Introdução
No quadro de crises - sanitária, econômica, política e educacional -, movidas na interação com a proliferação do Coronavírus (COVID-19), no Brasil, é repetição afirmar que participamos de vivências muito novas, convidando a reposicionamentos de muitas compreensões. Na atenção ao contexto, sustentadas na premissa de que “[...] não há uma palavra que seja a primeira ou a última” (BAKHTIN, 1992, p. 413-414), assinalamos que somos chamados a repensar não só as possibilidades de significar o termo “viralizar” (comum no repertório vocabular ligado ao uso da internet), mas também a voltar a pensar sobre as nossas condições de vida, considerando os processos relacionais, o papel do Estado, a importância do sistema de saúde público, as contribuições da ciência, da pesquisa e da educação, e muitas outras questões.
Reconhecendo a dor coletiva que nos assola, um olhar sensível às negociações sociais chama a indagar as formas de administração dos vetores de interveniência no contexto, atinando para os lugares e as populações que sofrem, com maior força, as crueldades impostas pelos impactos da pandemia. Os números de pessoas contaminadas e de falecimentos vão progredindo, incluindo também (ainda que em menor quantidade) as crianças. Declaramos nosso luto conjunto às famílias. Um luto concebido como substantivo (representando sentimento de tristeza pelas mortes) e, fundamentalmente, como verbo, no sentido de convidar cada um a dizer também eu luto, somando forças nas mobilizações em defesa da preservação das vidas humanas (ANPED, 2020a).
Na articulação desse convite com o compromisso com a educação das crianças, neste texto, tematizamos as políticas governamentais em articulação com as mobilizações ligadas à Educação Infantil, no recorte temporal da pandemia. Entendemos que somos chamadas a buscar compreender e mover análises, muitas vezes, na carência de tempo para decantar as ideias. Atentamos, então, para a presença de uma expectativa propositiva, instando normativas e orientações para ações, por vezes, sem a devida interlocução com as crianças, suas famílias e os profissionais. Na atenção às precariedades vividas e, simultaneamente, aos enfrentamentos empreendidos, advogamos a centralidade da preservação da vida, associada ao zelo por processos democráticos.
Nessa perspectiva, com dados contextuais, propomos reflexões associadas aos eixos da especificidade da educação com as crianças pequenas, das interlocuções necessárias nesse período e da atenção com as iniciativas a serem encaminhadas na pós-pandemia. Em termos metodológicos, partimos da base legal da Educação Infantil (BRASIL, 1988, 1996, 2009, 2014) e de normativas e orientações (incidentes nessa base) instadas em função da pandemia. Em cotejamento com esses reguladores, reunimos um conjunto de materiais (notas, manifestos, publicações e outros) que vem mobilizando a teia dialógica na pauta da Educação Infantil em tempos de pandemia, negociando também assertivas dirigidas para o período pós-pandemia.
Atentas às interlocuções que movem o campo da Educação Infantil, com essas reflexões, convidamos à continuidade da vigilância e da mobilização, na direção de nutrir a mensagem de um outro mundo possível (KRENAK, 2019, 2020), apostando em resistências às barbáries que se impõem, em especial, às crianças e aos processos educativos que estabelecemos com elas (ARENDT, 2016).
Os impactos da pandemia na especificidade da Educação Infantil
Para tratarmos da especificidade da Educação Infantil na temporalidade da pandemia, situada no contexto de crises, e, também, do encaminhamento de mobilizações e lutas que se intensificam em face dos ataques (à vida, à democracia, à ciência, à pesquisa, à educação...), recorremos a Hannah Arendt (2016), Theodor W. Adorno (1998) e outros filósofos e filósofas, como Walter Kohan (2020) e suas reflexões, neste dossiê, sobre os tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica, para assinalar a desafiadora necessidade de compreensão do tempo histórico em que vivemos.
Retomamos uma ideia presente no livro de Hannah Arendt (2016), Entre o passado e o futuro, um título bastante sugestivo para este momento. O livro trata, entre outros temas, da autoridade, do fim da tradição e reflete abundantemente sobre o papel da educação. Arendt provoca a pensar, principalmente, no papel da educação frente às novas gerações, afirmando que:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2016, p. 147).
Situamos essa compreensão do amor pelas crianças na perspectiva ética e política que orienta o pensamento da filósofa. Retomamos essa perspectiva para tratar da questão dos impactos da pandemia na interface com a atenção à especificidade da Educação Infantil. Levaremos tal perspectiva como sustentação para as reflexões desenvolvidas nos dois eixos seguintes e a retomaremos, na conclusão, na intenção de problematizar sobre como temos respondido a essa interpelação de Arendt.
Abordar a especificidade da Educação Infantil assinala o risco da repetição, dado que essa assertiva não se constitui como novidade na pesquisa educacional (ROCHA, 1999), ainda que permaneça presente, como um ponto pujante, o debate sobre as suas apropriações no desenvolvimento da Educação Infantil, como uma política pública, integrada aos sistemas de ensino. Assim, esse debate continua fomentado pela observação de que a efetivação dessa premissa da especificidade nas práticas educativas cotidianas impõe novos desafios, continuando a mover as reflexões sobre os processos de (re)configuração da educação das crianças pequenas. Nesse movimento, entendemos que, sobretudo no contexto da pandemia, urge não perder de vista os princípios basilares, insistindo em uma repetição que pode fornecer as referências para a avaliação do curso das ações, concebidas nas urgências que se impõem.
A partir dessa lógica, um primeiro aspecto a ser considerado é que a suspensão das atividades em função do enfrentamento da situação de emergência de saúde pública (BRASIL, 2020a), no âmbito do estabelecimento de normas excepcionais para a educação (BRASIL, 2020b), gerou um conjunto de tomadas de decisões, provocando questionamentos quanto à garantia do direito à educação (ANPED, 2020b). Evidenciam-se dificuldades para respeitar as especificidades relativas às crianças de 0 a 61 anos e à Educação Infantil. No que tange a procedimentos, em alguns contextos, optou-se, de modo aligeirado, pela substituição das atividades presenciais com as crianças por atividades remotas, denominadas em alguns casos de educação a distância (EaD). Ainda que pareça de conhecimento comum a inadequação dessa proposta, foi necessário retomar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) - para explicitar que, para a Educação Infantil, a EaD não está prevista nem em casos excepcionais; desse modo, essa proposta é ilegal. A retomada desse princípio constituiu um marcador referencial importante, sustentando o debate e, sobretudo, a produção de manifestos, mobilizando associações de pesquisadores, movimentos sociais, sindicatos, organizações de famílias e outros coletivos (ANPED, 2020c; RNPI, 2020).
A análise dos manifestos informa que, ao argumento da ilegalidade, somam-se os princípios que orientam o trabalho pedagógico na Educação Infantil, os quais são caros pelo seu percurso de constituição, que tem como marca um intenso movimento em torno da defesa de uma Educação Infantil pública, gratuita, laica e de qualidade para todas as meninas e todos os meninos, direito proclamado a partir da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). Articulados a essa luta, observa-se que os indicadores2 atualizados informam que 72% das matrículas em creches e pré-escolas no Brasil se efetivam em redes públicas. Destacando as conquistas progressivas nos dados de oferta, cabe não invisibilizar os desafios que persistem na realidade brasileira para garantir o direito das crianças pequenas aos sistemas de ensino, sobretudo na faixa da creche (crianças de 0 a 3 anos).
Temos, portanto, um quantitativo considerável de crianças, famílias, profissionais e gestores do ensino que, em função da pandemia, são desafiados a tratar das possibilidades de encaminhar o trabalho educativo na Educação Infantil. Nesses desafios, junto à discussão dos procedimentos, ganha destaque a atenção aos princípios pedagógicos, que apontam na direção da defesa de Kohan (2020), da impossibilidade de fazer escola sem corpos presentes. Nessa associação, nos manifestos, além da LDB (BRASIL, 1996), evidencia-se o chamamento às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (BRASIL, 2009), que reúnem documentos centrais para a interlocução sobre as dinâmicas para encaminhar o processo educativo com as crianças.
A LDB (BRASIL, 1996) reconhece a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, que tem como objetivo o desenvolvimento integral das crianças. Essa definição é chave para problematizar as propostas de atividades remotas que primam pelo desenvolvimento cognitivo (mesmo para esse fim tem alcance questionável), desconsiderando que as crianças possuem um corpo, que elas têm emoções e que elas afetam e são afetadas pelos acontecimentos em seu entorno (COUTINHO, 2012). O fetiche pela garantia, para toda a Educação Básica, dos chamados “direitos de aprendizagem”, fragmenta a criança e desrespeita o seu direito à educação e ao cuidado de modo integral.
Nas DCNEI (BRASIL, 2009), reconhecidas na área como um documento basilar para o trabalho pedagógico, as crianças são compreendidas como sujeitos históricos e sociais, que produzem cultura. Nessa compreensão, o currículo é configurado como um conjunto de práticas que articulam os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental e científico. Nessa articulação, define como eixos da Educação Infantil a brincadeira e as interações. Tais princípios e eixos demarcam a especificidade da educação com as crianças pequenas. Como síntese, uma educação marcada pelas relações presentes na troca de fraldas de um bebê, nos momentos de alimentação, no acolhimento das crianças e das suas famílias, na contação de histórias, nas brincadeiras no parque, dentre tantas outras vivências cotidianas. Assim, é preciso marcar que, para as crianças, a relação com o mundo passa pelo corpo e pelas relações.
Embora se observem dificuldades do ponto de vista das decisões políticas que impactam a educação, como a ausência de uma coordenação por parte do Ministério da Educação (MEC) que respeite os princípios mencionados, o momento da pandemia tem mostrado o quanto a área está consolidada, se considerada a produção de conhecimentos e a presença desses conhecimentos em documentos basilares, que são acionados nos debates e nos enfrentamentos.
Assim, como síntese do eixo da especificidade da educação com as crianças pequenas, com esses documentos, é possível captar um amplo processo de interlocuções ligado à defesa da primeira etapa da Educação Básica, fomentando mobilizações. Obviamente esse processo se efetiva com uma gama de variáveis, intervenientes e interlocutores implicados, não sem tensões e intenções, com a participação das crianças no mundo, notadamente nos desafios situados nos contextos de confinamentos impostos pela pandemia. Nos limites deste texto, recortamos um conjunto de interlocuções que geraram mobilizações situadas na dialogia sobre a pauta da Educação Infantil (recuperando suas premissas basilares), conforme trataremos no próximo tópico.
Interlocuções e mobilizações
A observação do contexto indica uma intensa mobilização, envolvendo associações, fóruns, sindicatos, movimentos sociais, grupos de pesquisas e outros coletivos, encaminhando intensas problematizações. Além dos manifestos, para este texto, foi possível reunir um conjunto consistente de publicações, organização de lives e várias postagens em redes sociais. Se essa emergência pode ser também observada nas várias etapas e modalidades da educação, na Educação Infantil é possível captar uma organicidade, expressada em uma comunicabilidade, ainda que difusa, das assertivas que marcam as iniciativas.
Foram marcantes iniciativas a partir dos Fóruns Estaduais de Educação Infantil (elaboração de posicionamentos, reuniões, lives e outras) articuladas no Movimento Interfóruns de Educação Infantil (MIEIB) e em diálogo com outras entidades - tais como o Grupo de Trabalho Educação de Crianças de 0 a 6 anos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa (ANPEd), a Campanha Nacional do Direito à Educação, a União Nacional dos Conselhos de Educação (UNCME) e outras - e poderes públicos (Conselhos de Educação, Ministério Público e outros). Essa comunicabilidade ganha coesão a partir das premissas constantes dos documentos basilares (BRASIL, 1996, 2009), reafirmando essas premissas, em especial, no confronto a proposições que visam impor a EaD para as crianças pequenas. Nesse confronto, observamos parcerias no propósito de mapear as orientações e as ações desenvolvidas no âmbito da Educação Infantil no contexto da pandemia COVID-19. Tais mapeamentos, quando concluídos, mobilizarão novos debates, fomentando essa pauta no cenário social.
Entendemos essa mobilização no bojo da constatação de que, historicamente, padecendo de reconhecimento e de valorização (ROSEMBERG, 2003), a Educação Infantil é um campo que precisa ser aguerrido, atuando intensamente nos debates (ANPED, 2016). Sustentados nos princípios basilares da especificidade da Educação Infantil, com seu processo educativo próprio às crianças pequenas, como um amálgama, observa-se o destaque para os processos relacionais, culminando no reconhecimento de uma multiplicidade de desafios para a mobilização das interlocuções necessárias. Nesse movimento de interlocuções, destacam-se preocupações ligadas às crianças e suas famílias e às profissionais, no bojo da atenção às condições presentes no campo da Educação Infantil.
Interlocuções com as crianças e suas famílias
Como um primeiro desafio, captamos o reconhecimento da necessidade de estabelecer interlocuções sobre o que está acontecendo com as crianças, visto que a pandemia impõe a necessidade de tematizar sobre a fragilidade da vida (que precisa ser cuidada na e para além da pandemia). Para avançar na análise dessa questão, voltamos à Hanna Arendt e ao papel da educação. Se entendemos que as crianças, desde bebês, são atores sociais que não só se apropriam, mas significam o mundo, nós adultos temos o dever de assegurar as condições para que elas possam compreender o que acontece nesse mundo que elas habitam, compartilhando a vida conosco. É fato que, por vezes, é difícil, inclusive para os adultos, compreender o que acontece, mas reside aí mais um motivo para a escuta e o diálogo com as crianças, para a promoção de uma ética do encontro. Como preconizam Gunilla Dahlberg, Peter Moss e Alan Pence (2003, p. 204), “[...] trata-se de uma ética que emana do respeito pela criança e pelo reconhecimento da diferença e da multiplicidade e que luta para evitar transformar o Outro no mesmo que eu”.
Nessa perspectiva, instados pela pandemia, no campo educacional, emergem problematizações que assinalam que, em vez de sobrecarregar as crianças com atividades sem sentido para elas, as quais respondem mais aos anseios adultos, por que não as ouvir? Por que não dispor de um tempo de observação do que fazem? Por que não buscar outras linguagens para estabelecer diálogos afetivos e acolhedores com elas? Nessa direção, pudemos observar várias iniciativas em diferentes contextos; como exemplo, citamos o livro organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil e Infâncias e pelo Fórum Mineiro de Educação Infantil, que tem como título Carta às meninas e aos meninos em tempos de COVID-19 (FMEI; NEPEI/FaE/UFMG, 2020). Trata-se de uma produção cuidadosa do ponto de vista estético (com um texto leve e ilustrações primorosas), ético e político, pelo compromisso de informar as crianças sobre a pandemia, suas implicações e suas consequências.
Esse movimento de interlocuções vem se fazendo também com a observação da necessidade de intensificar a aproximação com as famílias, entendendo que o tema da relação entre as instituições de Educação Infantil e as famílias é sempre desafiante pela diversidade e pela desigualdade que marcam os diferentes contextos. Um ponto importante dessa questão é o reconhecimento de que a Educação Infantil não é só um direito das crianças, mas é também um direito dos trabalhadores e das trabalhadoras, das famílias, como prevê a Constituição Federal (BRASIL, 1988). Esse aspecto, da dupla titularidade do direito (RIZZI; XIMENES, 2010), é um dos pontos que mais tensiona a retomada das atividades presenciais, tendo em vista que, além da compreensão que o isolamento afeta a vida das crianças, porque elas não têm acesso a um contexto intencionalmente planejado para o seu encontro com outras crianças e adultos, há ainda a demanda social por um lugar de educação e cuidado para a permanência das crianças para que os adultos possam trabalhar, principalmente as mulheres. Diante da precariedade das políticas sociais, muitas famílias se veem sem alternativas de cuidado às crianças pequenas, e esse é um tema importante do debate.
Outro aspecto é quanto às possibilidades de estabelecer relações com as famílias no contexto da pandemia. Como apontam as DCNEI (BRASIL, 2009), é preciso respeitar as formas de organização familiar, que tem uma dinâmica diferenciada das instituições, e o diálogo com as famílias é um dos preceitos da complementariedade e do compartilhamento que constituem o universo da Educação Infantil. Assim, advogar a inadequação da proposição de EaD na Educação Infantil não significa afirmar a interrupção das relações, demandando o planejamento de modo cuidadoso e atento à educação e cuidado das crianças, famílias e profissionais. Tal perspectiva se assenta na defesa de diálogos com as famílias a partir da escuta de como tem sido o cotidiano com as crianças, as suas dificuldades, os seus medos e as suas expectativas. Compartilhar com as famílias informações sobre os seus direitos de provisão e de proteção, sobre as experiências que compõem o dia a dia da creche e da pré-escola também pode ser um caminho interessante, de troca, de crescimento e de estreitamento das relações (COUTINHO; CÔCO, 2020). Um caminho que implica a atenção também às profissionais.
Interlocuções com as profissionais
Nesse processo relacional, se todos os profissionais da educação foram impactados, cabe enfatizar que, na Educação Infantil, a questão da docência sofreu contornos mais complicados. Em uma analogia da pandemia como uma lente de aumento, que nos convoca a mirar os problemas que há muito existem e que agora ganham uma dimensão ainda maior, esse é evidentemente o caso das profissionais da Educação Infantil. Os indicadores de provimento de pessoal indicam que as profissionais da Educação Infantil são, no quadro geral da educação, as que historicamente têm menorstatussocial, dada a lógica de que quanto menor a criança, menor o prestígio e o salário da profissional que a educa (CAMPOS, 1999).
Nesse contexto histórico de baixa valorização profissional (CÔCO, 2015), os materiais reunidos para este texto permitem constatar que as profissionais lidam, neste momento, com um vasto conjunto de elementos que precarizam ainda mais a sua condição de trabalhadoras da educação: muitas profissionais tiveram seus contratos suspensos; outras cancelados; algumas tiveram seus salários reduzidos ou receberam ameaças de que isso ocorreria caso não desenvolvessem atividades a distância com as crianças, mesmo sem condições para tal, como denunciado por Correa e Cássio (2020), em produção situada no contexto da pandemia.
No caso da Educação Infantil, a presença massiva de profissionais mulheres convoca o debate sobre a desigualdade de gênero. Em tempos de isolamento social, as mulheres estão sobrecarregadas com as demandas domésticas, com os filhos e as filhas e demandas profissionais. Muitas lidam, ainda, com limitações materiais para a manutenção da vida e para o desenvolvimento do seu trabalho, quando ele exige, por exemplo, equipamentos eletrônicos e acesso à internet. Não podemos esquecer que, na Educação Infantil, além das professoras, são comuns cargos que correspondem ao que denominamos auxiliares (CÔCO, 2010), geralmente com salário muito inferior ao da professora e nem sempre pertencentes aos quadros do magistério. Ainda, cabe atentarmos para estudos, como os desenvolvidos por Alves e Pinto (2011) e Alves e Sonobe (2018), que demonstram que, quando comparada com os profissionais de outras áreas com a mesma formação, a remuneração das profissionais da Educação Básica, em especial da Educação Infantil, está muito abaixo, com intensa presença de vínculos trabalhistas precários.
Nesse sentido, para avançar no tópico das interlocuções, no que tange à dialogia com as profissionais, importante destacar que, para cuidar do outro, é preciso cuidar de si, portanto as professoras precisam ser ouvidas e a sua voz precisa ser considerada nas tomadas de decisão, visto que vivem, por dentro, as “verdades” da Educação Infantil no contexto da pandemia (BASÍLIO, 2020).
Assim, concluindo o tópico das interlocuções e das mobilizações que instam o campo da Educação Infantil, é necessário incluir também um ponto importante, relativo às condições que marcam esse campo de trabalho, visto que não se faz educação de qualidade sem financiamento. Se já temos um quadro de baixos salários e carreira pouco atrativa para a Educação Infantil, o que será do nosso futuro sem um financiamento adequado? Essa questão também se coloca no contexto da pandemia, porque estamos em um momento crucial de definição do novo Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Daí, também se soma à luta por um Fundeb que permita a melhora da qualidade da oferta da Educação Infantil, ou os problemas que a lente da pandemia tornou mais visíveis se acentuarão consideravelmente em futuro próximo.
Nesse quadro, evidencia-se o necessário convite ao enfrentando dos desafios, integrando as mobilizações parceiras das crianças, das famílias e das professoras. Nessa direção, cabe lembrarmos a “mensagem de um outro mundo possível”, na direção de romper com as inevitabilidades, entendendo que as coisas podem ter caminhos diferentes (KRENAK, 2019, 2020), em especial, para avançar nos compromissos com as crianças, considerando também as discussões que já se iniciam sobre os retornos na Educação Infantil.
Iniciativas a serem encaminhadas na Educação Infantil pós-pandemia
Para tratar dos nossos compromissos com as crianças e da vida no pós-pandemia, as ideias de Krenak (2019, 2020) nos provocam a pensar sobre quem são os excluídos ou, como ele denomina, as sub-humanidades - para nós, as pessoas com as quais verdadeiramente temos de nos preocupar. Quando se trata das crianças de 0 a 6 anos, precisamos discutir as condições de vida das que estão nas instituições de Educação Infantil, mas não podemos esquecer do amplo contingente de crianças que está fora desse atendimento. No caso das crianças de 0 a 3 anos, cerca de 64,3% delas não estão matriculadas em creche (INEP, 2020). Se analisarmos esses dados de modo desagregado por idade, veremos que a situação é muito grave para as crianças menores de um ano. Ainda que a matrícula em creche seja uma opção das famílias, as longas listas de espera e os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, acerca dos cuidados com as crianças de 0 a 4 anos, mostram-nos que aproximadamente 60% das famílias que não têm seus filhos e suas filhas matriculados/as em creche desejam uma vaga (IBGE, 2017). A questão é onde estão essas crianças que estão fora da creche? Quais são as suas condições de vida? A maioria está em domicílios com rendimentos per capita variando de nenhum rendimento a menos do que um salário mínimo, como bem destaca mais uma produção situada no contexto da pandemia (SOUZA et al., 2020).
Assim, na direção da luta, tendo como horizonte um outro mundo possível, do ponto de vista da pesquisa, consideramos a necessidade de intensificar os estudos que Fúlvia Rosemberg, de modo pioneiro, iniciou na década de 1970, quando estudou raça e geração, tomando a literatura e a infância como categorias de análise. Seus estudos seguiram confrontando categorias sociais como gênero, raça, classe e geração (ROSEMBERG, 1999, 2014, 2015). Em uma perspectiva mais contemporânea, precisamos avançar nos estudos interseccionais. Há grupos de pesquisa3 que já desenvolvem esses estudos, inclusive há bastante tempo, mas, diante das desigualdades que marcam as realidades de vida das crianças, ampliar as análises de problemáticas relacionadas à infância e a outras categorias estruturais que atuam na sua subordinação é urgente.
Do ponto de vista da política, evidenciamos algumas medidas necessárias. A importância do diálogo com os atores diretamente envolvidos, por meio de comissões locais, avançando na avaliação das condições de vida das famílias e das crianças nesse período de suspensão das atividades escolares, garantindo que os direitos de provisão e de proteção sejam assegurados, principalmente à alimentação, e atuando também para que os empregos das profissionais sejam protegidos.
Do mesmo modo, mostra-se fundamental planejar protocolos de retorno de maneira dialogada, levantando as questões que cercam essa situação que, em algum momento que ainda não é possível definir, acontecerá. A experiência de outros países vem indicando que, mesmo com o declínio da curva de contágio, o retorno das crianças pequenas às instituições implica reconhecer desafios a serem enfrentados com decisões que não podem abdicar do respeito aos direitos fundamentais das crianças, das famílias e dos educadores (CAMPOS et al., 2020). A proposta de comissões intersetoriais permitiria a ponderação de aspectos tanto do ponto de vista sanitário quanto das especificidades pedagógicas da Educação Infantil. Há um Projeto de Lei (PL 02949/2020)4 tramitando na Câmara dos Deputados que faz essa proposição. Precisamos acompanhar tal proposta e incidir localmente para que as redes de ensino públicas e instituições privadas planejem e implementem de modo responsável o retorno às atividades, para não repetir o erro das tomadas de decisão aligeiradas que observamos com a suspensão das atividades nas instituições educacionais.
Por um lado, a pandemia convoca-nos a pensar sobre a proteção à vida, escancarando as desigualdades; e, de outro lado, a também reconhecer os movimentos potentes, capazes de, em meio às agruras, mostrarem-se presentes nas lutas em defesa da justiça social. Em uma lógica de romper com as inexorabilidades, chamamos a caminhar no pós-pandemia na direção de atuar, afirmando investimentos de qualificação da Educação Infantil, enfrentando os retrocessos. Um convite que marca o luto também como verbo, importante no compromisso com as crianças.
Considerações finais
No propósito de advogar a centralidade da preservação da vida, associada ao zelo por processos democráticos, com dados contextuais, propomos reflexões associadas aos eixos da especificidade da educação com as crianças pequenas, das interlocuções necessárias nesse período e da atenção com as iniciativas a serem encaminhadas na pós-pandemia.
Vimos que as decisões aligeiradas marcam retrocessos, evidenciados em alinhamentos ao discurso do desenvolvimento de competências e de habilidades que sugerem centralidade no repasse de conteúdo (desconsiderando as necessidades, os direitos e os interesses das crianças). Exigem das professoras dominar meios, planejar e propor atividades sem terem condições para tal e requerem das famílias se ocuparem de uma tarefa que não é sua (pela natureza pedagógica do trabalho educacional) e disporem de meios que estão ausentes em grande parte dos lares brasileiros. Na busca por enfrentar esses retrocessos, captamos um movimento ativo no campo da Educação Infantil, sustentado nas premissas basilares para o trabalho educativo com as crianças, que vêm sendo esvaziadas nessas decisões que não prezam pelas interlocuções com as crianças, famílias e profissionais. Assim, para concluir, assinalamos que a pandemia nos convoca a manter a vigilância. Destacaremos três pontos que julgamos mais evidentes.
O primeiro é quanto ao tema da geração. O lugar, ou o “sublugar”, para fazer coro com a ideia de sub-humanidade do Ailton Krenak, dos sujeitos nas sociedades industriais e ocidentais é destacado quando a morte se coloca como um risco que nos envolve de modo permanente. Recuperamos uma frase da Neusa Gusmão, importante antropóloga brasileira, quando trata do lugar da infância e da velhice, porque diz muito sobre as políticas governamentais para esses grupos geracionais:
A sociedade moderna, com sua noção de tempo presente e fugaz, não permite perceber e compreender o alcance de nossas atitudes, de nossas lutas, de nossas histórias vividas. Mais ainda, não as reconhece. Essa sociedade nega, assim, a voz aos velhos e suas experiências e, se faz algoz das crianças e de sua infância. Um porque já não é mais - adulto, capaz, produtivo - outro, porque ainda não é - adulto, capaz, produtivo... (GUSMÃO, 2003, p. 23).
A compreensão das relações estabelecidas em um contexto de crise sanitária, que afeta de modo direto a educação e o cuidado, exige a análise dos diferentes lugares sociais ocupados por velhos, adultos e crianças a partir do seu pertencimento e reconhecimento geracional. Na intenção de reposicionar a ideia de geração a partir da maturidade e da força de trabalho, como aponta Gusmão (2003), apoiamo-nos na concepção de geração como interdependência (WYNNES, 2012). Desse modo, tanto as crianças e os velhos dependem dos adultos, como estes se constituem nas relações com a infância e a velhice. A perspectiva das relações geracionais interdependentes, oferece uma chave-analítica importante, pois reposiciona crianças, adultos e velhos, buscando superar a ideia de subordinação de uma categoria em relação à outra, para a constituição de relações alteritárias.
Tomar as relações de interdependência como referência permite ainda considerar, a partir das perspectivas diacrônica e sincrônica, que o lugar que ocupamos no mundo, na qualidade de grupos geracionais com marcas de classe, étnico-raciais, culturais, de gênero, é construído e, por isso, pode e deve ser a todo momento questionado. No caso das crianças, posicionamo-nos em defesa do reconhecimento de que são sujeitos sociais e que constituem grupos geracionais com relativa autonomia na produção de cultura, tendo em vista que todo processo de produção guarda em si alguma reprodução, sendo tais grupos profundamente afetados por fatores de desigualdade social, como já indicamos ao longo do texto.
A partir da categoria geração, destacamos um segundo aspecto, as crianças como sujeitos políticos, que são afetados pelas decisões, mesmo por aquelas que não estão focalizadas nesse grupo geracional, mas que trazem consequências para a sua vida. Por isso, a importância da tese central do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei No 8.069, de 13 de julho de 1990: as crianças como prioridade absoluta, que devem ser protegidas e ter seus direitos à vida, à saúde, à alimentação e à educação assegurados pelo Poder Público, pela família e pela sociedade de modo geral (BRASIL, 1990). Aqui, o lugar que o direito à vida ocupa é importante, não só a vida que é preservada frente a um inimigo invisível como o Coronavírus, mas também a um inimigo visível, como o Estado genocida, que mata pobres, negros e negras, indígenas, quilombolas, povos do campo, mulheres, travestis, crianças...
Assim, ao avançarmos para o terceiro aspecto, voltamos à Arendt (2016), para indagar quem são as crianças que (não) abandonamos aos seus próprios recursos? Quando o próprio Estado mata as crianças (impondo a fome, a violência, a negação dos direitos sociais e outras injustiças), só podemos concluir que algo deu muito errado com a humanidade. Daí, esperamos que a nossa resistência e nossa luta vençam essas barbáries.
Entendendo que uma última palavra nunca está dada, porque é sempre possível construir novos dizeres (BAKHTIN, 1992), trazermos, para este texto, reflexões decorrentes da reunião de materiais que informam a luta presente no campo da Educação Infantil, em diálogo com as políticas governamentais, também tem o compromisso político de visibilizar um pouco das energias que, fazendo frente às injustiças e às desigualdades, nutrem a mensagem de um outro mundo possível (KRENAK, 2019, 2020). Nessa visão panorâmica, com um levantamento não finalizado (porque continuamos em um quadro de pandemia, requerendo manter ativas as mobilizações), buscamos assinalar que as questões relacionadas à Educação Infantil vêm incitando os debates no contexto social.
Com uma visão globalizante dos atos humanos, proposta por Bakhtin (2010), assinalamos todo um complexo de valores impregnado nas discussões, com responsividades ativas e responsivas, não sem imposições de silenciamentos e de impossibilidades de dizer. Nesse movimento, recuperam-se sentidos sociais construídos previamente (por vezes, acionando as premissas basilares da base legal da Educação Infantil) e movem-se novos sentidos (em face das normativas decorrentes do enfrentamento à pandemia, em interface com os múltiplos interesses que marcam as disputas em torno da educação), impulsionando as manifestações, sejam dirigidas às crianças e suas famílias, aos profissionais, aos gestores do ensino e ao contexto social mais amplo, sejam respondendo às suas interpelações.
No conjunto desse intenso - e tenso - debate, evidenciam-se os - distintos - esforços para interferir no curso das ações, visto que “[...] o mundo como evento não é simplesmente um dado indiferente; está sempre relacionado com algo ainda por ser alcançado” (TEZZA, 2003, p. 184). No entendimento de um futuro que não está predeterminado e desacreditado pela existência, com este texto, insistimos em evidenciar os empenhos em atuar, tendo como horizonte uma temporalidade que não se constitui na continuidade da mesma vida (de desigualdades), mas um futuro em que é sempre possível e necessário transformar formalmente essa vida (BAKHTIN, 1992, p. 136). Assim, em meio a essa pandemia, reiteramos o convite a nutrir o luto como verbo, em especial na direção da defesa do direito à educação, entendendo que esse momento de excepcionalidade não pode ser utilizado para esvaziar as - ainda que incipientes - conquistas expressas nos princípios basilares da Educação Infantil, que afirmam a sua especificidade.