Introdução
Durante os anos de 1980 e 1990, a noção de classe social perdeu espaço nos debates sociológicos (e políticos) que tratavam da realidade de países europeus e norte-americanos.1 O colapso dos governos comunistas e o fim da Guerra Fria e, nos países ocidentais, a desindustrialização, a democratização dos sistemas de ensino ou “explosão escolar”, o aumento dos níveis salariais e a consequente ampliação de uma classe média foram fatores mobilizados pelos sociólogos para explicar o distanciamento ou abandono da categoria analítica (CHAUVEL, 2001)2. Novas reflexões sobre classes sociais e os mecanismos de distinção entre elas podem, certamente, ser lidas, nesse período, nos trabalhos de Bourdieu e dos sociólogos próximos a ele3, que criticam e complexificam a interpretação economicista de Marx4. No entanto, o recuo na cena intelectual da noção, especialmente na Sociologia Francesa (DUBAR, 2003), foi tal que se fala de um “eclipse” do termo nesse período (MAUGER, 2013; BEAUD, 2007).
O “retorno das classes sociais” na Sociologia Francesa, para usar uma expressão de Louis Chauvel (2001), deu-se no final dos anos de 1990, sobretudo por meio de análises sobre grupos de “classe popular”, termo que, pouco a pouco, se impôs no debate acadêmico e midiático, substituindo-se ao de “classe operária” (SCHWARTZ, 2011)5. Diversos pesquisadores passam mais sistematicamente a reivindicar a validade de falar-se sim de classes populares em uma sociedade desindustrializada, abordando justamente transformações e reconfigurações da realidade dessa camada da população. Trabalhos que fizeram data abordaram então a “vida privada dos operários” (SCHWARTZ, 1990; WEBER, 1989), suas condições laborais em período de desindustrialização e a crise na militância (BEAUD; PIALOUX; 1999 [2009])6, retrataram a “França dos mal pagos” (CARTIER et al., 2008) e os “populares rurais” (RENAHY, 2005; COQUARD, 2019).
No âmbito desse retorno do interesse das Ciências Sociais francesas pelas classes populares, não por acaso, vemos vários estudos dedicados à educação e às desigualdades sociais na escola e no Ensino Superior, retomando as temáticas desenvolvidas por Bourdieu e Passeron (1964 [2014], 1970 [2008]) e Bourdieu e Champagne (1992 [2018]). O objetivo deste artigo é apresentar alguns desdobramentos recentes dessa discussão, que aproxima a Sociologia da educação e da mobilidade social. Faremos isso analisando o trabalho de três autores que se debruçam, em estudos recentes e pouco disseminados no Brasil, sobre a experiência de jovens de classes populares que ingressaram no Ensino Superior: Stéphane Beaud, Paul Pasquali e Fabien Truong7. Eles se inscrevem em uma Sociologia pós-bourdieusiana, incarnada por Margaret Archer, Luc Boltanski e Bernard Lahire, tal como ela foi analisada por Jean-François Véran e Frédéric Vandenberghe (2016). Beaud, Pasquali e Truong, ao lado ou seguindo os passos de Lahire, desenvolvem uma Sociologia profundamente empírica, trabalhando em um nível “microssócio-biográfico” (VÉRAN; VANDENBERGHE, 2016, p. 12) para entender percursos de jovens do final do Ensino Médio até a entrada na vida ativa8.
Começaremos apresentando esses três autores, de forma a mostrar as conexões entre eles e explicitar as bases teóricas e metodológicas de suas pesquisas. Nosso objetivo é fazer um mapeamento das redes de relações acadêmicas e dos questionamentos sociológicos nos quais os autores se inscrevem, tornando aparente o background que sustenta seus programas de pesquisa. Em uma segunda parte, destacaremos três pontos: o léxico empregado pelos autores para tratar da mobilidade social “em processo”, o papel dos mediadores (“passeurs culturels”) e dos “pequenos capitais” nas trajetórias ascensionais dos jovens, e, por fim, o que os autores pensam como “arranjos práticos” implicados no exercício de passagem das fronteiras sociais, afastando-se, assim, da perspectiva dominante de análise desse tema, que sublinha o alto custo emocional dos deslocamentos no espaço social.
Três pesquisadores da juventude popular urbana francesa
Se pensarmos como Bourdieu (2001), de Science de la science, Beaud, Pasquali e Truong compartilham um mesmo “inconsciente escolar”9 ligado a uma disciplina, a Sociologia, tal como ela é ensinada em duas importantes instituições de Ensino Superior na França, a École Normale Supérieure (ENS) e a Écoles des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Ali, a prática sociológica é pensada em um diálogo estreito com outras disciplinas das Ciências Sociais e, em particular, com a Antropologia. Os três realizaram seus estudos nessas instituições, Stéphane Beaud, o mais velho dentre eles, deu aulas na EHESS muitos anos e foi o orientador de Doutorado de Truong e Pasquali.
Beaud é atualmente professor de Sociologia na Universidade de Poitiers. Ele iniciou sua carreira trabalhando em parceria com Michel Pialoux, estudando operários nas usinas Peugeot nos anos de 1980 e 1990, diversos deles migrantes ou descendentes de migrantes (BEAUD; PIALOUX, 1999 [2009])10. Já, neste estudo, foi significativa a atenção dada à relação dos operários com a escolarização e a formação profissionalizante de seus filhos11. Na continuidade, Beaud focalizou sua atenção na realidade de jovens de camadas populares, sobretudo jovens “oriundos da imigração”, ou seja, filhos e netos de imigrantes, e sua relação com os estudos (BEAUD, 1997, 2002; AMRANI; BEAUD, 2005). Pesquisou também sobre o futebol e a seleção francesa (BEAUD, 2011, 2014), pensando o esporte como marcador de classe e como um revelador de tensões societais (sobre o lugar dos imigrantes na sociedade francesa, sua integração ou não, o que seria a “identidade nacional”, etc.). Um dos traços característicos do trabalho de Beaud, assim como de Michel Pialoux, é a preocupação não somente de escutar seus interlocutores (postura básica de todo etnógrafo), mas de pensar verdadeiramente questões de pesquisa junto a eles, trocando cartas (ou e-mails, SMS), discutindo sobre intepretações no desenrolar da pesquisa e publicando em coautoria (COROUGE; PIALOUX, 2011; AMRANI; BEAUD, 2005 12).
Depois de ter descrito trajetórias de filhos de imigrantes marcadas por dificuldades e insucesso (escolar e profissional), em seu mais recente livro, Beaud (2018) toma praticamente o sentido contrário e apresenta-nos a história de uma família oriunda da imigração (pais argelinos e oito filhos, dos quais cinco nascidos na França) que “deu certo”. As cinco irmãs da família concluem seus estudos universitários e inserem-se rápida e duravelmente no mercado de trabalho, e os três irmãos, apesar de não ingressarem na faculdade, conseguem com ajuda das irmãs postos de trabalho, todos tendo uma trajetória de ascensão social, mesmo que de amplitudes diferentes. Nesse livro, reencontramos uma característica que estrutura também outros de seus trabalhos (assim como os de Truong e Pasquali) que é o fato de se apoiarem em pesquisa longitudinal, acompanhando seus interlocutores durante um período mínimo de cinco anos. As categorias de “trajetória” e de “processo em curso” tornam-se, por isso, centrais.
Fabien Truong é professor de Sociologia na Universidade de Paris 8 e no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po Paris), e Paul Pasquali é pesquisador no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Além de terem estudado nas mesmas instituições, ENS e EHESS, os dois jovens sociólogos também partilham o fato de terem origens sociais humildes, com pais pouco diplomados – trajetória de mobilidade social que, como se sabe, foi aquela de Bourdieu e também de Passeron (PASSERON, 2007; BOURDIEU, 2004 [2005]). Truong e Pasquali debruçam-se sobre suas origens em seus textos, em um exercício de reflexividade ainda mais central no caso deles por terem tomado como objeto de estudo os percursos de jovens de origem popular – alguns eram seus ex-colegas de turma, no caso de Pasquali; outros, seus ex-alunos, no caso de Truong, que foi professor de Ensino Médio na periferia de Paris antes de se tornar professor na Universidade.
Para além da experiência na Universidade, Truong interessa-se pelo cotidiano dos jovens de banlieue (periferia), suas vidas nas cités (bairros populares, onde se concentram conjuntos habitacionais e moradores imigrantes ou descendentes de imigrantes), suas experiências de desemprego e carreiras na delinquência (TRUONG, 2013, 2017), e, também, o engajamento (ou “radicalização”) no Islã de uma parte desses jovens (TRUONG, 2017). No livro que nos interessa mais de perto aqui, Jeunesses françaises: Bac+5 made in banlieue (2015), ele combina a “participação observante” (WACQUANT, 2002) em liceus de banlieue, onde ensinou de 2005 a 2010, com uma pesquisa em que acompanha, do final do Ensino Médio até a entrada na vida ativa, 20 de seus ex-alunos que ingressaram em algum tipo de instituição do Ensino Superior13. A segunda fase da pesquisa é baseada em entrevistas repetidas com os estudantes, seus pais, colegas e professores e em novas “participações observantes”, que ele faz agora enquanto professor universitário. Ela se estende de 2010 a 2015. Truong realizou também, em 2019, um documentário em parceria com o cineasta Mathieu Vadepied, continuando a pesquisa iniciada em Bac+5 (LES DÉFRICHEURS, 2019).
Paul Pasquali dedica-se a entender a mobilidade social a partir do caso de estudantes de famílias populares que acedem às instituições as mais seletivas de Ensino Superior francês. Sua pesquisa, apresentada mais longamente em Passer les frontières sociales. Comment les filières d’élite entrouvrent leurs portes (2014), foi realizada em um curso preparatório (classe préparatoire)14 no interior do país que tem um programa de “abertura social” (ouverture sociale), para o qual são selecionados jovens oriundos de escolas públicas de periferia. Em sua etnografia, Pasquali realizou observações na classe préparatoire e nos liceus de onde vêm os alunos, teve acesso aos dossiês acadêmicos dos estudantes (dados de desempenho, avaliações, cartas de motivação elaboradas para o processo seletivo de ingresso), realizou entrevistas repetidas com 28 estudantes durante cinco anos (total de 82 entrevistas), elaborou e aplicou um questionário para o conjunto de ingressantes da classe préparatoire de 2009 (507 estudantes), além de conversas informais e trocas de e-mails e mensagens com os estudantes. Junto a Beaud, Pasquali e Truong criaram e dirigem a coleção Envers des Faits, na editora La Découverte. Com a ideia de examinar os fatos “pelo lado avesso” (envers), eles insistem no compromisso das ciências sociais de ir além do senso comum, do “prêt-à-penser”, das “falsas evidências”, retomando um princípio da sociologia crítica de Bourdieu.
Revisitando Bourdieu-Passeron, continuando Lahire: fundamentos teóricos e metodológicos
Entre os anos de1960 e 1970, diversos membros do Centre de Sociologie Européenne (CSE), dentre os quais Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, desenvolveram uma reflexão sobre a educação e o sistema escolar, ancorada na tradição durkheimiana (PASSERON, 2007). Os resultados desses trabalhos, e em particular das obras que se tornaram clássicas, Os herdeiros (BOURDIEU; PASSERON, 1964 [2014]) e A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 1970 [2008]), foram amplamente discutidos por pesquisadores de diferentes disciplinas de ciências sociais15 e alcançaram também um público não universitário. As relações causais entre origem social e sucesso escolar e a importância do papel do “capital cultural” nesse sucesso foram demonstradas e discutidas de maneira absolutamente inovadora para a época16. No apêndice de A reprodução,Bourdieu e Passeron (1970, p. 255-267) já questionam o uso do termo “democratização” para falar da ampliação do acesso ao Ensino Superior, mostrando, a partir de dados estatísticos, como a entrada de jovens de classe popular na universidade se opera de tal forma que eles acedem somente aos segmentos menos seletivos e prestigiosos do Ensino Superior; a estrutura hierárquica, portanto, não se dissolve nem é subvertida.
Mais de 50 anos depois dessa constatação, a expressão “democratização escolar” (também dita “massificação do Ensino Superior”) ganhou ainda mais espaço no campo acadêmico, político e midiático francês. Ela se refere, hoje, ao crescimento exponencial da porcentagem de jovens que obtém o baccalauréat e ingressam na Ensino Superior17. A despeito desse aumento, a segmentação no interior do sistema de Ensino Superior francês continua tão aguda quanto nos anos de 1960, senão mais (FROUILLOU, 2017; VAN ZANTEN, 2015), o que conduz Pierre Merle (2000) a falar de uma “democratização segregativa”18.
Mesmo interessando-se por casos atípicos de êxito acadêmico e mobilidade social, Beaud, Troung e Pasquali não refutam de modo algum esse paradigma sociológico. Para eles, não há como escapar até hoje ou, talvez, ainda mais hoje, da explicação pela origem social para entender as pesadas tendências que aparecem nos dados estáticos atuais. Eles consideram fundamental desconstruir o discurso meritocrático difuso na sociedade e endossado tanto por “experts” da escola, quanto por homens políticos, da direita e da esquerda, sem falar dos próprios alunos e estudantes19. Os três autores inscrevem-se, assim, em uma Sociologia que descreve o processo de produção social das ações individuais e refutam interpretações em termos de “talentos naturais”, “vocação” e “livre arbítrio” para explicar as escolhas feitas e o desempenho de alunos e estudantes; apropriam-se do conceito de “capital cultural” e examinam suas formas concretas de existência na vida de seus interlocutores. Entretanto, esses trabalhos tomaram a virada que Bernard Lahire fez sofrer à teoria bourdieusiana.
Em seu programa por uma “sociologia em escala individual”, Lahire (2003) sugere que, ao se concentrar na afirmação (e na denúncia) da existência da reprodução, Bourdieu pouco nos diz sobre o “como” da reprodução, sobre as modalidades concretas de socialização que asseguram sua perpetuação. Para isso, defende, é indispensável descer à escala individual, dando “corpo”, por meio da descrição etnográfica ou historiográfica, aos mecanismos de transmissão do capital cultural. Lahire (1995 [1997]) sugere também descentrar o olhar que, na Sociologia da Educação, costuma se focalizar nas escolas e nos sistemas escolares para incluir “as modalidades práticas da socialização nas famílias” (LAHIRE, 1995, p. 12) – o papel dos pais, mas também dos irmãos, tios, avós e mesmo vizinhos20. Se Bourdieu e Passeron perguntaram-se o que, nos sistemas escolares, faz com que a reprodução seja a regra, Lahire pergunta-se o que, no cotidiano de famílias de grupos populares, permite que a reprodução efetivamente aconteça, ou então que ela seja, mesmo que parcialmente, rompida. Ele confere assim uma outra densidade à noção de “disposição”, propondo uma “sociologia dos processos de constituição das disposições sociais” (LAHIRE, 1995, p. 31). Incluir essa dimensão, das “dobras singulares do social” (LAHIRE, 2013), como ele diz, não significa, no entanto, abrir mão da análise macrossociológica (dados estatísticos, história social na qual cada trajetória individual se insere).
Lahire está longe de estar sozinho a defender essa combinação de escalas de análise. Há, na verdade, uma tradição já consolidada de pesquisa e ensino da Sociologia qualitativa francesa, particularmente presente na EHESS e na ENS. Stéphane Beaud é também um defensor dessa postura e tem inclusive um papel de destaque, tendo coordenado, em parceria com sua colega Florence Weber, um seminário de metodologia por anos na EHESS, durante o qual incitavam, nas palavras de Gramain e Weber (2001), a realizar uma “cooperação empírica” entre o que habitualmente é pensado e usado de maneira exclusiva (ou produção e dados estatísticos ou etnografia). Beaud e Weber escreveram, juntos ou separadamente, sobre questões metodológicas (BEAUD; WEBER, 1997 [2007], 2010 [2015]; BEAUD, 1996; WEBER 1995; GRAMAIN; WEBER, 2001) e seu Guide de l’enquête de terrain (BEAUD; WEBER, 1997 [2007]), usado na formação de jovens sociólogos e antropólogos, tem sido reeditado na França desde sua aparição em 1997. Ele foi traduzido para o português em 2007, e também reeditado, em 2014.
Explicitando essas conexões e as redes de colaboração científica sobre as quais se apoia a pesquisa, vale aqui mencionarmos a figura tutelar de Jean-Claude Chamboredon, cujo falecimento em 2020 fez aparecer uma série de homenagens ao coautor, com Bourdieu e Passeron, de Métier de Sociologue (1968). Integrante de CSE até 1977 e próximo de Bourdieu na primeira parte de sua carreira, Chamboredon foi orientador de Doutorado de Stéphane Beaud e professor estimado de Florence Weber na ENS, onde ele coordenou a criação do Mestrado em Ciências Sociais (ali onde Weber e Beaud conduziam seu seminário de metodologia). Em um projeto sobre a história das pesquisas empíricas da Sociologia na França, é atualmente Paul Pasquali quem tem se debruçado sobre seus arquivos. Os princípios de trabalho instaurados por Chamboredon, “[...] abertura de diálogo entre as diferentes disciplinas nas ciências sociais; rigor da investigação empírica; domínio de diferentes métodos (arquivos, etnografia e estatística) e sua combinação; entusiasmo com pesquisa coletiva” (WEBER, 2015, p. 7) são ainda sem dúvida norteadores do trabalho pelo menos desse conjunto de autores aos quais nos referimos aqui.
Esses princípios se materializam também em dispositivos metodológicos de produção e de apresentação dos dados empíricos. Assim, Beaud (2002, 2018) como também Lahire (1995 [1997], 2002 [2004], 2019) escolhem apresentar seus dados sob a forma de retratos de indivíduos e suas famílias, com intuito de mostrar ao mesmo tempo as singularidades dos processos de socialização e o contexto sócio-histórico onde se desenvolvem. Além dos dados estatísticos e históricos, apoiam-se em longas entrevistas com seus interlocutores e em algumas observações, sem que se permitam classificar seu próprio trabalho de etnográfico (já que não há a clássica imersão em campo do pesquisador)21. Beaud acompanha, no entanto, seus interlocutores por mais tempo (entre cinco e dez anos), o que fazem também Pasquali e Truong. Portanto, os quatro autores recolhem, em suas pesquisas qualitativas, dados longitudinais (consideram a evolução da trajetória ao longo do tempo), mas onde Lahire opera sobretudo por retrospectiva (interroga os indivíduos sobre seu passado), Beaud, Pasquali e Truong o fazem tanto de forma retrospectiva quanto prospectiva (contatos repetidos ao longo do tempo com os mesmos indivíduos)22. Ademais, as entrevistas de Pasquali e Truong inserem-se em suas etnografias. Sabendo que o interesse de Pasquali e Truong é de investigar a mobilidade social “em processo”, entendemos a importância de seguirem seus interlocutores durante anos, e justamente do final de Ensino Médio e os anos no Ensino Superior, quando as carreiras de mobilidade “engatam” ou não.
Ainda do ponto de vista metodológico, vale destacarmos o esforço de Pasquali em combinar dados da sua etnografia com a produção (e não somente análise) de dados estatísticos. Ele construiu e aplicou junto ao conjunto de estudantes da instituição onde pesquisou o que chamou de “questionário etnográfico”, já que o instrumento foi elaborado levando em conta o que etnografia já havia permitido apreender (termos vernaculares, temas e maneiras de abordá-los)23.
Dar conta das irregularidades sociais
Essa inflexão em direção a uma apreensão sociológica das trajetórias individuais permite, e podemos pensar que ela estimula, a análise de casos atípicos. Estudar os fenômenos sociais “majoritários”, mostrar e explicar as “regularidades sociais” e evidenciar leis que as governam é, como se sabe, o programa que Durkheim atribui à Sociologia quando a erige enquanto ciência. Bourdieu, para quem “o ‘provável’ é o fato social por excelência”, prolonga esse programa (MERCKLÉ, 2005, p. 25). Se ele não deixa de mencionar as exceções, “les miraculés sociaux” (BOURDIEU, 1989, p. 259-264) parecem concebê-los como um acidente da causalidade sociológica e não questiona sua teoria à luz desses casos. E uma das mais implacáveis regularidades evidenciadas pela Sociologia é a da reprodução entre gerações da categoria socioprofissional. Como lembra Chantal Jaquet (2014, p. 3): “Não se nasce operário ou patrão, mas essa é uma condição que se herda quase sistematicamente dos pais”. No entanto, há casos que fogem das regularidades, seja em leves desvios, seja afastando-se claramente da trajetória esperada. Escapando das regularidades, as exceções escapam assim da Sociologia? O que é certo, é que somente recentemente, a partir dos anos de 1990, os sociólogos passaram a interessar-se pelo atípico, e Lahire, na Sociologia da Educação, sem ser o único, esteve entre os primeiros a fazê-lo24.
Não se trata de modo algum, para Lahire, como para Beaud, Truong e Pasquali, de negar a herança bourdieusiana, e menos ainda a existência de regularidades e determinismos25, mas de sugerir que a análise das exceções permite melhor apreender a complexidade das “encarnações individuais das determinações sociais” (MERCKLÉ, 2005, p. 29). Nesse sentido, o estudo de trajetórias atípicas traria mais informações sobre o enfrentamento dos obstáculos que tornam justamente esses destinos improváveis, do que a análise daqueles que, não chegando sequer a se deparar com esses obstáculos, desconhecem seus efeitos e desafios. É precisamente de acordo com essa visão que Beaud (2002) escreve, na introdução de 80% au bac... et après?, que o estudo de uma fração muito particular de uma geração, a dos jovens de origem popular e/ou imigrante que ingressaram no Ensino Superior, “[...] permite compreender hoje um certo número de transformações importantes da sociedade francesa” (BEAUD, 2002, p. 15).
Os três autores que apresentamos aqui não discutem longamente a teoria de Bourdieu, suas obras com Passeron, nem a teoria disposicionalista de Lahire. Elas aparecem em pano de fundo de suas pesquisas, nas referências e nos comentários rápidos, mas significativos. Por em evidência esse background, pareceu-nos, portanto, necessário, mostrando as discussões nas quais esses trabalhos se apoiam, que eles continuam e fazem avançar.
Fronteiras, passagens, deslocamentos: a mobilidade em processo
Um dos aportes principais das pesquisas de Beaud, Pasquali e Truong é abordar a temática da mobilidade social não de maneira retrospectiva (análise da trajetória de pessoas que já realizaram essa passagem)26 e nem por meio de análises estatísticas (que oferecem uma “fotografia” da situação e exploram as relações entre as variáveis que levaram a compor o quadro daquela maneira). Análises estatísticas são absolutamente majoritárias no campo da mobilidade (e da estratificação) social27. Utilizando uma metáfora empregada por Pasquali, mas que se aplica perfeitamente à pesquisa de Truong e de Beaud (sobretudo em BEAUD, 2002 e AMRANI; BEAUD, 2005), esses trabalhos buscam passar “da fotografia ao filme” (PASQUALI, 2014, p. 16), tentando captar a mobilidade “em processo”, por intermédio de uma análise qualitativa e longitudinal. A observação e a análise de fenômenos “en train de se faire” (enquanto eles se fazem) é uma perspectiva metodológica e analítica cara à Sociologia Pragmática. Truong e Pasquali apreendem, poderíamos dizer, a passagem de fronteiras como um “domínio de ação” (BÉNATOUÏL, 1999, p. 294).
Isso tem pelo menos duas implicações. A primeira é a necessidade de considerar a indeterminação da situação: ingressar em uma universidade ou em uma classe préparatoire seletiva não significa concluir o curso, e menos ainda ter assegurada a uma posição profissional valorizada. Essa indeterminação, aliás, explica provavelmente o fato de estudos qualitativos que abordam situações relativamente similares de estudantes de classes populares que “passam a fronteira” e frequentam universidades seletivas (por exemplo, PIOTTO, 2014a; WARIKOO, 2016; CASTETS-FONTAINE, 2011) não pensarem suas pesquisas como inscritas no campo dos estudos sobre a mobilidade social. Estudar esse fenômeno “enquanto ele acontece” obriga a considerar, justamente, que ele pode não acontecer, ou pode acontecer de maneira parcial, fracionada, temporária, reversível, etc. (PAGIS; PASQUALI, 2016). Junto a outros28, Pasquali e Beaud (2014, p. 23-24) criticam a visão dicotômica dos estudos sobre estratificação social entre “mobilidade” ou “imobilidade”, “mobilidade” ou “reprodução”. O intuito desses estudos é, na formulação de Pasquali (2018, p. 110): “[...] captar a complexidade de percursos cujos traçados estão em pontilhado, são ainda incertos, frágeis, temporários, retomam por vezes deslocamentos interrompidos de seus pais e que são feitos de vai-e-vens entre mundos por vezes distantes e certamente distintos, mas conectados entre si”.
Examinar a situação de jovens de classes populares que ingressam no Ensino Superior construindo o problema de pesquisa em torno da questão da mobilidade social, impele a ir além da relação com os estudos ou da questão central da “longevidade escolar” (sem deixá-la de lado), e a investigar outros âmbitos da vida social: os desafios de dominar os códigos sociais do grupo que se passa a frequentar (maneiras de se vestir, de falar, de comer em um restaurante), e de negociar um lugar para as relações e os hábitos do grupo de onde se é originário. Isso nos leva à segunda implicação de estudar a mobilidade em processo: o fato de que os percursos não são lineares. Não há, para cada indivíduo, “uma” passagem, ou não, definitiva, de fronteira social, mais deslocamentos múltiplos no espaço social, repetidos e de diversos tipos: as idas e vindas cotidianas entre o bairro e a prépa ou a universidade, os deslocamentos e as fronteiras entre espaços dentro da própria instituição (por vezes, verdadeiras barreiras), o trânsito entre espaços de sociabilidade de banlieue (amigos do bairro, família) e com os novos colegas (e seus códigos vestimentares, de consumo de bebidas, etc.).
Pasquali é quem discute mais longamente a escolha de vocabulário e suas implicações conceituais para pensar a mobilidade social ou, como ele precisa, para pensar “as passagens de fronteira no espaço social”. Essa expressão condensa na verdade três categorias: “passagem”, “fronteira” e “espaço social” (que ele empresta de Bourdieu). Essas categorias devem permitir captar a dinâmica da coexistência de classes sociais – ou seja, de espaços sociais distintos e delimitados por “fronteiras” que, embora sejam em certa medida porosas, são incessantemente reforçadas e reconstruídas em um esforço de distinção, transversal a todos os grupos sociais29 –, e de indivíduos que se deslocam entre elas, que passam suas fronteiras da mesma maneira que migrantes passam as fronteiras de um país. Nesse quadro analítico, faz portanto sentido falar de “migrantes de classe”, mais do que “transfugos de classe” (transfuges de classe), que traz a ideia de “fuga”, ou ao menos de uma ruptura com o meio de origem senão total, suficientemente forte para provocar uum “desenraizamento” (déracinement) do sujeito. O termo de “transfugos” é frequentemente usado para se referir a percursos de mobilidade já concluídos e de grande amplitude (filhos de camponeses ou operários que se tornaram intelectuais célebres, como Bourdieu, Hoggart, Didier Eribon, Albert Camus), e parece pouco adaptado a tratar de micromobilidades ou mobilidades em curso, menos espetaculares e possivelmente revogáveis, como as descritas por Beaud, Truong e Pasquali30. O uso do termo “migrante de classe” dá-se também em função do diálogo com as reflexões de Abdelmalek Sayad sobre a presença dos argelinos na França (SAYAD, 1999). Sayad defendeu a impossibilidade de pensar a imigração sem seu par, a emigração, em outras palavras, de apreender os movimentos, mais ou menos bem-sucedidos, de integração em um novo país, conjuntamente às relações que os migrantes continuam a manter com pe6, retrataram a “França dos mal pagos” (CARTIER et al., 2008) e os “populares rurais” (RENAHY, 2005; COQUARD,
O termo “migrante de classe” insere-se em um léxico da mobilidade social que vem se ampliando nas últimas décadas, ao lado, por exemplo, do neologismo “transclasse” proposto pela filósofa Chantal Jaquet (JAQUET, 2014; JAQUET; BRAS, 2018)31 e da noção de class passing. Há, com efeito, um interesse crescente nas ciências sociais francesas pelo que os norte-americanos chamam de passing32. O termo foi forjado para referir-se a indivíduos mestiços nos Estados Unidos que “passam” a ser vistos e considerados como brancos (HOBBS, 2014), e tornou-se uma categoria analítica para pensar as passagens de indivíduos de uma “raça” a outra, de uma classe social a outra, de um gênero a outro (GINSBERG, 1996). A noção foi introduzida no mundo acadêmico francês nos últimos anos, em particular por meio da tradução do livro do historiador Karl Jacoby, The Strange Career of William Ellis, que conta a vida, feita de passagens (de fronteiras nacionais, de mundo social, da escravidão à liberdade) e de reinvenções, de um negro escravizado que se tornou bilionário abraçando uma identidade de latino. Publicado nos Estados Unidos em 2016, o livro foi traduzido na França em 2018, com um prefácio de Paul Pasquali e Benoît Trépied.
O papel dos mediadores e dos capitais “escondidos” (“capitaux cachés”) ou “pequenos capitais”
No estudo dessas travessias do espaço social, mediadores (os autores falam de “intermédiaires culturels”, “passeurs culturels”, “agentes da cadeia migratória” ou ainda “aliados da ascensão”) têm um papel fundamental. É o caso da irmã mais velha na família Belhoumi, Samira, que teve o papel de verdadeira “locomotiva” (BEAUD, 2018, p. 59) da ascensão social do grupo de irmãos. Boa aluna, ela os ajudava nos deveres de casa, a partir dos 14 anos contribuía financeiramente com os pais (trabalhava como diarista ou babá) e incentiva como podia o hábito de leitura: nas férias, passadas na Argélia, ela pedia para cada irmão escolher um livro e lhe trazer um resumo escrito, recompensando-os com uma soma modesta (enorme aos olhos deles na época). Enfermeira e depois promovida a membro da equipe gestora de um hospital, Samira instala-se em Paris e seu pequeno estúdio torna-se refúgio e ponto de passagem nas férias. Ela leva os irmãos para conhecer a capital (a família morava no interior), ajuda-os a elaborar seus currículos, serve de conselheira, guia, apoio moral e, por vezes, financeiro.
Na sua própria trajetória de êxito escolar e profissional, Samira contou com o apoio de mediadores. Uma professora, ela mesma tendo vivido uma experiência de mobilidade social (pais camponeses) e tendo sido profundamente marcada pelo movimento feminista pós-1968, que se dedicava com afinco à sua profissão, sobretudo quando se tratava de ajudar meninas de origem magrebina, para quem o espectro do casamento arranjado precoce era uma ameaça à continuidade dos estudos. Houve outros professores33 e outros mediadores. Se, para Samira, eles estiveram sobretudo na escola (como irmã mais velha, seu tempo se dividia entre a escola e os afazeres domésticos), a segunda irmã encontrou-os nas associações de bairro, centros culturais, movimentos sociais e políticos cuja atividade era intensa na cidade onde moravam, governada pelo Partido Comunista Francês durante os anos de 1980 e até meados de 1990. A paisagem modifica-se aos poucos a partir dos anos de 1990: diminuem as associações e os recursos a elas destinados, o bairro onde moram se pauperiza, imerso na forte depressão econômica nacional que segue até os anos de 2000, e se agrava, ali como em toda a França, a segregação socioespacial e étnica. Esse cenário não deixa de influenciar a trajetória dos irmãos mais novos, que fazem estudos menos longos (sobretudo os meninos) e alguns aderem a um movimento de revival da religião muçulmana que tocou inúmeras periferias francesas. Beaud analisa então esses percursos à luz da história nacional e local, considerando as diferenças geracionais (já que 16 anos separam a irmã mais velha da mais nova), de gênero, mostrando como a conjuntura política, econômica e social se funde nas histórias individuais.
Para os interlocutores de Truong e Pasquali, os mediadores são igualmente importantes. Eles incitam ou facilitam as passagens de fronteira pois conhecem e circulam, em alguma medida, nos dois mundos, ou conhecem os meandros da passagem (no caso, passagem para o ensino superior: instituições e programas possíveis, documentos e competências necessárias, etc.). Nesse sentido, Truong destaca o papel dos “défricheurs” (“desbravadores”), Pasquali fala dos “antigos” (“anciens”): jovens oriundos dos bairros populares que ingressaram em instituições de prestígio e que são convidados em seguida a vir apresentar sua trajetória a outros jovens, para quem devem servir de modelo. Orientados e enquadrados por diretores de escolas e professores que os convidam, os discursos desses jovens, no entanto, não costumam romper com a ideologia meritocrática e têm uma forte tonalidade “yes you can” (“cada um pode se se esforçar”; “ninguém vai acreditar em você se você mesmo não acreditar”, etc. – LES DÉFRICHEURS, 2019).
Outro facilitador das passagens é a presença do que Pasquali (2014) denominou de “pequenos capitais” ou “capitais escondidos”, em referência ao capital cultural, mas não aquele habitualmente medido pelas estatísticas, nos indicadores de escolaridade dos pais e categoria socioprofissional. Assim, Samia (TRUONG, 2015, p. 68) é filha de um operário e de uma faxineira, mas seu pai trabalha para uma empresa prestadora de serviços para a Air France e a família têm direito a bilhetes de avião promocionais e a participar das colônias de férias organizadas pela companhia aérea. Isso permitiu que ela convivesse com crianças e jovens de outras classes sociais e que fizesse, ao final do primeiro ano de universidade, uma viagem à Coreia do Sul, que lhe abriu horizontes. Soraya (PASQUALI, 2014, p. 51) é criada, junto a seus cinco irmãos, por sua mãe empregada doméstica que concluiu apenas o Ensino Fundamental. É ela quem cuida de todas as questões administrativas da família, e esse papel de “secretária” permitiu que ela desenvolvesse uma maturidade e uma familiaridade com documentos que foi extremamente útil em seu percurso escolar.
Esses pequenos capitais são portanto “[...] recursos cruciais que não deixam marcas nas estatísticas” (PASQUALI, 2014, p. 46). Ao observarem de perto a trajetória daqueles que iniciaram um caminho de ascensão, os autores afirmam que eles estão sempre presentes. Truong e Pasquali sugerem que o contato com mediadores ou a presença desses “pequenos capitais” são portanto uma condição para o jovem possa se projetar em uma trajetória ascensional. Analisando as decisões daqueles que não fazem essa projeção e optam por estudos curtos, Truong menciona o caso de Hakan:
Hakan não dispõe no seu entorno imediato de exemplos de ascensão escolar ou de ‘pequenos capitais’ que poderiam incitá-lo a visar mais alto. Seus melhores amigos trabalham na manutenção, sua irmã é caixa de supermercado, sua mãe faxineira, seu pai, falecido quando o rapaz era pequeno, operário. Consciente do que autoriza sua origem (“minha família é... normal. A gente não tem nada, não tem uma coisa a mais” [disse o jovem em entrevista]), o bac +2 [curso técnico] lhe parece suficientemente distintivo. (TRUONG, 2015, p. 100)34.
Aprendemos adiante que Hakan se decepciona e se arrepende de sua escolha: por um lado, os professores do curso técnico se mostram mais severos que ele esperava; por outro, como muitos de seus colegas, ele tem dificuldade de encontrar um estágio e mais tarde um emprego. “Meus amigos [que começaram a trabalhar, alguns ao final do liceu, outros antes mesmo de concluí-lo] estão melhores que eu”, avalia dois anos depois da entrevista acima citada (TRUONG, 2015, p. 103).
Aprendizagem de equilibrista: transitando entre dois mundos
A figura do “estudante bolsista” e, mais amplamente, da pessoa que ascende socialmente, foi caracterizada na literatura sociológica e literária sobretudo pelo seu sofrimento ou incapacidade de se adaptar completamente ao seu novo ambiente. Bourdieu (1989, 2004 [2005]) evoca o “habitus clivado”; Hoggart (1970), o “doloroso desenraizamento”35; Lehmann (2007), um difícil “deslocamento do habitus”. Fala-se ainda do sentimento de inadequação e de intimidação (ARIES; SEIDER, 2005), da vergonha ou do sentimento de traição em relação ao meio de origem (ERNAUX, 1983; ERIBON, 2009; LOUIS, 2014), do “choque” e das dificuldades encontradas no caminho (PIOTTO, 2014b), do desconforto de estar em um “limbo” (LUBRANO, 2004), ou mesmo de uma “neurose de classe” (GAULEJAC, 2016)36. Esses retratos, em sua maioria descrevendo trajetórias de mobilidade de grande amplitude, insistem nos efeitos psicológicos negativos ou mesmo patológicos do fenômeno (ansiedade, neurose, nervosismo, disposições cindidas, etc.). Sem passar ao outro extremo, negando a violência e o sentimento de desestabilização provocados pelo ingresso no espaço social majoritariamente ocupado por pessoas de classes sociais dominantes, os trabalhos aqui analisados enfatizam as aprendizagens, ajustes e negociações um tanto menos dramáticos feitos por seus interlocutores no trânsito entre espaços sociais37.
Truong fala da arte do “cavalinho de balanço”, em referência ao movimento de “balanço” entre dois mundos, Pasquali fala dos “arranjos práticos”, empregando um vocabulário interacionista. Essa ênfase não foi um pressuposto da pesquisa, mas emergiu como um de seus resultados. Com efeito, os jovens e os adultos que pesquisaram parecem fazer menos a “ruptura dolorosa”, descrita no clássico de Hoggart, que um esforço – e uma aprendizagem – contínuos de “equilibrista”, “jogando”, em certa medida, “nos dois times”. “Jogar nos dois times” é também claramente o que fazem alguns interlocutores de Philippe Bourgois (1996), moradores de um bairro extremamente pobre de Nova Iorque, que conseguem manter-se em empregos fora do bairro. Eles seguem então o que Bourgois denominou “alternativa bicultural”: aprendem “[...] os bons modos e a seguir a ‘regra das mulheres brancas’ de downtown, e trocam de chave imediatamente ao chegar em casa, voltando a atuar segundo a ‘cultura da rua’” (BOURGOIS, 1996, p. 170).
Para ajudar a entender a lógica desse “jogo”, Truong e Pasquali convocam um autor que nada indicaria, em princípio, aproximar da Sociologia da Educação ou da Mobilidade, o antropólogo da religião Roger Bastide. Em seus estudos sobre religiões afro-brasileiras, Bastide (1955) sugere que as pessoas não sentem necessariamente um conflito interior ou conflito de lealdade ao combinar práticas oriundas de religiões diferentes (no caso, religião católica e de matriz africana), mas que elas fazem um “corte”, o que ele denomina o “princípio de corte” (principe de coupure), e separam o que pertence a cada universo religioso. O indivíduo percebe que existem dois “quadros” distintos de ação que passam a coabitar, sem que isso cause necessariamente dilaceração interna, ou implique em pensar que ele não seja sincero em algum momento. Comentando Bastide, Denis Cuche sintetiza:
Não é o indivíduo que é ‘cortado em dois’, é ele que recorta a realidade em compartimentos separados, nos quais ele tem participações distintas e que por isso mesmo não lhe parecem contraditórias. Esses recortes, delimitados e controlados, o permitem justamente evitar sua própria dilaceração. (CUCHE, 1994, p. 76-77).
Esse raciocínio não deixa de lembrar as reflexões de Paul Veyne sobre os diferentes “programas de verdade” pelos quais transitamos todos, sem maiores penas: “[...] as diferentes verdades são todas verdadeiras, mas nós não as pensamos com a mesma parte do cérebro” (VEYNE, 1983, p. 106).
“Cortar”, separar os dois mundos, significa, no caso dos jovens em ascensão, não falar com os amigos do bairro de estudos ou de nada que torne explícito a distância entre eles, não usar o mesmo vocabulário ou se vestir da mesma forma no bairro ou no lugar onde estudam, organizar uma festa de aniversário “Sciences Po” e uma outra “banlieue”: “[...] ‘cortar’ é uma maneira de mostrar modéstia e humildade, o que contribui a mostrar aos seus próximos que você não renega o passado” (TRUONG, 2015, p. 154). Se Bastide e Veyne falam do homem comum, que vive essa passagem e interpenetração de mundos, ou de “programas”, como algo que se passa de maneira subconsciente, sem que o sujeito necessariamente reflita sobre isso, os jovens de classes populares que ingressam no Ensino Superior, sobretudo em instituições de prestígio, têm mais tendência a desenvolver uma postura reflexiva. Confrontados aos desafios da integração, provocados e às vezes humilhados por colegas ou professores, Pasquali (2014, p. 392) sugere que a reflexividade se torna uma válvula de escape que permite evacuar as tensões decorrentes do deslocamento social. A reflexividade decorre também dos questionamentos que nascem do contraste entre sua própria trajetória e aquela de pessoas a sua volta (Por que eu e não meus irmãos? Por que entre os meus amigos poucos/ ninguém está nesse lugar?, etc.). Em trabalhos acadêmicos, na escrita de um diário, em conversas com algum colega mais próximo ou mesmo com o sociólogo, que alguns consideram como seu “psicólogo grátis”, essa reflexividade ajuda a construir, a moldar pouco a pouco, com o passar o tempo, sua postura de modo estratégico, buscando ser aceito no universo de destino sem perder a ligação com “o mundo real”, o da periferia.
Assim, Vincent, interlocutor de Pasquali que ingressou em um Instituto de Estudos Políticos (IEP, uma Grande Escola), envia ao sociólogo um relato de sua última prova oral38, na qual ele foi reprovado, buscando entender e digerir a má notícia (PASQUALI, 2014). Diante do veredicto do júri quanto a sua “falta de cultura geral” (PASQUALI, 2014, p. 392), o jovem tenta medir as consequências de “nunca ter jogado completamente o jogo da ‘integração’” (PASQUALI, 2014, p. 392) (ter, nas suas palavras, “se fechado” em um TCC sobre hip-hop, realizando seu estágio em uma companhia de dança desse estilo musical e continuando a morar na periferia), e ressente-se, ao mesmo tempo, do que considera uma abertura limitada do IEP (“as ‘grandes escolas’ abrem suas portas apenas a quem se parece com eles” (PASQUALI, 2014, p. 394)). É provável que essa reflexão, esse exercício de objetivação em diálogo com o sociólogo, tenha contribuído para que o jovem se reposicionasse. Em todo caso, no oral “de segunda época” (rattrapage), ele reverte o reesultado e obtém o diploma. Seguindo seu percurso nos anos seguintes, Pasquali relata que Vincent continua os estudos em um Mestrado de Gestão Cultural, torna-se coreógrafo e funda uma associação de produção cultural (a Academia do hip-hop). Sua arte distancia-se, no entanto, do hip-hop canônico e dialoga com outras referências, o que provoca uma ruptura dolorosa com seus melhores amigos, moradores da cité. Ao mesmo tempo, Vincent torna-se pouco a pouco uma figura incontornável das redes de cultura locais, o que lhe permite fechar diversos contratos, ter uma vida confortável e comprar, aos 28 anos, um pequeno apartamento em uma zona residencial próxima a sua cité (mas fora dela), não longe da casa dos seus pais para poder ajudá-los sempre que necessário. Combinando assim seu gosto pelo hip-hop e sua história na periferia com as novas influências culturais que foi descobrindo ao longo da sua iferentes disciplinas nas ciências sociais; rigor da investigação empírica; domínio de diferentes métodos (arquivos, etnografia e estatística) e sua com
Um dos pontos destacados por Pasquali como por Truong (e que se vê nas trajetórias descritas por Beaud igualmente) é a importância, aos olhos de seus interlocutores, de assegurar continuidades materiais e simbólicas com o meio de origem. Truong (2015) menciona uma busca pelo reconhecimento da legitimidade de sua ascensão, Pasquali (2014, p. 377) evoca a importância das “transferências de capital” do universo de acolhimento em direção do universo de origem. É o que faz Claire, ao mobilizar uma professora de direito em seu IEP para ajudá-la a compor um dossiê jurídico para que o pai, representante sindical, não perca seu emprego em razão disso, em um momento de reestruturação da empresa (PASQUALI, 2014)39. Ou Samira (interlocutora de Beaud, mencionada anteriormente) ajudando seus irmãos de diversas maneiras.
Esses “arranjos práticos” ou “balanços” entre dois mundos implicam, da parte dos jovens, ajustes de conduta nos dois universos de convivência: de um lado, manter-se presentes e em certa medida comprometidos com o mundo de origem, minorando as diferenças que se constroem ou se afirmam pouco a pouco e, do outro, aprender a “fazer como eles”, aprender a se integrar acadêmica e socialmente no universo de destino. É uma dupla injunção, integrar-se sem deixar de “ser você mesmo”. A exigência aqui vai além da convivência entre pessoas de diferentes classes sociais que trabalham no mesmo local, mas com posições hierárquicas distintas. Nesse caso, é necessário aprender a dominar os códigos de interação, mas trata-se de uma interação que mantém “cada um no seu lugar”: há regras para os encontros, mas não é preciso “tornar-se um deles”, ocupando e disputando os mesmos espaços40. No caso dos jovens que passam a frequentar lugares onde são a minoria, eles devem, caso queiram conseguir concluir o curso e obter um emprego que corresponda a sua ambição, aprender a dominar as regras do jogo acadêmico e social de maneira a serem considerados candidatos “à altura”. Eles devem transformar-se o suficiente, aproximar-se o suficiente da “cultura legítima”, para poderem concorrer (a postos de trabalho, oportunidades de estudo) com outros jovens, que não tiveram que fazer tão longa travessia.
A “cultura legítima”, como sabemos, assenta justamente a sua legitimidade sobre um “arbitrário cultural” que hierarquiza conhecimentos, mas também disposições (gostos, gestos, aparências) (BOURDIEU, 1979 [2007]). Assim, o movimento de “passar as fronteiras” e buscar entrar no mundo social dos “de cima” não pode ser abstraído, para falar como Claude Grignon e Jean-Claude Passeron (1989, p. 23), da “existência sempre próxima e íntima das relações assimétricas de dominação”, tais como elas se apresentam na sociedade francesa contemporânea, onde cada pequeno gesto pode “desmascarar” a origem, ativando manifestações (conscientes ou não) de desprezo de classe e produzindo pequenas e grandes vexações. As diferenças entre dois mundos não são diferenças tout court, são diferenças hierarquicamente posicionadas.
O que se depreende dos trabalhos aqui apresentados, no entanto, é que essas travessias são feitas de penas, mas também da intensa satisfação de descobrir conhecimentos teoricamente reservados aos “herdeiros”. Samira relata sua “paixão pela língua francesa” e enumera os tantos livros que a marcaram (BEAUD, 2018, p. 58); Réda descobre o gosto de conseguir ler, e entender, “uma quantidade fenomenal de artigos” no Le monde e Courrier International (PASQUALI, 2014, p. 136); Aisha fala com empolgação de seus cursos sobre a história das políticas internacionais e de seu TCC sobre a presença chinesa na África desde os anos 2000 (TRUONG, 2015, p. 171-172). Reconhecendo as dificuldades que experimentam, não raro os jovens as consideram parte de um caminho que os leva a posição que avaliam como “melhor”, como se vê no comentário de Réda, sobre o cansaço decorrente dos trajetos diários de 45 minutos até a prépa: “[...] não acho tão ruim... Eu assumo as consequências da minha escolha. [...]. Digo, bom... que é uma evolução, que eu tô entrando num outro mundo... é uma evolução pra minha futura vida que eu espero” (PASQUALI, 2014, p. 134-135).
Os autores que apresentamos buscam, assim, alcançar uma descrição que escape, ao mesmo tempo, ao “miserabilismo” e ao “populismo”, tal como foram conceitualizados por Grignon e Passeron (1989). Traçam um caminho estreito, mais facilmente anunciado que efetivamente trilhado, que evita reduzir a experiência dos jovens às mazelas decorrentes das relações de poder nas quais se inserem e que lhes são desfavoráveis, sem eludir esse aspecto fundamental da sua experiência.
Conclusão
Insistimos ao longo do artigo sobre os pontos de convergência entre as pesquisas, que decorrem do pertencimento dos autores a uma mesma constelação de pesquisadores com afinidades temáticas e metodológicas. Contudo, claro, cada um propõe discussões e tem um estilo de escrita e análise próprio. Se Beaud já estudou um grupo de jovens de bairros populares que ingressam na universidade (2002), em La France des Belhoumi (2018), fruto de sua pesquisa mais recente, ele se aproxima do historiador Gérard Noiriel e do sociólogo Abdelmalek Sayad ao contribuir para “[...] uma contra-história dos descendentes de imigrantes argelinos na França” (BEAUD, 2018, p. 11). Na trajetória dos membros da família, é, portanto, toda uma história da França e da imigração argelina no país, dos anos 1970 até hoje, que se lê. Truong escreve numa linguagem espirituosa, jovial. Em função de sua implicação como professor (de Ensino Médio e de Universidade em seguida), o texto se aproxima por vezes do testemunho. A composição do grupo de pesquisados, incluindo trajetórias mais comuns de jovens que ingressam em universidades ou cursos técnicos menos concorridos, e outras mais excepcionais, daqueles que conseguem integrar as instituições mais seletivas, permite análises comparativas. Já Pasquali concentra-se em uma classe préparatoire (e nos liceus de onde vêm os estudantes que a integram). Sua preocupação teórica é de pensar a mobilidade social a partir da experiência dos jovens, e o esforço de conceitualização e rigor na escolha dos termos utilizados caracterizam sua escrita.
A contribuição que gostaríamos de destacar, para a qual os três concorrem, cada um a sua maneira, é a de uma abordagem qualitativa da mobilidade “en train de se faire”, enquanto ela acontece. Enunciar como objetivo de pesquisa uma atenção ao caráter processual de um determinado fenômeno social tornou-se lugar comum. Mais raras, no entanto, são as pesquisas que tiram todas as consequências metodológicas dessa divisa, dando-se os meios para não se limitar à descrição de uma situação em um tempo T1, mas incluindo dispositivos de produção de dados que se distribuam durante o tempo em que dura o processo, ou pelo menos que se estendam por parte dele. Essa proposta de um olhar processual sobre a mobilidade social não é totalmente nova. Anselm Strauss, da escola de Chicago nos Estados Unidos, Daniel Bertaux, na França, conhecido também por suas reflexões sobre a produção e a análise de histórias de vida nas ciências sociais, e Paul Thompson, no Reino-Unido, historiador pioneiro no uso da história oral que colaborou com Bertaux em obras importantes, defendem, desde os anos de 1970, uma construção alternativa do objeto “mobilidade social”, para além do paradigma estatístico dominante (BERTAUX, 1974; BERTAUX; THOMPSON, 1997; STRAUSS, 1971). Sugerem incorporar histórias de vida, genealogias familiares, casos concretos de mobilidade em toda sua complexidade; propõem sair análise da “conjuntura imediata”: “[...] onde há processos, é necessário, se queremos compreendê-los, antes de mais nada observá-los; e para isso é preciso adotar uma perspectiva resolutamente temporal” (BERTAUX, 1974, p. 359). Poucos, no entanto, desde então, colocaram esse programa de pesquisa em prática, o que acentua a relevância dos trabalhos aqui discutidos para o debate sociológico atual, tanto sobre “mobilidade social”, quanto sobre “longevidade escolar” ou, mais precisamente, sobre a presença de estudantes de camadas populares em instituições seletivas do Ensino Superior.
Indicamos, por fim, um ângulo que mereceria, a nosso ver, ser mais explorado. Ao centrar sua atenção sobre os estudantes e suas experiências, mesmo mostrando como elas são moduladas por contingências e potencialidades institucionais e sociais, os autores acabam deixando na sombra ou, pelo menos, não trazem à tona com o mesmo nível de detalhe, a perspectiva da instituição e de seus agentes: programas pedagógicos, métodos de ensino e o ensino de métodos “de exposição do pensamento” (o que sabemos ser um pilar do ensino nas Grandes Écoles), e como os professores e gestores entendem a sua missão, como percebem a presença de jovens de classes populares nesse espaço e seu papel em seu êxito acadêmico. Gostaríamos de ver, como fazem, por exemplo, na França, Jean-Michel Eymeri (2001) ao analisar a École Nationale d’Administration (ENA) e sua “socialização de Estado” ou, nos Estados Unidos, Natasha Warikoo (2016) ao analisar a Brown University e Harvard, o entrelaçamento das lógicas político-pedagógicas e burocráticas institucionais nos processos de socialização estudantis. Raros são os desenhos de pesquisa que não têm limites, Eymeri e Warikoo, por exemplo, não trazem tantos detalhes da vida dos estudantes e não acompanham suas trajetórias ao longo de anos. Podemos, no entanto, esperar que as diferentes contribuições desses estudos venham a ser consideradas em pesquisas futuras.