progressão na carreira.
Embora as ações no ECS das três instituições sejam orientadas para a profissionalização e constituam um progresso, ao delimitar os tempos dos estágios, os mecanismos instituídos e o acompanhamento dos formandos, carecem de uma estrutura organizacional que a institucionalize e apoie as diferentes ações. Na realidade, o que se estabelece é mais uma camaradagem entre o PSU e o PC, enquadrada por um regime que não parece dar o tom de formalidade necessária para apoiar este processo.
6 CONCLUSÃO
Com relação ao estudo apresentado, observou-se um esforço de articulação entre as universidades e as escolas no que diz respeito ao ECS. A universidade tem posição de liderança nesse processo. Mas tanto essa posição quanto o lugar ocupado pela comunidade escolar tiveram que criar uma estrutura institucional para balizar os ECS e gerir a formação, considerando de forma complementar as contribuições mútuas, os seus tempos e espaços de formação. Portanto, na nova configuração que está em curso no tempo-entre-dois da formação e profissão, no qual o ECS se encontra, o estágio passa a ser eixo da formação e exige-se formar para uma profissão, o que implica reconhecer a dimensão socioprofissional do ECS.
Esta questão emerge com força, pois os tempos de formação entre cursos universitários e ECS ainda não estão totalmente articulados entre si. Cyrino e Souza Neto (2017) argumentam que, até este momento, o engajamento na formação de um futuro professor não faz parte das responsabilidades burocráticas formais das escolas, o que explica a complexidade e as dificuldades atuais.
No esforço de encontrar uma solução, Nóvoa (2017) sublinha a necessidade de se pensar a formação centrada no exercício de uma profissão, sobretudo na perspectiva de uma afirmação e reconhecimento público. Por fim, à luz de nossas análises, concluímos que, embora difundido e presente tanto no discurso político quanto no científico, o movimento pela profissionalização do ensino e da docência, no contexto brasileiro, traz três questões para a formação inicial de professores em geral, mas também para a Educação Física.
A primeira diz respeito à própria adoção de um modelo profissional, ou seja: ir além do estatuto de profissão para o de uma profissão na sua totalidade; oferecer formação universitária de alto nível; desenvolver competências profissionais com base no conhecimento científico e compromisso social (Penteado; Souza Neto, 2021; Contreras, 2002); e superar uma visão técnica de prática docente, em prol de outra, baseada na ética profissional (Tardif, 2013).
A segunda questão diz respeito ao risco de se cair em uma falsa universalização da formação (Bourdoncle, 2007), onde, ao invés de se valorizar o processo, acaba por se promover um rebaixamento da formação docente (Sarti; Bueno, 2007). Principalmente se considerarmos a expansão exponencial da oferta de programas de formação de professores no Brasil (tanto do setor público quanto do privado) e o baixo valor simbólico dessa formação na hierarquia social (Sarti, 2012).
A terceira é a polarização entre a proletarização dos professores ou a falta de profissionalização dos professores e, inversamente, a necessidade de se construir um novo tipo de profissionalismo (Heargreaves, 2000), o que implica, necessariamente, em passar de uma reflexão individual para uma reflexão coletiva (Tardif; Moscoso, 2018).
Na contemporaneidade, as expectativas em relação ao movimento de profissionalização dos professores não só elevaram o estatuto dos ECS, como também fizeram surgir diferentes modalidades e mecanismos de promoção do processo formativo e de articulação entre universidade e escola. Toda essa trajetória histórica, suas implementações legais e sua apropriação pela academia e pelas escolas deram ao ECS - considerando os seus problemas e avanços - muito mais visibilidade do que antes. Mas é preciso tornar o discurso realidade. Caso contrário, teremos um excesso de discursos para uma pobreza de práticas. Não conseguiremos romper com a metáfora do ziguezague em que um governo avança nas diretrizes e o outro retrocede.