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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 31-Maio-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.22679.023 

Artigos

Profanação e autopoiese: dinâmicas formativas como vivências éticas em âmbito educativo

Desecration and autopoiesis: training dynamics as ethical experiences in the educational context

Profanación y autopoiesis: dinámicas formativas como vivencias éticas en el ámbito educativo

*Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Educador aposentado. E-mail: <striederroque@gmail.com>.

**Doutora em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). Professora da Rede de Ensino Municipal de Monte Carlo, Santa Catarina. E-mail: <araceli.girardi@gmail.com>.

***Doutora em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), campus Joaçaba. E-mail: <dilva.benvenutti@unoesc.edu.br>.


Resumo

Existe um desafio sempre renovado de repensar a educação e suas possibilidades formativas. Dentre as inúmeras variáveis que envolvem esses debates, reside o das possibilidades éticas em uma contemporaneidade que tem no individualismo e no produtivismo os suportes fundamentais para a captura da subjetividade do ser humano. Diante dos dispositivos biopolíticos que submetem os seres humanos às angústias da insegurança na absolutização do eu, desejamos desenvolver, neste texto, reflexões trazendo pressupostos epistemológicos amparados prioritariamente em Giorgio Agamben, Humberto Maturana, Francisco Varela e Ximena Dávila Yáñez, que, apesar de serem diversos em suas abordagens, profanam o tradicionalismo advindo da lógica da objetividade, da massificação, das verdades absolutas, da obediência cega, entre outros. Nosso objetivo visa compreender, como desafios educativos, os convites para diferentes usos do potencial formativo a serem reconstruídos em rodovias da corresponsabilidade ética, da justiça e da liberdade. Trata-se de estudo bibliográfico de ordem qualitativa. Somos seres humanos e, como tais, não predeterminados, o que abre as portas para escolhas para responsabilidades e liberdade, tornando possível dinâmicas formativas para uma existência ética.

Palavras-chave: Educação; Autopoiese; Dinâmicas formativas

Abstract

There is an ever-renewed challenge of rethinking education and its training possibilities. Among the countless variables that involve these debates, it lies the ethical possibilities in a contemporary world that has individualism and productivism as the fundamental pillars for capturing the subjectivity of human beings. In view of the biopolitical devices that subject human beings to the anxieties of insecurity in the absolutization of the self, we wish to develop, in this text, reflections grounded in epistemological assumptions primarily supported by Giorgio Agamben, Humberto Maturana, Francisco Varela and Ximena Dávila Yáñez, who, despite being diverse in their approaches, they desecrate traditionalism arising from the logic of objectivity, massification, absolute truths, blind obedience, among others. Our objective aims to understand, as educational challenges, the invitations for different uses of the training potential to be reconstructed into highways of ethical co-responsibility, justice and freedom. This is a qualitative bibliographic study. We are human beings and, as such, not predetermined, which opens doors to choices, responsibilities and freedom, making formative dynamics possible for an ethical existence.

Keywords: Education; Autopoiesis; Formative dynamics

Resumen

Existe un desafío, siempre renovado, de repensar la educación y sus posibilidades formativas. Entre las numerosas variables que involucran esos debates, está el de las posibilidades éticas en una contemporaneidad que tiene, en el individualismo y el productivismo, los soportes fundamentales para capturar la subjetividad del ser humano. Delante de los dispositivos biopolíticos que someten a los seres humanos a las angustias de la inseguridad en la absolutización del yo, deseamos en este texto, desarrollar reflexiones trayendo supuestos epistemológicos, amparados prioritariamente en Giorgio Agamben, Humberto Maturana, Francisco Varela y Ximena Dávila Yáñez, que, a pesar de ser diferentes en sus enfoques, profanan el tradicionalismo oriundo de la lógica de la objetividad, de la masificación, de las verdades absolutas, de la obediencia ciega, entre otras. Nuestro objetivo es comprender, como desafíos educativos, las invitaciones para los diferentes usos del potencial formativo, para ser reconstruidos en caminos de la corresponsabilidad ética, de la justicia y de la libertad. Se trata de un estudio bibliográfico de orden cualitativo. Somos seres humanos y, como tales, no predeterminados, lo que abre las puertas para elecciones para la responsabilidad y libertad, haciendo posible dinámicas formativas para una existencia ética.

Palabras clave: Educación; Autopoiesis; Dinámicas formativas

Considerações iniciais

Permanece atual o desafio de repensar a educação, em particular, a partir do debate sobre as possibilidades éticas na contemporaneidade, que tem no consumismo um elemento constituinte de subjetividades e, em um mundo ferido pela violência, pela injusta distribuição dos bens materiais e culturais, o abuso do poder como biopolítica1 e as ameaças do fascismo, que mata o humano. Diante do monstruoso fosso existente entre ricos e pobres, naturalizando a desigualdade, reina, sobremaneira, a maldade alimentada por injustiças, opressões e indiferenças.

Um cenário que torna relevante a proposição de dinâmicas formativas sensíveis às ameaças de novas barbáries. Barbáries que emergem do e no processo civilizatório que, embora tenha sido anunciado como um arcabouço para a distribuição da justiça, com a instituição de um poder para fazer justiça entre os humanos, contribui mais uma vez para a instalação dos riscos da maldade (Barrientos-Parra, 2014). Temos um poder político transformado em biopolítica alimentada por ideologias e fazeres de violência que negam a promessa dos espaços de liberdade. Ao institucionalizarmos a biopolítica, institucionalizamos a negação e a maldade contra o outro. Legitimamos as desigualdades e as fundamentamos racionalmente, como ferramentas para trucidar a outros.

A biopolítica, de mãos dadas com a racionalidade toyotista/neoliberal, gera uma economia política, cuja meta é governar a liberdade dos outros, administrar suas vontades, dirigindo-as para metas previamente estabelecidas. No estofo da biopolítica, cria-se uma ilusão de liberdade que, na contemporaneidade, passa a significar liberdade produzida como subjetividade capitalista, cuja lógica perpassa todas as relações nas mais diversas instâncias, inclusive escolares. Essa lógica transforma os sujeitos em consumidores compulsivos, sedentos por prazeres rápidos e de intensidades instantâneas. No universo dessas ações desmedidas, geramos relações compulsivas, alimentamos nossa depressão, nosso solipsismo e, ao nos enclausurarmos no interesse próprio, sustentamos a competição e o princípio da concorrência precarizando nossas vidas e nossos viveres, o que resulta em uma imensa redução de nossa condição humana. Vivemos uma situação de crise cultural, um campo minado capaz de alimentar, em nossa contemporaneidade, a confusão extrema com mais barbárie, mais maldade e ameaças de presença fascistas.

De certa forma, a contemporaneidade turbulenta exige que cada ser humano seja sujeito e objeto de seu governo, convencido da inteira responsabilidade pelo presente e pelo futuro, como indivíduo. Um ser empresarial que se realiza na satisfação dos fazeres enquanto a reflexão se retrai como algo totalmente prescindível, reforçando a sensação de vazio interior. Um vazio que fragiliza o horizonte de esperanças, alarga a incapacidade para opções profundas de sentido e, por isso, radicaliza a violência e ostenta cada vez mais o desiquilíbrio nos índices de agressividade humana, seja em forma de terrorismo, conflitos étnicos e religiosos, tanto quanto a delinquência e violência rural, urbana, política, escolar, entre outras. Como consequência, temos o desencadeamento, mais uma vez, em índices preocupantes de inúmeras enfermidades psíquicas e psicossomáticas. A reclusão do ser humano em um si mesmo solipsista e na fria lógica da técnica e da cronometria o lança cada vez mais na cegueira e no vazio angustiante do desconhecimento do sentido de sua vida e de seu viver.

Capturar as mais íntimas dimensões da vida humana, produzir em grande escala técnicas utilitárias de fabricação de desejos via dispositivos de controle das condutas, normalização dos comportamentos, regulamentação dos processos de subjetivação, passa a ser tão importante e um paralelo complementar àquilo que, desde o passado remoto, foi uma das sagradas bandeiras históricas, qual seja: eliminar e exterminar pessoas, eliminar e exterminar culturas e crenças diversas, porque consideradas causadoras de problemas, desordem e caos. A desmedida em relação ao cuidado de si se enfileira junto à histórica desmedida das ações de barbárie e de desumanização do outro, estrangeiro e incivilizado. O abandono do cuidado de si se equipara aos atos de corrupção, às ações de indiferença e de abandono, aos falsos discursos contra as injustiças, as crueldades e as maldades do e no humano. Ao varrer para os porões do esquecimento nosso ser politikós, como um ser a construir no devir, nos aproximamos, copiamos e reproduzimos abençoando as tantas crueldades cometidas historicamente e que transformaram e seguem transformando em cinzas as tantas vítimas de nossas injustiças.

O processo civilizador do mundo ocidental se encheu de satisfação e, honrado, construiu justificativas racionais para considerar que as milhares de vidas assassinadas e violentadas, consideradas exceções foram e continuam sendo esvaziadas de sentido, porque redundantes, supérfluas e prescindíveis. Vangloriamos com serenidade a sensação de “paz” e de “justiça” consolidadas (Gray, 2005) após as dores das guerras, dos genocídios, das humilhações e violações, via escravização.

Contudo, o desafio de sinalizar para uma diferente sensibilidade requer superar os normativos da universalização e do poder que vigia, controla e pune, para dar lugar à exceção, com possibilidades abertas para compreender a diversidade da vida, dos viveres e das realidades. Por isso, organizar e construir experiências a partir do viver e conviver social significa fraudar esse si mesmo solipsista, tornar-se frágil para o cálculo frio das metas previamente estabelecidas que visam adequação perfeita à lógica da competição, do produtivismo e da mercantilização. É abrir-se e prontificar-se para o reconhecimento da existência, junto à pluralidade de consciências e múltiplas realidades, também uma pluralidade de consensos de humanidade, não exclusiva e nem necessariamente firmando verdades absolutas, mas de forte ênfase à dignidade humana e social.

É nessa turbulenta lógica desumana que o desafio de repensar a educação encontra novas ênfases e, quem sabe, ênfases capazes de gerar sensibilidades para a importância da profanação (Agamben, 2007). Profanação, não somente dos dispositivos biopolíticos como defendido por Agamben, mas também profanar a cegueira da objetividade, profanar as concepções de que todo ser vivo e, mesmo o ser humano, são seres predeterminados, como convidam Maturana e Varela (1997) na concepção de autopoiese e Biologia do Conhecer. Igualmente, profanar a lógica simplista que procura encobrir as complexas redes relacionais e culturais, intra e inter-humanas, para reconhecer a relevância de um deslocamento epistemológico profundo ao assumirmos mudar a pergunta pelo ser e, perguntar pelo fazer, pela operacionalidade, pelas experiências do viver, como proposto por Maturana e Dávila Yàñez (2009, p. 13), ao formularem um convite reflexivo sobre a trajetória histórica das transformações culturais:

[...] que ressoa em nosso viver cotidiano [...] e possibilita constatar que tudo o que é distinguido sempre tem a ver com cada um de nós, desenvolvendo-nos, assim, a possibilidade da responsabilidade pelo próprio mundo que cada qual gera com seu viver e conviver, para daí, na conservação de um fazer ético, desenvolvermos a possibilidade de ser livres.

Diante dos dispositivos biopolíticos, diante dos predeterminismos, diante do desafio do perguntar o que “desejamos conservar em nosso viver” para, então, profanar os apegos, todos insistindo em submeter grande parte dos seres humanos às angústias da insegurança na absolutização do eu, nossas reflexões têm como objetivo compreender, como desafios educativos, os convites para diferentes usos do potencial formativo a serem reconstruídos em rodovias da responsabilidade ética, da justiça e da liberdade. O desenvolvimento dessas reflexões passa por e envolve inúmeras questões: Como e qual sentido dar às nossas vidas, aos nossos viveres e conviveres? Quais suportes teóricos e de convivência podem reavivar o multiverso das reflexões como prática pedagógica de resistência à indiferença ao outro, para semear dinâmicas formativas como vivências éticas?

Este estudo caracteriza-se como bibliográfico de ordem qualitativa, e as reflexões serão desenvolvidas na forma de diálogo com Michel Foucault, Giorgio Agamben, Humberto Maturana, Francisco Varela, entre outros. Juntos, esses autores formulam uma complexa teia de enredamentos construindo diferentes pressupostos epistemológicos para também diferentes jeitos de fazer-se ser humano.

Em Agamben (2010), há uma trama que compreende a presença da violência nos dispositivos de poder, exigindo obediência cega, cuja profanação envolve desenvolver diferentes usos, que também sustentam a existência de dispositivos. Em Maturana e Varela (1997, p. 15), temos a compreensão de que a organização de qualquer ser vivo é autopoiética, ou seja, capaz de gerar a si mesmo, bem como a rede dessas produções e transformações, a extensão em seu operar como rede, a indicação de seus limites e a dinâmica fechada de sua existência “[...] que surge independente do meio molecular que o contém por seu próprio operar molecular”. Igualmente, profanar a lógica de que a biologia, ao dar ênfase à espécie em detrimento do indivíduo e, ao considerar a seleção natural e a aptidão capazes de transcendência para o âmbito social, justifiquem não só a competição, mas também sirva de argumentação “[...] científica da subordinação do destino dos indivíduos aos valores transcendentais” (Maturana; Varela, 1997, p. 114). Os autores explicam, ainda, “[...] a qualidade de prescindíveis dos indivíduos em benefício da espécie, da sociedade ou da humanidade” (Maturana; Varela, 1997, p. 115). Desenvolver reflexões nesse âmbito não tem nenhuma pretensão de verdade nem de receituário, mas, ainda assim, poderá ser exitosa e provocativa formativamente se criar não somente indignação para com as ações de maldade, mas criar imaginários e fazeres, acima de tudo, envolvidos por sensibilidades diante da dor da desigualdade e da indiferença, para com os tantos outros, considerados ausentes em nosso domínio de preocupações.

Por isso, a inquietação, a incompletude e a reativação da capacidade reflexiva podem ser assumidas como pedagogia fidedigna, um alimento essencial para desenvolver dinâmicas formativas como vivências e convivências éticas. Isso requer uma transgressão profanatória de si mesma, enquanto pedagogia.

Profanação como dinâmica formativa

Foucault (2000), em “O que é a crítica?”, sustenta ser importante que a educação escolar, mesmo envolvida por uma violenta estrutura de dispositivos e normativos, tenha presente a possibilidade de resistência. É a resistência que aprimora o exercício da liberdade e da justiça e sedimenta a existência como ser ético - a ética como resistência ao imobilismo, diante do poder e das violências das dominações. Já não basta aceitar obedecer e sentir-se confortável na não responsabilidade (Gros, 2018). Escreve Foucault (2000, p. 173):

Se a governamentalização for realmente o movimento pelo qual se trata, na realidade mesma de uma prática social, de sujeitar os indivíduos pelos mecanismos do poder que invocam para si uma verdade, então, diria que a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; a crítica será a arte da não servidão voluntária, da indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função o dessasujeitamento no jogo que poderia ser denominado, em uma palavra, de política da verdade.

A crítica concebida como negação da servidão voluntária2 e como uma recriação de si mesmo, uma recriação do cuidado de si mesmo e do cuidado junto ao outro, como escolha, como exercício de liberdade, um feito de justiça. Cabe relembrar Hannah Arendt (1967 apudGros, 2018) ao transcrever uma frase de Peter Ustinov postada na edição de 7 de fevereiro de 1967 na New Yorker: “Durante séculos, os homens foram punidos por desobedecer. Em Nuremberg, pela primeira vez, homens foram punidos por terem obedecido. As repercussões desse precedente estão começando a se fazer sentir”.

Se a crítica e a desobediência levam à negação da servidão, elas negam também os normativos constituídos e sua tendência conservadora, que sempre se faz acompanhar da violência desumanizadora. Dispositivos de poder e suas consequentes práticas de violência subtraem do ser humano a sua dignidade, a sua liberdade, e, submetido a uma lógica sacrificial, perde a possibilidade de experiências éticas, porque separado da opção escolha. Importante ressaltarmos que, para Agamben (2010, p. 43): “Segundo toda evidência, os dispositivos não são um acidente em que os homens caíram por acaso, mas têm a sua raiz no mesmo processo de ‘humanização’ que tornou ‘humanos’ os animais que classificamos sob a rubrica homo sapiens”. Para o autor, na existência de todo e qualquer dispositivo jaz inerente a dimensão humana da pretensão de ser o possuidor da verdade. Assim, o dispositivo constitui a ferramenta pela qual um ser humano apega-se à crença de dominar a verdade e entende ser necessária a submissão de outros a essa verdade como a melhor forma para sobreviver nos contextos sociais. São os estofos do apoderamento da verdade e da obediência, considerada humanizadora, uma das bases da transposição da política em biopolítica, ou seja, a subtração da liberdade dos domínios do individual, agora deslocados para e como um projeto de governo. Uma inclusão que, ao mesmo tempo, exclui e “[...] torna a vida feliz algo sagrado e, por isso mesmo, retirada do uso comum. Ante a promessa de uma subjetividade feliz, o produto entregue não passa de uma alienada dessubjetivação” (Baptista, 2015, p. 16). Para Baptista (2015), essa dessubjetivação requer, se não cumplicidade de cada indivíduo, pelo menos seu dócil e passivo consentimento. Dessa forma, os dispositivos produzem desejos que destroem a individualidade que, uma vez destruída, se afasta e se torna sagrada, inacessível. Agamben (2010, p. 43-44) reforça afirmando que:

Por meio dos dispositivos, o homem procura fazer girar em vão os comportamentos animais que se separaram dele e gozar assim do Aberto como tal, do ente enquanto ente. Na raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo.

Um ser humano afastado da felicidade, já que esta foi colocada no estandarte da sacralidade, uma esfera separada em que o uso lhe é negado. Novamente, se a crítica e a desobediência são a arte negadora da servidão voluntária, construtora de inconformismo e indocilidade, como as transformar em fugas das capturas e, ao mesmo tempo, em uma profanação do improfanável? Como fugir dessa violência arbitrária se, no fundo, a adesão é fruto de opção desejada, algo como uma escolha? Essa crítica que devolve ao ser humano um uso comum da liberdade e das experiências éticas exige, segundo Agamben (2007, p. 61), a profanação, uma vez que esta “[...] desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas”.

O autor faz uma aposta no lúdico, tanto quanto Maturana e Verden-Zoller (2004) o fazem, qual seja: um brincar espontâneo, sem um fim. Também em âmbito pedagógico, formativo e de aprendizagem importa profanar o improfanável, como propõem Maturana e Varela (1995), uma vez que, em contextos de verdade absoluta, resta ao/à estudante e ao/à professor/a o silêncio, a negação do questionamento, da criatividade e do realizar-se em seu potencial humano. Na posição dos autores, é relevante também conhecer como conhecemos, pois, na cultura ocidental, conhecer envolve prioritariamente as ações e precariamente a reflexão. Para Maturana e Varela (1995, p. 67): “A reflexão é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de nos voltarmos sobre nós mesmos, a oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e de reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão nebulosos e tênues quanto os nossos”.

Por isso, Maturana e Varela (1995) convergem e sintonizam com Agamben (2007, p. 75) ao afirmar que: “Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações”, o específico a ser alcançado, sem uma urgência a ser realizada, mas abrindo para inúmeras possibilidades de formas de jogar no decorrer do jogo, em outras palavras, um trapaceiro quebrando e recriando regras numa fuga ao universalizante. Assim, práticas pedagógicas com potencial para criar sensibilidade à não violência e à não barbárie da dessubjetivação, são práticas pedagógicas que sabem “[...] desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros” (Agamben, 2007, p. 75). Assim, ações e fazeres pedagógicos de viveres e experiências de aprendizagens pervertem as exigências e os estigmas das imposições homogeneizantes, da verdade absoluta, para serem ativadoras de experiências da singularidade, da individualidade, distantes dos rigores predefinidos dos dispositivos de captura. Um uso diferente e diverso do utilitarismo acomodante, passivo e impositivo, ou como escreve Agamben (2007, p. 67): “Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista”.

“Profanar o improfanável”3 dos dispositivos biopolíticos, como o racionalismo da tecnociência, o consumismo solitário, o silêncio da intimidade inconfessável, a desigualdade, a violência da solidão e do silenciamento, da obediência e da dessubjetivação, as epistemologias das violências, o currículo homogeneizante é, como escreve Agamben (2007, p. 79), “[...] tarefa política da geração que vem”. Essa geração que vem requer uma educação que vem, “[...] o ser que vem é o ser qualquer”, um ser liberto dos universalismos bem como do solipsismo individualista, por ser “[...] o ser, tal que, seja qual seja, importa [...] a singularidade enquanto singularidade qualquer” (Agamben, 2013, p. 9).

Esse ser qualquer, existente como singularidade não mais predeterminada por propriedades comuns que anunciam a pertença a algum grupo seja étnico, religioso ou nacionalidade, mas um qual-quer como “[...] quodlibet ens não é ‘o ser, não importa qual’, mas ‘o ser tal que, de todo modo, importa’; isto é, este já contém sempre uma referência ao desejar (libet), o ser qual-se-queira está em relação original com o desejo” (Agamben, 2013, p. 10). Esse ser qualquer pode, também, não ser, ao exercitar a sua impotência, como reflete Agamben (2013) em “A Comunidade que vem”, ao afirmar que isso não significa ser incapaz ou privado de potência, referindo-se a Bartleby, “[...] um escrivão que não cessa simplesmente de escrever, mas ‘prefere não’, é a figura extrema desse anjo, que não escreve nada além da sua potência de não escrever” (Agamben, 2013, p. 41).

Assim, uma política da geração que vem, como um ser qualquer, a partir de uma educação que vem, não mais se realiza em uma escola como proprietária de seus integrantes massificados e sujeitados, obedientes e dóceis, com valores supremos e dispositivos curriculares a preservar, mas uma educação que, não tendo uma essência, nem sendo um valor supremo, se realiza não na busca de algo que lhe é próprio, mas, ao contrário, na sua impropriedade. Bartleby simboliza esse ser desancorado, um ser que brinca jogando o jogo trapaceando, portanto, sem essência a confirmar, sem uma vocação histórica ou espiritual específica necessitada de realização, um ser livre e singularizado, sem um destino a cumprir, enfim um ser ético. E Agamben (2013, p. 45) justifica essa condição da ética, uma vez que

[...] todo o discurso sobre a ética é que o homem não é, nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. Apenas por isso deve existir algo assim como uma ética: pois está claro que se o homem fosse ou tivesse que ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não existiria experiência ética possível, e apenas tarefas a realizar.

A ética, segundo o autor, diz respeito àquilo que cada um e cada comunidade faz a respeito do fato de que não se tenha uma essência, uma substância predeterminada, pois então haveria somente tarefas a cumprir.

Da educação que vem, como resistência, desobediência e profanação, de um currículo qualquer que também pode a sua impotência, emerge um ser aprendente capaz de sua existência e potencialidade, um qualquer, como um “sujeito” ético, despido de uma essência predeterminada, não prisioneiro de dispositivos, mas a ser entregue verdadeiramente à dimensão da alteridade, emergindo de e em relações.

Entretanto, isso não significa que o ser humano esteja entregue ao nada pois existe “[...] algo que o homem é e tem de ser, mas este algo não é uma essência, não é, aliás, propriamente uma coisa: é o simples fato da própria existência, como possibilidade ou potência” (Agamben, 2013, p. 47). Em sendo “fato da própria existência”, a ética constitui o ser e constitui seu domínio existencial em um determinado entorno vivencial. Quer dizer, “[...] a única experiência ética (que, como tal, não pode ser tarefa nem decisão subjetiva) é ser a (própria) potência, existir a (própria) possibilidade: isto é, expor em toda forma a própria amorfia e em todo ato, a própria inatualidade” (Agamben, 2013, p. 46).

É nesse sentido que Agamben (2013, p. 35) aproxima o “uso de si”, não da existência como uma propriedade, mas o uso pensado “como um hábito, um ethos”. Agamben firma existir um vínculo entre o uso e a ética, ou seja, um ser que se gera a partir de um hábito, a partir da própria maneira de ser. Cultivar esse hábito, esse modo de ser que não resulta de decisão, mas que se concebe no decorrer de sua realização, constitui uma vivência ética, pois “[...] ética é a maneira que não nos ocorre nem nos funda, mas nos gera” (Agamben, 2013, p. 35).

De forma similar, Maturana (1998, 2001) profana o tradicional discurso em ética, amparado em racionalismos. Para o autor, “[...] as preocupações éticas não dependem da razão [...] porque não é a razão que justifica a preocupação pelo outro, mas é a emoção” (Maturana, 2001, p. 49). São as emoções que fundamentam a preocupação para com um/a outro/a.

As provocações e as reflexões sobre ética feitas por Agamben e Maturana são também anunciadoras da possibilidade formativa e existencial de um ser humano como individualidade, que se forma e se transforma no ser que é, livre dos aprisionamentos impostos pelos dispositivos, para, então, encontrar-se com sua singular individualidade, como ser autopoiético. Um ser humano que ousa fazer uso, um pedagogo que ousa usar, um estudante que ousa fazer uso, por possuir e cultivar um hábito - uma ética - e nele/a se gera, se faz acontecer, e “[...] esse ser gerado pela própria maneira é a única felicidade verdadeiramente possível para os homens” (Agamben, 2013, p. 35).

A educação, enquanto educere, tirar de dentro, dar-se um ser, fazer-se pessoa/gente, segue sendo um dos grandes pilares indispensáveis no sonho e na esperança da formulação de experiências de viveres e conviveres revestidos de ética, retroalimentando uma utopia na contramão dos aspectos mais sombrios da humanidade.

A educação, tendo como pressupostos a autopoiese e a biologia do conhecimento, há de considerar a ética como uma preocupação com as consequências de nossas ações pessoais em relação aos outros, portanto um fenômeno relacionado à aceitação do outro; em outras palavras, envolvendo a emoção do amar, como defendem Maturana (1998), Maturana e Dávila Yáñez (2009), Maturana e Varela (1995), Maturana e Verden-Zoller (2004). Desse modo, a ética, para esses autores, se situa em uma dimensão afetiva e não cognitiva, como tradicionalmente afirmado. E mais, como a aceitação do outro define o caráter social do ser humano e sua própria humanidade, ela é também um fenômeno social e humano. Essa dimensão da ética a ser desenvolvida na sequência requer pressupostos diferentes para fundamentar uma também diferente epistemologia. Para Maturana e Varela (1997, p. 111),

[...] qualquer observação, mesmo a que permite reconhecer a validade efetiva de uma afirmação científica, implica uma epistemologia, um corpo de noções conceituais explícitas ou implícitas que determina a perspectiva da observação e, portanto, que se pode e que não se pode observar, que é e que não é avaliado pela experiência, que é e que não é explicável mediante um conjunto determinado de conceitos teóricos.

Para Maturana e Varela (1997), essa epistemologia envolve um espaço no qual a validade da fenomenologia autopoiética depende da validade argumentativa.

Autopoiese: por uma dinâmica formativa para conviveres

Diante da importância de considerar a experiência dos seres humanos como seres históricos e contingentes, que vivem na linguagem, tem-se novamente a oportunidade de formular novas e diferentes perguntas. As problemáticas que ameaçam de mais violência, de mais desigualdade, de mais indiferença e injustiças provocam em nós a perplexidade, e esta nos leva aos questionamentos, às reflexões, às críticas, visando não a paralização, mas a desobediência, a compreensão, a profanação, a resistência, rumo à re-existência.

Diferentes perguntas são convites ao desvelamento da diversidade interpretativa e criadora de realidades, que provocam abalos mais do que tangenciais nos modos de existência do ser humano. Hoje, nem o tradicional suporte epistemológico e nem a tradicional concepção de ser humano, herdados do passado, nos asseguram balizas seguras em uma atualidade carregada de crises e des-humanizações. Significa uma desconfiança para com a insuficiência explicativa dos tradicionais paradigmas da fragmentação e da objetividade que apostam em forças transcendentais e exigem dispositivos racionais de poder e controle, que asseguram ser a lógica transmissiva e representacionista de conhecimentos e realidades, a única admissível. O momento é de alerta e reconciliação para com um ser humano autopoiético (Maturana; Varela, 1997), capaz da impotência (Agamben, 2013), capaz de sonhar e construir mundos, realidades e vivências estando e sendo linguajante.

Cabe entender que as reflexões de Agamben, de Maturana e Varela apresentam certa congruência e consistência no modo como se opõem aos modelos tradicionais e universalizantes. Ambas as reflexões negam a existência de propriedades intrínsecas no humano. Ambas reconhecem a existência de entrelaçamentos, tanto nas concepções, como nos fazeres, e os fenômenos neles produzidos são inevitavelmente diversos. Para Maturana e Varela (1997), a teoria da autopoiese e a Biologia do Conhecer pretendem uma explicação do que é o viver, bem como uma explicação da fenomenologia observada na dinâmica do vir-a-ser desses seres vivos em seus domínios de existência. A autopoiese e a Biologia do Conhecer apresentam também uma dimensão epistemológica ao desenvolverem reflexões sobre o conhecer (que aqui não serão destacadas). Desenvolvem uma dimensão reflexiva sobre relações humanas, envolvidas por linguagens como experiências junto a outros. Nelas, particularmente, existe uma abertura para compreender a importância de nossas ações na constituição junto a outros, dos mundos nos quais vivemos, ou seja, nada está previamente definido, nenhuma essência está dada em definitivo, nada há para ser preservado a priori, o que implica abertura para vivências éticas, como afirma Agamben (2013).

Mesmo assim, estamos cientes de que nem a profanação e nem a autopoiese são uma “boa nova” oferta salvacionista, mas, certamente, potencializam subsídios para reavivar, em diferentes bases teóricas, as nossas reflexões e, acreditamos, capazes de ativar diferentes sensibilidades frente às enfermidades da obediência e da violência, frente ao descarte de pessoas, frente aos riscos de barbárie, frente às doenças do vazio existencial.

Os chilenos Maturana e Varela conceberam a teoria da autopoiese colocando-a em contraposição à necessidade de justificativas transcendentais, ancoradas na razão, como única fonte e base de sustento para o conhecimento do ser humano, da condição humana e suas vicissitudes. Esse glorioso império racional que, segundo Morin (2010), tornou-se um falso mito unificador, por exigir o uso da obediência, da exclusão e da negação, como fontes para a estruturação social, também se torna um impeditivo da liberdade e das experiências éticas. Para o autor, um modo de viver baseado prioritariamente na razão nega as emoções, as paixões, as esperanças e a fé. E, tendo a razão como princípio para a economia, gera viveres que se conformam em princípios utilitaristas de ideologia neoliberal. Assim, se o ser humano é considerado naturalmente racional, também a sociedade exige uma organização segundo a razão, ou seja, segundo a ordem da resignação e da obediência, eis o território sacralizado segundo Agamben (2007). Ainda, se todas as nossas relações, se os nossos afazeres tiverem como fundamento o racionalismo, teremos desumanização, ou seja, desaparecimento do espaço reflexivo e social, pois o racional tornado sagrado nos torna cegos para o si mesmo, cegos para com os outros, cegos à responsabilidade e à ética.

Para Maturana (1998, p. 72), “[...] o racional é um operar num âmbito de coerências operacionais e discursivas, baseado num conjunto de premissas fundamentais, aceitas a priori, que o determinam”. Significa que, ao aceitarmos algo, também aceitamos, consciente ou inconscientemente, as premissas que o fundamentam. Em havendo diferença nessas premissas fundamentais, pode surgir o conflito com outra pessoa, constituindo ameaça existencial, pois nega-se o outro nos fundamentos de seu pensar, o que abala a coerência racional de sua existência e gera cegueira para o outro, cegueira para o reconhecimento da existência de premissas fundamentais diferentes.

Para Maturana e Varela (1995), a ética tem fundamento emocional e implica a convivência com o outro, configurando o humano como um ser social, e essa concepção encontra seu pressuposto na autopoiese. E a autopoiese, segundo Maturana e Varela (1997), é uma explicação do vivo, uma explicação do que é o viver e uma explicação da fenomenologia observada em um constante vir-a-ser de qualquer ser vivo em seu domínio de existência. Reafirmamos que, para os autores, a autopoiese é também uma reflexão sobre o conhecer, sobre o conhecimento - Biologia do Conhecer -, portanto uma luz epistemológica. Igualmente, sustenta reflexões sobre as relações humanas, sobre nossa experiência com os outros na linguagem, sobre o potencial e a importância das emoções como construtoras de sensibilidades, de liberdades e de experiências éticas.

De forma específica, Maturana (1997, p. 15), no prefácio à segunda edição da obra De máquinas e seres vivos: autopoiese a organização do vivo”, escreve:

Um ser vivo ocorre e consiste na dinâmica de realização de uma rede de transformações e de produções moleculares, de maneira tal que as moléculas produzidas e transformadas no operar dessa rede fazem parte da rede, de maneira que com suas interações: a) geram a rede de produções e de transformações que as produziu ou transformou; b) dão origem aos limites e extensão da rede como parte de seu operar como rede, de maneira que esta fica dinamicamente fechada sobre si mesma, conformando um ente molecular separado que surge independente do meio molecular que o contém por seu próprio operar molecular; e c) configuram um fluxo de moléculas que ao incorporarem-se na dinâmica da rede são partes ou componentes dela, e ao deixarem de participar na dinâmica da rede deixam de ser componentes e passam a fazer parte do meio.

Com base na concepção de que os seres vivos têm a capacidade de produzirem a si mesmos, Maturana e Varela (1997) os designaram como seres autopoiéticos. E todo o ser vivo, enquanto sistema autopoiético, se caracteriza como rede fechada de produções moleculares, nas quais as moléculas produzidas são geradoras, com suas interações, da mesma rede de moléculas que a produziu. É parte essencial da teoria da autopoiese a organização circular constituindo seus componentes de forma rigorosamente interconectada e mutuamente interdependente.

Diferentemente das forças que movem nossa cultura patriarcal apostando em explicações propositivas, intencionais ou finalistas, nos seres vivos, segundo Maturana (1997, p. 27), “[...] os processos moleculares são espontâneos [...] acontecem, a cada instante, como resultado das propriedades estruturais das moléculas, e não porque coisa externa os guie”. Os sistemas vivos, em sua organização circular de transformações e produções, existem como sistema vivo “[...] enquanto permanece na conservação de tal organização” e “[...] é essa dinâmica o que de fato o constitui como ente vivo na autonomia de seu viver” (Maturana, 1997, p. 10), fazendo-se acontecer não porque descobre e conhece o mundo, mas porque constitui seus mundos como domínios existenciais. Portanto, afirmam os autores que “[...] o que permite definir a vida é uma organização e não os componentes, por muito sofisticados que sejam as propriedades enzimáticas ou replicativas” (Varela, 1997, p. 52).

A autopoiese, como dinâmica constitutiva de um ser vivo, capaz de autonomia, possibilita sua individualidade e conservação ativa de uma identidade singular a partir “da manutenção invariável de sua organização” (Maturana; Varela, 1997, p. 73). Trata-se de um jogo de interações e relações que requer trocas e recursos ambientais - acoplamento estrutural -, porém toda troca, em função da organização autopoiética acontece “subordinada a sua conservação” (Maturana; Varela, 1997, p. 79). Essas interações e relações de troca determinam mudanças contínuas na estrutura dinâmica do ser vivo, a serem especificadas a cada instante pela estrutura presente, ou seja, por acoplamento estrutural. Entende-se, nas palavras de Maturana e Varela (1995, p. 133), que:

Desde que uma unidade não entre numa interação destrutiva com seu meio, nós, como observadores, necessariamente veremos entre a estrutura do meio e a da unidade uma compatibilidade ou comensurabilidade. Existindo tal compatibilidade, meio e unidade atuam como fontes mútuas de perturbações e desencadeiam mudanças mútuas de estado, num processo contínuo que designamos com o nome de acoplamento estrutural.

O acoplamento estrutural é um jogo de autonomia e dependência - a interdependência -, um paradoxo não compreensível na lógica linear que analisa partes separadas e desconsidera a dinâmica das interações entre elas. É uma forma de interação entre o sistema vivo e o meio, caracterizado pela mútua interação entre seus elementos capazes de gerar fenômenos e acontecimentos que serão recorrentes e relevantes para manter a organização como sistema vivo. Podemos afirmar que o acoplamento estrutural é uma condição de existência e de conservação contínua da autopoiese.

Diante dessa forma de interação, a interpretação feita a partir da teoria da evolução e sua noção de seleção natural, de que as interações com o meio eram fontes instrutivas, está sendo profanada e recebe outra interpretação. Assim, não é o meio que escolhe as mudanças possíveis de ocorrerem no sistema vivo. Nos sistemas vivos - determinados estruturalmente -, “[...] as interações não podem especificar mudanças estruturais, pois estas são determinadas pelo estado interior e não pela estrutura do agente perturbador” (Maturana; Varela, 1995, p. 135).

Reafirmando, para Maturana e Varela (1997, p. 114), a ideia do darwinismo evolutivo,

[...] com sua ênfase na espécie, a seleção natural e aptidão, teve um impacto cultural que vai além da explicação da diversidade [...] parecia dar uma explicação da fenomenologia social em uma sociedade competitiva, e uma justificação científica da subordinação do destino dos indivíduos aos valores transcendentais que se supõem enraizados em noções tais como humanidade, estado ou sociedade [...] uma utilização constante de noções transcendentais para justificar a discriminação social, a escravidão, a subordinação econômica e a subordinação política dos indivíduos, isolada ou coletivamente, ao desígnio ou ao capricho de quem pretende representar os valores contidos nessas noções.

Todos esses dramas constituem e conservam nossa cultura patriarcal. Cultura que, segundo Maturana e Verden-Zoller (2004), gerou um espaço psíquico que possibilitou a destruição do emocionar colaborativo entre seres humanos, homens e mulheres. Um espírito psíquico que transpôs a lógica do patriarcado em ideais burgueses que pavimentaram o caminho para o capitalismo, para a exploração da natureza e a opressão de seres humanos sobre outros seres humanos via dispositivos de poder sacralizados, como afirma Agamben (2007). Nessa lógica, incorporada e expandida pelo racionalismo neoliberal, o ser humano e as sociedades humanas são concebidas e acabam se concebendo como mananciais e fontes de apropriação, de autoritarismo, controle e subordinação. Dessarte, a cultura patriarcal

[...] se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade (Maturana; Verden-Zoller, 2004, p. 37).

Na cultura patriarcal, linguajamos prioritariamente em uma perspectiva de confronto e as expressamos como, por exemplo: “lutar contra a pobreza e as injustiças sociais”; “combater a contaminação do ar, das águas e dos alimentos”; “enfrentar as forças da natureza tais como os vendavais, os furacões...”; “lutar pelo acesso aos direitos constitucionais”; “criamos exércitos para manter a paz”; usamos nossa inteligência para criar e construir arsenais de armas tecnologicamente sofisticadas e, basicamente, vivemos como se todas as nossas ações necessitassem do uso da força e cada fazer em nossos cotidianos fosse encarado como desafio. Significa que vivemos na desconfiança, ao mesmo tempo em que precisamos ter a certeza de que controlamos o outro, que o outro nos obedeça, que sejamos capazes de controlar nossas emoções, ou seja, negando nossa condição autopoiética.

Ao sentir-se negado em sua condição autopoiética, nega também a sua individualidade e, dessubjetivado e cooptado, entende-se obediente a determinações vindas de fora, os dispositivos biopolíticos. Esse ser despido de sua identidade, de sua individualidade nega em si o longo processo humanizador que consagrou, em seu acontecer, a colaboração, o compartilhamento, a sensualidade e a ajuda mútua (Maturana, 1998).

Na cultura patriarcal, encontramos interstícios relacionais como esteios da ordem mundial capitalista/neoliberal com acenos para uma nova e cruel centralidade: a lógica da competição e da concorrência assumidos como algo inerente a um projeto de vida pessoal. Prioriza-se não mais um ser humano, porque se atacam os laços da colaboração entre a pessoa e a sociedade, ao mesmo tempo que se produz um indivíduo isolado e incapaz de conviver com outros. E a razão que regula suas condutas não é mais a dos direitos e dos valores éticos e humanizadores. É a razão técnica, eficaz, produtora, útil presente na indústria produtora de bens materiais, a razão gestora, o racionalismo frio, anônimo e impessoal do cálculo e do tudo ordenado. Estamos nos transformando em autômatos eficazes operacionalmente, eficientes produtivamente, dóceis e obedientes.

Construímos e descrevemos uma história social dos seres humanos amparados em uma contínua busca de valores transcendentais capazes de explicar e justificar a desigualdade das existências humanas. É nesse sentido que o bem-estar social ou da humanidade se sobrepõe ao bem-estar individual. Então, cabe o sacrifício de um indivíduo, para “salvar” a nação, “salvar” um grupo étnico, “salvar” uma crença religiosa... Nessa sociedade a ser preservada por ser perdurável, os indivíduos são “transitórios e dispensáveis” (Maturana; Varela, 1997, p. 114). Os autores desnudam a violência contra a pessoa e sua individualidade, quando se concebe que esse indivíduo se subordina à espécie e contribui para perpetuar a espécie, uma concepção embasada na biologia. Na contramão dessa perversa lógica explicativa, Maturana e Varela (1997, p. 114-115) afirmam: “A organização do indivíduo é autopoiética, e nisso se funda toda sua importância: sua maneira de ser é definida pela sua organização, e sua organização é autopoiética”. Assim sendo, argumentações biológicas já não podem mais “[...] justificar a qualidade de prescindíveis dos indivíduos em benefício da espécie, da sociedade ou da humanidade sob pretexto de que seu papel é perpetuá-los [...] os indivíduos não são prescindíveis” (Maturana; Varela, 1997, p. 115).

É com base nessa argumentação de que todos e cada ser humano é efetivamente imprescindível que encontramos, no âmbito da autopoiese, a possibilidade da ética. Na concepção da autopoiese, a ética é uma preocupação com os resultados e consequências de nossas ações no viver e conviver junto a outros. Para Maturana (1998, p. 73), “[...] a ética não tem um fundamento racional, mas sim emocional”. E, se as emoções constituem um domínio de ações no qual nos movemos e significamos, Maturana entende que ações e interações recorrentes que reconhecem a legitimidade do outro, que criam imaginários de preocupações que se estendem para fora do si mesmo, são também a fonte de sensibilidades para com o outro. Assim, para além de imaginários corporativistas, de supremacia étnica e mesmo nacionalistas, imaginários de preocupações mais alargados e que abarcam toda a humanidade são fontes para relações e interações de convivência e de ética. Porém, imaginários fechados em torno de si mesmo, em torno de crenças e de privilégios étnicos e economicistas, implicam interações recorrentes de agressão, fundamentando e alimentando a desigualdade e a maldade.

Com base em Maturana (2001), nem todas as relações humanas são efetivas relações sociais. Somente são sociais as relações humanas fundadas na emoção da aceitação mútua e da aceitação do outro como legítimo outro em um domínio de convivência, isto é, na emoção do amar. Dessa maneira, “[...] o social é uma dinâmica de relações humanas que se funda na aceitação mútua. Se não há aceitação mútua e se não há a aceitação do outro, e se não há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social” (Maturana, 2001, p. 47). Se o amar é a emoção que fundamenta e constitui o social então, também o amar é a emoção que constitui “[...] o espaço de preocupações com o outro” (Maturana, 2001, p. 48). Significa reconhecer que somente existe a preocupação com um outro se esse outro existir no contexto de aceitação no qual se está, ou seja em um domínio social de existência. Distante desse contexto, tudo o que acontece ao outro não importa. E Maturana (2001, p. 48) questiona: “Como vai lhe importar o que acontece com o outro, se o outro não tem existência para ele, porque não o leva em conta?”. Com base nesse pressuposto, o autor afirma que as preocupações éticas não encontram fundamento lógico ou racional.

Em sendo a ética um fenômeno que tem a ver com a aceitação do outro como legítimo outro, ela encontra seu fundamento nas emoções. Assim, uma vivência e convivência ética envolve considerar o outro como interdependente de seu próprio domínio existencial. Uma experiência ética, fundada no amar, acontece entre aqueles que se aceitam e vivem em espaços compartilhados. Trata-se de um nível de convivência de também aceitação de múltiplas verdades, de múltiplas realidades, de singularidades e diversidades, distantes das fachadas das planificações, porque de consideração ao outro como legítimo outro sem a pretensão de eliminá-lo ou apagá-lo, se seu viver basear-se em verdades e discursos não condizentes com os nossos. Aceitar o outro é saber sentir sua presença, sentir-se escutando seu linguajar, sentir-se corresponsável, sentir-se compartilhando espaços sem alimentar perspectivas de discriminação ou de mera tolerância, é isso que legitima sua presença como copresença.

No desenho de uma pedagogia que sonha dinâmicas formativas como vivências éticas, torna-se relevante assumir a participação da dinâmica das emoções na reflexão sobre o humano, na reflexão sobre o viver, na reflexão sobre o social que, no entanto, precisam alargar-se para além das próprias fronteiras culturais, fronteiras ideológicas, étnicas e nacionalistas. Para Maturana (1998), existem diferentes espaços sociais definidos por diferentes ideologias políticas e, então, por diferentes formas de humanidade. O autor considera importante esse reconhecimento porque, na medida em que a fenomenologia do amar “[...] está no fundamento biológico do humano, ela estará presente de qualquer maneira [...], não há um bom entendimento do fenômeno de convivência e da história dos fenômenos políticos se não entendermos a natureza do social e do ético no âmbito de sua fundação emocional” (Maturana 1998, p. 74).

Sendo a fenomenologia do amar um dos fundamentos do humano, Maturana e Dávila Yáñez (2009) nos referenciam como Homo sapiens-amans amans, ou seja, somo filhos do amar. No entanto, essa condição, na já longa trajetória humana, nem sempre foi experienciada nos viveres e conviveres cotidianos. Para os autores, o devir evolutivo humano não é linear e nem absoluto. Seu curso evolutivo foi “[...] definido instante a instante pelas preferências, pelos gostos, pelos desejos e pelas ganas” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 29), e é isso que os relatos históricos evidenciam quando descrevem as configurações sensoriais e relacionais das vivências passadas e presentes. Para Maturana e Dávila Yãñez (2009, p. 29):

Um ser humano flui normalmente em seu viver num espaço de coerências estruturais sensoriais e relacionais em que suas interações o orientam momento a momento ao bem-estar psíquico-corporal, embora possa viver também, transitoriamente, e às vezes por muito tempo, em espaços de mal-estar que eventualmente, se não desaparecerem, terminam com o seu viver.

No leito dessa ameaça, “terminam com o seu viver” como pessoa, como ser humano renascem perguntas convidando para reflexões de maturidade, visando compreensões conscientes das ameaças, dos equívocos e das cegueiras, ao mesmo tempo que nutre esperanças e sensibilidades alternativas. Os autores apresentam essa trajetória sensorial e relacional da humanidade como as diversas eras psíquicas, “[...] um processo recursivo [...] que volta ao início numa transformação consciente da consciência de pertença ao viver e conviver em coerências sistêmicas, abrindo assim o caminho para fazeres oportunos que se constituem como o ponto de partida para um novo ciclo” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 31).

E, ao descreverem a história da humanidade em termos de Eras Psíquicas, os autores citam: Era Psíquica Arcaica cuja “[...] dinâmica emocional fundamental é o amar como um suceder espontâneo” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 33); Era Psíquica Matrística tendo como “[...] dinâmica emocional fundamental o amar como um conviver desejado” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 35); Era Psíquica do Apoderamento cuja “[...] dinâmica emocional fundamental é a apropriação da verdade e veneração da autoridade” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 39). Seguindo, os autores citam a Era Psíquica Moderna na qual a “[...] dinâmica emocional fundamental é o domínio da autoridade e alienação no poder” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 41); segue-se a Era Psíquica Pós-Moderna na qual a “[...] dinâmica emocional fundamental é o domínio da confiança no saber que se sabe o que se crê que se sabe. Tentação da onipotência, cegueira no saber que se sabe o que se diz que se sabe” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 43); e, finalmente, a Era Psíquica Pós-Pós-Moderna, na qual a dinâmica emocional fundamental é “[...] o surgimento da reflexão e da ação ética consciente: a grande oportunidade” (Maturana; Dávila Yáñez, 2009, p. 45).

“A grande oportunidade”, eis o nosso presente, eis um desafio para as dinâmicas formativas: como comunidade familiar, escolar e social desejamos abrir mão de nossas certezas, das nossas indiferenças para com o outro, de nosso poder manipulador e mergulhar em orientações reflexivas e ações éticas conscientes sobre viveres e conviveres? Afirmam Maturana e Dávila Yáñez (2009, p. 45): “Se formos sérios ao buscar a resposta [...], veremos que no processo de fazer isso abre-se o espaço para a mudança na sensorialidade íntima que leva à reflexão desde onde é possível que surja a ampliação de nossa consciência das cegueiras que nossas alienações cognitivas, como modos de viver e de gerar mundos, trazem a nosso habitar”. Segundo os autores, saberemos que somos nós os geradores das dores e sofrimentos bem como das alegrias e das satisfações. Também, que será oportunidade para nosso reencontro com o fundamento da existência humana: o amar no conviver como seres primariamente amorosos, um fenômeno que se conserva transgeracionalmente, pois ainda somos Homo sapiens-amans amans. O entendimento de que ao negligenciarmos nossa condição de seres amorosos e, portanto, nossa vivência ética também negamos nossa responsabilidade pelas consequências resultantes da negação do amar e da conduta ética. Igualmente, será um oportuno momento para recuperar, nos contextos relacionais e operacionais, a confiança e a honestidade envolvidas nos conviveres éticos.

Dinâmicas formativas ensonhando conviveres éticos são, portanto, fenômenos que não acontecem na singular subjetividade. Elas requerem relações de presença do outro, requerem mutualidade, interdependência nas vivências compartilhadas, nas experiências dos conversares e escutares de mútua legitimidade e corresponsabilidade. Não há, como afirma Agamben (2013), uma essência, um destino a cumprir, um predeterminismo genético. Existe, sim, uma potencialidade dinâmica de transformar e metamorfosear em cada ser pessoa, que interage ao conviver. Educar, segundo Maturana (1998), é uma dinâmica convivencial. E, mais especificamente, afirma que nos educamos ao fazer do nosso modo de viver uma congruência com o modo de viver do outro, de forma espontânea, firmando essa congruência entre educador e educando. Na ênfase de Maturana (1998, p. 29):

O educar ocorre, portanto, todo o tempo e de maneira recíproca. Ocorre como uma transformação estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem. A educação como “sistema educacional” configura um mundo, e os educandos confirmam em seu viver o mundo que viveram em sua educação. Os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao serem educados no educar.

Dessa forma, a dinâmica formativa acontece no decorrer do viver convivendo. A experiência ética acontece nesse constituir-se no decorrer das convivências. Experienciamos a educação durante toda a vida, vivendo e convivendo. Que a dinâmica formativa como vivência ética guie o curso de nossos viveres na infância, na adolescência, na juventude e em nosso viver de e como adultos.

Considerações finais

Para além das inúmeras e imensuráveis desavenças, indiferenças e desumanização, o cenário contemporâneo é também uma base peculiar que nutre a geração de insatisfações e de uma certa anomalia em relação às práticas pedagógicas e formativas, tradicionais e racionalistas. Em um cenário que potencializa a profanação, desejando um uso diferente, em um cenário de reconhecimento autopoiético do ser vivo, o educador pode ser alguém que se assume e se faz corresponsável por mudanças em seu meio social. Na contemporaneidade repleta de instabilidades, mas também de flexibilidades e possibilidades, cabe reavivar a chama reflexiva em relação a como nós seres humanos fazemos os mundos nos quais decidimos viver e conviver, já que nos despedimos cada vez mais de noções de que o mundo está pronto e que se assenta em uma referência conservadora, fixa e permanente. Nos diferentes domínios existenciais, a serem construídos, a individualidade, a diversidade, o diferente, o singular e o múltiplo deixam de ser perplexidades, exceções e/ou anomalias a serem descartadas.

Pensar em uma sociedade que vem é repensar, reequilibrar as dinâmicas sociais, econômicas e políticas que, por longa data, foram subtraídos de grande parte da população, obrigada e subserviente a um viver em carências a assistir de perto e de longe às orgias do modo de vida burguês e capitalista. Acostumou-se e tende a aceitar como natural o grave distanciamento econômico e cultural entre ricos e pobres e as desigualdades sociais/econômicas, como privilégios, e não frutos de dinâmicas sociais de produção.

Pensar e desejar uma sociedade que vem, uma sociedade diferente é reconhecê-la como construível na base de princípios nobres como responsabilidade, liberdade, ética e justiça, em contraposição à odiosa lógica patriarcal que segrega, humilha, agride e exclui.

Pensar, desejar e dinamizar fazeres para uma sociedade que vem é reconhecer a si e reconhecer o outro como sistema autopoiético. Como sistemas autopoiéticos os seres humanos se constituem e se transformam enquanto em convivência com outros seres humanos. Esse conviver acontece em dinâmicas relacionais de conversações capazes de criar sensibilidades e preocupações de respeito mútuo. Respeito mútuo implica preocupação com a criação de espaços de aceitação mútua = a ética. A aceitação mútua pode desativar as muitas ações que geram violência, maldade, injustiças crueldade e barbárie.

Como temos defendido com base nos autores, a ética emerge da consciência da estrutura biológica e social de seres humanos não predeterminados. Ela requer e brota da reflexão como fenômeno social constitutivo. Toda fenomenologia social entende que sem a aceitação do outro ao nosso lado, envolvendo a emoção do amar, não há socialização e sem socialização não há humanidade, uma vez que o humano se realiza no social. Significa que nos tornamos humanos na convivência com o outro, e conviver é a dinâmica formativa para vivencias éticas, na infância, na juventude e na vida adulta. Todas as prerrogativas, todos os dispositivos de poder que tendem à obediência e resignação, limitando a aceitação do outro, seja pela competição, seja pela posse da verdade, seja pela certeza ideológica, negligencia e destrói a dinâmica do fenômeno social e, como consequência, o humano.

É momento de refletir e refazer nossos fazeres pedagógicos e formativos. Em 28 de agosto de 2023, comemoramos 60 anos do discurso proferido por Martin Luther King: “I have a dream” [Eu tenho um sonho], e este é nosso convite a cada educador e educadora, em âmbito formal ou não, que tenha um sonho, o sonho de potencializar dinâmicas formativas como vivências éticas. Fazê-lo equivale a profanar dispositivos de poder, profanar os racionalismos, as verdades absolutas, os fundamentos racionais da ética, os imaginários preconceituosos de alunos e estudantes. Por isso, cabe encerrarmos com uma significativa poesia de Humberto Maturana (1995apudPellanda, 2009, p. 50-51, tradução nossa):

Oração do Estudante

Por que me impões

o que sabes

se eu não quero aprender

o desconhecido

e ser fonte

em minha própria descoberta?...

Não quero a verdade

Dá-me o desconhecido.

Como estar no novo

sem abandonar o presente?

Não me instruas

deixa-me viver

vivendo junto a mim.

Deixa que o novo

seja o novo

e que o trânsito

seja a negação do presente;

deixa que o conhecido

seja minha libertação

não minha escravidão...

Revela-te para que

a partir de ti, eu possa

ser e fazer o diferente;

eu tomarei de ti

o supérfluo, não a verdade

que mata e congela

eu tomarei tua ignorância

para construir

minha inocência

Oración del Estudiante

Por que me impones

que sabes

si no quiero aprender

lo desconocido

y ser una fuente

próprio decubrimiento?...

No quiero la verdad

Dame lo desconocido.

Como estar em nuevo

Sin salir del presente?

No me instuyas

Déjame vivir

Viviendo a mi lado.

Déjame que lo nuevo

ser el nuevo

y que el trafico

ser la negación del presente;

deja lo conocido

ser mi libertación

no es mi atadura...

Revelate para que

de ti puedo

ser y hacer lo diferente;

tomaré de ti

lo supefluo, no la verdad

que mata y congela

tomaré tu ignorancia

para construir

mi inocencia

Referências

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1Para Foucault (1993, p. 131), o poder sobre a vida na segunda metade do século XVIII “[...] centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar [...] uma bio-política da população”. De acordo com Agamben (2002, p. 17): “Tudo ocorre como se, no mesmo passo do processo disciplinar através do qual o poder estatal faz do homem enquanto vivente o próprio objeto específico, entrasse em movimento um outro processo, que coincide grosso modo com o nascimento da democracia moderna, no qual o homem como vivente se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do poder político. Estes processos, sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparência) em conflito acerbo entre eles, convergem, porém, no fato de que em ambos o que está em questão é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade”.

2Referência ao livro Discurso da servidão voluntária (La Boétie, 2018).

3No livro Profanações, particularmente no capítulo “Elogio da Profanação”, Agamben (2007, p. 65) define religião como “[...] aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada”. O autor entende que “[...] o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião” (Agamben, 2007, p. 71). Sendo ampla e absoluta essa separação, tudo passa para a esfera do consumo e, transformadas em espetáculo, “[...] no qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar”. Por isso, Agamben (2007, p. 71) afirma que “[...] religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável”.

Recebido: 21 de Novembro de 2023; Revisado: 09 de Março de 2024; Aceito: 15 de Março de 2024; Publicado: 26 de Abril de 2024

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