Introdução
O presente texto tem como objetivo descrever e analisar a dimensão política da festa de 20 de novembro realizada na comunidade quilombola Campina de Pedra, em Poconé, Mato Grosso (MT), e compreender como a escola dialoga com toda a simbologia negra que a perpassa. Pesquisar quilombos contemporâneos, seja em qual dimensão for, ainda guarda o sentido de desvelo, de descortinar as invisibilidades históricas, seja por parte das políticas públicas, seja pela necessidade de pesquisas que investem nesses contextos, seja pela ausência de reconhecimento pela sociedade mais abrangente a respeito de sua importância na composição do povo brasileiro, sejam por motivações racistas e excludentes.
O Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)1, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), foi o primeiro procedimento público legislativo a reconhecer a existência e os direitos dessas comunidades. Desencadeou o processo de reconhecimento, que, para Ferreira (2010), foi um instrumento que, mesmo sem conhecimento por parte dos parlamentares, os quais o aprovaram naquele período, da dimensão dos seus efeitos, criou atores sociais, sujeitos de direitos culturais, coletivos e fundiários. Tal ato jurídico transformou os indivíduos em atores políticos, cujos direitos extrapolam o próprio Art. 68 da Constituição Federal.
O Art. 68 textualmente declara: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” (BRASIL, 1988, p. 189). Ao mesmo tempo, os Arts. 215 e 216 garantiram, ao menos em termos documentais, os direitos culturais e a proteção do patrimônio cultural brasileiro, dentre eles, os das comunidades quilombolas (BRASIL, 1988). Somando-se a essas conquistas, a Fundação Cultural Palmares, criada em 1988, intensificou a missão de assegurar às comunidades políticas públicas afirmativas e tornou-se a principal responsável pelos procedimentos que garantam a territorialidade e outras ações políticas para o reconhecimento das comunidades quilombolas.
Segundo Munanga (2001), a palavra “quilombo” é seguramente originária dos povos de línguas bantu (Ki-lombo, aportuguesado Qui-lombo). No Brasil, seu significado tem a ver com alguns povos bantu trazidos e escravizados no país. No entanto, para o referido autor, a formação dos quilombos brasileiros tem motivação política e militante. Esse entendimento coloca em relevo a luta do negro em busca do seu próprio caminho que não se limitou apenas ao período escravocrata. Prova disso é a existência de territórios quilombolas que se formaram após a abolição, a partir de doações, compras ou terras conquistadas por meio da troca de prestação de serviços ou por ocupações de terras devolutas (BRASIL, 2013), como é o caso da comunidade aqui pesquisada.
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares (BRASIL, 2022), estima-se que, no Brasil, exista mais de 3.495 comunidades quilombolas, das quais 78 estão localizadas em Mato Grosso. São comunidades híbridas em termos culturais e identitários, embora resguardem algumas características comuns. Dentre as semelhanças está a dimensão das festividades. Neste artigo, buscamos descrever e analisar a dimensão política da festa de 20 de novembro realizada na comunidade quilombola Campina de Pedra/Poconé/MT e compreender como a escola dialoga com toda a simbologia negra que a perpassa. Partimos da compreensão de que a festa em análise pode retroalimentar a escola quilombola, no que diz respeito ao desafio que lhe foi atribuída, qual seja: de ser um instrumento a serviço da afirmação das culturas, das identidades e dos fazeres locais, com vistas a diminuir as históricas discriminações, os preconceitos, os silenciamentos e as exclusões que as instituições escolares têm historicamente reproduzido.
Os argumentos aqui reunidos estão organizados em cinco partes. Na primeira, esta introdução, apresentamos o objetivo do artigo e o contexto em que a discussão está situada. Na segunda parte, descrevemos a metodologia utilizada e fazemos uma breve descrição da comunidade e da escola para fins de contextualização. Na terceira, trazemos uma discussão teórica sobre as possibilidades pedagógicas e políticas da festa. Posteriormente, dedicamo-nos em apresentar e analisar a descrição da festa e revelar como a escola dialoga com as simbologias dela. Por último, esboçamos as considerações gerais do que foi escrito no texto em seu conjunto.
Aspectos metodológicos e descrição da comunidade Campina de Pedra
Esta pesquisa insere-se na abordagem qualitativa por estarmos interessadas em compreender os traçados da vida humana, a forma como a experiência social é criada e os modos como as significações são construídas e se expressam. A etnografia foi o aporte metodológico que orientou o movimento em campo e a forma de construção dos registros dos dados. Especificamente, apoiamo-nos em Geertz (2008). A etnografia geertziana orienta que pesquisadores/as não devem se limitar a descrever as ações humanas, aleatoriamente, mas, sim, interpretar as teias de significações nelas manifestas - em outras palavras, decifrar os códigos e os sentidos que os próprios sujeitos, elaboradores das ações e dos sentidos atribuem aos seus próprios repertórios cultuais, às suas ações, às suas bases sociais e à sua importância. Essa tentativa de interpretar só é possível por meio da descrição densa. De acordo com o autor:
O pesquisador deve descrever seu objeto de estudo em suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que cercam sua vida social. Não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se busca leis gerais, mas sim significados/significações. A ciência do pesquisador deve ser interpretativa em busca de significado, buscando explicar e interpretar expressões sociais que são “enigmáticas na sua superfície” (GEERTZ, 2008, p. 4).
A observação do não-falado, dos gestos e das interações devem ser acurados. Para tanto, o etnógrafo deve ser cauteloso. Geertz (2001) alerta para o cuidado com a visão etnocêntrica. Para ele, a interpretação “nós somos nós, eles são eles” só reprime e menospreza os valores daqueles que os possuem. Desse modo, uma etnografia impregnada de preconceitos não está disposta a apreender e a compreender as diferenças, e nos impede de descobrir em que tipo de ângulo nos situamos no mundo, qual a compreensão temos de nós mesmos. Nas palavras do autor, “[...] se quisermos ser capazes de julgar com clareza, precisamos enxergar com largueza” (GEERTZ, 2001, p. 85). Isso exige de um(a) pesquisador(a) etnográfico uma escuta e um olhar aguçado, a fim de perscrutar as diferenças como nos são apresentadas.
Para a produção de dados ou informações, utilizamos dois instrumentos: a observação e a entrevista semiestruturada. As observações tiveram como objetivo apreender e descrever a composição e os movimentos da festa da comunidade, o XI Encontro Quilombola que ocorreu no dia 22 de novembro de 20152, em comemoração ao Dia da Consciência Negra. Os registros etnográficos são resultados das observações vivenciadas durante o evento. Registramos em caderno de campo as expressões ditas, não ditas e todos os gestos simbólicos que emergiram no campo de pesquisa. Foram transcritas, também, as falas dos coordenadores da festa e dos representantes das comunidades quilombolas da região, durante a solenidade de abertura do IX Encontro.
As entrevistas semiestruturadas foram feitas com os quatro coordenadores da festa e com dois festejadores. O objetivo foi compreendermos a importância que atribuem à festa. Além destes, três professores e o diretor da Escola Municipal Nossa Senhora Aparecida (EMNSA) foram entrevistados com a finalidade de conhecermos quais as relações que estabelecem entre o conteúdo da festa e as ações pedagógicas. A fim de assegurarmos os direitos e os deveres dos colaboradores da pesquisa, este estudo foi submetido e aprovado3 pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
É importante compreendermos que em quilombos a escola é o centro catalizador de todos os movimentos que acontecem na comunidade. Ambas se misturam como em uma simbiose. A escola é integrada à comunidade e a comunidade integra a escola. Assim sendo, cabe-nos aqui entender até que ponto o movimento dos ideários políticos, culturais, identitários e as celebrações presentes na festa também se estendem à escola.
A comunidade quilombola Campina de Pedra está localizada no município de Poconé, às margens da rodovia MT-451, denominada de Adauto Leite, a cerca de 110 quilômetros (km) de Cuiabá, capital. O acesso à comunidade é fácil, já que o trajeto é feito apenas em estradas asfaltadas. Segue-se pela BR-070 sentido Cáceres; após aproximadamente 90 km, há um trevo à esquerda que dá acesso à MT-451. Uns poucos quilômetros à frente, há o acesso à comunidade.
No trajeto, podemos enxergar uma paisagem composta de vegetações do cerrado e do bioma pantaneiro misturados a pequenas fazendas e ao agronegócio, que, aos poucos, invade a região com a monocultura da soja. Próximas à comunidade pesquisada, estão situadas várias outras comunidades rurais, tais como: os quilombos Jejum, Chumbo, Retiro, Minadouro 2, Laranjal, Capão Verde, Curralinho, Imbé, Coitinho, Cágado, São Benedito. Além disso, há os assentados (ex. Furnas I e II) e comunidades tradicionais (Bandeira). No município de Poconé, ao todo, segundo informações da Fundação Cultural Palmares, há, atualmente, 29 comunidades quilombolas certificadas.
No território de Campina de Pedra, vivem 13 famílias, que somam 30 moradores, compostos por jovens, adultos, idosos e crianças. Todos são ligados por algum grau de parentesco. As parentadas vivem nos sítios ao longo da extensão da comunidade. Algumas casas são próximas umas das outras. Há, entretanto, algumas que ficam localizadas em distâncias maiores. Campina de Pedra tem o reconhecimento como território quilombola desde agosto de 2005.
O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), reitera as narrativas históricas dos moradores da comunidade, os quais afirmam que o território de Campina de Pedra é parte da Sesmaria Formiga4 e de origem devoluta (INCRA, 2009). Teria iniciado com Benedito Mendes Gonçalves, que se estabeleceu na região no final do século XIX. Os aproximadamente 150 anos podem ser observados e sentidos em todo o espaço, nas histórias contadas com a contínua frase “eu nasci e me criei aqui” e, também, nas árvores que possuem troncos enormes, com alturas que nos permitem compreender que muitas décadas se passaram depois de seu plantio.
Dona Filomena Mendes Gonçalves, com 96 anos de idade, é a mãe de todos que residem em Campina de Pedra. É a matriarca da comunidade e única filha viva de Benedito Mendes Gonçalves. Este, segundo estudos antropológicos do Incra (2009), indica ser filho de Félix Gonçalves Netto, escravizado que ocupava essa região no século XIX, em meados de 1860. Assim sendo, são eles os principais ascendentes dos quilombolas dessa região. Dona Filomena carrega em seus 96 anos muitas histórias e lutas dos moradores que ali residem. Ela é o principal símbolo de resistência de Campina de Pedra e a guardiã da história da comunidade.
Algumas das casas são construídas de alvenaria, outras construídas de tijolos de barro cru ou com argila seca ao sol, com comprimento largo e espessura grossa, conhecido por “adobe”. Todos os moradores são beneficiados com o programa do Governo Federal “Luz para todos”5. O abastecimento de água é feito por dois poços artesianos. Nas casas, há também banheiros, construídos com recursos do Programa Brasil Quilombola. Segundo dados do Incra, do Cadastro Único (MCU), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Fundação Palmares, as 13 famílias possuem uma renda média per capita de 51,92 reais (BRASIL, 2004).
A comunidade é atravessada pelo córrego Lajeado, muito importante para o lazer dos moradores. No núcleo da comunidade, há um posto telefônico, a Escola Benedito Mendes Gonçalves. À esquerda da escola, situa-se a Igreja de São Sebastião, Santo de devoção da comunidade. Ao lado da Igreja, há um campo de futebol improvisado.
Apesar de a comunidade Campina de Pedra ter uma escola em seu território, desde 2016, a unidade está fechada devido ao processo de nucleação. Esse movimento foi alvo de reivindicação dos quilombolas de Campina. No entanto, o fechamento foi mantido pela Secretaria Municipal de Poconé/MT. Assim como Campina, outras comunidades foram afetadas por essa nucleação. Os estudantes dessa região se deslocam para a escola Nossa Senhora Aparecida, localizada na comunidade quilombola do Chumbo, localizada a 20 km de Campina.
Lócus no qual entrevistamos os três professores e o diretor, a Escola Nossa Senhora Aparecida é o principal destino educacional para os estudantes da redondeza; por isso, ela atende a muitos quilombolas, assentados e filhos dos peões que trabalham nas fazendas da região. Entre as comunidades quilombolas atendidos, estão Campina de Pedra, Água Vermelha, Campo Limpo, Laranjal e Jejum. Situada na Rodovia Adauto Leite, Km 16, a escola da Comunidade do Chumbo foi criada pelo Decreto No 06, de 30 de maio de 1974. Após alguns anos funcionando apenas com salas multisseriadas (1º a 4º), hoje, atende também aos anos finais no sistema seriado.
As análises de dados deste artigo estão alicerçadas na etnografia geertziana (GEERTZ, 2008) e emaranhada nas proposições de Bardin (1979) sobre a análise de conteúdo. Para Geertz (2008), os pesquisadores etnógrafos devem ter um olhar e uma escuta atenta e a capacidade de interpretar os significados que as pessoas atribuem às suas ações vividas. Já Bardin (1979) orienta sobre a organização das categorias de análise. Nesse sentido, construímos as categorias de análises em dois momentos: o primeiro corresponde aos registros da festa, das falas das lideranças das comunidades quilombolas de Poconé na abertura do evento, bem como dos festejadores que prestigiavam a festança; o segundo momento analítico corresponde às entrevistas com os professores e o diretor da Escola Municipal Nossa Aparecida, na intenção de evidenciarmos os diálogos, as significações e as ações existentes entre a festa e as ações pedagógicas da escola.
O festejar e suas dimensões pedagógicas e políticas
Ao refletirmos sobre as ideias de Havey Cox (1974, p. 20), ao dizer que o ser humano “[...] em sua verdadeira essência, é um homo festivus”, podemos entender que a festa sempre fez parte da humanidade, seja para celebrar a colheita, seja para realizar preces e ritos de proteção e de agradecimento às divindades e às entidades religiosas (BRUNO, 2019). Estudos como o de Abreu (2007) compreendem a festa como um fato social, político e historicamente transformado pelas formas de produção e de resistência da sociedade. Para a autora, ao traçarmos o percurso histórico da humanidade, visualizamos as práticas festivas nas expressões culturais de grupos e de comunidades aldeadas, em cidades-estado6, nas cidades feudais e nos modelos festivos da sociedade burguesa.
Guarinello (2001) coaduna com essas reflexões ao compreender a festa como uma produção cotidiana e coletiva, ocorrida em um determinado tempo e lugar, envolta de afetos, de significação e de emoção em relação a um objeto que é celebrado e comemorado. A “[...] festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa dos participantes” (GUARINELLO, 2001, p. 972). Diante dessas perspectivas, a festa como um fato social ocorre nas mais diferentes vivências festivas como celebração, resistência ou lazer decorrente do contexto em que ela é produzida. As festividades negras quilombolas, no geral, incluem todos esses elementos (CASTILHO, 2010).
Destacamos, nesta discussão, as festas populares criadas durante os processos históricos da colonização brasileira, marcadas pelos elementos culturais dos povos pretos e dos indígenas, no âmbito das festas do catolicismo popular. São exemplos a Folia de Reis, São Sebastião, São Benedito, dentre outras. Ao refletirmos sobre essa óptica, percebemos que o festejar não é apenas um espaço de reunir pessoas, mas pode ser visto como um momento de liberdade, de resistência, de troca e de reelaboração de saberes.
Para Pessoa (2008), a festa é como uma grande escola, recheada de possibilidades de interações e sociabilidade, em uma dimensão educativa e ambígua, visto que se insere na dinâmica da cultura e, portanto, suscetível às incorporações de novos sentidos e afeições. Por isso, é perceptível visualizarmos suas mudanças e suas transformações ao longo do tempo. O festejar marca em cada pessoa coletiva e individualmente os seus valores e as suas tradições. Ribeiro Júnior (1982) desvela que a festa reproduz o que a sociedade produz em termos de uma pedagogia social. Entendemos a pedagogia social como aprendizados e práticas educativas que extrapolam os muros escolares, visto que ocorrem em âmbitos da existência social humana, vinculadas ao interesse coletivo e popular propício a criar mundos novos e percepções capazes de orientar e potencializar a resistência de um povo.
Ribeiro Júnior (1982) acrescenta que a festa do povo forja pedagogicamente as vivências, as histórias de luta e a opressão, pois ela está articulada à educação popular e aos movimentos de resistência. Assim sendo, a autoridade pedagógica, para o autor, é o próprio povo exercido pelo papel dos especialistas da festa, como, por exemplo, os festeiros.
A festa do povo é o espaço festivo de celebração constituído pelos grupos subalternizados, nos guetos, nas favelas, nas comunidades quilombolas, ribeirinhas, de trabalhadores rurais e dos povos indígenas. A festa não pode, portanto, ser visualizada como insignificante, mas produtora de contextos históricos, culturais e sociais, envolta de simbolismo e de significado de um grupo étnico. Entendemos, então, que, na festa, há uma circulação de saberes e de fazeres recheados das mais ricas e variadas manifestações culturais e sociais de um povo. Saberes que os mais velhos transmitem aos mais novos nas práticas da coletividade e de solidariedade, passando pelas tradições da fé, da devoção, dos ritos, dos cantos, aos modos preparados dos alimentos como: fazer bolos, carnes, assados, temperos, dentre outros sabores (BRUNO, 2019).
Bruno (2019) afirma que os saberes festivos são elementos propositivos para um diálogo com os institucionalizados na escola, já que a “cultura festiva” reforça a (re)construção, a celebração e a memória da identidade de um povo. Pessoa (2008) oferece pistas para compreendermos como se dariam essas interlocuções, ao sugerir que a escola necessitaria entender realmente como as festas acontecem. Desse modo, os professores teriam a oportunidade de entender suas origens, suas tradições religiosas, artísticas, míticas e culturais, ou, ainda, em um sentido oposto, levariam a festa à escola, movimento em que atores sociais, entendido aqui como os festeiros, poderiam ser ouvidos para contarem as histórias, fazerem as danças, cantarem as músicas, mostrarem os vestuários que constituem o espaço festivo. Outra possibilidade é a escola pedagogicamente realizar releituras e/ou recriações das festas por meio da teatralização e de apresentações. O terceiro caminho apontado pelo autor é que a festa seja uma situação que potencialize o conhecimento sobre a diversidade cultural brasileira, por meio de debates, de reflexões, de entrevistas, de registros ou de encenações.
Para além disso, destacamos que os saberes da comunidade manifestados na festa podem retroalimentar as práticas educativas institucionalizadas na intenção de uma educação contextualizada, que viabilizam o indivíduo a aprender mais sobre si, sobre seus limites e suas possibilidades. Pessoa (2005) amplia a compreensão da perspectiva educativa da festa:
A dimensão educativa da festa expressa-se, especialmente, numa ambigüidade que lhe é intrínseca: a festa visa marcar em cada membro do grupo social os seus valores, as suas normas, as suas tradições; ao mesmo tempo em que se transforma sempre num grande balcão, numa grande demonstração das inovações, das mudanças, das novas descobertas, das novas concepções e, porque não dizer, da fecundidade das transgressões. Festejar ou simplesmente festar, como dizemos num genuíno “goianês”, é, antes de tudo, aprender o quanto temos de riqueza e de sabedoria a preservar e, ao mesmo tempo, o quanto temos a aprender com as transformações da história, com a lenta mudança das mentalidades. Quem vai à festa tem a possibilidade de aprender que o que se sabe ainda não é tudo para se continuar a viver e a reproduzir as condições de sobrevivência. Há que se abrir para o novo que cedo ou tarde acaba chegando e preenchendo nossos espaços vitais, até mesmo os de nossa habitação. Mas na festa também se pode aprender que o novo, por mais irremediável que seja, precisa ser integrado à herança que recebemos, que foi e, em muitos casos, ainda permanece sendo reconstituída, reproduzida e ensinada por abnegados artistas e sábios conservadores da cultura popular. A festa popular é o grande e fecundo momento a nos ensinar que a arte de viver e de compreender a vida que nos envolve está na perfeita integração entre o velho e o novo. Sem o novo, paramos no tempo. Mas sem o velho nos apresentamos ao presente e ao futuro de mãos vazias. (PESSOA, 2005, p. 39).
A festa, em especial as populares, são um mecanismo social de interação, de ressignificação da história, da memória, da cultura, da experiência do velho para constituição do novo, da identidade e do pertencimento daquilo que nos demarca como pessoa na sociedade. Assim, entendemos que a festa é um espaço de transmissão de saberes tradicionais da oralidade, da gestualidade, da sonoridade, de manifestações corporais, da história em uma integração constante entre o passado e o presente.
Grando (2004) nos dá pistas para compreender o espaço da festa como um contexto oportuno de reconhecimento de diferentes culturais que convivem e interagem. Para a autora, nas relações do festejar com o outro, as dimensões simbólicas se entrelaçam como fronteiras, e identificamos a constituição das identidades dos festejadores. Em suas palavras, a festa
[...] associa diferentes elementos que se conformam num espaço social singular concorrendo para a compreensão das relações entre os participantes. Como um grande ritual que passa por diferentes momentos e práticas, ela pode se configurar como importante momento de educação do corpo, conseqüentemente de fabricação da pessoa. (GRANDO, 2004, p. 192).
O corpo é um meio essencial de expressão e de comunicação, pois, nele, as marcas da cultura são transcritas; então, ele é parte privilegiada da festa, é expressão da vida que escorre dos momentos de celebração. A festa é constructo, e o corpo é luz, sombra, memória material e narrativa (SOARES, 2014).
Nos espaços da festa, um conjunto de valores e trocas simbólicas são compartilhados, adquirindo significados particulares. No entanto, ao unirem-se coletivamente, são fatores constitutivos de relações e de modos de organização social (ANJOS, 2013). Assim, a festa e o corpo são marcados pelos saberes da cultura imaterial e material; afinal, pelo/no corpo são expressos os diferentes sentidos, símbolos, culturas e linguagens revelados na dança, na socialização, nos gestos, nos cantos, nos ritmos e nos sons.
Ao focarmos nas festas de comunidades quilombolas e/ou nos elementos afros, Castro Júnior (2014) chama atenção para percebermos que, nas relações históricas entre o colonizador e o colonizado e na violência cometida sobre os corpos pretos e indígenas, há resistência e luta contra a repressão. Assim, para o autor, há uma relação entre o passado e o presente manifestada no corpo festivo.
Este passado-presente pós-colonial ilumina as inúmeras histórias acumuladas na arte do corpo fazer a festa. Revelam uma dimensão estética e política, cujos desdobramentos culturais estão nas multiplicidades de reinventar as formas e as coisas, de conviver com a intolerância e a indiferença; de sentir a exclusão dos bens materiais de consumo, de educação e de saúde, de ter força para festejar sem pestanejar, de se juntar com o diferente, o estranho para criar enredos corporais, por fim, de criar táticas de resistência muitas vezes marginais ao discurso dominante. (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 30).
Desse modo, o espaço da festa é uma prática social de relações intensas, em que os corpos se encontram, celebram, (re)vivem sua cultura, seus ritos e reivindicam. É o local onde se constrói formas para contar sua história e suas manifestações culturais invisibilizadas pelo poder hegemônico, apontando e despertando a consciência de si e do outro. Indo além, Ribeiro Júnior (1982) nos permite refletir que a festa carrega um caráter político na medida em que se manifesta a proclamação e a consciência da opressão sentida pelos diferentes grupos étnicos. Assim, nesse campo de luta e resistência, é possível contemplarmos, no território brasileiro, diferentes festas repletas de singularidades, expressões, musicalidades, balanços, gestos, danças e ritmos.
Olhando pela lente do pensamento decolonial proveniente de uma propositura teórica crítica e que busca a constituição de um projeto que confronta os saberes, dizeres e fazeres dominantes e hegemônicos que ocultaram e ocultam os diferentes demarcadores sociais de raça, gênero, sexualidade e etnia, é possível visualizarmos o espaço da festa como um movimento decolonial. Afinal, as práticas festivas que ocorrem em contextos de lutas e de resistências são insurgentes e necessárias para a superação do projeto colonial, da matriz dominante branca e europeia, já que resultam em outras formas de ser, pensar, sentir e agir. É, portanto, um processo que se assenta na valorização dos saberes ancestrais, tradicionais, de maneiras de ler o mundo para compreender, (re)aprender e atuar no presente (QUIJANO, 2005; WALSH, 2009).
Para Quijano (2005), a modernidade e a colonialidade produziram relações de poderes que impõem um padrão universal e aceitável de ciência e epistemologias, de modos de ser, pensar e fazer, que subordinam e invisibilizam outras vivências, experiências e saberes. Instituíram uma hierarquia racializada das diferenças históricas, culturais e linguísticas, de indígenas e de negros, culminando em diversos modos de preconceitos em favor de uma hegemonia da colonialidade/modernidade eurocêntrica (WALSH, 2009). Entendemos, então, que é uma forma de instrumento de dominação social, de conflito, de exploração, de subalternização e de encobrimento de outras experiências de ser e de estar no mundo. Diante desse cenário, é pertinente afirmarmos o espaço da festa como denúncia e resistência. Como Castro Júnior (2014, p. 18) nos ajuda a pensar,
[...] os corpos dos artistas-festivos são marcados pelos saberes-sabor da cultura imaterial e material, porém também marcados pelo açoite da opressão sofrida e por outros meios de se fazer adestrar, disciplinar, controlar e amansar “simbolicamente” os corpos, e, que nos tempos atuais, os açoites são outros, mas a dor é a mesma dor da humilhação, da intolerância e da indiferença. (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 18).
Para tanto, podemos entender que os momentos festivos são estratégias e rupturas que narram experiências históricas produzidas pelas “[...] interconexões dos corpos-culturais que constituem uma das formas mais reveladoras do modo de ser de um grupo, de uma cidade e de um país, é nesse espaço ‘intervalar’, que ficam suspensas algumas normas sociais e outras são invertidas” (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 26-27). Desse modo, a configuração da festa, em especial as festas populares, não condiz com a lógica epistêmica da modernidade e da colonialidade, já que se torna espaço que possibilita e colabora com a construção e o fortalecimento das identidades daqueles que participam e produzem a festa.
A festa quilombola: as ações políticas e a educação escolar
Apesar de as festas em comunidades quilombolas possuírem similaridades, elas resguardam algumas singularidades que variam de acordo com a sua intencionalidade e com a dos grupos que as organizam: se são festas religiosas, cívicas, esportivas ou comemorativas. No entanto, percebemos, durante a pesquisa de campo, que a festa realizada anualmente para celebrar o dia 20 de novembro, assim como outras de caráter religioso, o que se destaca é principalmente a dimensão política, se configurando como um instrumento articulador das comunidades quilombolas de Poconé/MT.
O evento observado e descrito neste texto foi o XI Encontro Quilombola realizado em novembro de 2015 em comemoração ao Dia da Consciência Negra. É uma ação idealizada pelas comunidades quilombola de Poconé e se tornou uma festa tradicional que vem sendo realizada há mais de 10 anos (2005-2019)7. Durante o evento, são oferecidos, aos que o prestigiam, muitas apresentações culturais e comidas tradicionais e, também, tem se configurado como um momento de celebração, de reflexão e de engajamento político da coletividade.
Segundo Teófilo, um dos organizadores da festa, o encontro Quilombola é um evento que “nasceu de conversas”. Sua primeira edição foi em 2005, quando duas comunidades quilombolas se uniram e compraram dez quilos de carne moída para servir aos moradores e celebrarem tocando o siriri8 e o cururu.9 A partir dessa iniciativa, a festa não parou mais; ela foi crescendo a cada edição, chegando a receber três mil festejadores. As edições da festa foram distribuídas entre as várias comunidades negras rurais da região: Campina de Pedra (2005, 2006, 2015), Capão Verde (2007, 2016), Tanque do Padre (2008, 2017), Laranjal (2009, 2019), Chumbo (2010, 2018), Jejum (2011), Morrinhos (2012), São Benedito (2013), Cágados (2014).
A comemoração ocorre durante um dia inteiro, mas não necessariamente na data de 20 de novembro, pois os quilombolas buscam o dia em que todas as comunidades possam participar. A festa é organizada pela Coordenação Executiva das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Poconé/MT. Conforme informação de uma integrante da comissão, a partir do segundo semestre do ano, os preparativos da festa são intensificados com reuniões que acontecem mensalmente. As comunidades recebem apoio da Secretaria de Cultura do município de Poconé, de empresários da região e da Seppir. Contudo, o trabalho coletivo das comunidades é decisivo para a organização e a efetivação da festa.
O coletivo que se reúne para realizá-la conta com a doação e a partilha dos alimentos para o café da manhã e almoço. Cada comunidade fica encarregada de levar um determinado gênero alimentício, geralmente ingredientes para o preparo dos pratos típicos do local, o que engrandece ainda mais a identidade quilombola e intensifica o valor simbólico e cultural daquele momento. Segundo Mikhail Bakhtin (1987 apud ÁGUAS, 2012), a partilha e o banquete farto têm relações com o desfrutar dos “frutos do suor”; têm, ainda, ligação com a vitória, com o criar ou reforçar laços. Nas palavras do autor,
[...] no sistema das imagens do povo trabalhador, que continua a ganhar a vida e o alimento no combate, que é o trabalho, que continua a devorar a parte do mundo que acaba de conquistar, de vencer, as imagens de banquete guardam sempre [...] sua ligação essencial com a vida, a morte, a luta, a vitória, o triunfo, o renascimento. [...]. [Essas imagens] continuaram a desenvolver-se, a renovar-se e enriquecer-se de novos matizes, a estabelecer ligações novas com os novos fenômenos. Cresceram e renovaram-se simultaneamente com o povo que as criou. (BAKHTIN, 1987 apudÁGUAS, 2012, p. 326).
Nesse sentido, as festas são integradas por um todo de realidade e fé, pois se não houver muito o que comer na festa, acredita-se que não haverá fartura no futuro. Outra dimensão importante da festa é o mutirão para o preparo dela. Esse mutirão é dividido entre os afazeres da cozinha, comandado em sua maioria pelas mulheres. O preparo do churrasco é função dos homens, e as responsabilidades com o cerimonial ficam a cargo dos organizadores. Esses momentos configuram-se como uma verdadeira confraternização. Os laços de parentesco, de compadrio e de amizade são reforçados, estreitados e novas relações são criadas. Durante o trabalho, contam-se causos, relembram fatos antigos, riem; enfim, é uma verdadeira festa de véspera, anterior à festa propriamente dita (CASTILHO, 2010).
A festa é dividida em três momentos: o pronunciamento das autoridades, espaço destinado para a manifestação dos anseios relativos às políticas públicas e de afirmação racial; a apresentação cultural, com um caráter artístico, mas fortemente carregado de elementos da cultura afro-brasileira, portanto de afirmação identitária; e o baile, que é um momento de lazer para todos. No decorrer da festa, ainda são ofertadas várias oficinas de valorização da beleza e da cultura negra, como, por exemplo, oficina de tranças. Ao final da festa, os cabelos trançados tomam conta do visual das crianças e dos adultos.
Nos discursos, os gritos de “Viva Zumbi dos Palmares” ecoam nas falas das autoridades/dos organizadores, revelando a intenção afirmativa de um grupo que viveu e vive invisível na óptica da sociedade mais abrangente. O momento da fala dos representantes das associações quilombolas é uma parte da cerimônia que preenche quase que o período da manhã inteira. É ali que a voz do grupo, silenciada por tempos, pode ser ouvida em tom eloquente, carregada de sentimentos de desopressão, de liberdade. Esse momento é de reivindicação: “Porque eu luto pela minha comunidade, vamos reivindicar e depois sambar”, diz Teófilo, em sua fala à comunidade. Segue uma dessas vozes:
Eu peço aqui que os vereadores não têm que vestir a camisa do partido. Tem que caminhar junto com o prefeito, para que seja feito, seja para a comunidade, para o povo, porque fomos nós que colocamos vocês lá. E vocês tem que olhar para comunidade, bairro. Quero dizer que essa festa é muito importante e muita gente queria estar aqui [...] porque o negro hoje em dia tem [sofre] muita discriminação, a gente vê na rede social, na escola. E feliz é a escola que luta por essa causa nossa. Que desde pequenino ensina a valorizar a sua cor, a sua raça e que os pais saibam incentivar para que ele saiba lutar pelo seu direito desde pequeno e tornar-se grande cidadão do bem. Queremos médicos, advogados, juízes, queremos várias coisas boas para nossa comunidade. E quero aproveitar o ensejo para dizer que alguns querem fechar as escolas quilombolas; então, mais uma vez prefeita, eu te peço: em nome da minha comunidade [São Benedito] que não feche as escolinhas, que é mais uma raça que está se perdendo; então, eu acho injusto deslocar criancinhas pequenas para outra comunidade. Então emu peço, jamais uma escola deve ser fechada, por mais que seja um aluno, eu acredito que ele tem o direito de estudar lá. Então, esse é o pedido que te deixo, que olhe para todas as nossas crianças que o futuro do Brasil depende deles. (Professora e liderança da comunidade Quilombola São Benedito).
Percebemos que as autoridades se fazem presentes nas festas. Elas são cobradas com contundência pelas lideranças quilombolas. As variadas queixas presas na garganta escapam com eloquência e emoção. As vozes que silenciam o ano inteiro, nesse instante, ecoam ensurdecedoramente. As autoridades presentes se postam como atenciosos, sensíveis, compreensivos em relação às causas reivindicadas, embora, após a festa, poucas mudanças efetivas ocorrem. No entanto, os quilombolas não se calam.
A quilombola Benedita da comunidade do Tanque do Padre reafirma suas lutas:
Quero aqui lembrar os marcos legais que nos leva enquanto sujeitos de direitos de reivindicar educação, esporte, lazer, segurança e direito à terra. [...]. E temos que continuar lutando porque nós somos sujeitos de direitos e não temos vergonha de cotas que estamos pleiteando. porque o branco também teve cotas, o branco também vive de cotas, embora isso não seja de conhecimento de todos. mas, que nós, enquanto negro e quilombolas termos cotas, isso para nós é uma conquista, porque estamos reivindicando aquilo que foi negado para nós. Foi negado no momento em que nos descendemos de povo africano que veio em situações, em condição de escravizados, então, por isso temos que reivindicar. Porque, se não reivindicarmos, nós não iremos conseguir e não iremos avançar [...]. (Professora e liderança da comunidade do Tanque do Padre).
Esses dois trechos de discursos são representativos dos vários outros que foram proferidos na festa. Há de ressaltarmos na voz da professora a consciência que ela tem da causa que defende, dos conhecimentos históricos que possui e da tenacidade de sua expressão. A história da escravização, do abandono do negro pós-escravidão, sobre o racismo, o preconceito e a marginalização dos afrodescendentes foram reiteradamente lembrados e repudiados nos discursos. Foi interessante observarmos o silêncio das pessoas na plateia, na audição: as crianças, os jovens, os idosos da comunidade ouviam atenciosamente, balançando, por vezes, a cabeça, em sinal de aprovação.
Assim, a festa tornou-se espaço privilegiado de reivindicações e, também, de afirmações identitárias, na medida em que busca elementos que liguem os quilombolas ao passado comum que é a descendência escravizada, mas libertária. Para um dos membros da Coordenação Executiva das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Poconé e da organização da festa, aquele momento “[...] faz lembrar aquele tempo em que os negros estavam na senzala”.
As apresentações do XI Encontro Quilombola foram: a capoeira, geralmente realizada por grupo de Cáceres e Poconé; carimbó10, o maculelê11, do município de Cáceres, que são resultado de grupo de dança ou de projeto da escola12. Também brindou o evento o ritual da umbanda de Poconé/MT.
Na celebração da umbanda conduzida por Dona Leila, moradora de Poconé/MT, pudemos observar o sincretismo religioso. Para Valente (1977), o sincretismo caracteriza-se por uma intermistura de elementos culturais, de várias matrizes religiosas, tais como do candomblé, do espiritismo kardecista, do catolicismo e dos rituais indígenas. Valente (1977) diz que é muito frequente nos cantos dos salões festivos dos terreiros ter um pequeno santuário católico; nele, encontra-se o santo principal, ao qual a mãe ou o pai de santo consagra devoção especial. Essa situação descrita por Valente (1977) é reiterada na fala de Dona Leila: “[os negros] batiam aquele couro seco e iam saudar seu povo, seus santos escondidos do senhores”. Esse movimento híbrido e sincrético provém da resistência da população negra para manter suas manifestações religiosas.
A mãe de santo, Dona Leila, durante sua fala, assinalou o importante papel dos professores e da escola, na investidura da superação da intolerância religiosa nesse ambiente. Sua emblemática narrativa denuncia os preconceitos que permeiam os diferentes contextos da nossa sociedade e da educação, em relação a esse modo de fé, e, mais uma vez, reafirmou sua identidade e sua postura política e de luta na defesa de sua crença. Dona Leila assim pronuncia:
Aqui tem muita gente falando em educação, eu quero aqui pedir: senhores professores ensina na sua escola, que nós da umbanda não somos macumbeiros. [...]. Macumba é uma árvore que nasce lá pelos confins do sertão e é dessa árvore que faz esse instrumento que se chama “macumba”, que macumbeiro é quem toca. Então, eu peço para todos os professores estudados da religião que ensina seus alunos a não discriminar, porque minha neta foi recriminada na escola, porque ela é da umbanda. A umbanda é uma religião, é uma cultura dos negros, porque nós somos negros e não temos vergonha de pisar de pé descalço e andar com o cabelo seco na cabeça, porque é a minha raça é nossa raça e é minha cultura. Então, o que custa ter uma palestra na escola? [...] por que a criança umbandista não entra com o colar no pescoço? Por que já é macumbeiro? Já é congueiro? Ele nem sabe o que é congar. Congar é simplesmente o altar aonde aqueles negros sofridos que não podiam falar em nome de santo. Que coloca aquela tábua e batia aquele couro seco e iam saudar seu povo, seus santos escondidos do senhores. Então é essa minha cultura! (Liderança da umbanda de Poconé).
A fala dessa liderança demonstrou, como várias outras, sabedoria e firmeza. O tom das vozes deixava transparecer uma nuance de cansaço, de ressentimento, de dor, mas também de muita esperança, que a própria circunstância da festa permitia, ou levava a crer que há mudanças em curso, e, portanto, seria possível que suas reivindicações fossem atendidas.
Na festa, outro aspecto importante é a celebração das raízes culturais da região. Em suas sucessivas edições, ramificaram-se e fortalecem o movimento de luta e de reivindicação das comunidades quilombolas de Poconé. Nesse sentido, as apresentações artísticas somam-se às formas de reafirmar a cultura negra, já que o encontro reúne grande diversidade cultural. São manifestações sendo feitas com o corpo, como se as práticas corporais apresentadas assumissem um papel na resistência do grupo na luta diante dos direitos negados.
Os mecanismos de resistência cultural e de tradições residem nos sentimentos de satisfação e também de sofrimento que fundamentam os processos dialéticos presentes no mundo social e que, ao mesmo tempo, levando em consideração os fatores contextuais do ambiente cultural e simbólico, são os responsáveis pela história do surgimento do acontecimento festivo, tornando-se a festa/dança um fator expressivo-popular contribuinte para a construção identitária do sujeito festivo. (ANJOS, 2013, p. 18).
A maioria dos moradores das comunidades participou da festa, algumas pessoas se dedicaram a prestigiar as apresentações culturais, outras compartilharam apresentações da cultura local como a poconeana, cuiabana e/ou cacerense, e outras permaneceram nos bastidores trabalhando no preparo da comida e demais logística importante para o sucesso da festa. Há, nesse contexto, grupos de danças que se exibem, por meio do movimento, e celebram as manifestações negras.
Os jogadores da capoeira marcaram o ritmo da luta pelo toque do tambor e do berimbau, e, com isso, transformaram a ambiência. Nos olhares das pessoas que assistiam, foi possível perceber as emoções; não apenas pela beleza dos corpos dançantes, ou pelas batidas sonoras, mas também pelo canto forte entoado pelo grupo da capoeira, quando este contou a história negra de bravura, de resistência, de valorização das culturas originárias que eles não presenciaram, mas, naquele momento, puderam sentir-se parte dela.
Assim como a capoeira, a apresentação do maculelê envolveu o público, os bastões nas mãos dos dançantes tocam um no outro dando compasso aos cânticos. Os passos reproduzidos simbolicamente pelo corpo contavam a história de resistência e luta. O ritmo dos movimentos intensos era percebido não apenas pela tonicidade dos músculos, mas também pelos olhares daqueles que se apresentavam e dos que assistiam. Naquele momento, o maculelê tinha a intenção de atingir os visitantes com sua presença marcante de resistência à sociedade opressora.
O carimbó foi outra apresentação que empolgou aqueles que o assistiam de maneiras diferentes da capoeira e do maculelê. As grandes saias floridas, ao mesmo tempo em que insinuavam mostrar o que não podia ser visto, mediava a curiosidade dos espectadores mantendo o segredo das mulheres. A mudança na expressão dos dançantes nessa apresentação também foi bastante clara, pois os olhares marcantes deram lugar a um semblante sorridente e encantador. As poucas partes desnudas das mulheres mantinham o segredo e a sensualidade da dança. Os homens dançantes, com suas fisionomias alegres, acompanhavam as mulheres e se exibiam ao público com seus giros que desenhavam uma imagem alucinante no salão.
As manifestações acima descritas são elementos culturais que não são originários do cotidiano de Campina de Pedra, assim como de outras comunidades quilombolas que lá estavam presentes. Todavia, todo o conteúdo e rito festejavam a simbologia e a cultura afrodescendente, por isso a identificação das pessoas da comunidade. Os processos de hibridação, iniciados no período colonial e em processo, contemporaneamente, transformaram e transformam as relações culturais e sociais originários. Nesse sentido, os quilombolas de Campina de Pedra se reconhecem e se reafirmam nas manifestações mato-grossenses, na dança do siriri e do cururu.
Contudo, aquelas manifestações, no momento das apresentações, provocaram um sentimento de pertencimento, fazendo com que os quilombolas apreendessem, como seus ancestrais, a manifestar essa identificação de modo natural. Em entrevista, Dona Catarina relembrou as grandes apresentações que presenciou: “essa mulher aí [apontava uma dançarina que apresentou a dança afro] dançou bonito, mexia [o ombro] assim [Dona Catarina fazia o movimento de subir e descer remexendo os ombros], descia até lá embaixo, bonito de se ver”. O momento descrito por Dona Catarina demonstrou não apenas o fascínio para com aquela que dançava, mas seu próprio corpo recordou o passo e, principalmente, a sua simbologia. Os olhos de Dona Catarina e o vai e vem de seus ombros acompanharam seu sorriso singelo e profundo, mas o mais marcante era a alegria de quem reconheceu naquelas danças a sua própria ancestralidade.
O baile assume o lugar central do evento, é o momento de lazer de todos, inclusive dos visitantes. No salão, ao som de ritmos tradicionais mato-grossenses, mulheres e homens, idosos e crianças dançam sem demonstrarem desgaste algum, mesmo diante de um ritmo intenso e agitado, como é o rasqueado mato-grossense ou o lambadão. Os dançantes revelam como os aspectos cultural e social moldaram sua maneira de “servir-se” do seu corpo. Para Mauss (1974). estão no corpo as marcas produzidas pelo contexto cultural ao qual o sujeito pertence.
O conjunto de manifestações culturais vividos no evento ressoa como importante para a afirmação étnica dos quilombolas das comunidades, visto que ela aglutina muitos traços da cultura negra que se encontram diluídos, conservados e integrados à cultura mato-grossense e brasileira, apesar das relações de poder em ação nesse processo histórico os quais modificaram e transformaram as manifestações originais dessas populações. Nesse sentido, ao adentrarmos uma comunidade quilombola, devemos entender que, nesses espaços, as relações também foram reconstruídas, que os contatos interculturais forçaram que fossem submetidas às fusões étnicas, culturais, religiosas e identitárias.
Resta perguntarmos: Como a escola dialoga com toda essa simbologia negra e grito de libertação emanados pela festa? No Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola Nossa Senhora Aparecida, consta que se deve trabalhar conteúdo da “[...] cultura e costumes regionais. Danças regionais, músicas, culinária e outros” (EMNSA, 2015, p. 31). Ações como essas descritas, foram frequentes na escola segundo os professores e a gestão. Com o projeto13 “Mais Educação”14, organizado pela coordenadora da escola, “[...] foi voltado pra área remanescente quilombo e sua cultura. Cultura afro. Até mesmo quando ela foi diretora, ‘No Mais Educação’, eles colocaram a modalidade de dança africana” (Elvis, diretor da escola do Chumbo, entrevista realizada em março de 2016).
Além dessa iniciativa, a escola desenvolveu ainda o projeto “Quebrando Barreiras do Preconceito”, que tem por objetivo fazer um trabalho que valorize a diversidade étnico-racial, o direito à cidadania, o reconhecimento e a valorização da cultura quilombola. A organização desse delineamento abrange todas as disciplinas e todas as turmas.
No que tange às Orientações Curriculares mato-grossenses, o referido documento sugere propostas de “[...] elementos culturais ligados e expressões corporais advindas dos grupos étnicos raciais; práticas esportivas nas diversidades culturais quilombolas; jogos, brincadeiras, capoeira e outros” (MATO GROSSO, 2010, p. 26). Nesse sentido, as práticas corporais, tais como as danças e outros movimentos culturais, como ações pedagógicas, ampliam as dimensões da educação. Para Silva (2014, p. 16), as práticas corporais devem ser consideradas como “[...] concepção teórica, como prática profissional e como políticas sociais. As características que definem o conceito de práticas corporais são, também, princípios de ação que vão sendo mobilizados na intervenção profissional em Educação Física [...]”.
No entanto, o fazer pedagógico docente está inter-relacionado com a sua formação profissional. Nesse cenário, a educação quilombola carece de atenção das políticas públicas, sendo uma das reivindicações dos professores. Os professores não se veem preparados para converter as experiências da vida comunitária dos alunos em conteúdos pedagógicos. Como bem podemos confirmar na fala de um professor:
[...] acho que não só eu, mas os demais educadores, não estão bem-preparados. Inclusive os próprios educadores de regiões quilombola não dão muita ênfase a isso, devido à estrutura que vem da Secretaria Estadual e da Secretaria Municipal [...], com políticas mais amplas em cima disso para aperfeiçoar melhor um professor próprio no quilombo. [...] é você saber trabalhar, lidar com essas questões. Trabalhar um pouco mais com os professores em cima disso, dar mais capacitação, mais materiais em cima disso. (Professor Altair).
Para assegurar qualidade na educação escolar quilombola, no pressuposto do que as diretrizes curriculares exigem, no sentido de que esteja contextualizada com os fazeres culturais, com o legado histórico e identitário das pessoas, faz-se necessário que os professores/educadores, agentes de transformação da realidade na qual estão imersos, recebam formação adequada que atenda a essas necessidades.
No chão das escolas, nas comunidades quilombolas em todo o Brasil, ainda existem vários desafios a serem enfrentados. Nesse escopo, estão múltiplas reivindicações para assegurar atividades docentes que garantam a qualidade do ensino-aprendizagem na inter-relação entre o local e global. Uma das reivindicações é a formação específica de professores que atuam nas escolas quilombolas, para que seja possível desencadear um processo importante de apropriação de saberes para escola e para a comunidade, modificando tanto a relação dos professores quanto dos estudantes e da comunidade em relação à denominação “escola quilombola” e o reconhecimento das identidades locais (FERREIRA, 2015).
Por conseguinte, contextualizar as manifestações culturais dos quilombolas nas aulas é uma medida tocante para a formação integral do educando. Em suma, as práticas culturais dos festejos, da religiosidade, das brincadeiras, dos jogos e das danças, são, como diz Barth (1998), os diacríticos demarcadores da identidade. Desse modo, o espaço escolar deveria valorizá-las - não no sentido de apenas ver a importância, mas interagir, trocar e incluir nas suas dimensões pedagógicas.
Considerações finais
Neste artigo, buscamos demonstrar a dimensão política da festa de 20 de novembro realizada na comunidade quilombola Campina de Pedra/Poconé/MT e compreender como a escola dialoga com toda a simbologia negra que a perpassa. Como visto, o encontro em comemoração ao Dia da Consciência Negra não é uma ação exclusiva da comunidade Campina de Pedra. É fruto de discussões que envolvem lideranças quilombolas do local, uma vez que a comunidade dispõe de uma liderança sólida. A festa alimenta os anseios de afirmação identitária do grupo e mobiliza o sentimento de pertença deles. Ademais, a grandeza do evento demonstra como os quilombolas possuem visão e diálogos políticos importantes que os apoiam em suas experiências nos movimentos sociais.
Suas ações políticas, por meio das festas de valorização e de afirmação identitária, fomentam a discussão em torno do direito do grupo de ter reconhecidos os seus valores simbólicos e direitos sociais. Nesses eventos, os laços de parentesco e de amizade são reforçados e renovados. É um momento de união dos filhos, netos, sobrinhos e dos que migraram para cidade. Da mesma maneira, esses laços de parentesco e pertencimento revigoram as lutas coletivas da comunidade.
Percebemos que os momentos festivos são propícios para o fortalecimento e para as afirmações identitárias, um espaço em que se constrói e se revivem histórias, ritos e manifestações culturais. São saberes que circundam a ambiência da festa; assim, é possível entendê-la em uma dimensão educativa que se articula aos movimentos de resistência e de lutas de um grupo étnico. Nesse sentido, a festa é uma celebração produzida pelos grupos subalternizados, como quilombolas, indígenas, ribeirinhos, comunidades rurais e tradicionais marcadas por um projeto colonial, hegemônico e violento, que ocultam as suas maneiras de ser, de sentir e de ler o mundo.
Diante dessa reflexão, percebemos que o espaço festivo e as manifestações produzidas nessa ambiência contrapõem a lógica epistêmica da modernidade e da colonialidade, sendo, então, um elemento potente de diálogo com o contexto escolar. No que se refere a esse aspecto, a escola Nossa Senhora Aparecida demonstra timidez em fazer intercomunicação pedagógica com a festa, pois, às vezes, se distancia da dinâmica política e étnico-racial afirmativa dela. As pesquisas nesse campo têm demonstrado a importância da existência de um currículo incorporado e correspondente ao universo histórico, social e cultural dos quilombos. Tais ações seriam primordiais na construção de uma educação afirmativa.