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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 18-Jun-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.22573.044 

Artigos

Territórios, linhas e práticas corporais: a dimensão geomorfológica da Educação Física escolar

Territories, lines and bodily practices: the geomorphological dimension of school Physical Education

Territorios, líneas y prácticas corporales: la dimensión geomorfológica de la Educación Física escolar

João Pedro Goes Lopes* 
http://orcid.org/0000-0002-4415-7603

Rubens Antonio Gurgel Vieira** 
http://orcid.org/0000-0002-9409-9245

*Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Professor na Prefeitura Municipal de Sorocaba. E-mail: <joaogoez@gmail.com>.

**Doutor em Currículo pela Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (FE/Unicamp). Professor Adjunto do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Lavras. E-mail: <rubensgurgel@ufla.br>.


Resumo

Neste artigo, tem-se por objetivo conceituar aquilo que se chama de dimensão geomorfológica da Educação Física e propõe-se como objeto de estudo práticas corporais territoriais. Para tal, aliado principalmente a Gilles Deleuze e Félix Guattari, perpassa-se por alguns conceitos como território, ritmo, ritornelo para instaurar novos olhares à noção pós-crítica de cultura e cultura corporal - que, como se descreve, está muito mais associada a uma perspectiva genealógica atualmente. Nesse sentido, lança-se mão do conceito de espirais como uma força centrípeta que contém as linhas do desejo e territorializa as práticas corporais de determinadas maneiras. Por fim, convida-se o/a docente a assumir uma postura de viajante por entre essas distorções, sempre atento/a a um objetivo específico: desfazer os agenciamentos (micro)fascistas.

Palavras-chave: Educação Física escolar; Gilles Deleuze e Félix Guattari; Território

Abstract

This article aims to conceptualize what it is called the geomorphological dimension of Physical Education, and it proposes territorial body practices as an object of study. To this end, combined mainly with Gilles Deleuze and Félix Guattari, it goes through some concepts such as territory, rhythm, ritornello to establish new perspectives on the post-critical notion of culture and body culture - which, as described, is much more associated with a genealogical perspective today. In this sense, it uses the concept of spirals as a centripetal force that contains the lines of desire and territorializes bodily practices in certain ways. Finally, it invites the teacher to assume the position of a traveler among these distortions, always attentive to a specific objective: undoing (micro)fascist agencies.

Keywords: School Physical Education; Gilles Deleuze and Félix Guattari; Territory

Resumen

En este artículo, se tuvo como objetivo conceptualizar aquello que se llama dimensión geomorfológica de la Educación Física, y se propone como objeto de estudio las prácticas corporales territoriales. Para ello, aliado principalmente a Gilles Deleuze y Félix Guattari, recorre algunos conceptos como territorio, ritmo, ritornello para establecer nuevas miradas a la noción poscrítica de cultura y cultura corporal -que, como se describe, está mucho más asociada con una perspectiva genealógica actualmente. En este sentido, se utiliza el concepto de espirales como una fuerza centrípeta que contiene las líneas del deseo y territorializa determinadas maneras las prácticas corporales. Finalmente, se invita al docente a asumir la posición de un viajero entre estas distorsiones, siempre atento a un objetivo específico: deshacer las agencias (micro)fascistas.

Palabras clave: Educación Física Escolar; Gilles Deleuze y Félix Guattari; Territorio

Introdução - localizando o texto

O artigo em tela, no que pese possível impressão a partir do título, não tem por intento (re)discutir o conceito de cartografia relacionada à educação, uma vez que outros textos já o fizeram de maneira robusta1. Para dar conta de tal tarefa, apoiamo-nos no conceito de geofilosofia, conforme concepção de Deleuze e Guattari (2010), enquanto inspiração para um método ensaístico. Os franceses cunham a ideia de uma filosofia territorial para escapar de qualquer perspectiva estrutural, histórica e evolutiva das escolas filosóficas. Para eles, pensar é criar conceitos como forma de organizar o caos, atividade tipicamente filosófica que se distingue da ciência (criadora de funções) e da arte (criadora de percepções).

Os conceitos criados filosoficamente visam resolver problemas específicos, circundam um plano de imanência e, ao fazê-lo, criam um território. Tais espaços compostos não refletem qualquer generalidade do real, mas funcionam como ferramentas do pensamento como forma de organizar ideias que colaboram no trato com a realidade - esta, radicalmente singular e interpretativa. É o que buscamos nos escritos abaixo, de tom ensaístico: operar geofilosoficamente ao desterritorializar alguns conceitos do espaço pertencente ao currículo cultural (Neira; Nunes, 2009, 2022) e, ato concomitante, territorializar novos conceitos e novas problemáticas para a Educação Física escolar.

Nosso intento, nesse sentido, é perseguir o possível dos movimentos cartográficos quando estes compõem, com o cotidiano escolar, uma espécie de “verdade” da cartografia enquanto um conceito a ser operado nos planos de imanência da Educação e Educação Física. Havemos de explicar melhor, com o auxílio da arte: interessa-nos a cartografia como em um filme ou conto de terror, em que nada mais importa, apenas que seja “verdadeiro”. Uma vez que deslocamos a filosofia da diferença, é preciso, talvez, ser mais elucidativo, especialmente no que remete ao uso do termo verdade: argumentamos que existe o terror falso e o terror verdadeiro.

Do terror falso temos muitos exemplos. Trata-se de algo mais conhecido, mitológico, como nas obras de H. P. Lovecraft. Nesse caso, precisamos acreditar na narrativa, imaginar que realmente exista algum tipo de criatura milenar que vaga pelas galáxias e que será responsável pelo apocalipse, pelo fim da vida humana (Lovecraft, 2019). Sua construção está na dúvida, no convencimento do/a leitor/a e, mais importante, no seu simulacro. São gastas muitas linhas para simbolizar Cthulhu2.

De maneira distinta, nos mangás3 de Junji Ito, vemos em Uzumaki4 (Ito, 2023) a noção do que chamamos de terror real. Não se trata de entender como e nem por que os espirais tomam conta da cidade, invadem as vidas dos/as cidadãos/ãs, os/as levam para destinos trágicos - o terror está na superfície, na própria incerteza (que é a do/a leitor/a também), no desenho do horror, na face desesperada de cada personagem. Uzumaki é externo, não se explica muito bem, não tem motivos muito convincentes, é apenas desconfortável, nauseante. Aqui, é preciso simplesmente experimentar sua superficialidade.

É dentro dessa segunda concepção que discorremos sobre uma cartografia e sobre sua verdade - independentemente de quantas sejam ou dos seus modos. Nessa perspectiva, temos nossas cartografias espiraladas, em nada metafóricas. A espiral, dentro dessa compreensão, é a própria movimentação do desejo agenciado que constitui, à maneira de Deleuze e Guattari (2011a), platôs de intensidade capazes de distorcer tempo e espaço em movimentos centrípetos. Não se trata, evidentemente, da mesma coisa, porque nossas espirais se comprometem a falar sobre a Educação Física, no território escolar, composto por vários outros territórios dos mais variados ritmos, constituindo práticas corporais variadas que ecoam de além (e para além) dos muros, construindo novos cercados, como com tijolos sonoros (Deleuze; Guattari, 2012b). Por isso mesmo, é importante considerarmos pensar em uma nova dimensão do objeto de estudo da Educação Física, correlacionada à cultura corporal: as práticas corporais territoriais.

Não teorizamos acerca das práticas corporais na ótica de território para recusar a cultura corporal enquanto objeto de estudo da Educação Física escolar; no entanto, posicionamos este texto como seu vizinho no mapa do pensamento do componente, ainda localizado no escopo do que Silva (1999) denominou como noção pós-crítica de currículo5. Há aí uma diferença importante: não se lançam argumentos contraditórios, ao contrário, alia-se, principalmente, ao currículo culturalmente orientado nos termos propostos por Neira e Nunes (2022), mas como cães de matilha que cavam sua própria toca (Gallo, 2017). Nesse sentido, afirmaríamos, diferentes dimensões do que chamamos de objeto de estudo da Educação Física. De maneira mais demorada, aprofundaremos nessa diferenciação.

Cultura e território: implicações

Na perspectiva epistemológica pós-crítica da Educação Física, a cultura ocupa espaço central, como defendia Hall (1997) e como o fazem Neira e Nunes (2009, 2022). Posicionamo-nos geograficamente paralelos à teorização pós-crítica, que compreende a “cultura corporal” como objeto da Educação Física, assim como nos documentos estatais oficiais que possuem ressonâncias com as nossas práticas ou as nossas escritas - a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2018) ou o Currículo Paulista (São Paulo, 2019, 2020). Contudo, neste texto, trataremos do “território” como constituído por Deleuze e Guattari (2012b), visto que buscamos chamar a atenção para o que nomeamos “práticas corporais territoriais”. Ao estendermos o conceito em suas potencialidades, percebemos movimentações paralelas que se cruzam, mas que também se afastam em pontos importantes.

Focando neste último, em pelo menos duas medidas defendemos o dito afastamento: em primeiro lugar, porque pensar a cultura enquanto uma arena de confrontos simbólicos com repercussões materiais, como faz Hall (1997), nos leva a determinado trato metodológico com a cultura corporal muito aliado à genealogia e às disputas de representações culturais6; em segundo, porque o território tem por objeto os distanciamentos e não a convergência, ou melhor, as ramificações que se espalham e/ou fogem “por baixo” e modificam toda a cartografia territorial, que poderíamos chamar, em contrapartida, de geomorfologia (ou geomorfia). Duas dimensões que se cruzam e não se contradizem, como mostra a Figura 1.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 1 Circuito da cultura, primeira dimensão (genealógico); Linhas, segunda dimensão (geomórfico) 

Quanto ao primeiro ponto de afastamento, é possível pensar junto a Hall (1997) quando este afirma que a cultura se constitui nesse processo de luta pela instituição dos significados do que conhecemos ou fazemos; argumentando em favor de uma centralidade cultural, o autor foca em uma dimensão substantiva (a materialidade do processo, como as práticas sociais em geral) e epistemológica (conhecimentos e discursos que circulam justamente para dar forma à materialidade) para demonstrar como a cultura e sua regulação são pontos nevrálgicos das análises sociais contemporâneas. Como afirmado anteriormente, para a perspectiva pós-crítica da Educação Física, da qual traçamos aliança, essa definição de cultura é bastante cara e inspira a teorização sobre a cultura corporal, principalmente quando leva em consideração a importante produção teórica de Stuart Hall7 sobre o circuito da cultura8, como forma de produzir uma relação de desconstrução em um movimento genealógico. Isso quer dizer que qualquer prática corporal pode ser culturalmente analisada e questionada em suas condições de emergência e relações de poder, ponto em que a filosofia de Michel Foucault se torna grande apoio teórico.

Nesse sentido, é possível dizermos que as regulações e os significados circulantes privilegiam determinadas formas de brincar, jogar, lutar, se divertir, enquanto deixam outras de fora ou impedem a participação de identidades divergentes. Desconstruir essas perspectivas enraizadas culturalmente, por meio da linguagem e das práticas, nos possibilita problematizar identidades apegadas a discursos de segregação e pouco afeitos à diferença - problematizando os discursos que atacam os jogos eletrônicos, os que entendem que o futebol não é uma prática feminina ou que determinados estilos musicais são mais ou menos adequados, para ficar em alguns poucos exemplos. Assim, o problema genealógico é o da convergência. Em outras palavras, como as práticas discursivas, os circuitos culturais “montam” determinadas formas de se relacionar com os jogos, brincadeiras, esportes, danças, lutas e ginásticas - convergindo fluxos de força que se sobrepõem às possibilidades fugidias.

Dessa maneira, há uma espécie de estratificação molar9 em que se investe a convergência discursiva. Quando Guattari e Rolnik (1986) mencionam que a cultura é um conceito reacionário, parecem se referir muito mais ao que se institui como alta e baixa cultura. No entanto, poderíamos ler essa passagem, com bastante cuidado, também pela perspectiva da convergência: a cultura, em Hall (1997), e na perspectiva pós-crítica da Educação Física, não é um conceito reacionário; contudo, seu uso precisa apostar em pontos convergentes, pontos molares de estratificação dos quais poderíamos dizer: “há aqui uma espécie de discurso que se sobressai”, “esta é a representação cultural que deveríamos problematizar” ou então “eis uma cultura”. Isso faz com que nos concentremos em uma discussão mais ampla, relacionada aos estratos, e menos no que se alastra ou no que faz rizoma10.

Assim, a questão que ganha força ao adentrarmos a segunda medida de afastamento é sobre como o conceito de território está ligado às distâncias e não à convergência em si: “O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres da mesma espécie: marcar suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 134). A argumentação gira em torno de como o território é um espaço de demarcação, “[...] de reorganização das funções, um reagrupamento de forças” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 136). Os territórios vão do próprio corpo ao bairro, à cidade; da escola à delegacia de polícia. Com isso, tentamos dizer que os maiores estratos (no caso, culturais), são tomados como fundamentais para a cartografia de um espaço, mas que muitos territórios, abaixo, precisam ser considerados. As distâncias são entendidas como espécies de fugas, caminhos, hastes, que são abertos e não se convergem em um ponto em específico para formar um estrato unificado e analisável. Ao contrário, o que chamamos de geomorfismo é justamente a morfologia que o território toma ao ter as linhas do seu mapeamento entrecruzadas (Bonetto; Neira, 2019; Bonetto; Vieira, 2023), distanciadas, ou então, molecularizadas. O problema da geomorfologia, nesse sentido, são as distâncias.

Tenhamos isso em evidência: não construímos uma crítica ou apontamos erros epistemológicos, genealogia e geomorfologia não se contradizem - não levantamos o problema de um ou de outro -, mas correspondem, na argumentação que construímos, a dimensões paralelas que, se aprofundadas, diferenciam e podem gerar análises, escritas, posturas distintas; assim como paralelos que se cruzam, possibilitando análises combinadas, se estrategicamente viável e desejado.

Retomemos a questão das espirais: haveria distribuições lineares desses territórios que invadem, tomam espaço e territorializam ou desterritorializam a escola, a quadra ou a sala de aula (o contrário também é possível, (des)territorializar a casa, a rua, o bairro). Percebe-se que eles se encontram e se entrecruzam, formando conexões mais ou menos aprofundadas em investimentos que canalizam sua força em multiplicidades de movimentos centrípetos e agenciamentos capazes de distorcer tempo e espaço com sua força gravitacional. Não há, senão, várias espirais, vários entrecruzamentos e várias morfologias possíveis - o que nos permite falar, reiterando, em várias cartografias.

Vamos exemplificar a partir de uma prática que tematizou11 o futebol. Em determinado momento, dividiu-se a quadra em duas turmas que poderiam jogar da maneira como quisessem. De um lado, meninas e meninos se dividiram em times e fizeram a atividade à sua maneira. De outro lado, após muita discussão, meninos se dividiram de uma forma e as meninas de outra, de modo que, quando uns/umas jogavam, outros/as ficavam de fora. Duas formações de espirais de investimento bem diferentes em relação ao esporte. Não se exclui a força do estrato cultural nas duas divisões, mas não se atribui à cultura a mesma força de regulação dos dois lados da quadra - produziram, concluíram e experimentaram uma prática de formas diferentes e isso não pode ser ignorado. Um dos meninos, de um dos lados, quando estava de fora esperando as meninas jogarem, chegou a exclamar: “Olha, ali as meninas jogam com os meninos!”. O professor sugeriu que eles poderiam se organizar de forma diferente na próxima aula.

No entanto, o exemplo não basta. Seria preciso que nos demorássemos um pouco mais na problemática das espirais. Em Deleuze e Guattari (2012b), a questão dos círculos é fundamental, pois, em meio ao caos, é este quem demarca a territorialização, o pertencimento: “I. [...] este é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 122); seguem, “II. Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi necessário traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 122, grifos nossos). E finalizam: “III. Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 123). Passagens que demonstram processos de territorialização (I-II) e desterritorialização/reterritorialização (III). Isso é muito importante também para as práticas corporais, pois são os mapas cartografáveis das linhas circulares que nos dão uma medida de onde estamos inseridos - do que se fala, do que se joga, do que se pratica. A importância do futebol para o Brasil, do futebol americano nos Estados Unidos ou do sumô no Japão, certamente, não se estratifica ou não é cultural por um acaso qualquer, mas por territorializações que instituem essas práticas, as tornam familiares para aqueles/as que habitam um território.

É evidente que não podemos tomar a habitação de um território como um formato literal da terra onde pisamos. Não à toa, fizemos menção às espécies de tijolos sonoros anteriormente. Seja pessoalmente, pela televisão, pelo rádio, pela internet, as (re/des)territorializações são incessantes. O território é composto em diferentes instâncias, pelas falas, cores, práticas/gestos, enfim, pelos agenciamentos que os envolvem, ou, então, poderíamos dizer, pelos ritornelos que os constituem. Em Deleuze e Guattari (2012b), estes possuem grande destaque: “Sublinhou-se muitas vezes o papel do ritornelo: ele é territorial, é um agenciamento territorial. O canto dos pássaros: o pássaro que canta marca assim seu território… [...] [ele] pode ganhar outras funções, amorosa, profissional ou social [...]” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 124); “[...] diríamos que a aranha tem uma mosca na cabeça, um ‘motivo’ de mosca, um ‘ritornelo’ de mosca” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 126); “O ritornelo é o ritmo e a melodia territorializados, porque devindo expressivos - e devindo expressivos porque territorializantes” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 130); e dentre esses destaques, aquele que mais nos interessa para a escrita deste texto específico: “[...] chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.)” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 139). É por isso que podemos considerar, na verdade, que a relação com o ritornelo não é estritamente com o som, mas com o ritmo - “[...] o revide dos meios ao caos é o ritmo” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 125). Todo território possui ritmos - e, para tanto, ritornelos que os circulam.

Apesar de sua importância, não se trata, em uma brincadeira, apenas do ritmo da contagem, da música em uma dança ou do grito da torcida em um jogo. A questão é como os ritornelos territorializam o próprio formato da brincadeira, toda semiótica da dança e a relação dentro e fora de um estádio com um esporte. Tudo isso, para os filósofos, é uma questão de ritmo - “[...] o território é produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 127). O ritmo torna-se um importante fator de resposta ao caos, que é um estado pré-territorial. Assim, a maneira como falamos, nos expressamos, nossos esportes, nossas obras de arte, como nos portamos profissionalmente, dentre outros, são fatores rítmicos que instalam territórios ou nos convidam/expulsam para/de outros. A complexidade disso está no próprio território que não se define por medidas, mas por distâncias entre um e outro, os que acabam lá e outros que começam aqui, uma prática corporal que conhecemos assim, mas que se reterritorializa a partir de outros ritornelos acolá.

Desse modo, estendendo esse argumento para nossa problemática, torna-se convidativo pensar em práticas corporais territoriais de forma mais expandida, alastrada, “desorganizada”, com recortes menores do que os grandes enunciados culturais: práticas territoriais de bairros, de condomínios, de ruas, nos seus variados formatos ecológicos… ritmos de brincadeiras, de esportes, de ginásticas, que se territorializam, fogem, não se repetem, marcam distanciamentos, abrem hastes, desterritorializam - e que, evidentemente, podem também se tornar culturais, estratificadas, molares. Isso porque esses ritmos nos constituem e/ou constituem nossas práticas de formas diferentes, constroem ambientes, às vezes, irreconhecíveis, pois: “Seria preciso dizer, de preferência, que os motivos territoriais formam rostos ou personagens rítmicos e que os contrapontos territoriais formam paisagens melódicas” (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 132), e que estes nos levam para lugares inimagináveis. Assim, a Figura 2 demonstra o mapeamento das linhas que se entrecruzam por entre os territórios abertos e que são gravitadas pelas mais variadas espirais em níveis moleculares.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 2 Círculos (territórios), espirais (força centrípeta) 

As espirais

Apesar de situar o círculo e o território, ao que tudo indica, não se tem ainda a resposta que interessa sobre as espirais: seu formato é circular, mas como elas se propagam? Um pouco como em Uzumaki, sem muita explicação. Entretanto, causando problemas, chamando a atenção. Agenciamentos variados que não se centralizam completamente em torno de uma espiral maior, mas que se aproximam e se afastam em diferentes velocidades. Uma dimensão geomórfica está ligada justamente a essa viagem entre as distorções do tempo e espaço causadas pelas espirais. Não se tem com estas uma relação de positividade ou negatividade, moralidade ou amoralidade. A espiral é uma ruptura, depressão ou elevação em um território que promove uma distorção enunciativa, um ritornelo das práticas corporais. Transitar entre essas espirais fornece ao/à docente o papel, simplesmente, de viajante, aventureiro/a que é gravitado por um período de tempo e que logo depois procura mapear e investir em outras linhas que compõem a cartografia dos territórios. Espirais das práticas territoriais das lutas, das ginásticas ou talvez de práticas ainda desconhecidas, rejeitadas, menores, outras línguas, tão subversivas que já nem se parecem mais com nada, além de pura indisciplina - como a dança/o protesto/a performance em Bonetto e Gehres (2018).

Imaginemos o movimento rizomático do desejo12 que é contido por circularidades territoriais: este investe determinada forma de fazer, movimentar ou falar sobre as práticas corporais. O que chamamos de espiral é justamente essa contenção do desejo, sua gravitação, em uma circularidade territorial centrípeta que, ritmada, aliada a ritornelos específicos, inventa personagens em determinadas paisagens melódicas. É certo que, em uma escola, em uma aula de Educação Física, territórios se encontram - a aula territorializa seu círculo; alguns/algumas adentram, outros/as flertam com a desterritorialização; a aula é invadida por outros ritmos, disputa espaço de abertura -, e que as práticas corporais territoriais não são as mesmas, os investimentos são diferentes e, não à toa, nossos problemas com as disputas de como brincar, quem joga melhor, quem sabe a maneira correta de fazer, sempre retornam em formato de discussões. Abrem-se infinitas espirais, morfologias, cartografias. Nessa dimensão, a questão ainda não é de como os discursos constituíram essa prática de tal ou qual maneira, mas para onde sua experimentação (Bonetto; Vieira, 2023) nos levará - um pouco como Kirie (Figura 3) que, mesmo sem saber explicar muito bem o que acontece, vaga pela cidade entrando em contato com todo tipo de efeito causado pelas espirais.

Fonte: Extraída de Ito (2023)

Figura 3 Kirie Viajante 

Eis o problema do docente que assume uma postura cartográfica, que em outro momento chamamos de didatográfica (Lopes; Vieira, 2023a): como transitar por essas distorções, geomorfismos em espirais? Em outras palavras, como saltar de um espiral para outro? Será possível inventar pontas de conexão ou sistemas de extensão (Lopes; Vieira, 2023a)? Deleuze e Guattari (2011a) já nos explicaram sobre a movimentação em rizoma das linhas do desejo e sobre como este se constitui revolucionário (Deleuze; Guattari, 2011b). Essas questões se tornam quase retóricas, decepcionantes até, quando se percebe que não há uma resposta evidente para elas, pois apenas uma cartografia do território é que poderá dizer. Talvez se consiga transitar, conectar, chegar aos estratos culturais, mas talvez seja melhor abandonar, continuar viagem, adentrar outra espiral. “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 25). Pode ser que os ritornelos territorializem sem pedir licença, mas também pode acontecer que as fugas se façam em demasia. Pode ser que continuemos pelas linhas e sejamos surpreendidos por novas práticas, novos modos; que nos aprofundemos em uma espiral específica, onde entraremos em contato com outras hastes de outros mapas relacionados àquela prática; ou que mesmo concentrados nos estratos culturais, sejamos gravitados/as pelas espirais do território.

As didatografias das práticas corporais territoriais são justamente essa movimentação entre as diferentes morfologias que são cartografadas pelo/a docente, que adentra movimentos centrípetos e/ou salta em movimentos centrífugos dos espirais que gravitam o território. Daí a sua relação com a verdade: não há espiral de representação idealista, apenas aquela que, na realidade, distorce a superfície do tempo e espaço. Mesmo que o desejo invista o ideal, a espiral estará na superfície, pois esta é a própria força do investimento.

Nesse sentido, o perigo da espiral não está nas representações culturais ou ideais ou nas estratificações subjetivas que encontramos ao sermos gravitados por elas, mas nos simulacros, na falsa espiral. Esse perigo está relacionado, nas palavras de Deleuze e Guattari (2011a), à arborização do rizoma ou, em nosso caso, à arborização das conexões, dos pontos conectivos entre uma espiral e outra. Isso não é difícil de acontecer, todos nós, professores/as, conhecemos e já passamos por isso: estruturar o caminho de antemão; desejar a representação idealista das espirais; categorizar importâncias. Não que isso seja a morte das espirais e muito menos a territorialização incontornável dos ritornelos do/a docente, simplesmente porque os investimentos dos/as alunos/as não são contidos de forma tão fácil, o geomorfismo do território continua pungente, mas é, por outro lado, o afastamento da postura didatográfica.

Por isso não poderíamos responder sobre como criar pontas de conexão: não há resposta suficiente anterior à própria prática. Devemos parar por aí. Para exemplificar, é jogando que se conhece o apreço pelos jogos de tabuleiro; é questionando que percebemos que os/as alunos/as conhecem muito sobre esse tipo de jogo; é explorando vários tipos de jogos que chegamos ao Role-playing game (RPG); é trabalhando o RPG que podemos imaginar nossas histórias e personagens (Lopes, 2023). Novo exemplo: é trabalhando com futebol que se chega em discussões sobre o jogo; é jogando que se descobre que meninos e meninas também podem jogar juntos/as; é desse ponto que se discute sobre futebol feminino e masculino no âmbito profissional e social (Faria; Vieira, 2018). Por fim, é brincando que percebemos comemorações; é nos mantendo na espiral que descobrimos de onde elas vêm, aonde aparecem; é insistindo que vemos novas comemorações e temos a chance de criar coletivamente as nossas próprias (Lopes; Pereira, 2023).

Se, por um lado, as espirais relacionadas às práticas corporais territoriais podem ser vistas em todos os espaços paralelos à escola (na calçada da rua em que as cartas são disputadas no “jogo de bafo”, na correria do intervalo, quando pedem a bola, quando os meninos jogam futebol e as meninas jogam vôlei, no salão de jogos), as espirais aliadas a um componente curricular, no caso, a Educação Física e os seus temas - jogos e brincadeiras, danças, esportes, lutas e ginásticas (Neira; Nunes, 2009) -, só podem ser conectadas e exploradas com fins educacionais dentro do próprio componente. Isso é importante para que tenhamos o entendimento de que em nossos círculos territoriais, transitamos e somos gravitados por diversas espirais, adentramos e saímos, territorializamos e desterritorializamos.

No entanto, enquanto professores/as de Educação Física, habitamos e instalamos determinados círculos com ritornelos específicos. Ainda assim, em outras palavras: os círculos, as espirais, os personagens e as paisagens se abrem em qualquer local em que se efetuem ritornelos, porém é na Educação Física escolar que didatografamos essa dimensão das práticas corporais territoriais com a compreensão de que temos objetivos e intencionalidades. É nesse mesmo sentido que poderíamos dizer: os estratos da cultura corporal estão por toda parte, mas é na Educação Física escolar que elas são problematizadas como objeto de estudo.

Adentramos, então, os últimos questionamentos: Qual a importância das espirais? O que diferencia das práticas fora do território escolar? Por fim, o que estamos chamando de objetivo/intencionalidade?

Por que das espirais?

A importância da dimensão das espirais está ligada a uma cartografia do espaço, cartografias panorâmicas, como faz Gaspar Noé na imagem da Figura 4 (Irreversível, 2002), ou à postura cartográfica do/a docente que mapeia esses territórios e age, intencionalmente, como um/a interventor/a. Não se quer mais do que atuar sobre o desejo, desprendê-lo, quando assim for necessário, de suas espirais centrípetas em favor de uma liberação dessas linhas, recusando a eterna submissão aos agenciamentos instituídos ou aos investimentos molares territorializados das práticas culturais. Como defende Gauthier (2002, p. 153): “Fazer um uso menor da pedago­gia significa, antes, adotar o devir como regra: tudo vale, exceto aquilo que impede o desejo de circular”.

Fonte: Extraída de Irreversível (2002).

Figura 4 Espiral panorâmica 

Isso não é, notoriamente, o mesmo tipo de movimentação que ocorre nos territórios extraescolares, visto que estes não sofrem esse tipo de intervenção e podem adentrar, cada vez mais, práticas microfascistas, preconceituosas e excludentes. Não estamos tentando instaurar uma linha divisória entre escolar-extraescolar, uma vez que a noção de território, como explicamos, borra algumas dessas fronteiras (os enunciados escolares podem reterritorializar na ecologia extraescolar; assim como o território extraescolar invade os tijolos sonoros do muro escolar incessantemente). Focamos, no entanto, em uma perspectiva que atue dentro da escola e que possua, por isso, seus próprios limites, não podendo responder a qualquer problema. Os círculos e as morfologias do lado de fora da escola dependerão também de outros tipos de intervenções de dimensões macro e micropolíticas para terem seus agenciamentos prejudiciais desfeitos.

É dessa forma que falamos em intencionalidades: experimentações, aos moldes de Bonetto e Vieira (2023), que podem nos levar mais longe - pode ser possível criar novos sistemas de extensão, mas, talvez, sejamos barrados e tenhamos que desfazer agenciamentos. Agenciamentos de poder ou de paixão, todavia, para que pudéssemos seguir ainda mais longe - sem, de fato, um caminho ou uma localização planejada de antemão, falsas espirais programadas. É tudo uma questão de movimentação pelo território. Seríamos criticados, talvez, pelo intento de seguir linhas indefinidas na medida em que as inventamos, uma prática radicalmente contextual, como o são as perspectivas pós-críticas em Educação Física. De antemão, sairíamos, unicamente, em defesa da multiplicidade dos modos de vida, dos estilos que podem ser criados e reinventados, como que produzindo, coletivamente, novos modelos subjetivos, novas torções (Hur, 2021) e escapes nas linhas que nos compõem: “É nos agenciamentos que encontraríamos focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem sempre desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe uma linha agitada” (Deleuze; Parnet, 1998).

Aqui está o mote do problema: a necessidade de desatar os nós das linhas dos investimentos dominantes que despotencializam a afirmação da vida (Silva; Nunes, 2023) - os quais chamaremos de fascistas ou microfascistas13. Atuamos, ao contrário, pelo enfraquecimento dos investimentos censuradores, destrutivos e excludentes, essa é a intencionalidade. A isso poderíamos chamar estratégea, como uma possibilidade de inversão semântica - pois, aqui, não se trata de uma arte de liderar exércitos14, aprofundar segmentarizações, distribuir ordenamentos; mas, pelo contrário, uma arte de modelizar subjetividades, inventar, coletivamente, novos modelos, sem fixações, como um artista escolhe sua paleta de cores (Guattari, 1992).

Com a estratégea queremos uma ferramenta de intervenção para atuar sobre a dimensão das práticas corporais territoriais. Não se trata de uma forma de fazer pesquisa ou de produção de um quadro teórico: a estratégea remete, na verdade, aos usos de um jogo de chaves ou de uma tesoura - podemos cortar, desfazer, maquinar fluxos centrífugos para mudar peças de lugar, como forma de compor novas subjetividades ou debilitar um círculo fascista instalado, destoando seus ritmos, desestabilizando personagens e paisagens. No entanto, que não entremos em armadilhas: não há trabalho em esferas isoladas, não se trata de manobras articuladas por um/a docente, mas de caminhos conjuntos e paralelos, entre docentes, discentes, territórios, ritornelos, espirais, ecologia, morfologia. Mecanosfera que se acopla em conjunto, não por ímpetos individualistas. É por isso que concerne à estratégea o problema da conveniência - e a ela convém a montagem, construção. É também assim que as dimensões se cruzam: geomorfologicamente, montando novas subjetividades; genealogicamente, desconstruindo (ou desmontando) significados que instigam relações assimétricas de poder e de assujeitamento.

Nessa perspectiva, precisamos considerar o território e suas espirais (assim como a linguagem, o poder, os afectos, a política, a família, a ecologia, a cultura…) como um componente fundamental da subjetividade que nos remete, inevitavelmente, à questão da modelização. Isso quer dizer que uma postura geomorfológica transita por infinitos pontos de subjetivação, multidões de singularidades (Guattari, 1987), várias construções do complexo subjetivo. Será preciso, o quanto antes, ampliar a nossa noção de subjetividade, passando a considerar toda a heterogeneidade que nos constitui - desde processos conscientes até o que Bonetto e Vieira (2023, p. 82, 122, 185) chamam de “inominável”. Em Guattari (1992, p. 11, grifo do autor), esse tema já era central: “A subjetividade é, de fato, plural e polifônica [...]”; “[...] uma co-gestão da produção de subjetividade, renunciando às atitudes de autoridade, de sugestão, que ocupam um lugar tão destacado na psicanálise [...]” (Guattari, 1992, p. 23) e continua: “Optei por um inconsciente que superpõem múltiplos estratos de subjetivações, estratos heterogêneos, de extensão e de consistência maiores ou menores” (Guattari, 1992, p. 23); e ainda, para finalizar: “Um ritornelo complexo [...] marca o cruzamento de modos heterogêneos de subjetivação” (Guattari, 1992, p. 28).

É de se imaginar, contudo, que não há um modelo subjetivo em vista, mas capacidades modeladoras - da mesma forma como não há prévia das didatografias possíveis, mas potencialidades conectivas. Reformulamos e acrescentamos os termos de Gauthier mais acima para dizer: tudo vale, menos o que faz o fascismo cristalizar. O buraco negro de que falavam Deleuze e Guattari (1995) continua atual, pois a sua questão era a da gravidade. Da mesma forma, as espirais são puramente gravitacionais: é assim que distorcem espaço e tempo da mesma maneira que distorcem os corpos e as práticas. As espirais inventam um novo corpo - e quantos deles são gravitados pelos fluxos microfascistas? Não à toa o ciclo parece se repetir: aquele/a, muitas vezes reprimido, tende a encontrar satisfação na repressão de outros/as - em Nietzsche (2013), a vontade de vingança é também uma “consciência pesada”, que diz respeito a forças que justamente não se lançam para fora, não encontram passagem e se voltam, necessariamente, contra aquilo que as detém. Como pontuam Silva e Nunes (2023), o corpo despotencializado, povoado de afetos tristes, facilmente identifica no ressentimento e na vingança a sua maneira de (re)ação. “Valsam os demônios em círculos no terraço de um corpo em ruínas” (Quando as sombras brilharem, 2018).

Encontraremos agenciamentos, estratificados ou não, em que meninas não jogam; que a composição corporal é um impedimento para a participação; que somente alguns/algumas privilegiados/as têm o direito de ganhar; que a trapaça e o fingimento se superpõem ao coletivo; que o rebaixamento daquele/a que não dança é evidente; que só alguns/algumas podem brincar; que o investimento no padrão de movimento, no estilo gestual, é motivo para exclusão; que poucos/as são selecionados/as por terem alguma espécie de vantagem sobre os/as outros/as; que o/a autismo é ignorado, e assim por diante. Seja em relação ao/à docente, aos/às discentes, hoje ou amanhã, fascismos, microfascismos e diferenças sempre retornam.

A afirmação da vida é a nossa questão principal - e eis aqui a necessidade de afirmação da diferença. Até o momento, o pós-crítico tem apostado, assertivamente ao nosso ver, no sujeito solidário (Neira, 2022). Por outro lado, a partir de uma dimensão geomorfológica, queremos também transitar entre os rizomas dos territórios porque acreditamos em sua capacidade inventiva. Defendemos, assim, as modelizações subjetivas das mais variadas. Nessas dimensões moleculares, tendemos a confiar na infinidade das montagens subjetivas. Em outras palavras: o sujeito solidário é uma das efetuações possíveis das subjetividades que afirmam as diferenças, que estendem seus agenciamentos, que dão passagem para as forças variadas. Didatografias (Lopes; Vieira, 2023a), esquizoexperimentações, esquizoaprendizagens, acontecimentos (Bonetto; Vieira, 2023; Vieira, 2022) que nos levam a ter, se assim for, em muitas dimensões, mil personagens rítmicos.

Conclusão

Este texto intenta lançar a problemática das espirais - o que associamos a uma noção geomorfológica de análise dos territórios que compõem a escola. Para tanto, partimos de uma localização necessária: estamos posicionados no campo pós-crítico da Educação Física, paralelos à perspectiva cultural da Educação Física. No entanto, com estes escritos, distanciamo-nos em alguns conceitos e nos aproximamos em outros, o que torna relevante a primeira argumentação. Sem negar ou contradizer as noções de cultura, poder e genealogia - dimensões da cultura corporal -, defendemos como o território e os ritornelos podem fortalecer uma análise “das distâncias”, ou seja, dos fluxos do desejo que percorrem por todos os lados e constituem os ritmos, personagens e paisagens da escola, da rua, do bairro, enfim, de todas as ecologias que constituem subjetividades heterogêneas. A isso, chamamos de dimensão das práticas corporais territoriais.

Neste, os aprofundamentos não se fazem, necessariamente, por escolhas de temáticas delimitadas representadas na cultura, mas por forças gravitacionais que distorcem os corpos, tempo e espaço. Em outras palavras, contenções do desejo que se formam em espirais - nestes encontramos uma multiplicidade de fluxos territoriais, ritornelos, personagens, dentre outros. Em um trabalho radicalmente coletivo (visto que os territórios, as espirais, os próprios personagens são impessoais), o docente, sem abrir mão de seu compromisso enquanto tal, assume uma espécie de atitude viajante para construir suas didatografias, movimentando-se por essas espirais, saindo, desfazendo nós de agenciamentos, permanecendo por um tempo, questionando o que envolve sua estratificação molar, cultural, ou até mesmo agindo abertamente contra as maquinações fascistas e microfascistas que se efetuam nesses sistemas. Amparado por suas estratégeas, visto que essas movimentações nem sempre são fáceis ou se mostram em formato evidente, seus objetivos estão relacionados com a afirmação da vida e a artistagem de novos modelos subjetivos, ainda que não haja uma modelização anteriormente pressuposta. É nesse sentido que argumentamos sobre o seu necessário realismo, contrapondo ao que chamamos de ‘falsas espirais’, aquelas que, como um “terror falso”, se apoiam na representação idealista, no simulacro e nas projeções.

Por isso, essa movimentação está sempre aliada ao questionamento: Em que medida essa prática, dessa maneira, aumenta ou diminui nossa capacidade de ação; abre espaço ou barra a circulação do desejo; quebra ou efetua novos agenciamentos? Há possibilidades de múltiplas circulações do desejo, desde que novas rotas ou novos escapes sejam abertos e vazados - está aqui a importância da intervenção docente e da produção coletiva. Em outras palavras, viajar pelos territórios, se aproveitar dessas distorções em espirais, desatar as que interrompem, inventar ou ser inventado/a por novas, mais ou menos necessárias, mas sempre verdadeiras. Atualizando, assim, internos uns aos outros, novos vórtices, galáxias, sistemas - como Van Gogh já havia imaginado, toda uma cosmologia espiralada (Figura 5).

Fonte: Extraída de Van Gogh (1889).

Figura 5 Cosmologia espiralada  

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1O conceito de cartografia, elaborados por Deleuze e Guattari (2011b) na obra clássica O Anti-Édipo, foi amplamente adotado no campo educacional e curricular enquanto uma possibilidade metodológica (Oliveira; Paraíso, 2012; Passos; Kastrup; Escóssia, 2020; Passos; Kastrup; Tedesco, 2016). Não temos espaço ou intenção de retomar a discussão; todavia, podemos afirmar de forma básica que a cartografia combina conceitos da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari com práticas de mapeamento e análise social e cultural. A cartografia, nesse contexto, não é apenas a produção de mapas geográficos convencionais, mas uma forma de mapeamento que visa acompanhar as multiplicidades e as relações complexas presentes em um dado contexto. Ela não busca uma representação estática e objetiva da realidade, mas sim uma compreensão dinâmica e processual dos fenômenos.

2Importante personagem/divindade da obra de Howard Phillips Lovecraft, uma espécie de híbrido entre humano, polvo e dragão que sobreviveria nas profundezas do oceano.

3Referimo-nos ao estilo japonês de produção de desenhos e histórias em quadrinhos. Uma de suas características mais marcantes, o que difere do estilo ocidental, é que as gravuras devem ser decodificadas da direita para a esquerda e não o contrário.

4Uzumaki, que pode ser traduzido para o português como “redemoinho” ou mesmo “espiral” e é o título de uma das obras mais importantes de Junji Ito. Apesar dos paralelos entre a arte de J. Ito e H. P. Lovecraft, achamos que a noção de “terror falso e verdadeiro” produz uma fissura importante entre um e outro.

5Estamos paralelos a Silva (1999) quando menciona o campo pós-crítico de estudos curriculares como aquele que é influenciado por autores/as ou grupos que não possuem as perspectivas críticas como seu principal quadro teórico, mas que mantêm um ethos político voltado para as marginalidades e os combatentes das injustiças sociais. Apesar do risco de uma divisão tão abrangente, há distinções importantes como a concepção de conhecimento, a discussão acerca da natureza humana, a teleologia educacional, entre outros. A aposta dos pós-críticos (se é que podem ser agrupados sob tal alcunha), é no conhecimento enquanto perspectiva em oposição ao idealismo, na absoluta ausência de qualquer essência humana apriorística e na descrença de qualquer teleologia controladora. Assim sendo, nos são caros, para este texto, os escritos de Stuart Hall, Michel Foucault, Jacques Derrida, assim como, evidentemente, Gilles Deleuze e Félix Guattari - apesar destes últimos não terem destaque na obra de Silva (1999) na qual nos apoiamos, mas que podemos aproximar do que foi denominado como pós-estruturalismo ou filosofia da diferença. Ainda assim, é importante situar: apesar do poder de síntese que essas divisões podem empregar ao texto, desacreditamos de sua funcionalidade unificadora e preferimos investir enunciados menos abrangentes (Lopes; Vieira, 2023b). Nesse sentido, utilizamos do termo pós-crítico ou de algo que se possa chamar de pós-estruturalismo apenas como recurso didático.

6Durante o texto, faremos a diferenciação de representações culturais e representações idealistas. A primeira refere-se à representação nos moldes que Hall (2016) a situa: uma espécie de intervenção no real que produz o significado daquilo que nos relacionamos. E o que chamamos de representação idealista está nos moldes do que Deleuze (2006) pontua: uma idealização, um ente (tomada como uma teoria, um objetivo, um modo, um aprender, um inimigo…) que estaria em vias de existir, geralmente “mais perfeito”, “mais forte”, “melhor” que se opõe a uma realidade “menos perfeita”, “mais fraca”, “pior”.

7Não estamos negligenciando outros quadros teóricos que dão sustentação ao currículo cultural; entretanto, para esta análise, o que nos interessa são as suas premissas mais básicas.

8O circuito da cultura é um sistema pensado por Paul Du Gay (Silva, 2014) que conecta cinco instâncias do nosso sistema social, adquirindo um formato de estrela de cinco pontas, ligadas por uma espécie de pentágono na parte de fora. São as instâncias: identidade, representação, regulação, consumo e produção. A nomenclatura “circuito” faz menção justamente à essa conexão onde cada extremidade tem correlação uma com a outra. Nesse sentido, a identidade se liga à produção da mesma maneira que o consumo se liga à representação. Essa iconografia é importante para demonstrar o caráter complexo da atuação da cultura na perspectiva dos Estudos Culturais.

9Por estratificação molar, compreendemos as segmentaridades que Deleuze e Guattari (2012a) pontuam como molares e moleculares: somos atravessados por ambas, mas enquanto as segmentaridades molares produzem estratificações mais rígidas; os segmentos moleculares tendem a desestabilizar tais relações. Essas noções são comumente tratadas pelos autores como macro e micropolítica respectivamente.

10O conceito de rizoma, conforme desenvolvido por Deleuze e Guattari, é uma ideia que desafia as estruturas hierárquicas e lineares tradicionais do pensamento. Em vez de conceber a realidade como uma árvore com raízes, tronco e galhos distintos, o rizoma é uma forma de organização que se caracteriza pela multiplicidade, pela conexão horizontal e pela ausência de centro fixo. Ele representa uma rede complexa de conexões entre elementos heterogêneos, onde não há uma hierarquia clara nem uma estrutura pré-definida. O rizoma é caracterizado pela sua capacidade de multiplicação, de ramificação e de criação de novas conexões, permitindo a emergência de novas formas e possibilidades. Ele desafia as noções de identidade fixa e de causalidade linear, promovendo uma compreensão mais fluida e relacional da realidade.

11Relato de prática não publicado pelo autor.

12Em Deleuze e Guattari (2011b), o desejo é o principal produtor da nossa realidade entendível, seja ela qual for - “Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 43). Como afirmam, o desejo não está condicionado ao “querer”, à “falta de um algo”, porque está ligado à afirmação. O desejo é um investimento e é a partir deste que uma realidade é produzida, ou seja, desejada. Nesse sentido, produzimos realidade (que pode ser substituída por outros substantivos ou verbos) investindo desejo em uma organização específica. Fazemos referências às linhas na composição das espirais justamente porque Deleuze e Guattari (2012a) mencionam que os investimentos do desejo podem ser “cartografados” a partir de três tipos de “linhas”: molares, de estabilização; moleculares, de vibrações, curvaturas, flexões; e de fuga, de escapes de um território. Nos territórios, assim como nas espirais, se encontram os três tipos de linhas. Visto a complexidade do tema, para mais aprofundamentos, recomendamos a visita às referências citadas nesta nota de rodapé.

13Não faz referência direta ao fascismo histórico, mas à maneira como Deleuze e Guattari (2012a) pontuam: fluxos desejantes que são cooptados pelos agenciamentos fascistas e que disputam espaço em cada um de nós.

14A etimologia da palavra “estratégia” remete à questão do comando hierárquico, geralmente fazendo alusão à liderança de um exército ou ao/à próprio/a general. A inversão semântica se faz a partir das funções atribuídas a essa noção: estratégia como forma de segmentarizar, dispor e, consecutivamente, destruir; ou estratégea como forma de compor, fugir/transitar e, finalmente, construir.

Recebido: 31 de Outubro de 2023; Revisado: 08 de Maio de 2024; Aceito: 10 de Maio de 2024; Publicado: 17 de Maio de 2024

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