Introdução
Este artigo procura analisar a problemática da educação domiciliar, de modo a destacar os principais pontos presentes na literatura nacional, trazendo à luz, todavia, o binômio identidade-pluralidade como mais uma questão importante a ser considerada no debate acadêmico. Inevitável com esse objetivo não fazer incursões pela categoria durkheimiana “socialização” porque ela é uma das preocupações mais recorrentes citadas pelos críticos da homeschooling e, também, porque os defensores da educação domiciliar têm compreensão específica sobre o conceito, como será mostrado oportunamente.
Outras terminologias circulam nos meios jurídicos e acadêmicos para designar o objeto deste estudo. Expressões como: educação em casa, ensino doméstico, educação doméstica, educação domiciliar e homeschooling são as mais utilizadas. Neste artigo, utilizarei como categorias conceituais e sinônimas os termos “educação domiciliar” e/ou “homeschooling”.
Autores brasileiros têm realizado estudos sobre educação domiciliar partindo de abordagens cujas dimensões privilegiam aspectos diversos: a) legais e históricos (CURY, 2019; CASANOVA; FERREIRA, 2020; VASCONCELOS; BOTO, 2020; WENDLER; FLACH, 2020;), b) econômicos e ideológicos (OLIVEIRA; BARBOSA, 2017; PICOLI, 2020; CECCHETTI; TEDESCO, 2020; c) mercadológicos (ADRIÃO, 2018), d) referentes ao direito comparado (VASCONCELOS; MORGADO, 2014; BARBOSA; EVANGELISTA; 2018), e) teórico-pedagógicos (BATISTA, 2018; NOVAES et al., 2019; BRITO et al., 2020; CASAGRANDE; HERMANN, 2020); f) direito individual à liberdade (BARBOSA, 2016), g) motivação das escolhas (KLOH, 2016), etc. Como se vê, são pesquisas relativamente recentes, porém, com força heurística suficiente para ampliar e qualificar o debate acadêmico. No campo jurídico, a questão foi resolvida como mostrarei na próxima seção.
O que pretendo desenvolver, neste artigo, é uma reflexão sobre as categorias identidade e pluralidade (uma questão de fundo curricular, portanto) e sobre os riscos que a educação domiciliar pode1 trazer para o sistema educacional possibilitando o surgimento de “bolhas sociais familiares”. O risco pode estar no fato de os homeschoolers2 advogarem e pretenderem a liberdade educacional que seria a NÃO interferência do Estado na educação familiar que praticam; dessa forma, eles querem liberdade plena (métodos, instrumentos, conteúdos, material didático, professores ou tutores, etc.) inspirados que estariam nas instigantes teses da teoria da desescolarização.
As questões de partida que orientam este trabalho são: Quais controvérsias sugerem a educação domiciliar quando se pensa a operacionalização do currículo escolar nos domicílios? Quais riscos a educação domiciliar oferece para o binômio identidade-pluralidade, no processo de socialização, para a formação da cidadania?
A abordagem metodológica é de natureza eminentemente qualitativa com base em pesquisa realizada em fontes primárias oficiais e documentais (Projeto de Lei 2401/2019), assim como em reportagens de sítios específicos, particularmente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), que divulgam favoravelmente a educação domiciliar; e em matriz analítica decorrente da literatura, tendo como interlocutores pesquisadores nacionais dedicados a importantes reflexões a respeito da homeschooling. Utilizo ainda Durkheim (2007) para sofisticar argumentos em favor da socialização escolar formal e para combater o que me parece à possibilidade de riscos iminentes, caso tenhamos o desenvolvimento da educação domiciliar exatamente nos moldes em que pretendem os homeschoolers, ou boa parte deles.
O artigo está dividido em oito seções, incluindo esta introdução. Nelas, esforço-me em revelar as controvérsias presentes no debate, destacando, porém, fundamentalmente que, no processo socializador dos alunos escolarizados nos domicílios, o binômio identidade-pluralidade é atingido de modo severo.
Educação domiciliar no século XIX e homeschooling no século XXI
Vários autores (CURY, 2019; VASCONCELOS, 2005; BATISTA, 2018; VIEIRA, 2012) deixam claro que educação domiciliar não é um fenômeno desconhecido da sociedade brasileira. A prática existiu em importante escala, principalmente no século XIX. Por um lado, Cury (2019, p. 2) afirma que: “A bem da verdade, é preciso registrar que, desde o Império, as elites ministravam a instrução primária e outros ensinamentos no lar, seja por meio de um ‘tio padre’, seja por meio de governantas”. Batista (2018), por outro lado, esclarece:
Comumente, as famílias que escolhiam a educação doméstica recorriam a grupos de professores especializados num ensino variado que englobava não apenas as letras e a Matemática, mas também conhecimentos como a música, as artes e a oratória. Tais docentes eram categorizados normalmente em três classes: os mestres particulares, os preceptores e os padres de capela (VASCONCELOS, 2005). Os primeiros atendiam com hora marcada, em respectivos dias da semana, atendendo individualmente ou a pequenos grupos de crianças; para tal, recebiam valores específicos de acordo com os cursos que realizavam. (BATISTA, 2018, p. 55).
A educação domiciliar, como se nota, não é um fenômeno novo no Brasil. Nos termos em que ocorreu nos tempos do Brasil Império e no começo do século XX, esteve afeita às famílias mais abastadas, revelando que a condição econômica marcava um importante diferencial entre aqueles que podiam, ou não, bancar em casa a escolarização dos próprios filhos. Hoje, da mesma forma, o movimento em prol da homeschooling (apesar de não ser homogêneo quando se verifica os estratos sociais, por exemplo), tem atraído mais famílias de classes médias e/ou das classes altas do que famílias pobres, demonstrando o caráter elitista que a prática permite.
Todavia, apesar do perfil socioeconômico das famílias homeschoolers, tanto no século XIX como no XXI, o que se tem de novo são as bases motivadoras. Naquela ocasião, as famílias escolarizavam seus filhos em casa porque o poder público não dispunha de uma vigorosa rede de ensino e suas estruturas formais. Aquelas famílias da época do Brasil Império ou do início do século XX contratavam professores particulares ou preceptores exatamente em decorrência de incipiente e frágil rede de ensino pública formal e suas carências. Tratava-se de “opção forçada” que mais tarde viria a ser suprida com o fortalecimento e a consolidação de escolas públicas nas principais cidades do país. Hoje, as famílias fazem “opção espontânea” em não matricular seus filhos em escolas formais, sejam públicas ou privadas, porque têm sérias desconfianças dos resultados na formação moral e intelectual promovidas nas crianças e nos jovens pelo sistema escolar. Em outras palavras, a desconfiança para com o sistema formal de ensino é o ponto chave que marca a diferença nos dois momentos históricos.
Vasconcelos (2005, 2009) corrobora que a educação domiciliar não é uma novidade no Brasil. Foi praticada, por vezes majoritariamente, até a consolidação dos sistemas formais de escolarização, o que ocorreria somente no século XX.
Os argumentos dos homeschoolers e a liberdade educacional
O movimento em favor da educação domiciliar no Brasil é cada vez mais visível. Ele se mantém ativo por meio das redes sociais e dos aplicativos mais conhecidos (Instagram, Facebook, Youtube) e estão, eu diria, bem organizados juridicamente como defensores do direito que a Família tem de educar seus próprios filhos excluindo-os dos sistemas formais de ensino.
Muitos são os argumentos em defesa da homeschooling. Eles variam, porém há argumentos refinados teórica e pedagogicamente porque, estes, se amparam, indiscutivelmente, em importantes variáveis que primam pelo ensino e pela aprendizagem favoráveis ao ensino para cada aluno, um tipo de aprendizado individualizado, conforme os interesses e as motivações do estudante.
Dentre os argumentos, o jurídico, foi resolvido no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). A controvérsia girou em torno da constitucionalidade da prática do homeschooling no Brasil e no direito de as famílias não matricularem seus filhos em sistemas formais de ensino. A questão resolveu-se por meio de decisão do STF que reconheceu que o “[...] debate acerca da proibição ou possibilidade de implementar o direito à educação por meio do ensino domiciliar é de natureza constitucional e possui repercussão geral” (BRASIL, 2018b, p. 6), quando apreciou o Recurso Extraordinário (RE) de n. 888.815 RG interposto contra Acórdão que estabeleceu não existir direito líquido e certo à educação domiciliar no Brasil. A controvérsia envolve a definição dos “[...] contornos da relação entre Estado e família na educação das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais”, segundo o voto do relator do RE Ministro Roberto Barroso (BRASIL, 2018b, p. 6-7).
Em prosseguimento, em 12 de setembro de 2018, o Ministro Alexandre de Moraes observou que a Constituição Federal não proíbe a educação domiciliar, mas ressaltou que sua implementação depende de lei editada pelo CN, respeitando todos os requisitos constitucionais. Diante desses fatos, em abril de 2019, o Governo Federal encaminhou ao CN o Projeto de Lei (PL) de número 2401/2019, cuja matéria dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar no Brasil. Assim, a solução jurídica foi encaminhada e os praticantes do homeschooling esperam, agora, pela aprovação da matéria.
Além do argumento jurídico, outros são: 1) poupar os filhos da “[...] doutrinação ideológica lenta, ou da ação de professores malformados, ou rudes, e da violência dos colegas” (VASCONCELOS, 2017, p. 128); 2) pais gostariam de ter uma escola formal de melhor qualidade, mas deixaram de acreditar nela e querem ter outra opção, portanto; 3) pais que desejam educar seus filhos fora da escola porque, tecnicamente, não haveria nenhum grande impedimento em educar filhos em casa, tendo as famílias condições para isso; 4) o sistema formal de ensino teria se tornado incapaz de enfrentar questões como a disciplina, o afeto, os limites, os conceitos morais, os exemplos éticos (BATISTA, 2018). E, ainda, outro grupo de argumentos, estes muito mais interessantes, bem elaborados, porque sustentados em princípios e teorias pedagógicas e fundamentados nas ideias de Illich (1977) e de Holt (2006), homens que defenderam princípios pedagógicos anarquistas vinculados que estavam às teorias da desescolarização.
Além dos dois, o próprio Paulo Freire, paradoxalmente, é outro estudioso a quem os defensores da educação domiciliar recorrem quando estão defendendo os princípios do homeschooling. Kloh (2016) coletou depoimentos de defensores3 da educação domiciliar quando em audiências públicas no CN, registrando deles que
[...] o ser social se constrói como tal enquanto interage com a sociedade ao seu redor, ou seja, se socializa de forma ativa no próprio meio social. Por que ensinar em casa não é um problema social? Porque a criança não é socializada exclusivamente nem na escola nem em casa. Nós todos somos socializados na sociedade. (KLOH, 2016, p. 351).
Por outro lado, os argumentos que correlacionam o homeschooling às ideias da desescolarização são intrigantes, sem dúvidas. Illich (1977) defendia que as crianças poderiam aprender em diversas circunstâncias não somente com professores, e que as escolas fracassavam nos resultados dos processos de ensino e de aprendizagem; por isso, ele propôs quatro redes de aprendizagens4 em que o aluno faria suas atividades de acordo com seus interesses próprios. Em consequência, a metodologia utilizada centralizaria o percurso menos no ensino e mais na aprendizagem do aluno, de maneira que a criança e/ou jovem construísse seu próprio conhecimento (RIBEIRO; PALHARES, 2017).
Baseados em Holt, Illich e Paulo Freire, os defensores da educação domiciliar ancoram-se na autoaprendizagem do indivíduo, no argumento de que a criança passa a ser agente da sua própria história, construtora do seu saber e protagonista da sociedade. Com esses fundamentos, tem-se uma linha argumentativa muito sedutora, reconheço.
Em busca de mais evidências, encontrei, no sítio Youtube5, conversa informal (disponível publicamente, sem nenhuma restrição quanto ao seu uso), entre representante do homeschooling e pesquisador especialista da temática dos Estados Unidos da América (EUA). Eles conversam informalmente sobre a categoria socialização, na qual eles reportam a expressão “boa socialização”. O tema socialização é uma das críticas mais caras que o movimento em defesa da educação domiciliar enfrenta e, por isso mesmo, importante saber o que pensam sobre essa questão específica. A seguir, transcrevo a breve conversa6, na íntegra, com as iniciais de cada pessoa.
MD: Brian, estamos falando sobre a socialização. Rapidamente, o que você diria aos legisladores e às pessoas do Brasil sobre a socialização e a educação domiciliar?
BR: Primeiro, já houveram muitos estudos pesquisados por diversos estudiosos por todos os EUA. Eu mesmo já fiz algumas pesquisas sobre este assunto. E quando estudam diversas versões de desenvolvimento social como auto-estima, auto-conceito, interação com outras crianças, como se saem enquanto adultos no mundo real. As pesquisas mostram que estão se saindo consistentemente tão bem e, tipicamente, melhores dos que os que vão a uma escola pública institucional regular. Também diria, que, num nível particular, a vasta maioria das famílias que ensinam em casa envolvem seus filhos em diversas atividades, clubes de esportes, futebol, ou estão em grupos de igrejas, estão em cooperativas onde estão envolvidos com outras crianças. Então, estão constantemente aprendendo, claro, habilidades sociais, como adultos, assim como eu e você fazemos coisas com outras pessoas, aprendemos habilidades sociais até mesmo agora com mais idade.
MD: Eu acho interessante que as pessoas frequentemente perguntam sobre a socialização. No que se metem mais em problemas em geral nas escolas:
MD e BR (juntos): Socialização.
BR: Comportamentos sociais errados.
MD: Então a realidade é que, quando as crianças estão, com uma família, interagindo com adultos, e seus pares, sob influência dos seus pais, isso é socialização positiva.
BR: Tem mais uma coisa que quero dizer. A maioria de nós acredita que adultos são melhores exemplos de vida do que crianças para aprender habilidades sociais. Quando as pessoas são educadas no lar, elas têm mais, como seus exemplos de vida, adultos ao invés de seus pares.
MD: Certo. O que acontece na escola? Estamos presos dentro de quatro paredes da sala por oito horas por dia com crianças da mesma idade que nós. Como fica isso para a receita de boa socialização?
MD: Eu sou Mike Donnelly com a HSLDA e este é o Brian Ray. Obrigado por ouvir. (ANED, 2019a, n.p., grifos nossos).
Dessa transcrição, sem dúvidas, o que mais chama atenção são as expressões “socialização positiva” e “boa socialização”. Antecipo minhas suspeitas de que se trata de um tipo de socialização seletiva, planejada e intencionalmente triada. Eu diria segregadora até certo ponto. Adiante, argumentarei mais em favor da possibilidade e do risco, agora, já factível de antecipar: a formação das bolhas sociais familiares.
Prossigo no sítio da ANED7 onde há várias notícias, documentos e vídeos sobre o trabalho da Associação para a legalização do homeschooling no Brasil. Lá se encontra disponibilizado, com data de 19 de fevereiro de 2019, conversa online denominada “Bate papo com Carlos Xavier e Rick Dias, Presidente da ANED”, duas lideranças proeminentes do movimento em defesa da educação domiciliar.
O “bate papo”, portanto (assim como a conversa informal entre os americanos, anteriormente registrada), está disponível publicamente para acesso por qualquer pessoa e não há nenhuma restrição, nem mesmo qualquer observação quanto ao uso do conteúdo que se passa entre as duas lideranças. Portanto, em não havendo alteração dos textos e dos contextos, seu usufruto para fins acadêmicos não se encontra impedido.
O conteúdo da conversa gira em torno do PL 2401/2019, que tramita no CN, das dificuldades e das formas de articulação política que o Presidente da ANED vem passando e utilizando para aprovação dessa legislação ordinária que autorizará a prática do homeschooling no Brasil. A primeira evidência encontrada é que a ANED tem interesse em mudar dispositivos do PL encaminhado pelo Governo Federal ao Poder Legislativo porque as famílias homeschoolers, ou boa parte delas, não concordam com muitos termos constantes no projeto de lei.
No “bate papo”, o Presidente Rick Dias tranquiliza as famílias dizendo que o texto do PL 2401/2019 não será o texto que vai ser aprovado; todavia, o projeto de lei também não será a “lei ideal”, aquela que as famílias praticantes da educação domiciliar pretendem ver aprovada. Chama atenção o momento da conversa à altura dos 36m20s quando Carlos Xavier fala das preocupações das famílias sobre interferência estatal, utiliza a expressão “liberdade educacional” e pede para Rick Dias explorar, dentro do jogo político, a reflexão “[...] em termos do que queremos e em termos do que podemos” (ANED, 2019a, n.p.) sobre a liberdade educacional.
Uma das preocupações das famílias é com o sistema de avaliação. Rick Dias inicia dizendo que existem variáveis políticas que não estão no controle das famílias nem da ANED, porém há, nacionalmente, a incapacidade de os governos fiscalizarem as escolas públicas do sistema de ensino formal razão pela qual o governo anterior (se referindo à gestão governamental nacional anterior a 2019) se mostrava receoso ao homeschooling. Nas palavras de Rick Dias, o efetivo para fiscalizar escolas e universidades é absolutamente pequeno, “[...] imagine para fiscalizar famílias. [...] ninguém precisa ficar em desespero com relação a isso. Agora, uma coisa também que a gente tem que entender é que estamos em um processo de negociação [...]” (ANED, 2019b, n.p.), e não se chega ao CN com uma proposta ao gosto das famílias e ela é aprovada sem restrição, não é uma coisa simples assim, arremata ele.
Fiz questão de destacar esse fragmento, porque chama muito atenção a disposição de famílias homeschoolers (como destaquei, trata-se de grupo diversificado e não se pode dizer que todos, tenham pensamentos e interesses homogeneizados) contra qualquer tipo de “interferência estatal”. Ao ouvir e analisar todo o bate papo, fica claro que muitas famílias gostariam de ter liberdade total, plena, para a prática da educação domiciliar. Liberdade em relação ao currículo, aos métodos, aos livros didáticos, à contratação de profissionais, carga horária de estudos, sistema de avaliação, registros, intensidade e peso de cada disciplina, flexibilização das matérias, etc.
Em outro documento, traduzido pela ANED8, intitulado O melhor tipo de socialização, de autoria da HSLDA, revela-se, novamente, o conceito de socialização defendido pelos homeschoolers. A seguir, interessante excerto do documento9:
Gosto da definição de socialização dada pelo conceituado psicólogo e autor Robert Epstein: “Socialização é tão-somente o processo de aprender a fazer parte de uma comunidade”. Prossegue ele:
A questão, portanto, é: de qual comunidade nós queremos que os nossos jovens aprendam a fazer parte? Alguns pais me perguntam: “A escola e, em particular, o ensino secundário não são fundamentais para a socialização?”. Minha resposta categórica é não. Porque não queremos os nossos jovens socializando-se uns com os outros. Queremos que eles aprendam a entrar para a comunidade de que farão parte a vida toda. Queremos que aprendam a tornar-se adultos. Hoje, tudo quanto eles sabem, aprenderam uns com os outros — o que é absurdo, ainda mais levando-se em conta que os adolescentes, na nossa sociedade, são controlados quase que inteiramente pelas fúteis entidades da mídia e da moda (ANED, 2019c, n.p., grifos nossos).
Em nome do direito absoluto que teriam, as famílias pretendem educar seus filhos fundamentados na liberdade educacional, e isso não deveria, segundo elas, gerar nenhuma crítica ou preocupação; todavia, a liberdade educacional plena não há como ser admitida. O direito que os pais têm de educar seus filhos, mesmo em se tratando de educação domiciliar, não é absoluto e sim relativo. Os pais não são donos dos filhos! Trata-se, em primeiro lugar, de uma questão jurídica de direito humano, curiosamente mesmo argumento jurídico que elas defendem para a prática da educação domiciliar.
Não obstante, para além de razões jurídicas, discordo completamente da “liberdade educacional plena”, devido ao risco claro e iminente de crianças serem escolarizadas em ambientes tão mais restritos, conforme as disposições culturais, religiosas e ideológicas de famílias, que ficariam adstritas às “bolhas sociais familiares”, o que a meu ver traria enorme prejuízo aos processos socializadores dessas pessoas. Explicarei melhor na seção 6.
As críticas ao Homeschooling
São várias as críticas à educação domiciliar cujas dimensões abarcam desde questões ideológicas, religiosas, econômicas, culturais, comportamentais. Eu vou mostrar alguns argumentos críticos contrários ao homeschooling, mas me atrevo a reunir todas as críticas a uma única dimensão, mais elástica: os praticantes e os defensores da educação domiciliar, em maior ou menor grau, se unem em torno de uma percepção individualista-conservadora de mundo.
Ainda que deva ser analisada com parcimônia a crítica a seguir, de Cury (2019), ela não se torna absurda, pelas evidências que ficarão reunidas aqui neste trabalho. “A homeschooling [...] corre o risco de, perigosamente, escorregar para um isolamento, um fechamento para o outro, dentro da família, reduzindo o campo de compartilhamento convivial e de transmissores não licenciados” (CURY, 2019, p. 6). Ele entende que a escola é importante instituição de socialização secundária e que as interatividades que ali acontecem suprem elementos egocêntricos que a família não consegue resolver completamente.
As críticas ao Homeschooling implicam a defesa da escola formal. A Escola seria mais do que um local de transmissão de conhecimentos acumulados, seria onde percursos formativos complementariam a personalidade da criança construída em ambiente democrático e diverso, de maneira que tanto o egocentrismo infantil fosse parcialmente superado quanto houvesse amadurecimento para a cidadania consciente dos direitos e deveres da vida em sociedade (BATISTA, 2018).
Segundo Cury (2006apudBATISTA, 2018, p. 61-62), por um lado, “[...] a educação doméstica não supre adequadamente nem o papel de catalisador dos conteúdos formativos, tampouco o de zelar pelo respeito mútuo e a reciprocidade indispensáveis à vida coletiva”. Por outro lado, no campo da estratificação socioeconômica, revela-se o que a literatura dos EUA traça do perfil majoritário dos homeschoolers de lá:
Normalmente brancos, encaixados na clássica média norte-americana, integram-se a famílias estáveis, em que os pais são os provedores, enquanto as mães se debruçam sob atividades do lar. Entretanto, essa categorização também padece de homogeneidade, pois já se identifica um número crescente de afro-americanos de origem econômica humilde optando pela educação doméstica; por outro lado, também não é possível remeter todos esses praticantes às perspectivas religiosas: na maioria das vezes, a escolha se dá menos por crenças teológicas e muito mais por críticas à escola pública e/ou privada. (VIEIRA, 2012apudBATISTA, 2018, p. 58).
Oliveira e Barbosa (2017), por sua vez, verificaram que, na América do Norte, as pesquisas sugerem que motivações de cunho acadêmico revelam um peso muito maior do que razões religiosas na escolha pelo homeschooling. No Brasil, as motivações das famílias são pouco conhecidas, porém é possível reconhecer, além de motivações religiosas e morais, preocupação com o desempenho escolar dos filhos.
Posto o anterior, já é possível, preliminarmente, perceber três críticas à educação domiciliar: 1) tende a ser elitista do ponto de vista socioeconômico; 2) revela preocupação com fundamentos morais e religiosos - conservadora; e 3) as famílias mobilizadas10 são mais suscetíveis ao homeschooling. Há, também, críticas sobre subsídios estatais, como ocorre em alguns lugares dos EUA11:
Essa constatação incentiva o debate sobre as implicações do uso de recursos financeiros dos cofres públicos para subsidiar a escolha de alguns pais pelo ensino de caráter confessional para os filhos, e também sobre a possibilidade de se lega lizar o direito de famílias fundamentalistas optarem pelo ensino em casa com o objetivo de isolamento social dos filhos, afastando-os de comportamentos e visões diferentes de sua religião, prejudicando assim a formação desses enquanto indiví duos e cidadãos pertencentes a uma coletividade. (BARBOSA, 2016, p. 163-164).
Outra crítica, esta mais sofisticada, é sua vinculação aos princípios do neoliberalismo. Lubienski (2003) compreende que a educação domiciliar faz parte das tendências presentes em muitos países, de privatização parcial da vida social. As reivindicações dos direitos e dos deveres parentais em moldar experiências educativas das crianças, embora válidas, negligenciam o legítimo interesse público. Para ele, dentro de um pensamento neoliberal mais amplo - o papel do indivíduo nas sociedades de mercado -, a educação domiciliar representa séria tendência de retirada de esforços coletivos e perseguição das vantagens individuais.
Adrião (2018, p. 16) segue nessa linha e esclarece que o homeschooling se confronta com o pressuposto da obrigatoriedade de frequência à escola, estando a educação domiciliar em defesa do “[...] direito das famílias em não escolarizarem seus filhos. Sua oferta apresenta graus diversos de ‘flexibilização’, podendo ou não contar com financiamento e supervisão por parte do poder público”. Trata-se, portanto, de formas de privatização da escola pública.
Para Oliveira e Barbosa (2017, p. 204), “[...] a ideia de negação da compulsoriedade escolar, associada a um Estado mínimo, que deve intervir minimamente nas questões educacionais, [...] influenciou a história do movimento homeschooling na América do Norte”. Barbosa (2016) contribui ressaltando que, no século XXI, o “fenômeno da individuação”, em suas diversas manifestações, acentua as singularidades individuais, ampliando o campo das ações individuais em desfavor dos valores, dos laços de solidariedade e da complementaridade entre o público e o privado. O exposto corrobora o que chamo de percepção individualista-conservadora de mundo. Essa vinculação do homeschooling aos princípios neoliberais fica, pedagogicamente, mais bem situada quando se leva em consideração o conhecido movimento Escolanovista.
Acompanhando o raciocínio de Batista (2018), ressalto que as perspectivas pedagógicas da Escola Nova é a formação do homo eoeconomicus. É bastante razoável inferir a existência de um fio condutor que interliga os princípios pedagógicos da educação domiciliar ao movimento Escolanovista. Quando na seção 3 mostrei argumentos dos homeschoolers sustentados em Illich, Holt e Freire, por exemplo, conscientes ou não, o que eles fazem é cortina de fumaça. Pedagogicamente, a educação domiciliar e seus princípios estão mais afeitos ao Escolanovismo quando advoga, por exemplo, educação pautada em processo de ensino e de aprendizagem individualizado. O que se tem na educação domiciliar são fundamentos advindos das ideias do Pragmatismo e não da Teoria da Desescolarização, tampouco da Educação Libertadora.
A proposta da Homeschooling do Governo Federal
Há vários projetos de lei tramitando no CN; todavia, a questão ganhou novos contornos a partir do mês de abril de 2019 quando o Governo Federal, por intermédio de proposição elaborada em conjunto pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e pelo Ministério da Educação, encaminhou ao Poder Legislativo o PL 2401/2019 que dispõe sobre normas gerais estabelecendo condições para que famílias homeschoolers possam exercer sua liberdade de opção por esse tipo de ensino. Assim o é porque o PL 2401/2019 tem status completamente diferente dos anteriores. Ele é, ineditamente, proposição de autoria do Governo Federal, isto é, pela primeira vez, de modo explícito e direto, o Poder Executivo assume o protagonismo e deixa claro para a sociedade que concorda e tem interesse na prática e na regulamentação da educação domiciliar.
A proposta, uma vez aprovada, vai alterar dispositivos da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e da Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), a fim de que se autorize a prática da educação domiciliar no Brasil, no âmbito da educação básica. Em sua justificativa o PL 2401/2019 diz:
A educação dirigida pelos próprios pais ou responsáveis é uma realidade já consolidada em muitos países, presente também no Brasil, embora, até o presente momento, de maneira informal. Pretende-se, com a proposição elaborada em conjunto pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e pelo Ministério da Educação, dispor sobre normas gerais sobre a matéria, estabelecendo-se condições para que as famílias possam regularmente exercer sua liberdade de opção por esse tipo de ensino. (BRASIL, 2019, p. 5).
Dentre outros argumentos, o Poder Executivo demonstra preocupação com as famílias homeschoolers dada a insegura situação jurídica que pode levá-los a responder judicialmente pela prática da educação domiciliar.
Ao analisar a peça técnica-jurídica propriamente dita, chama atenção os seguintes dispositivos:
Art. 2º [...] § 2 É dever dos pais ou dos responsáveis legais que optarem pela educação domiciliar assegurar a convivência familiar e comunitária, nos termos do disposto no caput do art. 227 da Constituição e no caput do art. 4º da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente12.
Art. 3º [...] § 2 Fica assegurada aos estudantes em educação domiciliar a participação em concursos, competições, avaliações nacionais instituídas pelo MEC, avaliações internacionais, eventos pedagógicos, esportivos e culturais, incluídos àqueles em que for exigida a comprovação de matrícula na educação escolar como requisito para a participação.
Art. 4º A opção pela educação domiciliar será efetuada pelos pais ou pelos responsáveis legais do estudante, formalmente, por meio de plataforma virtual do Ministério da Educação, em que constará, no mínimo:
I - documentação de identificação do estudante, na qual conste informação sobre filiação ou responsabilidade legal;
[...];
III - termo de responsabilização pela opção de educação domiciliar assinado pelos pais ou pelos responsáveis legais;
IV - certidões criminais da Justiça Federal e da Justiça Estadual ou Distrital;
V - Plano pedagógico individual, proposto pelos pais ou pelos responsáveis legais [...]. (BRASIL, 2019, p. 2).
Pelo que propõe o PL 2401/2019, conforme se discutiu na seção 3 deste artigo, ele não atende grande parte dos desejos das famílias homeschoolers. A possibilidade de se exigir cadastrar plano pedagógico individual na plataforma do MEC, ainda que elaborado pelos pais, tende a ser visto como interferência estatal na liberdade por eles vindicadas.
Art. 5º Os pais ou os responsáveis legais que optarem pela educação domiciliar manterão registro periódico das atividades pedagógicas do estudante.
Art. 6º O estudante matriculado em educação domiciliar será submetido, para fins de certificação da aprendizagem, a uma avaliação anual sob a gestão do Ministério da Educação.
§ 1º A certificação da aprendizagem terá como base os conteúdos referentes ao ano escolar correspondente à idade do estudante, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, com possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, nos termos do disposto na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (BRASIL, 2019, p. 3).
De fato, para o grupo de famílias defensoras da liberdade educacional plena, os dispositivos legais propostos mostram que o Governo deseja supervisionar as atividades pedagógicas e de ensino que estarão sob a responsabilidade da educação domiciliar. Os dispositivos, ainda que em fase processual legislativa, mostram regras de fiscalização e acompanhamento bastante sistemáticas.
Art. 8º O Ministério da Educação apresentará calendário de aplicação das avaliações [...].
Art. 10. Caberá aos pais ou aos responsáveis legais, durante o processo de ensino e de aprendizagem, monitorar de forma permanente o desenvolvimento do estudante, conforme as diretrizes nacionais curriculares.
Art. 11. É facultado às instituições públicas e privadas, escolhidas pelos pais ou pelos responsáveis legais, oferecer ao estudante em educação domiciliar avaliações formativas ao longo do ano letivo. (BRASIL, 2019, p. 4).
Por um lado, chama atenção a responsabilização direta sobre os pais ou responsáveis quanto ao monitoramento do desenvolvimento do estudante conforme as diretrizes curriculares nacionais. Por outro lado, é público e notório que os órgãos governamentais não conseguem fiscalizar nem mesmo as escolas formais. Portanto, em que pese o PL 2401/2019 não ser completamente uma autorização para “educação domiciliar livre”, não se pode deixar de considerar que, na prática, as famílias, em grande parte, não serão fiscalizadas pelo poder público. Eis um grande risco. Na prática, crianças e adolescentes estarão sob a completa liberalidade dos seus pais ou responsáveis quanto à formação acadêmica e ao processo socializador escolar domiciliar.
Os riscos da Homeschooling no Brasil - identidade e pluralidade na formação cidadã - a possível formação de bolhas sociais familiares
Do que ficou demonstrado nas reflexões anteriores, sem dúvidas, a recorrência ao questionamento sobre a socialização é o que se tem de mais insistente. Quando homeschoolers falam em “boa socialização”, quando demonstram clara preocupação com a “interferência estatal”, ficam indagações sobre como os indivíduos serão submetidos à educação domiciliar. Nesta seção, a questão da socialização continuará de algum modo presente, mas vou trilhar o caminho pelas categorias identidade e pluralidade. Esse fantástico binômio que permite compreender como as pessoas podem conviver entre e com os mais diversos e diferentes grupos, em uma sociedade plural, característica, aliás, das sociedades do século XXI.
Dentre outros questionamentos, um dos que podem ser feitos aos defensores dos homeschoolers é quanto à formação da identidade nacional do país e se as pessoas escolarizadas nos domicílios estariam identificadas com o sentimento coletivo da Nação. Fiorin (2009) deixa claro que a identidade nacional é uma criação moderna, começou a ser construída no século XVIII e desenvolveu-se plenamente no século XIX.
Fontanille e Zilberberg (2001apudFIORIN, 2009) destacam que os valores tomam forma e circulam no discurso de culturas que se veem, umas, como unidade e, outras, como mistura, em que dois mecanismos se apresentam: o princípio de exclusão e o princípio da participação.
Os princípios acima criam dois grandes regimes de funcionamento cultural. O primeiro é o da exclusão, cujo operador é a triagem. Nele, quando o processo de relação entre valores atinge seu termo leva à confrontação do exclusivo e do excluído. As culturas reguladas por esse regime confrontam o puro e o impuro. O segundo regime é o da participação, cujo operador é a mistura, o que leva ao cotejo entre o igual e o desigual. (FIORIN, 2009, p. 117-118, grifos nossos).
Assim, há dois tipos fundamentais de cultura: 1) a da exclusão ou da triagem, e 2) a da participação, ou da mistura. A primeira tem um aspecto descontínuo e tende a restringir a circulação cultural, que será pequena ou mesmo nula e, de qualquer maneira, desacelerada pela presença do exclusivo e do excluído. É uma cultura do interdito. Já a segunda apresenta um aspecto contínuo, favorecendo o “comércio” cultural (FIORIN, 2009).
Estou convencido de que a educação domiciliar pende com mais força para o lado da cultura da triagem porque vai interditando o processo de escolarização das pessoas, não permitindo as trocas culturais diversas ou restringindo essa importante dimensão da vida humana.
Fiorin (2009) mostra o esquema de Fontanille e Zilberberg (2001, p. 33) explicando que a triagem e a mistura variam em termos de tonicidade: átona e tônica. As duas, portanto, variam em graus podendo ser mais ou menos drásticas.
Esse esquema é instigante quando enquadramos a educação domiciliar no campo da triagem e verificamos a tonicidade e a atonicidade. A tônica da homeschooling é a tendência para a unidade e a nulidade, enquanto em seu aspecto átona pende para a totalidade. Os valores que operam em cada cultura são diferentes. A triagem cria valores absolutos, que são os da intensidade. A mistura, valores de universo, que são os da extensidade. Aquelas são mais fechadas, tendendo a concentrar os valores desejáveis e a excluir os indesejáveis. Estas são mais abertas, procurando a expansão e a participação (FIORIN, 2009).
Em um outro giro, para Liz (2001, p. 30) “[...] a identidade cultural podia ser entendida como um processo de construção, desconstrução e reconstrução social, que emerge no interior dos contextos; e é a partir deles que os atores sociais fazem suas escolhas”. É que a identidade é relacional, não se produz em um grupo cultural isolado, mas, sim, nas interações entre os diversos grupos. O homeschooling tende a fechar-se em seu próprio “grupo de iguais”, preocupados que estão com a “boa socialização”. Não obstante, na relação intergrupal, importa à educação o processo de diferenciação cultural, inexorável, e, mesmo determinante, na construção da identidade. Os sistemas educacionais têm sido em grande parte, mediadores das diferenças culturais em contextos relacionais diversos, plurais.
Desde os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o currículo brasileiro tem demonstrado preocupação com núcleos temáticos vinculados às questões plurais: Pluralidade Cultural e a Vida dos Adolescentes no Brasil, Pluralidade Cultural na Formação do Brasil e Direitos humanos, Direito de Cidadania e Pluralidade. Liz (2001, p. 66) ainda fez análise dos documentos que compunham os PCN e percebeu que eles
[...] revelam uma preocupação em: “Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos sócio-culturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, etnia ou outras características individuais e sociais”. (LIZ, 2001, p. 66).
O tema Pluralidade Cultural, segundo os PCN, tinha como objetivo principal contribuir para a construção da cidadania na sociedade pluriétnica e pluricultural. Os PCN reconheciam a diversidade cultural na atuação de mecanismos de exclusão, tarefa importante, ainda que insuficiente, para a direção de uma sociedade democrática. A diversidade tem como valor o respeito às diferenças, estas não são obstáculos para o cumprimento da ação educativa, mas, ao contrário, fator de seu enriquecimento (LIZ, 2001).
Mesmo pensando pela óptica da educação domiciliar, estamos, pois, diante de questões educacionais de natureza curricular quando se questiona o problema da socialização. De fato, o homeschooling não tem como fugir e não debater sobre currículo. É com Tomaz Tadeu da Silva, importante interlocutor nesse campo, que busco aprofundar a reflexão.
Silva (2000, p. 73), vendo as questões curriculares pelas lentes da teoria educacional crítica, afirma “[...] que as questões do multiculturalismo e da diferença tornaram-se, nos últimos anos, centrais até mesmo nas pedagogias oficiais”. Os “temas transversais”, mesmo tratados de forma marginal, foram reconhecidos pelas altas instâncias oficiais dos sistemas educacionais formais, segundo o autor. Todavia, o autor reclama “[...] a ausência de uma teoria da identidade e da diferença” (SILVA, 2000, p. 73).
Silva (2000) critica o chamado multiculturalismo porque seria vago e um apelo à tolerância e que, nessa perspectiva, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. Ele implica seu leitor a pensar o tema.
São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de conceitos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo na identidade? (SILVA, 2000, p. 73, grifo do autor).
Silva (2000, p. 73) ainda infere sobre a categoria identidade e, depois, sobre a categoria diferença para deixar claro que: “Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis”. A diferença como um produto derivado da identidade. Na perspectiva dele, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas; todavia, indo mais fundo no radical, é a diferença que vem primeiro e depois a identidade. Por isso, diz o autor, a identidade e a diferença são criações sociais e culturais, e isso significa que as definições dessas duas categorias estão sujeitas a vetores de força, às relações de poder. Elas não são simplesmente definidas, são impostas. Elas não convivem harmoniosamente em um campo sem hierarquias, são disputadas.
Essas primeiras lições de Tomaz Tadeu da Silva levam-me a refletir, agora com mais substância, sobre o uso do termo “boa socialização”: há uma disputa nessa questão, sem sombra de dúvidas. As disputas entre os grupos sociais são assimétricas e mesmo a “boa socialização”, a ser praticada pelo homeschoolers, entre eles, não será homogênea, como este trabalho já me permite afirmar.
Na disputa pela identidade, tem-se uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. Quando a identidade se afirma e a diferença se apresenta, ocorre a manifestação do desejo de diferentes grupos assimétricos preocupados em garantir o acesso aos bens sociais (SILVA, 2000). A identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. Dividir e classificar significa, nesse caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados. A educação domiciliar, portanto, é uma forma de classificar e de hierarquizar e de atribuir diferentes valores por meio de uma triagem, de um processo de fechamento, cujo fim seria o que os homeschoolers chamam de “boa socialização”.
Entretanto, a teoria cultural contemporânea tem destacado a existência de movimentos que procuram subverter as tentativas de homogeneização da identidade ou de suas classificações. Silva (2000) lembra que os processos de hibridismos têm sido analisados, principalmente em relação aos processos de produção das identidades nacionais, raciais e étnicas.
A perspectiva do hibridismo (a mistura, a conjunção, o intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes etnias, entre diferentes raças) só poderia colocar em xeque aqueles processos que tendem a conceber as identidades como fundamentalmente separadas, divididas, segregadas. O hibridismo contrapõe-se à triagem. Como tudo isso se traduziria em termos de currículo e pedagogia, pergunta Silva (2000)? Ele infere:
A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social ao mesmo tempo que é um problema pedagógico e curricular. É um problema social porque, em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com o diferente, é inevitável. É um problema pedagógico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens, em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente interagem com o outro no próprio espaço da escola, mas também porque a questão do outro e da diferença não pode deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricular. (SILVA, 2000, p. 81, grifos nossos).
Ora, se a questão da identidade é um problema além de social, também pedagógico e curricular, como a educação domiciliar vai lidar com esta questão mesmo estando ela formalmente obrigada a seguir a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)? A resposta já se mostra evidente. Sendo a proposta de o homeschooling separar e classificar, as possibilidades de haver triagens (mesmo devendo cumprir a BNCC13) são factíveis, em nome da “boa socialização”, posto que um grupo de homeschoolers pretende a liberdade educacional plena.
Silva (2000) defende uma política pedagógica que coloque no seu centro teoria que permita não simplesmente reconhecer e celebrar a diferença e a identidade, mas questioná-las. Trata-se, portanto, de elaboração sobre currículo e por consequência sobre socialização, porém muito diferente do que pretende fazer a educação domiciliar.
Finalmente, vou me encaminhando para o que chamo de risco iminente, a partir da aprovação vindoura do PL 2401/2019 ou de outro que tramita no CN: a consolidação das “bolhas sociais familiares”. O conceito de bolha social tem se popularizado mais nos últimos tempos a partir dos fenômenos gerados pela internet e de informações que circulam de modo intencional em grupos fechados de redes sociais virtuais por meio dos diversos aplicativos eletrônicos e outras plataformas. São os profissionais do campo da comunicação e das ciências da computação, sobretudo os que têm buscado explicar como funciona o mundo das bolhas sociais virtuais.
Sobre o funcionamento das redes sociais, Guedes (2017) revela que
[ ...] a seleção automática de conteúdo pelos algoritmos de inteligência artificial dessas plataformas produz efeitos colaterais, cujos malefícios começam a ser discutidos, tais como o efeito bolha. O efeito bolha tem res tringido o acesso das pessoas à diversidade dos conteúdos, o que gera questionamentos quanto ao seu potencial antidemocrático. (GUEDES, 2017, p. 67, grifos nossos).
Nas redes sociais virtuais, há tendência de que os interesses de cada usuá rio e suas experiências fiquem adstritas ao “efeito bolha”. Este restringe os contatos de cada usuário com conteúdos que divirjam de seus interesses. O efeito bolha gera então impacto negativo na formação da opinião e no direito à informação porque o acesso aos mais diversos grupos que fazem parte da rede mundial de computadores fica, na verdade, restrito. As pessoas acabam sendo expostas prioritariamente a opiniões e a ideias similares às suas próprias visões de mundo. Termos mais específicos do mundo virtual chamam o fenômeno de “bolha online” ou “câmara de ecos”.
Embora esse seja um campo ainda pouco estudado pelos cientistas sociais, está claro que as pessoas que se relacionam online fazem suas seleções, aliás, como sempre ocorreu também no mundo offline, no mundo real. Desse modo, o problema do homeschooling não é, necessariamente, as seleções de rotina que pessoas podem fazer. A questão é uma seleção intencional, filtrada, uma triagem planejada a fim de que classificações e hierarquias obedeçam a critérios exclusivos e pessoais, porque não dizer excludentes, em nome da proteção de pessoas que deixam de estudar nos sistemas formais de ensino.
Com efeito, assim demonstrado por analogia, a educação domiciliar após aprovada no CN tende a ser uma “câmara de ecos” própria com poucas janelas para o mundo exterior na medida em que se poderá praticar pedagogia com base em princípios de fechamento cultural, classificações, seleções, triagens, totalidades, intensidades, e, muito provavelmente, sem fiscalizações pelo Estado. Aquelas famílias mais segregadoras poderão dar-se ao luxo de praticar a educação domiciliar ao seu bel prazer.
Revisitando a categoria socialização: o que a literatura oferece sobre a escolarização
Diante de todo o exposto até agora, penso que vale a pena oferecer breves inferências sobre a categoria socialização. Seu potencial analítico e heurístico está mais do que comprovado pelos estudos, desde os clássicos até os mais recentes. Setton (2011) diz-nos que,
[...] como uma noção definidora de um conjunto expressivo de práticas de cultura que tecem e mantêm os laços sociais, a socialização é entendida como uma área de investigação que explora as relações indissociáveis entre indivíduo e sociedade; na sua dimensão produtora difusora e reprodutora, a socialização pode enfocar as instituições como matrizes de cultura, pode enfatizar as estratégias de transmissão e portanto de transformação dos grupos sociais bem como pode explorar as disposições de cultura incorporadas pelos indivíduos ao longo de suas experiências de vida. (SETTON, 2011, p. 715).
A autora lembra o debate clássico, já superado, das versões dicotômicas holismo x individualismo e que as novas sociologias se ocuparam em apreender indivíduos plurais, indivíduos produzidos e produtores de relações sociais variadas, e não “sociologizados” ou “individualizados”.
Setton (2011, p. 713) refletiu “[...] na compreensão relacional do fenômeno do ponto de vista macroinstitucional das agências socializadoras, bem como pela ótica microestrutural, oferecendo um instrumental para explanações acerca do indivíduo socializado”. Ela não poderia deixar de recorrer às matrizes clássicas para fundamentar seus argumentos a respeito da socialização.
[...] o agente social para Durkheim é visto como um organismo em que os instintos e os desejos infinitos devem deixar de ser regulados naturalmente. Uma educação normativa e moral deveria assentar a unidade entre indivíduo e sociedade, ambos concebidos como duas faces de uma mesma realidade. Mais do que isso, o sucesso desse processo educacional seria caracterizado pela construção de um ser social totalmente identificado com os valores societários. (SETTON, 2005, p. 338).
Para Durkheim, segundo ela, o processo de interiorização das regras de comportamento moral não se constitui em arbitrariedade ou imposição, ao contrário, a coerção que existe é entendida como uma etapa civilizatória do indivíduo em direção à liberdade (SETTON, 2005).
Todavia, percebendo a autora uma nova estruturação no campo da socialização, partindo dos conceitos de fato social total, de Marcel Mauss, e de hibridismo, do antropólogo latino-americano Nestor García-Canclini, ela formulou “[...] a hipótese de que a cultura da modernidade imprime uma nova prática socializadora distinta das demais verificadas historicamente” (SETTON, 2011, p. 713). Para ela, a socialização das sociedades atuais é um espaço plural de múltiplas referências identitárias. Trata-se de ambiente social no qual o indivíduo encontra condições de forjar um sistema híbrido de referências disposicionais.
Dito isso, entendo que o caminho que pretendem trilhar os homeschoolers vai contra as condições atuais da modernidade, uma sociedade em que o contato com a heterogeneidade, inexorável, de referências culturais misturadas implica a formação de indivíduos plurais, indivíduos submetidos a um conjunto de influências e experiências de socialização das mais diversas. A opção das famílias por educação domiciliar, já mostrei os argumentos prós e contras, parece ser tentar “proteger” seus filhos de tudo isso. Contudo, fica uma questão de fundo: no atual momento da globalização e das redes sociais é possível “blindar”, completamente, os filhos de eventuais fenômenos considerados negativos? Não é o escopo deste trabalho, mas, preliminarmente, me arrisco a responder. Não!
Essas novas configurações societárias assustam os mais conservadores e, por essas razões, famílias homeschoolers trabalham para aprovar o PL 2401/2019, mas com modificações, a fim de controlarem os que os filhos podem aprender. A tentativa de blindagem pode funcionar ao menos parcialmente, portanto, e tem um efeito: a formação de bolhas sociais familiares. Os princípios, com efeito, da educação domiciliar chocam-se com as configurações sociais atuais do século XXI, mas não somente.
A seguir, volto a Durkheim para mostrar que, possivelmente, nem mesmo ele, um homem conservador na sua época, apoiaria, hoje, o modelo do homeschooling. O “Pai da Sociologia” defendia o protagonismo do Estado em matéria de educação, como se sabe.
É preciso escolher: se damos algum valor à existência da sociedade - e acabamos de ver o que ela representa para nós - é necessário que a educação assegure entre os cidadãos uma comunhão de ideias e de sentimentos sem os quais qualquer sociedade é impossível; e para que possa produzir este resultado, é ainda necessário que não seja abandonada total à arbitrariedade dos particulares (DURKHEIM, 2007, p. 61, grifos nossos).
Para ele, o Estado jamais poderia se desinteressar da educação; ao contrário, tudo o que seja educação o poder público deve fiscalizar, ainda que não monopolizar. Reconhece que os progressos escolares são mais fáceis e mais rápidos onde seja deixada alguma margem às iniciativas individuais porque o indivíduo seria mais facilmente inovador do que o Estado. No entanto, se este, no interesse público, deixar de abrir outras escolas para além das quais é diretamente responsável, não quer dizer que deva manter-se alheio ao que se passa em escolas cujos vínculos diretos e formais não são com o sistema estatal (DURKHEIM, 2007).
Os escritos de Durkheim datam da viragem do século XIX para o XX e, por isso mesmo, devem ser contextualizados. Ainda assim, arrisco-me a dizer que, apesar de um entusiasta da sociedade capitalista, ele teria dificuldades de aceitar princípios neoliberais no campo da educação. Minha hipótese é de que, se Durkheim vivo fosse, não se agradaria da ideia de educação domiciliar, exatamente porque ferem princípios para ele caros como solidariedade mecânica, solidariedade orgânica, anomia e, principalmente, socialização.
Considerações finais
Educação domiciliar não é uma novidade no Brasil como mostrei; todavia, o que chama atenção nos dias atuais é que a opção por não matricular os filhos nos sistemas formais de ensino, seja público ou privado, é espontânea. Há muitos argumentos em jogo, mas, do ponto de vista das motivações, a desconfiança para com o que se passa dentro das escolas, nos aspectos morais e pedagógicos, vem fazendo um grupo de pais, no mundo todo e no Brasil, a não matricularem seus filhos nos lugares que foram criados especificamente para escolarizar as pessoas. É uma espécie de negação à escola pública.
Defendem os homeschoolers, reivindicando argumentos de Illich, Holt e até de Paulo Freire, um tipo de educação baseada na aprendizagem e no interesse da criança. Entretanto, as evidências mostraram que, pedagogicamente, não há correlações teóricas entre as ideias da desescolarização e da educação domiciliar, muito menos com a educação libertadora. Educação domiciliar está mais afeita aos princípios do Escolanovismo, portanto das ideias do Pragmatismo, o que justifica o apego dos homeschoolers ao individualismo conservador. Isso fica claro quando eles pleiteiam “boa socialização” e “liberdade educacional”. É a percepção individualista-conservadora de mundo a que me referi.
Apesar de parte dos praticantes da educação domiciliar pretender a liberdade educacional, o Poder Executivo Federal, ineditamente, assumindo parte do protagonismo em relação à matéria, encaminhou o PL 2401/2019 para aprovação no CN, mantendo, todavia, controle e fiscalização sobre a questão.
Reiterando a categoria socialização, central neste trabalho, procurei trazer, originalmente, os conceitos de identidade e de pluralidade, mergulhando um pouco mais na crítica principal feita ao homeschooling. Aqui a reflexão posta é que, na óptica de identidade da educação domiciliar, a dimensão pluralidade tende a enfraquecer. Por isso, mostrei, por um lado, que a educação domiciliar está mais afeita à cultura da triagem, da seleção, da classificação, e que, portanto, ela descarta aspectos da pluralidade na formação das identidades. Por outro lado, evidências mostraram que autores do campo da cultura - do currículo e da sociologia da educação - interpretam a sociedade atual completamente envolvida em processos culturais híbridos.
As evidências foram revelando que a educação domiciliar terá o poder (dependendo da sua prática e da ausência de fiscalização) de criar e de consolidar bolhas sociais familiares. O que não é possível dizer é o quanto essas bolhas podem ser fechadas completamente. Nos tempos atuais de século XXI, com as tecnologias e as redes sociais, informações diversas em velocidades impressionantes e todo tipo de informação, não se sabe ao certo, se as famílias mais conservadoras conseguirão blindar seus filhos. Tudo indica que a defesa da educação domiciliar tem a ver também com essas preocupações. Todavia, os processos socializadores contemporâneos são híbridos.
Finalmente, dialogando com ninguém menos do que Durkheim, lembrei seu apego à educação centralizada no Estado; portanto homeschoolers que defendem a liberdade educacional como parte do processo de socialização do indivíduo estão em desacordo com o Pai da Sociologia. É que a categoria socialização sempre lhe foi muito cara e, minha hipótese (especulativa), é de que, inclusive Durkheim, um conhecido intelectual conservador, não se agradaria da prática da homeschooling, se vivo fosse.
De todo o exposto, as controvérsias sugerem que a prática da educação domiciliar leva a triagens e a classificações porque a noção de identidade dos próprios homeschoolers é seletiva considerando que eles advogam a “boa socialização”. Se o Estado não fiscalizar, possibilidade completamente plausível, os riscos de formação de bolhas sociais familiares são iminentes.
Na prática da homeschooling, o binômio identidade-pluralidade, por sua vez, tão evidente nas sociedades atuais dadas as condições tecnológicas e globais, tende a ficar mais claudicante do que é porque a dimensão identidade ficará mais robusta se comparada com a dimensão pluralidade, que sugere minguar. O desequilíbrio entre identidade e pluralidade tende a aumentar. A formação para a cidadania, em permanente construção, poderá enfraquecer ainda mais.