Introdução
As reflexões expressas neste texto representam um excerto de uma tese de doutorado*, defendida em maio de 2016 junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” de Presidente Prudente (SP) - FCT/UNESP (CIRÍACO, 2016). O objetivo central da pesquisa residiu na compreensão do processo de iniciação profissional de um grupo colaborativo constituído por 5 (cinco) professoras, destas 4 (quatro) com formação em Pedagogia e 1 (uma) licenciada em Matemática.
As informações coligidas e analisadas neste artigo se referem às percepções de uma professora iniciante, no que tange a sua formação e a sua prática pedagógica, como estímulo para levantar sentimentos e problemas característicos dessa etapa profissional.
Nos últimos anos, a pesquisa sobre formação de professores na área da Educação e da Educação Matemática teve um acentuado crescimento. Os estudos evidenciam alguns déficits nos programas de formação inicial, tais como: problemas de articulação entre a teoria e a prática, estágios alocados e organizados de modo que não oportunizam, aos futuros professores, o acesso aos conhecimentos necessários ao exercício da docência, assim como a carga horária deficitária de disciplinas, tanto pedagógicas quanto específicas, cuja forma de distribuição não atende à necessidade formativa dos futuros docentes, entre outros (DINIZ-PEREIRA, 2000).
É nesse cenário que se toma como base, nesta investigação, esclarecer e definir a seguinte questão: qual a formação que uma professora de Matemática recebeu na licenciatura e qual sua percepção da docência na fase de início da carreira?
A relevância de desenvolver estudos e reflexões voltados para a formação inicial e desenvolvimento profissional dos professores no início da docência se explica pelo fato de que as pesquisas sobre essa temática se demonstram recentes. Embora este campo teórico de estudos tenha três décadas de trabalhos e reflexões, somente nos últimos dez anos as práticas investigativas “de” e “sobre” iniciação à docência se disseminaram no país (GAMA, 2009).
Entre a formação e a iniciação à docência: em busca de uma identidade
Diferentes são os desafios que se levantam à formação inicial de professores que ensinam Matemática no país. O mais significativo desses, segundo D’Ambrósio (2005), constitui a determinação do conteúdo necessário para que se obtenha o desempenho mais eficiente na prática escolar.
Para a autora, avaliando a eficácia de professores em serviço, percebe-se que uma das mais relevantes dificuldades é a: “[...] falta de compreensão do conteúdo de matemática [...]” (D’AMBROSIO, 2005, p. 20) por parte dos profissionais atuantes, efetivamente, nas escolas. A autora considera, ainda, que os cursos mais tradicionais de Matemática têm pouco efeito no seu nível de compreensão para os estudantes (futuros professores), os quais terão de ressignificar seus conhecimentos e saberes quando do momento do ingresso na carreira.
[...] o professor deve ter um conhecimento “profundo” de matemática (“profound undertanding of Mathematics”) para que possa tomar decisões apropriadas em sua prática de ensino. Esse conhecimento profundo é caracterizado pela habilidade do professor em descrever a compreensão do aluno, baseando-se numa renegociação de seu próprio conhecimento de matemática. Essa habilidade requer disposição, por parte do professor, de ouvir a voz do aluno durante o processo de ensino-aprendizagem. Essa disposição se desenvolve durante sua formação, já que, em sua experiência enquanto alunos, poucos indivíduos tiveram professores que ouviram e ajudaram a desenvolver suas vozes matemáticas (D’AMBROSIO, 2005, p. 20).
Tendo em vista os vários elementos constitutivos da identidade docente e os desafios que os programas de formação inicial têm enfrentado nos últimos anos, pensa-se ser preciso, então, práticas de pesquisa e estudos que acompanhem os dilemas enfrentados pelos professores iniciantes, na tentativa de encontrar meios de apoio e de permanência na profissão com o objetivo de compreender, com mais clareza, como o professor recém-formado caminha no exercício de sua carreira.
Torna-se necessário, assim, aproximar contextos de formação inicial, que envolvam os estudantes dos cursos na realidade escolar, desde os primeiros anos da licenciatura, na intenção de amenizar os dilemas enfrentados no momento de inserção no campo profissional da docência. Acredita-se que isso significa apenas uma das formas de encarar os problemas do modelo de formação de professores, atualmente vigente no país.
A entrada na carreira corresponde a uma fase decisiva e, portanto, constitutiva da identidade profissional dos professores. Para Marcelo García (1999, p. 113): “[...] os primeiros anos de ensino são especialmente importantes porque os professores devem fazer a transição de estudantes para professores e, por isso, surgem dúvidas, tensões”.
Marcelo García (2008, p. 11-12) enriquece a discussão ao afirmar que nesse novo contexto de atuação:
Os professores iniciantes necessitam possuir um conjunto de ideias e habilidades críticas assim como a capacidade de refletir, avaliar e aprender sobre seu ensino, de tal forma que melhorem continuamente como docentes. Isso é possível se o conhecimento essencial para os professores iniciantes possa se organizar, representar e comunicar de forma que eles permitam aos alunos uma compreensão mais profunda do conteúdo que aprendem.
A forma de organização do ensino se enriquece com o destaque importante na reflexão dos professores, seja no campo conceitual ou no metodológico da matéria de ensino.
A identidade do indivíduo como professor se constrói por processos de constituição do seu desenvolvimento no decorrer da profissão. É preciso ter uma noção absoluta de que o modo como a pessoa se torna professor ganha corpo, forma e conteúdo durante o ciclo da vida profissional, o que reforça e/ou enfraquece determinadas condutas na sala de aula.
Huberman (1995), em uma publicação sobre o ciclo de vida profissional dos professores, revela questões fascinantes de investigação em relação à biografia docente. O autor expressa o que intitula de “questões apaixonantes”, no que concerne às curiosidades do cotidiano da carreira. Entre as indagações exibidas por esse autor, existem dois conjuntos de perguntas que chamam a atenção e se constituem, também, neste estudo, como elementos da compreensão do início da docência no ensino de Matemática, sendo o primeiro conjunto de questões:
Será que há “fases” ou “estágios” no ensino? Será que um grande número de professores passam pelas mesmas etapas, as mesmas crises, os mesmos acontecimentos-tipo, o mesmo termo de carreira, independente da “geração” a que pertencem, ou haverá percursos diferentes, de acordo com o momento histórico da carreira? (HUBERMAN, 1995, p. 35).
O segundo conjunto se refere a:
Que imagem é que as pessoas têm de si, como professores, em situações de sala de aula, em momentos diferentes de sua carreira? Terão a percepção de que modificaram os seus processos de animação, a sua relação com os alunos, a organização das aulas, as suas prioridades, o domínio da matéria que ensinam? (HUBERMAN, 1995, p. 35).
O conjunto de questões levantadas por Huberman (1995) e, resgatadas nesta seção do texto evidencia uma preocupação com a construção da identidade profissional dos professores ao longo do processo da carreira. Alguns autores (DUBAR, 1997; NÓVOA, 2007) consideram que a constituição da identidade profissional parece estar atrelada à interação entre o sujeito e a sociedade, ou seja, com a comunidade a qual pertence.
A construção da identidade dos professores iniciantes transita por um processo de interação entre os pares, por uma negociação de significados do trabalho docente no espaço da escola, quando eles tomam contato com profissionais mais experientes e/ou outros agentes educacionais.
Borba (2001, p. 34) pondera que a identidade vai muito além do processo da biografia pessoal do sujeito, uma vez que: “[...] a identidade do eu não se refere ao ser individual e absoluto, mas a uma identidade que se processa pela apropriação/negação/superação dos universos simbólicos na interação social [...]”.
O conteúdo semântico dessa análise conduz a considerar que o processo de construção da identidade profissional do professor iniciante sofre implicações da interação entre ele e os demais professores, já atuantes na escola em que ingressa. Por conseguinte, precisa-se encarar a arquitetura do início da docência como um projeto coletivo da escola, demonstrando “[...] comprometimento desta instituição com esse momento específico da formação docente [...]” (ROCHA, 2006, p. 13).
Enfrentar o princípio da carreira docente como um projeto coletivo se torna relevante na medida em que a elaboração da identidade do sujeito, de acordo com Dubar (1997), não ocorre em seu nascimento, essa é erigida desde a infância e se reconstitui, ao longo da vida, em uma constante interação com o “outro”. “O indivíduo nunca a constrói sozinho: ela depende tanto dos julgamentos dos outros como das suas próprias orientações e auto definições. A identidade é um produto de sucessivas socializações” (DUBAR, 1997, p. 4).
Por essa razão, a colaboração entre os professores parece exercer um papel importante na identidade profissional dos professores principiantes, o que demonstra a necessidade do trabalho colaborativo.
Por conseguinte: “[...] o apoio que os professores mais experientes e o modelo de gestão pedagógica da escola oferecerem vai além da preocupação com o bem-estar daquele que começa a ensinar, mas reflete o compromisso de todos no empenho para a qualidade do ensino oferecido às nossas crianças” (ROCHA, 2006, p. 13).
De modo comum, existe uma aproximação entre as concepções da construção da identidade do sujeito/professor, demonstrando que suas raízes estão intrinsecamente ligadas à relação entre elementos pessoais e sociais. A identidade profissional expressa o resultado da reprodução de papéis/modelos, descrições de ações de determinados grupos, bem como o modo de estar no ambiente daquela comunidade profissional.
Neves (2011) afirma que é preciso considerar o percurso feito pelo sujeito durante toda sua trajetória para se compreender como a sua identidade se constrói. Situação que, no caso dos professores iniciantes, implica dizer que se tem de entender as representações sobre a profissão e as influências da concepção durante sua vida estudantil.
Essa questão gera a necessidade de se repensar os modelos constituintes da prática pedagógica no início da carreira, uma vez que a identidade do principiante parece estar entrelaçada ao modo de ver e pensar o mundo do trabalho, ou seja, as suas perspectivas em relação às formas de atuação na escola, quer dizer, a sua própria formação interfere na construção de sua identidade e de sua subjetividade, ou mais ainda, no seu significado de aprender a ensinar.
Nesse momento, alguns questionamentos se impõem como pertinentes: de que maneira se desenha a identidade profissional dos professores iniciantes em relação ao ensino de Matemática? Quais os fatores que influenciam e/ou determinam a configuração dessa identidade? Que espaços se organizam como fontes de aprendizagem ao longo das vivências no contexto escolar?
O primeiro passo para tentar encontrar respostas às “questões apaixonantes” de Huberman (1995) reside na possibilidade de compreender, a partir das narrativas dos professores, o porquê da escolha pelo curso de licenciatura. A partir daí se pretende traçar um perfil mais próximo da realidade pesquisada com o objetivo de se atrelar a(s) identidade(s) com as fases do ciclo de vida individual dos sujeitos.
Entende-se que, na construção da identidade docente, a trajetória de opção pela profissão pode ser considerada uma escolha subjetiva. Fazer um resgate da história pessoal representa um passo importante, porque permite que o professor tenha uma visão de si e do mundo.
Em relação à formação inicial, acredita-se ser preciso conhecer e discutir as culturas e as práticas escolares e de se refletir sobre as dicotomias ainda presentes na licenciatura em Matemática, as quais envolvem a relação teoria e prática, escola e universidade, bem como conteúdos específicos e pedagógicos (GAMA, 2009).
Partindo do pressuposto de que os professores vão se constituindo durante toda a sua carreira profissional, acumulando experiências bem e mal sucedidas, com o intuito de aprimorar cada vez mais a ação pedagógica, considera-se atinente compreender as percepções de uma professora iniciante sobre sua formação e prática.
É entendendo a fase inicial da docência como estratégica para permanência na profissão e para o desenvolvimento profissional, que se compreende ser importante a criação de espaços de integração ou de socialização dos docentes, promovendo assim uma pesquisa específica sobre o espaço coletivo de reflexão com os professores em início de carreira, para apontar alternativas de apoio à inserção profissional.
Gama (2009, p. 102) esclarece que os sentimentos característicos do período de iniciação à docência “[...] constituem-se em desafios para a continuidade na carreira e para o desenvolvimento profissional da grande maioria dos professores iniciantes [...]”. Para a autora, se se quiser avançar na qualidade do ensino-aprendizagem e nos resultados escolares é preciso: “[...] conhecer e repensar princípios necessários para o desenvolvimento profissional, como os apoios e a promoção do bem-estar docente [...]” (GAMA, 2009, p. 102).
Metodologia da investigação
A abordagem metodológica adotada para o desenvolvimento desta investigação foi a pesquisa qualitativa, uma vez que esta permite compreender o contexto, no seu cenário natural, e preservar a complexidade do comportamento humano. Observar fenômenos em um pequeno grupo, interpretar comportamentos e técnicas de observação da realidade, através de participação em ações do grupo, por meio de entrevistas e de conversas, para descobrir as interpretações sobre dados observados, permitindo comparar e interpretar as respostas encontradas em situações adversas (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Este estudo buscou evidenciar os percursos de dificuldades e de aprendizagens/experiências profissionais, a partir de questões da socialização do professor no início da docência em Matemática.
O foco central concebeu-se na realização de:
[...] descrições detalhadas de situações, eventos, pessoas, interações e comportamentos que são observáveis, incorporando a voz dos participantes, suas experiências, atitudes, crenças, pensamentos e reflexões, tal e qual são expressas por eles mesmos (SERRANO, 1994, apudESTEBAN, 2010, p. 125, grifo nosso).
No campo da pesquisa qualitativa, existem várias abordagens para a temática a ser estudada. A que mais perto esteve do estudo que aqui será descrito e, consequentemente, analisado, foi a pesquisa-ação por estar “[...] localizada na metodologia da pesquisa que orienta à prática educacional [...]” (ESTEBAN, 2010, p. 167).
A opção por tal abordagem metodológica se justifica no fato de que, na pesquisa-ação: “[...] o fim último é o desenvolvimento profissional do docente e a produção de conhecimento situacional e útil [...]” (ESTEBAN, 2010, p. 180). Em concordância com a autora, acredita-se que a pesquisa-ação não só é uma forte via de desenvolvimento para a formação e o desenvolvimento profissional dos professores, como também para a formação inicial dos mesmos (ESTEBAN, 2010).
Os dados produzidos, no contexto em que o estudo havia sido subsidiado, decorreram de 39 sessões com um grupo colaborativo, o qual tinha sido constituído com quatro pedagogas e uma professora de Matemática, conforme anunciado na introdução, em encontros ocorridos quinzenalmente, no período de agosto de 2013 a julho de 2015. As professoras participantes tinham entre cinco meses e três anos de experiência profissional. Durante a realização do trabalho de campo estavam em atuação em escolas públicas da rede municipal e/ou estadual de Naviraí, no interior do Estado de Mato Grosso do Sul, e no sistema privado de ensino.
O trabalho de pesquisa, que culminou na tese de doutorado defendida por Ciríaco (2016), decorreu a partir de um planejamento de atividades colaborativas elaborado, inicialmente, pelo formador-pesquisador, com base nos objetivos da investigação, tendo como pressuposto essencial a possibilidade de transformação da realidade educacional com base na cultura de colaboração (FULLAN; HARGREAVES, 2000). No que respeita à dinâmica das reuniões, procurou-se promover discussões dos problemas vivenciados nas aulas com o objetivo de construir formas de superação, a partir da prática dialógica da colaboração, elementos apresentados em outras publicações (CIRÍACO; MORELATTI; PONTE, 2016; CIRÍACO; MORELATTI; PONTE, 2017).
O uso de entrevistas, por meio de narrativas recorrentes1, como possibilidade de formação/reflexão, tem sido utilizado, cada vez mais, nas pesquisas em educação, principalmente, as que tentam caracterizar o pensamento e os processos formativos dos professores (CIRÍACO; MORELATTI; PONTE, 2016). Por essa razão, a narrativa por meio da fala em entrevistas realizadas com um intervalo de tempo de 4 meses, no decorrer de dois anos de coleta de dados, foram fontes importantes para a pesquisa de doutorado. Essa etapa ocorreu em momentos estratégicos, ao longo da recolha de dados para a elaboração da escrita da tese, culminado em três momentos de desenvolvimento da entrevista, sendo estes:
Roteiro de entrevista de sondagem inicial para a formação do grupo;
Roteiro de entrevista sobre as dificuldades e aprendizagens “no” e “do” grupo;
Roteiro de entrevista sobre o movimento do grupo e o processo de aprendizagem nesse espaço.
Entre os roteiros mencionados, selecionou-se para explorar neste trabalho, o primeiro em que foram elaboradas questões e se indaga para a professora sobre os processos de formação que envolveram a Matemática e o seu ensino durante o período do curso de licenciatura. As informações obtidas nessa entrevista inicial foram importantes, porque foi possível identificar algumas das razões pela escolha da carreira docente, as dificuldades iniciais quando do momento de ingresso na escola, os medos, as inseguranças e as descobertas das primeiras vivências como docente, o que culminou nos percursos identitários com profissão.
Bianca, a professora cujos percursos identitários são explorados no artigo, graduou-se no curso de licenciatura em Matemática da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Licenciada em Matemática, a docente tinha 29 (vinte e nove) anos, quando do momento da coleta de dados2 e atuava há 2 (dois) anos em uma escola pública do interior do Estado de Mato Grosso do Sul, em turmas do 6º (sexto) e 7º (sétimo) ano do Ensino Fundamental.
Além disso, para compreender o processo de formação inicial da professora, foi necessária uma análise documental do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) em que Bianca licenciou-se e, posteriormente, relacionaram-se as informações contidas neste documento com os dados de pesquisas e indicadores para a formação dos professores que ensinam Matemática, uma vez que parece ser essa informação um elemento importante para compreender melhor o processo de constituição dos saberes matemáticos dos professores iniciantes, já que em tese muito do que sabem sobre a carreira pode ou não ter influência das experiências na formação inicial. A análise documental é uma importante técnica de coleta de informações, visto que “[...] os documentos constituem uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas evidências que fundamentam afirmações e declarações do pesquisador [...]” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39).
Nas próximas seções, será possível apontar e esclarecer tais análises e as percepções de Bianca sobre as influências sobre sua formação para o exercício de sua carreira.
Descrição e análise de dados
O curso de licenciatura em Matemática em que Bianca se formou
O Projeto Pedagógico do Curso de licenciatura em Matemática3 (PPC, 2010) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade de Nova Andradina/MS, faz menção ao Parecer nº 1302/2001 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, reconhecendo-o assim, como um dos marcos para a elaboração de uma proposta de formação ao professor de Matemática da Instituição de Ensino Superior (IES). Cita-se, também, considerando-a relevante, a Resolução CNE/CP 2 de 19 de fevereiro de 2002, por essa instituir a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em nível superior em todo território brasileiro.
O documento expõe, ainda, um breve panorama de resultados de eventos científicos na área, afirmando que, principalmente, as discussões da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) influenciaram as reformulações do projeto do curso. Portanto, o PPC considera que, tendo em vista as recomendações da SBEM, surge a preocupação, em 2010, da reformulação do documento com o foco em “[...] estabelecer os grupos de profissionais que irão ministrar as disciplinas do curso [...]” (PPC, UEMS, 2010, p. 10).
[...] os grupos de profissionais formadores deverão ser compostos pelo grupo dos Matemáticos Puros ou com Matemática Aplicada os Educadores Matemáticos e os com formação em Educação. Para as disciplinas que estabelece a interface com outras áreas do conhecimento, deverão ter formação compatível com o conteúdo que irão ministrar (PPC, 2010, p. 20).
O PPC distingue, ao longo da composição de sua organização, entre disciplinas que dizem respeito aos aspectos específicos conceituais da Matemática e aquelas pedagógicas, que são denominadas no corpo do texto como de formação geral pedagógica.
O reconhecimento de que o perfil de formação dos professores formadores precisa levar em conta distintas áreas e sua interface com a educação demonstra a necessidade da formação do professor com enfoque na Educação Matemática com vista à promoção da identidade docente do futuro educador e não da formação do matemático per si.
Conforme o explicitado pela própria professora de Matemática4, em momentos da entrevista, durante a sua formação inicial, salvo raras exceções, em que os aspectos pedagógicos dos conteúdos foram abordados, a maioria dos professores formadores apresentava um perfil mais na área da Matemática Aplicada. Eles demonstravam, no decorrer das aulas, restrita importância para a compreensão da dinâmica do processo de ensino e da aprendizagem na escola.
Outro ponto relevante do projeto do curso se revela na distinção entre as disciplinas de formação específica, que deverão ser ministradas: “[...] exclusivamente por professores concursados na área de Matemática ou por professores com formação em Matemática, selecionados como colaboradores [...]” (p. 20) e disciplinas de formação geral. “Esse bloco está dividido em dois módulos, sendo eles formados por: Disciplinas que estabelecem a interface com outras áreas do conhecimento; Disciplinas da área de Pedagogia” (PPC, 2010, p. 27).
As disciplinas de formação específica estão subdivididas em três áreas: 1ª) disciplinas de conteúdo da área de Matemática; 2ª) disciplinas que estabelecem relação com a prática da docência e; 3ª) disciplinas que estabelecem interface com a Matemática e a Educação Matemática.
Em relação à primeira área da formação (conteúdos específicos), as disciplinas apontadas são: Matemática Elementar, Geometria, Geometria Analítica, Cálculo Diferencial e Integral, Álgebra Linear, Estruturas Algébricas, Análise Matemática, Probabilidade e Estatística, Cálculo Numérico e Informática no Ensino de Matemática.
Na segunda área estão as disciplinas de Estágio Curricular no Ensino Fundamental e Estágio Curricular no Ensino Médio, ambas apontadas, pelo PPC do curso, como componentes curriculares, que fazem a relação com a prática docente. Por último, na terceira área aparecem: Metodologia da Investigação em Matemática, Didática da Matemática, História da Matemática e Laboratório de Ensino de Matemática, sendo essas denominadas como disciplinas que fazem interface com a Educação Matemática.
As disciplinas de formação geral se dividem em duas áreas: disciplinas que estabelecem uma relação com outras áreas do conhecimento e disciplinas da área de Pedagogia. A primeira se refere à Língua Portuguesa e Física I e II, e a segunda às disciplinas de formação pedagógica, em que se encontram a Didática Geral, a Filosofia, a Sociologia, a História da Educação, a Psicologia da Educação, a Legislação e Política Educacional Brasileira, todas como sendo disciplinas que visam possibilitar, ao futuro professor de Matemática, um adentro no pensamento teórico/prático, de acordo com o documento.
Essas disciplinas ampliarão a relação entre teorias e práticas bem como a reflexão e profissionalização docentes embasadas e compromissadas com a qualidade do ensino nacional e em específico, com o ensino da Matemática. Por envolverem pesquisas bibliográficas parte da carga horária será desenvolvida de forma semipresencial (PPC, 2010, p. 28).
Na interpretação destes pesquisadores, a visão do PPC demonstra uma dicotomia entre as disciplinas específicas e pedagógicas no processo de formação dos professores de Matemática. O fato de afirmar que, por se tratarem de disciplinas da área pedagógica, essas poderão ser desenvolvidas de modo “semipresencial” parece reforçar uma desarticulação entre saberes específicos e pedagógicos da Matemática escolar e/ou ainda uma intenção de sobreposição de um em detrimento do outro, pois na apreciação crítica que se realiza, não se evidenciou a menção de carga horária semipresencial em disciplinas no núcleo específico ligadas ao conteúdo, ou seja, o projeto apresenta, claramente, em seus dizeres, que as disciplinas teóricas (do campo da Didática e das Políticas) terão “parte da carga horária a distância”, o que contribui para que os professores egressos dessa licenciatura se sintam despreparados para os problemas da prática docente, pois quando não ocorre a devida importância para formação do núcleo didático de conhecimentos pedagógicos, quem “perde” é o futuro docente que terá de fazer a relação entre teoria e prática no desenvolvimento do contexto do trabalho (CIRÍACO, 2016). Desse modo, desenvolver a visão do currículo da Matemática também se constitui objeto de formação das disciplinas pedagógicas, razão pela qual essas têm tanta relevância quanto as demais ao longo do curso.
Blanco (2003, p. 71), ao escrever sobre a definição de um currículo do curso de licenciatura em Matemática, afirma que esse futuro professor precisa conhecer questões que estejam relacionadas aos “[...] contextos e situações em que ele irá utilizar tal conhecimento, isto é, com atividades, objetivos educacionais e contextos de ensino da matemática [...]”. Ainda, segundo a autora, é preciso encarar a formação do professor de Matemática com base nesses elementos e incorporá-los, como componentes dos conteúdos, durante o curso de licenciatura, de forma que envolva conhecimentos fundamentais para a compreensão da dinâmica do trabalho docente no ensino da disciplina, a partir do currículo escolar.
[...] consideramos que os seguintes aspectos devem, de alguma maneira, vir refletidos no conteúdo da formação de professores de matemática: o conhecimento de e sobre a matemática [...] conhecimento de e sobre o processo de geração das noções matemáticas; o conhecimento sobre as interações em sala de aula, tanto entre professor-aluno como entre aluno-aluno em sua dupla dimensão [...] o conhecimento sobre o processo instrutivo - formas de trabalhar em classe, o papel do professor - que exige, também, o conhecimento sobre as representações instrucionais e o conhecimento sobre as características da relação tarefa-atividade (BLANCO, 2003, p. 71-72).
Defende-se semelhante perfil de formação, em concordância com a autora, para que o futuro professor e o iniciante consigam se desenvolver profissionalmente com vistas à superação das dificuldades didático-pedagógicas.
Moreira e David (2005) enriquecem a discussão, quando analisam o processo de formação do professor de Matemática em relação à prática escolar. Esses autores afirmam que o modelo de formação desse profissional traz em si problemas de integração com a prática, elaborando uma distinção clara entre Matemática Acadêmica e a Escolar.
Para esses autores, a formação do futuro professor, nesses cursos, prioriza o conteúdo acadêmico, não o relacionando aos fundamentos do contexto escolar, o que contribui para o distanciamento entre o que se aprende no curso de licenciatura e o que ocorre no contexto real do processo de ensino e aprendizagem.
Fiorentini (2004) considera que, em cursos de licenciatura em Matemática, nos quais os conteúdos específicos são trabalhados isoladamente dos conteúdos pedagógicos, os professores das disciplinas específicas acabam influenciando mais no modo como o licenciado dará aula do que os professores das disciplinas pedagógicas.
A fragmentação entre o específico e o pedagógico acaba por conduzir a prática, em sala de aula do futuro professor. Tal fato contribui para acentuar as dificuldades dos professores iniciantes no que se refere a abordagem dos conceitos.
Nessa perspectiva, a organização das disciplinas do curso de licenciatura em Matemática parece estar entrelaçada no modelo “3+1”, demonstrando uma distinção entre uma visão de formação de um “bacharelado + didática”, conforme foi possível verificar no agrupamento das disciplinas por áreas, na seguinte disposição: primeiro disciplinas de formação específica; segundo, disciplinas que se relacionam com a prática e, por fim, disciplinas de formação geral (pedagógicas).
A desarticulação, entre as disciplinas específicas e aquelas pedagógicas dos conteúdos matemáticos, durante o processo de formação inicial do professor de Matemática constitui um dado frequente em conclusões de estudos e de pesquisas (FIORENTINI; OLIVEIRA, 2013; CIRÍACO, 2016).
De modo geral, os resultados evidenciam a necessidade de articulação entre essas, para que o futuro professor compreenda a importância da elaboração de estratégias de ensino dos conteúdos quando ingressarem nas escolas.
Os conhecimentos matemáticos, na formação do professor, parecem estar dispostos em uma relação em que o saber acadêmico se demonstra supervalorizado e os necessários à docência são deixados para segundo plano durante a formação inicial.
Moreira e David (2005, p. 14) apontam que, em relação ao curso de Matemática, “[...] raramente são focalizadas de forma específica as relações entre os conhecimentos matemáticos veiculados no processo de formação e os conhecimentos matemáticos associados à prática docente escolar”.
Observa-se tal circunstância quando se analisa a grade curricular, dado que parece existir uma dicotomia com um enfoque mais para as questões específicas da matemática do que para as didáticas, ou seja, ao menos em tese, na licenciatura em Matemática, o sujeito passa por um processo de formação inicial com uma grande ênfase no conhecimento específico de conteúdo da matéria de ensino.
Por sua vez, os aspectos metodológicos do ensino da Matemática escolar para a abordagem conceitual dos conteúdos previstos a serem inseridos na Educação Básica não parecem ser objeto de reflexão na licenciatura, dado que pode trazer problemas para o início da atividade docente, já que um professor precisa, necessariamente, compreender bem o conteúdo nos níveis específicos, pedagógicos e curriculares.
Entre “sobrevivências” e “descobertas”: a visão de Bianca sobre sua formação e prática
Eu sempre tive vontade de fazer o curso de licenciatura em Matemática. Quando fazia o primeiro ano do Ensino Médio, teve uma Olimpíada de Matemática, para a qual fui escolhida pela professora, nessa Olimpíada fiquei em 1º lugar! Então, quando pensei em fazer uma graduação, lembrei disso, que tive facilidade com esta área e, como me interessava, fui fazer essa faculdade. (Bianca).
A partir da enunciação destacada acima se pode afirmar que a construção da identidade parece estar interligada à realidade produzida objetivamente, a partir dos processos a que a professora esteve ligada no decorrer da sua trajetória de vida e à subjetividade presente na escolha pela docência como profissão e não como uma segunda opção de carreira.
Ao considerar a trajetória subjetiva na construção da identidade docente, Dubar (1997) ressalta que, em processos identitários individuais, as práticas e determinadas crenças dos membros de um grupo, como as dos professores, contribuem de forma significativa para a invenção de novas categorias de socialização do sujeito em um determinado campo, como a docência em Matemática.
Scoz (2011, p. 28) enriquece o entendimento ao afirmar que as formas identitárias dos sujeitos: “[...] não podem ser consideradas formas estáveis, que seriam preexistentes às dinâmicas sociais que as constroem”. Trata-se, quer dizer, de algo em permanente construção, uma vez que a socialização profissional é abordada na perspectiva da transformação social e não apenas da mera reprodução (DUBAR, 1997), o que se aplica no caso desta pesquisa com a professora em início de carreira.
Pode-se entender a identidade docente como um processo que permite levantar tanto os aspectos pessoais como também os sociais, os políticos, os econômicos e os históricos, que levam o indivíduo: “[...] a participar de uma substância humana que se realiza como história e como sociedade, nunca como indivíduo isolado [...]” (SCOZ, 2011, p. 2). Nesse caso, faz sentido a defesa de que a aprendizagem da docência em Matemática precisa passar por um processo colaborativo de apropriação dos conhecimentos matemáticos durante os primeiros anos da docência, fase primordial e decisiva na constituição da(s) identidade(s).
Para a professora Bianca, durante a sua formação, foi nítida a pouca ênfase dada pelos seus professores formadores, para a escola e ao modo como os conteúdos estão presentes no currículo dos programas de Ensino Fundamental e Médio, pressuposto que se julga importante para pensar a realidade educacional que o professor iniciante vivenciará, quando se inserir no campo de atuação: a sala de aula da escola pública, principalmente.
Bianca revelou ainda que era recorrente ouvir dos seus professores que “dar aulas era para os fracos”. Semelhante discurso traduz uma concepção de formação centrada na pesquisa em um curso de licenciatura, cujo foco, necessariamente, precisaria ser a docência e não a formação do matemático. A fala da professora iniciante aponta para uma visão bacharelesca, enraizada fortemente pelos professores formadores.
O curso em que me formei é de licenciatura, mas os professores que dão aula no curso, quase nenhum deles fizeram licenciatura. Alguns vieram de outras áreas diferentes, mas ligadas à Matemática, se formaram em outras graduações. Contudo, todos são doutores e dão aula nessa faculdade que me formei. Então, eles estimulam a gente a se formar e ir para a pesquisa. Ninguém fala em dar aulas, dar aulas é uma coisa assim [...] é para que um que não tem capacidade de fazer um mestrado. É mais ou menos isso que eles pensam de quem sai da faculdade e vai dar aulas. (Bianca).
A partir das considerações de Bianca, é possível afirmar que o perfil de formação, no curso do qual um professor iniciante é egresso, pode influenciar o modo como ele desenvolve as suas aulas. Sem dúvida, o contexto acarreta dificuldades para o processo de ensino e aprendizagem da Matemática escolar.
Nem no estágio tivemos uma “cobrança” do como iríamos ensinar. De como você vai trabalhar, de como você vai se organizar, então, quase nunca foi trabalhado é [...] o como ser um professor [...] Enfim, o curso não me preparou para o ingresso na docência. (Bianca).
O fato de as discussões sobre a realidade da sala de aula e a prática do processo de ensino e aprendizagem serem pouco abordadas parece ter contribuído para os problemas com que a docente se deparou.
Daí peguei aulas de Matemática no 6º ano no começo e foi difícil porque sabia como resolver todos aqueles conteúdos, mas não sabia como passar de uma maneira que eles [os alunos] entendessem [...]. (Bianca).
A dificuldade apontada pela professora revela a necessidade de uma articulação entre conteúdos específicos e pedagógicos da matéria de ensino, como menciona Shulman (1986). Afinal, não basta saber Matemática para ensiná-la, é preciso direcionar as ações, em sala de aula, na perspectiva do entendimento dos alunos, ou seja, ao professor compete a tarefa de correlacionar o que se está explicando, a partir do ponto de vista do aprendiz. Por outras palavras, é preciso que o professor construa significados do aprender e do ensinar em diferentes situações no contexto da sala de aula.
Em relação a essa dificuldade central de Bianca, Shulman considera que o conhecimento pedagógico:
[...] incorpora os aspectos do conteúdo mais relevantes para serem ensinados. Dentro da categoria de conhecimento de conteúdo pedagógico, incluo, para a maioria dos tópicos regularmente ensinados de uma área específica de conhecimento, as representações mais úteis de tais ideias, as analogias mais poderosas, ilustrações, exemplos, explanações e demonstrações [...] também inclui uma compreensão do que torna a aprendizagem de tópicos específicos fácil ou difícil: as concepções e preconcepções que estudantes de diferentes idades e repertórios trazem para as situações de aprendizagem (SHULMAN, 1986, p. 09).
Perin (2009, p. 86), em estudos sobre a dificuldade de professores de Matemática iniciantes, também considera que, pelas falas dos colaboradores de sua pesquisa, “[...] é possível perceber uma tensão vivida por eles no que tange aos processos de ensino-aprendizagem de Matemática [...]”, ou seja, compreender processos de natureza específica do conhecimento da matéria de ensino também constitui desafio ao profissional licenciado em Matemática, isso reforça a necessidade destacada no início desta seção de que é preciso, na formação inicial, que os formadores abordem como o conhecimento curricular de conteúdo se apresenta na escola (Ensino Fundamental e Médio).
No caso da professora de Matemática entrevistada, ela menciona ainda:
Dificuldade eu senti, agora mesmo no 6º ano eu estou trabalhando com frações e quando tinha que trabalhar é [...] a parte de um todo, eu fiquei muito perdida, a regra que o matemático conhece é mais abstrata, tudo a gente resolve assim [...] tentei uma regra de três, mas eles não estão aprendendo a regra de três ainda, vai demorar para eles aprenderem. Então, eu não sabia como trabalhar isso, aí eu procurei minha coordenadora e ela me explicou que poderia trabalhar é [...] as partes foram trabalhadas e o que faltava era para eu pensar através de um número inteiro e aí eu consegui explicar para eles e parece que entenderam bem. Antes, sozinha, não estava conseguindo encaixar o pensamento de jeito nenhum e olha que eu já tinha tentado de várias formas. Eu tenho uma grande dificuldade em trabalhar com outros materiais, por exemplo, material dourado, nunca nem toquei, nem sei o que é, só ouvi falar é [...] tangram nunca trabalhei com tangram, até esses dias procurei minha coordenadora para que eu pudesse trabalhar área e perímetro e aí ela me pediu para trabalhar com o tangram e ela me explicou como que eu ia fazer [...] Então, geralmente minhas aulas são em cima do livro, poucas vezes eu recorro a outro método, porque durante a minha formação matemática não conheci esses materiais. (Bianca).
Fica evidente, por conseguinte, que as dificuldades da professora decorrem do seu processo de formação inicial. Em decorrência de seu ingresso despreparado na carreira docente, alguns conhecimentos de métodos e de técnicas de ensino no que se refere ao uso de materiais manipuláveis e estruturados para a abordagem dos conteúdos matemáticos, de que ela afirma nunca ter ouvido falar e, por essa razão, não os conhecer, ou sobre como tais elementos se podem constituir mecanismos facilitadores da aprendizagem dos alunos.
Levando em conta a própria avaliação da professora em análise, que relata sua dificuldade de trabalhar com materiais manipuláveis, pode-se relacionar essa questão com a formação inicial que obteve na licenciatura, da qual é egressa que, como visto, representou um curso pouco centrado nos princípios e saberes necessários à docência.
Passos (2012, p. 80) aponta que é preciso criar contextos, que favoreçam o contato e compreensão do uso de materiais concretos e manipuláveis, porque “[...] faz-se necessário criar momentos de reflexões e discussões sobre esses aspectos [...]”.
O professor de Matemática pode recorrer aos materiais manipuláveis, quando os conhece bem e sabe os efeitos da sua utilização para a compreensão das propriedades matemáticas, que envolvem o conteúdo, que irá abordar com os seus alunos. O envolvimento dos alunos com a proposta não pode ser apenas uma mera reprodução dos passos do professor.
No caso da professora de Matemática iniciante, como seria possível utilizar tais materiais e fazer conexões entre o seu uso e as suas propriedades matemáticas se nem ela própria teve essa oportunidade durante o seu processo de formação?
Serrazina (1990) pondera que o professor desempenha um papel importante no processo de utilização de materiais didáticos no ensino de Matemática. Para isso, precisa conhecer o material utilizado para orientar os seus alunos na compreensão dos conceitos, que podem ser explorados.
O conhecimento pedagógico de conteúdo, pouco recorrente na formação de Bianca, parece se apresentar com uma das dificuldades no desenvolvimento de sua prática pedagógica, uma vez que afirma que nunca viu tais materiais antes de ingressar na carreira. Sua informação reafirma a necessidade do diálogo entre os professores, dentro da instituição escolar e/ou a criação de momentos de interação nos diferentes níveis para que eles possam articular os seus saberes e conhecimentos, acerca dos princípios pedagógicos, conceituais e curriculares da matéria de ensino. Isso se relaciona como elemento fundamental ao desenvolvimento profissional e construção da identidade com a docência, da professora iniciante, que na pesquisa mais alargada (CIRÍACO, 2016) se destaca como eixo catalizador de aprendizagens.
Foi evidente, nas suas afirmações, nas sessões de entrevistas, que a oportunidade de refletir atualmente com os colegas da escola, ao expor problemas que enfrenta tem a ajudado a refletir de modo diferente e a rever algumas das suas posições, em relação ao conteúdo e ao aluno. A falta de conhecimento específico e pedagógico de conteúdo encaminha essa professora a experimentar inúmeras tentativas durante o ingresso na carreira, com o objetivo de desenvolver suas aulas iniciais de Matemática.
O relato da professora Bianca esclarece que o uso da Internet é uma fonte para que se possa assistir a vídeos que são “tutoriais que demonstram como dar aulas, ou ainda, outros mostram mesmo um professor de matemática ministrando um conteúdo, assim, procuro tutoriais que informem procedimentos de ensino dos conteúdos que estou ministrando naquele momento”.
Ao retratar o conhecimento docente, Imbernón (2011, p. 32) auxilia, na leitura interpretativa de seus constructos teóricos com os dados desta pesquisa, a enriquecer a discussão, quando afirma que o conhecimento pedagógico “[...] legitima-se na prática e reside, mais do que no conhecimento das disciplinas, nos procedimentos de transmissão, reunindo características específicas como a complexidade, a acessibilidade, a observabilidade [...]”, que estão presentes na experiência da prática profissional.
É interessante mencionar que algumas pesquisas (CURI, 2004) têm destacado que o conhecimento da docência em Matemática, em diferentes níveis de ensino, carece de compreensão acerca dos conteúdos pelos professores ao reconhecerem, a partir das suas conclusões, que existem limitações conceituais e didáticas em relação ao ensino da disciplina.
Pérez-Gómez (1992, p. 108), ao tecer considerações acerca dos limites da racionalidade técnica, confirma as preocupações em relação à formação docente e afirma que “[...] estas considerações são amplamente confirmadas pela frustração e desconcerto dos professores principiantes que enfrentam os problemas educativos com uma bagagem de conhecimentos, estratégias e técnicas que lhes parecem inúteis nos primeiros dias de sua atividade profissional [...]”.
Portanto, ao analisar as dificuldades dessa professora iniciante, durante seus percursos de constituir uma identidade, pode-se afirmar a partir de suas narrativas que, na fase de indução profissional, parece existir um “entre-lugar5” em que a aprendizagem do ser professor se situa, este que não se encontra na licenciatura e, muito menos, nas experiências solitárias na escola. Com base nos resultados da pesquisa da tese, em que os dados aqui explorados são expostos de forma mais abrangente, o “entre-lugar” se constitui espaço intersticial, no qual significantes e significados podem se encontrar e produzir novos sentidos (CIRÍACO, 2016). Semelhante condição reforça a necessidade de criação de espaços para que se examine o que os professores iniciantes sabem e o que pensam “de” e “sobre” Matemática, na perspectiva de contribuir com seu desenvolvimento profissional, por meio de uma experiência de pesquisa-ação, que apresenta a possibilidade de aprendizagem da docência.
Considerações finais
Ao longo da discussão foi possível examinar como o começo da carreira para a professora se apresentou de modo conturbado. Em decorrência disso, alguns problemas emergiram tanto das suas práticas de iniciação à docência das experiências, em sala de aula, com os alunos quanto do contato com a comunidade escolar, de modo geral.
O desejo de ser professora, no caso aqui analisado, decorreu da motivação por segurança na carreira, o que mais tarde, ao término do curso de licenciatura, mostrou-se diferente dos ideais construídos na formação inicial.
Entre os desafios aludidos ao trabalho docente, o ensino de Matemática surgiu caracterizado como um processo doloroso, uma vez que os dados sinalizaram lacunas conceituais e didático-pedagógicas na licenciatura em Matemática que, embora seja um curso de formação de professores, os docentes formadores do curso em que Bianca se graduou trabalhavam em uma perspectiva de bacharelado, ao privilegiarem formar matemáticos, ao invés de educadores matemáticos, campos com diferenças significativas.
Neste estudo, Bianca sinalizou ainda que, na fase de iniciação à docência, também está aprendendo Matemática para poder ensinar, ou seja, em suas aulas recorre a diversos métodos na tentativa de contribuir com a aprendizagem matemática dos seus alunos, dado que o caminho da docência se revela complexo e, ao mesmo tempo, desafiador para ela.
Salienta-se que muitos dos recursos recorridos pela docente para abordagem dos conteúdos escolares foram encontrados em páginas da internet e em blogs. O que equivale dizer que muitas das atividades foram estruturadas sem um esforço de planejamento. Ou, mais ainda, muitas vezes, as tarefas propostas em sala de aula se limitaram apenas, a imprimir a proposta e desenvolvê-la na sala de aula, sem uma mediação reflexiva sobre o contexto das turmas. Esse dado, embora não destacado de forma abrangente no artigo em pauta, foi problematizado no ambiente da colaboração em um movimento que procurou colocar as professoras integrantes do grupo em uma posição de protagonistas de sua atividade ao planejarem, executarem a proposta e refletirem sobre essa, aspectos possíveis de serem analisados pelo leitor a partir dos dados da tese de doutorado, objeto deste artigo (CIRÍACO, 2016).
Em resumo, a partir das discussões destacadas no artigo, conclui-se por ora que no percurso de construção da identidade, no início da docência, a professora passou por conflitos que a levaram a refletir sobre aspectos de sua formação inicial e, em como algumas ações, na licenciatura, poderiam ter contribuído para amenizar suas dificuldades, além disso se percebe que o professor não vive isolado, muito embora na fase de iniciação se encontra com um sentimento de solidão, ao contrário, o docente necessita de uma interação entre seus pares, da troca, da partilha, isso contribuirá para superar desafios anunciados pelo ato de lecionar na escola pública. Por essa razão, a criação de espaços de reflexão permanente sobre as práticas profissionais, que geram movimentos de aprender a ensinar com o outro, como é o caso dos grupos de trabalho colaborativos, pode ser uma resposta para as dificuldades encontradas na iniciação da carreira e um possível caminho para o desenvolvimento do professor.