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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 31-Maio-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.22732.007 

Seção Temática: A Educação Básica na América Latina: política, gestão e formação de professores. Educación Básica en América Latina: política, gestión y formación docente

Habitus e performatividade na prática docente da rede estadual de ensino do Piauí: implicações da política do Enem

Habitus and performativity in teaching practice in the state school network of Piauí: implications of the ENEM policy

Habitus y performatividad en la práctica docente de la red estatal de enseñanza de Piauí: implicaciones de la política del Enem

Aysllan de Sousa Sobrinho* 
http://orcid.org/0000-0002-3605-7231

Cacilda Rodrigues Cavalcanti** 
http://orcid.org/0000-0001-7222-8061

*Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: <aysllansobrinho@gmail.com>.

**Professora do curso de Pedagogia, do Programa de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Educação (Geppe). E-mail: <cavalcanticacilda@gmail.com>.


Resumo

Este artigo objetiva analisar as implicações da política do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para a prática docente. Questiona-se: A prática docente no Ensino Médio do Piauí tem sido balizada pela performatividade como parte do habitus profissional docente? De que forma? Para responder a essa questão, o artigo fundamenta-se no referencial teórico de Bourdieu e no seu método praxiológico. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com professores de duas escolas do Piauí, submetidas à análise do discurso de Maingueneau. Os resultados apontam que a prática docente tem sido estruturada por metas de resultados, práticas treineiras e performáticas. Essa prática performática é incorporada pelos professores, porque é um elemento forte do habitus profissional, consubstanciado na tradição meritocrática como discurso simbólico da justiça social. Os professores aderem à performatividade na medida em que seu habitus profissional está predisposto a incorporá-la, na relação dialética entre a subjetividade e sua posição no campo social.

Palavras-chave: Habitus; Performatividade; Exame Nacional do Ensino Médio

Abstract

This article aims to analyze the implications of the National High School Examination (known by the acronym ENEM) policy for teaching practice. The question is: Has teaching practice in High School in Piauí, Brazil, been marked by performativity as part of the teaching professional habitus? In what way? In order to answer this question, the article is based on Bourdieu’s theoretical framework and his praxeological method. Semi-structured interviews were carried out with teachers from two schools in Piauí, which were subjected to Maingueneau’s discourse analysis. The results show that teaching practice has been structured by results targets, training and performative practices. This performative practice is incorporated by teachers because it is a strong element of the professional habitus, embodied in the meritocratic tradition as a symbolic discourse of social justice. Teachers adhere to performativity to the extent that their professional habitus is predisposed to incorporate it, in the dialectical relationship between subjectivity and their position in the social field.

Keywords: Habitus; Performativity; National High School Examination

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar las implicaciones de la política del Examen Nacional de Enseñanza Media (Enem) en la práctica docente. Se cuestiona: ¿la práctica docente en la Enseñanza Secundaria de Piauí ha sido balizada por la performatividad como parte del habitus profesional docente? ¿De qué forma? Para responder esa cuestión, el artículo se fundamenta en el referencial teórico de Bourdieu y en su método praxeológico. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a profesores de dos escuelas de Piauí, sometidas al análisis del discurso de Maingueneau. Los resultados muestran que la práctica docente ha sido estructurada por metas de resultados, prácticas formativas y performáticas. Esta práctica performática es incorporada por los profesores porque es un elemento fuerte del habitus profesional, encarnado en la tradición meritocrática como discurso simbólico de justicia social. Los profesores se adhieren a la performatividad en la medida en que su habitus profesional está predispuesto a incorporarla, en la relación dialéctica entre la subjetividad y su posición en el campo social.

Palabras clave: Habitus; Performatividad; Examen Nacional de Enseñanza Media

Introdução

Ao longo dos últimos 20 anos no Brasil, as pesquisas sobre os sistemas de avaliação de desempenho têm sido conduzidas por duas lentes de investigação. De um lado, há aqueles que analisam o peso dos fatores intra/extraescolares na determinação dos resultados de aprendizagem, por meio de técnicas quantitativas (Alves, 2006; Couri, 2010; Jaloto; Primi, 2021). De outro, há os que priorizam análises qualitativas sobre as repercussões/as implicações/os efeitos das avaliações para as escolas, o currículo, os alunos e os profissionais (Almeida, 2019; Horta Neto, 2013; Menegão, 2016; Silva, 2019). Esse último aspecto define o campo de investigação da pesquisa que originou este artigo, cujo foco está nas implicações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) na prática docente na rede estadual de ensino do Piauí (PI), sob a lente teórica bourdieusiana que, além de demarcar essas implicações, oferece elementos explicativos para sua ocorrência.

As mudanças produzidas nas últimas décadas (desde os anos de 1980-1990), nas formas de gestão dos Estados, produziram fortes alterações nos objetivos e nas formas das políticas públicas em educação, sobretudo porque colocaram a busca por resultados, eficiência e eficácia como paradigma dos novos modos de gestão da política educacional. A ênfase corresponde aos valores do mercado e à exigência de critérios avaliativos, por meio de avaliações de larga escala1, preponderantes nas reformas e nas políticas educacionais de cunho neoliberal (Afonso, 2001, 2013).

Instituiu-se, principalmente nos países da América Latina, decorrente da Conferência Mundial sobre Educação para Todos de 1990, na Tailândia, uma rede de relações entre os sistemas de avaliação de desempenho na Educação Básica e as orientações dos processos educativos aplicados no cenário nacional e internacional como prática habitual dos professores. Nesse aspecto, estabeleceu-se como pré-condição para implementação de qualquer política educacional a sua associação com uma política de avaliação que pudesse demonstrar, por meio de resultados, os efeitos das políticas e reformas em questão (Brooke, 2012).

Essa associação de políticas fundamenta-se em uma rede global de relações oportunizadas com a disseminação de políticas neoliberais centradas na aproximação entre o público e o privado, alcançando as questões educacionais ao induzir a perspectiva de currículo e políticas por resultados. Nisso, o prestígio pedagógico da política é legitimado, confirmado ou validado por sistemas de avaliação de larga escala que se apresentam como dispositivos políticos de poder para atrair o foco para os desempenhos, rankings, competição e estreitamento das relações público-privadas na ordem política globalizada (Ball, 2002, 2014).

Nessa medida, a noção de performatividade, aperfeiçoada pelo sociólogo inglês Stephen Ball, apresenta uma importante contribuição para a compreensão das mudanças provocadas pelo alinhamento de ações e políticas que alcançam a prática docente, sobretudo porque se tornam recorrentes nos modos de produção da prática professoral associados aos ideais do sistema capitalista neoliberal. Tendo em vista o forte teor discursivo da performatividade, enquanto tecnologia de resultados, buscou-se apreender como essa noção ganha espaço no campo educacional, associada à noção de habitus, desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), como sistema de disposições para a prática. As duas noções foram empregadas como recurso teórico de análise das implicações da política do Enem para a prática docente, porque entende-se que elas possuem relações.

O Enem surgiu em 1998, sob a premissa do Estado avaliador, a fim de se constituir em avaliação do desempenho individual do aluno ao final do Ensino Médio. Seu uso no sistema educacional do país tem servido para o acesso ao Ensino Superior e como política de avaliação de larga escala, por ser instrumento de avaliação da aprendizagem da Educação Básica no final do ciclo obrigatório de ensino (Almeida, 2019). A política do Enem vem possibilitando o aperfeiçoamento da função de avaliador do Estado e disseminando práticas de responsabilização e de competição entre alunos e escolas por resultados, incluindo-a em um sistema de avaliação de desempenho indispensável às políticas neoliberais (Sousa Sobrinho; Cavalcanti, 2023).

O que se teoriza é que o Enem funciona como dispositivo engendrador de práticas performáticas no campo do Ensino Médio, uma vez que a própria esfera político-educacional é afetada pela performatividade. Desse modo, o estudo buscou responder à seguinte questão: A prática docente no Ensino Médio do Piauí tem sido balizada pela performatividade como parte do habitus profissional docente? De que forma? Para responder a essas questões, buscou-se analisar as implicações da política do Enem para a prática docente, considerando o habitus profissional e a performatividade como sistemas de disposições para a prática docente.

Metodologia e questões éticas da pesquisa

O estudo fundamentou-se no método praxiológico de Bourdieu (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 2010), especialmente na noção de habitus como princípio gerador de práticas. Como campo social de investigação, definiram-se duas escolas públicas da rede estadual do Piauí, tendo como critério: ser uma com altos resultados no Enem (Escola A) e uma com baixos resultados no exame (Escola B). Os agentes participantes da pesquisa foram 11 professores, sendo um de cada área de conhecimento do currículo do Ensino Médio. A escolha das escolas teve o pressuposto de adotar um recurso metodológico analítico que permitisse compreender como a performatividade funciona no habitus profissional docente em diferentes campos sociais.

A coleta de dados efetuou-se por meio de entrevistas semiestruturadas aplicadas junto aos professores. Para a análise dos dados, foi utilizada a análise do discurso2 de linha francesa, pautada nas contribuições de Bourdieu (2008), Maingueneau (2008) e Orlandi (2009). Para direcionar as análises, definiu-se como instrumento teórico-metodológico a hipótese de Maingueneau (2008) referente à semântica global, a qual compreende o discurso como um sistema de múltiplas dimensões, composto por alguns elementos, os quais foram observados para nortear as análises dos discursos: vocabulário, temas, estatuto do enunciador e destinatário, modo de enunciação, dêixis enunciativa e modo de coesão.

Por tratar-se de uma pesquisa que visa o aprofundamento teórico de experiências que emergem da prática profissional docente, sem revelar informações que identifiquem os professores envolvidos - item VII, do art. 1º, da Resolução no 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde- CNS (Brasil, 2016) -, não houve registro e avaliação no sistema do Comite de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep). Como garantia de sigilo e confidencialidade aos dados obtidos, os professores receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme orientações do CEP/Conep, fornecendo informações sobre o estudo, os objetivos, as metodologias, os riscos e os benefícios da pesquisa (Brasil, 2016).

Dessa forma, essa autodeclaração visa, em termos de reflexidade e vigilância, garantir que os valores éticos adotados no estudo foram pautados na confidencialidade e no sigilo das informações prestadas pelos profissionais e suas respectivas escolas, tendo em vista que os objetivos da pesquisa não implicam a identificação dos participantes nem os seus locais de trabalho, porque objetivam o aprofundamento teórico da pesquisa em educação (Mainardes; Carvalho, 2019).

Habitus e performatividade: diálogos entre Pierre Bourdieu e Stephen Ball

Buscando compreender as noções do habitus e da performatividade para analisar as práticas docentes como sistemas de disposições, aborda-se, brevemente, essas noções, visando evitar distanciamentos de interpretação, precisá-las e apontar a direção tomada no estudo.

O habitus, na epistemologia bourdieusiana, refere-se a uma noção que conecta o campo objetivo e subjetivo que permeia o agente social. É um sistema de disposições, matriz de percepções que operam na subjetividade3 do agente, sendo duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas e também estruturantes, princípios organizadores e geradores das situações de ação. Segundo o autor, habitus são

[...] sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los [...] (Bourdieu, 2009, p. 87).

Trata-se dos gostos, dos modos de sentir, de pensar e de agir, incorporados em um determinado campo, ou seja, é tanto individualizante quanto social, pois está submetido às regras de funcionamento de um dado campo. O habitus é uma subjetividade socializada no e pelo campo, cuja operacionalização é efetivada por disposições oriundas da trajetória do agente, susceptíveis de (re)produção ou atualização do habitus, à medida que novos eventos surgem na prática dos agentes, predispostos a ter ações, relativamente, estruturadas.

Essa estruturação está vinculada à presença do campo, um microcosmo do espaço social estruturado e estruturante do habitus. Há uma relação de interdependência entre habitus e campo, pois, enquanto a primeira noção aborda a singularidade do indivíduo socializado, a outra agrega o aspecto social individualizado, em uma relação dialética entre o agente e a estrutura social (Bourdieu, 2009). No campo, as práticas desenvolvem-se a partir do habitus em consonância com os interesses (objetos de disputa) desse espaço social, ou seja, o capital4 que é valorizado.

No que tange ao campo social do Ensino Médio, os agentes professores, ao exercerem sua profissão, constroem um habitus profissional docente, um sistema de disposições, percepções e ações que vai sendo incorporado na sua trajetória profissional. Perrenoud (1993) utilizou esse termo para se referir às rotinas dos professores no seu trabalho, as quais possuem uma dimensão repetitiva e planejada (campo objetivo) e uma dimensão espontânea que não segue os padrões pré-estabelecidos, mas que possibilita, pelo habitus, uma adaptação às novas situações de trabalho (campo subjetivo).

Os professores durante o ano letivo estão regrados a horas de ensino, seguindo um esquema profissional base, passando por uma reprodução de dizeres, gestos e práticas condicionadas a uma tradição profissional socialmente objetivada e que abre, por um lado, margem para situações estereotipadas e tomadas como inconscientes, ao se tornarem comum no seu cotidiano. Por outro lado, essas mesmas situações põem o profissional em momentos inesperados e exigem novas ações, todavia regrados a automatismos ligados ao habitus dos agentes. A situação muda e o habitus é atualizado, de acordo com um preceito incorporado na sua prática habitual.

No campo social do Ensino Médio, os professores estão sujeitos aos resultados dos sistemas de avaliação do desempenho estudantil de larga escala, das quais se destaca o Enem, em que os profissionais tendem a ser cobrados para preparar os alunos para o exame. Essa prática, desde sua primeira edição, em 1998, vem fazendo parte desse campo, possibilitando a introjeção de uma busca constante por resultados no espaço escolar. Essa introjeção tem se dissimulado por meio da performatividade como política e cultura da educação (Ball, 2014).

A noção de performatividade em Ball (2002) é uma tecnologia política e cultural dominante que atua para transformar os modos de gestão e as subjetividades dos profissionais, além de permitir a regulação das políticas educacionais pautadas pela exposição de informações, que servem a comparações. A performatividade beneficia-se dos meios de controle das ações tomadas na estrutura escolar, gestão e ação dos indivíduos.

A performatividade é uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança. Os desempenhos de sujeitos individuais ou de organizações servem de parâmetros de produtividade ou de resultado, ou servem ainda como demonstrações de “qualidade” ou “momentos” de promoção ou inspeção... A performatividade é alcançada mediante a construção e publicação de informações e de indicadores, além de outras realizações e materiais institucionais de caráter promocional, como mecanismos para estimular, julgar e comparar profissionais em termos de resultados: a tendência para nomear, diferenciar e classificar (Ball, 2005, p. 543-544).

Para Ball (2014, p. 66), a performatividade é um mecanismo de governança do sistema neoliberal que vai do sistema para a subjetividade do indivíduo, pois é “[...] tanto individualizante quanto totalizante”. Posto isso, compreende-se que a noção da performatividade de Ball pode funcionar, na perspectiva bourdieusiana, como disposição para um habitus profissional de professores (vice-versa), já que se trata tanto de uma matriz de percepção interna quanto externa, sujeita aos campos por onde atua e formando uma estrutura própria dentro das escolas e demais espaços públicos, incorporados pelos agentes.

A proliferação de sistemas de avaliação de larga escala no Brasil instituiu um campo escolar propício à introjeção da performatividade no habitus profissional docente, visto que as políticas educacionais passaram a se referenciar pelos resultados de desempenho estudantil divulgados por essas avaliações, como o Enem. Desse modo, as escolas têm seguido um modelo de política e práticas orientadas pela busca de melhorias nos níveis de proficiência dos estudantes. Práticas como essas, portanto, colaboram para a gênesis de um habitus profissional de professores calcado na performatividade, contribuindo, de modo quase natural, para a consolidação do ideário neoliberal na educação.

Em Bourdieu (2002), a formação desse habitus dependeria da existência de um campo, uma estrutura propícia para a existência do habitus como modus operandi. Tal estrutura, segundo Ball (2012), é formada por tecnologias políticas como a performatividade, pois aliadas aos princípios fundantes do neoliberalismo tendem a formar uma estrutura própria e condizente com a reforma educacional de inspiração neoliberal.

Trata-se, na perspectiva bourdieusiana, do processo de reprodução de um discurso dominante pertencente aos agentes sociais que possuem um poder simbólico dentro do campo educacional. Com esse poder, os agentes ditam as regras do jogo de relações e disputas, com base no discurso da performatividade, operacionalizada na violência simbólica, isto é, um poder que legitima e impõe significados às relações de forças no meio escolar (Bourdieu; Passeron, 1992).

Ao serem incorporados pelos agentes sociais do campo, como os educadores em instituições de ensino, esse discurso se transforma em habitus, o qual se torna parte da subjetividade docente, naquilo que pensam e em como pensam, impulsionando práticas docentes. A condição é que sejam subsidiadas pelo princípio (estruturante e estruturado) gerador da sua ação, o habitus profissional articulado à performatividade, um sistema de disposições duráveis na profissão voltada para constantes melhorias e alcance de resultados nas avaliações de larga escala.

Esse habitus profissional, portanto, tende a incorporar a performatividade como cultura da prática habitual dos agentes professores, porque está predisposta a fazer parte da rotina de trabalho docente, das reuniões pedagógicas e das discussões veiculadas socialmente nas mídias sociais, com a divulgação dos resultados de desempenho dos estudantes e dos rankings criados para classificar as escolas como melhores e piores em termos de qualidade educacional. Isso ocorre, porque a definição de qualidade, no sistema neoliberal, atende ao pressuposto de resultados quantitativos de aprendizagem aferidos por testes de desempenho aplicados em larga escala, os quais servem como referencial da qualidade dos sistemas, escolas e profissionais.

Nesses termos, a performatividade tende a ser introjetada no habitus profissional, porque possui décadas de existência na Educação Básica, desde a reforma educacional neoliberal da América Latina, nos anos de 1980-1990, e que, por meio dos sistemas de avaliação de desempenho de larga escala, vem sendo aperfeiçoada no campo educacional brasileiro. Atende, igualmente, a uma demanda global posta por políticas centrais do continente europeu, expandidas a outros cenários nacionais em desenvolvimento.

Por equivalência, na perspectiva de Bourdieu (1989), uma das condições para a formação do habitus é o tempo, a história de uma prática (re)contada e (re)inventada no campo social dos agentes, na qual a performatividade possa se constituir como uma dimensão da subjetividade docente, sendo reforçada por aspectos da estrutura externa do campo social, na tecnologia política, quanto interna do agente, ao se inserir na cultura desse profissional (Ball, 2014).

A performatividade e o habitus profissional de professores na prática docente e suas implicações pela política do Enem no Piauí

Com base no discurso proferido pelos professores e no entendimento de que a prática discursiva depende da relação entre o habitus e o campo (Bourdieu, 2008), elencam-se três aspectos dos discursos dos agentes de duas escolas estaduais do Piauí, que evidenciam a incorporação da performatividade no habitus profissional docente e suas implicações pela política do Enem , por meio das recorrências discursivas, organizadas em aspectos da trajetória escolar e profissional, aspectos da subjetividade e da prática docente.

Aspectos da trajetória escolar e profissional

Reconhece-se que, apesar das especificidades formativas de cada professor na sua área de conhecimento, os docentes apresentam confluências em relação à conformidade com a política do Enem, pois todos tiveram de passar por um exame de seleção para fazer seu curso de formação. Assim, ainda que a maioria não houvesse feito o Enem, demonstraram estar acostumados com a dinâmica dos exames de desempenho, por meio dos tradicionais vestibulares, como mecanismos de acesso ao Ensino Superior, os quais foram sendo substituídos pelo exame. Os trechos a seguir mostram essa noção.

Pra fazer meu curso de formação eu fiz o vestibular. Foi desafiador, mas era o jeito, entendi que era o jeito na época [risos]. Acredito que a forma do Enem, hoje, é justa e condizente com a educação (Entrevista 9 - Professora de Português - Escola A).

Não cheguei a fazer o Enem, no meu tempo era vestibular, mas achei justo é uma forma de selecionar, quem estuda e se concentra pode passar! (Entrevista 2 - Professor de Português - Escola B).

Pelo fato de a lógica dos exames de desempenho já se apresentar como uma prática recorrente na sua trajetória escolar (dêixis enunciativa), todos os participantes compreendem tais exames como algo intrínseco à educação e, portanto, incorporado ao ambiente escolar, mesmo que alguns nem o quisessem fazer, expressado pela professora de Português da Escola A, quando diz “é o jeito”. Outrossim, apreende-se dos enunciados “foi bastante concorrido e eu consegui passar” e “não tive curso preparatório, estudei em casa mesmo, e passei” que a ideia da meritocracia, por meio dos bons resultados das avaliações de larga escala, faz parte do discurso dos professores.

A forma de seleção pelo qual os professores passaram engendra disposições, na integração ao percurso escolar (Bourdieu, 2002). Afinal, vive-se em uma sociedade meritocrática em que, na falta de oportunidades para todos, se oferecem testes (discurso neoliberal da equidade) para que de forma “justa” passem os que pelo seu mérito se destacarem. Essa noção meritocrática, competitiva e individualista é apresentada no discurso dos professores na sua própria trajetória escolar, pois eram alunos esforçados que, apesar dos desafios, procuravam continuar com os estudos e se tornar professores. Esse objetivo perdurou ainda que na sua época não houvesse práticas treineiras das suas escolas de Educação Básica ou eles não pudessem pagar por cursos preparatórios para os vestibulares, Enem ou outro teste de seleção.

Assim, hoje, eu vejo que eles têm muita oportunidade, porque a gente tem todo um trabalho pra eles conseguirem fazer uma boa prova. No meu tempo, a gente tinha que se esforçar bastante, estudar mesmo em casa pra poder passar e, hoje, eles têm todo esse apoio (Entrevista 6 - Professora de Física - Escola A).

A gente trabalha tanto hoje e, infelizmente, os alunos hoje não querem, aí o resultado não é o esperado…, quando eu estudava não tinha tudo isso não, a gente que tinha que correr atrás… (Entrevista 2 - Professor de Português - Escola B).

Fortalecer essa prática do exame, no exercício da profissão, para esses professores, é algo que colabora na perspectiva de apoiar seus alunos a conseguirem dar continuidade na sua formação, porque eles não puderam ter esse apoio na época. Em contrapartida, o esforço e o mérito do estudante devem ser, também, buscados por eles, pelo transmitido no discurso, porque a individualidade e o mérito são partes da trajetória escolar desses agentes. Portanto, é o passado incorporado que se manifesta nas práticas docentes atuais. Em uma ordem mais ou menos acentuada, os professores compreendem a lógica da performatividade como parte da constituição dos aspectos formativos dos alunos.

O modo de coesão discursiva utilizado, com o uso de recursos linguísticos tais como “mas”, “na minha época”, “quando eu estudei”, “a gente não tinha esses cursos”, para se referir à trajetória escolar, demonstra uma espécie de compensação de ordem moral dos professores, no sentido de que, ao trabalharem por essa política de resultados, eles estão colaborando para que os alunos tenham aquilo que não tiveram na sua experiência escolar. A crença na meritocracia, que tenha supostamente falhado com eles, caso tivessem tido escolas mais performáticas, evidencia a força da política de resultados para a constituição, inclusive, de subjetividades compartilhadas. Assume, igualmente, um valor de ordem moral para além do aspecto político-pedagógico que se manifesta no habitus, porque tem a ver com os sentimentos, os desejos, as frustrações experienciadas na trajetória escolar. Há um sentido subjuntivo, cuja política performática poderia ter funcionado para os professores, caso fossem beneficiados com tais políticas incorporadas às escolas do seu tempo.

No tocante à mobilização dos professores para trabalharem nas respectivas escolas, identificaram-se, nos enunciados, elementos intrínsecos de uma noção performática alinhada à subjetividade dos professores que trabalham na Escola A, mediante esquemas de percepção discursivas semelhantes, que constroem finalidades comuns entre os docentes (Bourdieu, 2008; Maingueneau, 2008).

[…] quando eu fui no setor de lotação, eles me ofereceram o CEMTI [Centro de Ensino Médio de Tempo Integral] me falaram da reputação que o CEMTI tem, de ser uma escola integral, eu morava em outra cidade [professora cita a cidade de origem] e vim pela história que a escola tem, né! Porque eu tinha muito medo de trabalhar física, sendo mulher. Aqui em Teresina tem umas escolas assim meio complicadas [risos] (Entrevista 6 - Professora de Física - Escola A).

[...] escolhi esse local pela proximidade da minha residência e pelo renome da escola, ambiente de trabalho (Entrevista 9 - Professora de Português - Escola A).

No próprio discurso, aparecem “renome”, “possibilidade de desenvolver bom trabalho”, “reputação e história da escola” como fatores decisivos para a escolha do local de trabalho; assim, são professores que, no seu habitus, possuem proximidades com as práticas performáticas, visto que consideram essas questões importantes para o desenvolvimento profissional. São predisposições formadas do que é uma boa escola, oriundas da trajetória escolar, que engendraram pré-noções de que tipo de práticas docentes eles pretendiam exercer, baseadas em expressões de destaque e de diferencial entre os agentes. A distinção do trabalho profissional, portanto, se exerce pelo entendimento docente sobre o que é ser um bom professor ou ter um bom emprego.

Os professores da Escola A são profissionais que, embora tenham sido atraídos e selecionados pela escola de excelência no Enem, buscaram fornecer sua prática à instituição, em virtude das similaridades entre os objetivos profissionais desses professores e os da escola. Esse processo de atração dá-se pelas forças do (sub)campo escolar e dos interesses dos agentes sociais, constituindo-se em linhas de forças semelhantes na operação da performatividade (Bourdieu, 2008; Orlandi, 2009).

É fato que escolas de resultados atraem profissionais que buscam práticas de excelência convergentes com a meta de alcance crescente dos níveis de proficiência dos estudantes e tendem a repelir aqueles com práticas e noções menos performáticas, manifestadas no discurso dos agentes. Logo, colabora-se para a construção de um habitus profissional articulado à performatividade em uma estrutura social demarcada por elementos dessa noção da política neoliberal.

No que tange aos professores da Escola B, não aparecem esses elementos no discurso da escolha do local de trabalho, sobretudo porque esses professores tiveram trajetórias escolares similares ao contexto de atuação profissional, oriundos de famílias de capital econômico e cultural baixos. São professores que escolheram a escola não pelo prestígio ou visando aperfeiçoarem suas práticas em escolas de resultados, mas, sim, pelo motivo de atender às necessidades pessoais de proximidade geográfica da família e de outros locais de trabalho.

Eu escolhi trabalhar aqui pela oferta e por ser perto de casa, pelo deslocamento, né! Ficava mais fácil. Também, porque sempre estudei aqui (Entrevista 10 - Professora Polivalente e Coordenadora - Escola B).

É perto de onde eu moro, dá pra mim ir e voltar tranquilamente, e trabalhar em outra escola. São escolas parecidas, porque estão dentro da mesma realidade, então, não muda muito não (Entrevista 2 - Professor de Português - Escola B).

Diante do que foi enunciado pelos professores da Escola B, a escolha do espaço de profissão foi marcada pelas condições sociais e espaciais em que residem, engendrada por noções de exercerem sua prática em escolas onde pudessem manter a relação familiar pré-profissional. Não obstante, fica evidente que o fato de estudarem em escolas de Educação Básica menos competitivas, terem poucas oportunidades sociais e econômicas e trajetórias escolares e familiares pautadas em noções menos performáticas, engendraram disposições mais para a ascensão profissional e social, como argumento de manutenção das origens familiares, do que com o progresso profissional baseado em práticas de resultados, em escolas tidas como de “qualidade educacional”.

Com o intuito de compreender se esses professores adquiriram disposições ainda na sua formação inicial, para trabalharem direcionados ao Enem, indagou-se a respeito da participação dos entrevistados em programas e projetos voltados para o Enem ou vestibulares. Constatou-se que essas disposições foram incorporadas, fortemente, nas experiências profissionais, por haver uma variação significativa entre o período de formação (pré-1998) e a implementação da política no Enem (1998). Apenas dois professores fizeram o Enem para ingressar na licenciatura, mas disseram não ter se envolvido com programas e projetos desse tipo na época, porque não havia.

Na minha época, eu participei do PIBID [Programa de Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência], né! De certa forma, ele ajuda no sentido de você aprender a dar aula e trabalhar projetos, mais ou menos nesse sentido, mas algo específico para o Enem, enfim, vim aprender mesmo aqui [a professora aponta para a escola] (Entrevista 6 - Professora de Física - Escola A).

No meu curso, não tinha programa ou projeto não [pausa]… assim, teve um programa aqui da escola e teve um programa também do estado. Só que esse programa do Estado era só de acompanhamento (Entrevista 1 - Professora de Física - Escola B).

Segundo o modo de enunciação dos professores entrevistados, compreende-se que a instituição do Enem possibilitou a incorporação de práticas performáticas no exercício da docência, visto que, antes desse período, não havia a preocupação com esse preparo para tais avaliações. A partir da divulgação dos rankings escolares no Enem, desde 2006 (resultados de 2005), mobilizaram-se políticas da rede estadual para modificar programas e práticas pedagógicas direcionadas aos níveis de proficiência do exame no Ensino Médio. Com isso, os professores passaram a introduzir essas noções da performatividade na subjetividade e nas práticas, tendo em vista as transformações do campo educacional.

Nesse aspecto, os conhecimentos e os saberes advindos da prática experienciada nas escolas superam os da formação inicial, porque tendem a se repetir no quotidiano, reproduzindo-se constantemente nos discursos da escola e no exercício da docência. Consequentemente, transformando-se em habitus profissional, à medida que se repete gradualmente no trabalho anual das escolas e constitui-se em um passado incorporado pela história inscrita na estrutura cognitiva, discurso, modo de agir e falar, valores e concepções que orientam as práticas. Estas são representações do contexto sócio-histórico no qual o professor é socializado e formado na sua trajetória profissional (Bourdieu, 1989).

São, principalmente, as marcas da sua posição social, dos símbolos, dos gestos, das estratégias de reprodução e ação, dos gostos e das preferências que formam as propriedades correspondentes à posição de executores da política do Enem. Ao optarem, ainda que inconscientemente, por se alinhar aos princípios da performatividade, engendradas por políticas neoliberais do estado do Piauí, os professores atualizam e refletem as marcas de dominação e distinção da sua posição social, apreendidas ao longo dos processos de socialização profissional, cujas marcas se tornam parte da sua subjetividade (Nogueira; Nogueira, 2009).

É como se os professores da rede não pudessem ir contra todo um sistema de disposições que age sobre eles, dada as distâncias de posições sociais ocupadas em um cenário político educacional hierarquizado, conforme as funções de cada agente no ambiente escolar “performatizado”, sendo o público docente detentor da responsabilidade de pôr em prática as políticas relativas ao ensino. Quando os docentes enunciam “é o jeito”, “sem preparo é difícil o aluno passar no Enem”, “no meu curso não tinha programas e projetos do tipo”, eles revelam que esse processo ocorre de maneira determinante e determinada, pelo fato de ser algo naturalizado e inquestionável, porque não há o que ser feito.

Aspectos da subjetividade docente

Pelo não dito do discurso ou o que Bourdieu (2008) chama de censurado, referente a temas silenciados sobre a contestação da política do Enem e à transformação social, fica subentendido haver uma subjetividade adaptativa dos professores às condições objetivas da rede estadual. Ora, os docentes não questionam a seleção, os resultados, a competitividade, o processo da política, nem discursam sobre a função social mais ampla da escola para além da formação com vistas ao ingresso nas Instituições de Ensino Superior.

É evidente, nesse não dito, uma disposição conformativa com a performatividade, pois o aspecto positivo da política revela, por meio dos contrapontos discursivos, que a positividade da política do Enem prevalece sobre os aspectos negativos da política, tendo em vista o silenciamento ou censura atribuídos. Isso é percebido nos seguintes modos de coesão dos enunciados: “o Enem ele mais ajuda do que atrapalha”, “o Enem não é algo tão negativo para mim como professor”, “atrapalhar ele não atrapalha . . . na realidade as ressalvas em relação ao Enem não são tantas”.

É um modo de coesão discursiva, no qual os professores estão submetidos à pressão de políticas educacionais de avaliação performáticas, encadeadas por processos meritocráticos e competitivos (Maingueneau, 2008). A maneira como constroem suas práticas docentes se revela na própria formação discursiva alinhada às unidades argumentativas de incorporação da performatividade no trabalho dos professores, em um processo de doutrinação do discurso. Ainda que pensem o oposto, tendem a aceitá-las como são, devido à dinâmica profissional do ensino médio e da formação específica desses professores, sujeitos a ensinar para a disciplina, em detrimento de questões mais amplas do processo educativo.

Outro aspecto, observado no plano constitutivo dos temas em pauta na entrevista, que se coaduna com as análises de Maingueneau (2008), foi que eles tanto foram determinados, de um modo geral, por serem inerentes ao discurso da política do Enem, como aprovação, resultados, desempenho, universidade, trabalho, sucesso e ascensão profissional, quanto apareceram do modo específico de cada subcampo, como a dedicação dos alunos para a Escola A, desinteresse dos alunos para a Escola B, restritos à formação discursiva. Contudo, outros temas apareceram que divergiram do foco da pesquisa, como “novo ensino médio” e “salário dos professores” que se repetiram algumas vezes nas entrevistas.

Maingueneau (2008) não aborda essa fuga, mas, pela recorrência no trabalho, se optou por os chamar de temas insurgentes, porque são temas que se expressaram com o sentido de revolta e contrariedade ao modelo ou forma atual de aplicação. Foram manifestos na necessidade de expor, em uma espécie de desabafo, essa contestação. Embora não estivessem integrados à ordem do discurso porque dispersavam das temáticas pré-estabelecidas, apresentaram-se como contrapontos aos modos de enunciação de algumas partes da política do Enem no sentido de “ela não é tão ruim comparada a isso”.

Se, por um lado, a circulação e a inserção dos professores na rede estadual de ensino permitiram reforçar alguns elementos da performatividade, oriundos do seu percurso escolar, como a meritocracia e o esforço individual, por outro, as práticas orientadas para o Enem, dissonantes do habitus profissional dos seus professores no Ensino Médio, resultaram da transformação do habitus profissional. Isso ocorre pelo distanciamento de disposições, incorporando-se novas práticas e disposições valorizadas no subcampo, decorrentes da socialização profissional nas escolas da rede estadual de ensino do Piauí, dando origem a práticas de resultados.

O crescimento nos últimos anos de cursinhos preparatórios para o Enem, vestibulares, ou qualquer outra avaliação de larga escala, seja pelo setor público ou privado, seja de forma gratuita ou paga, naturalizam as práticas de resultados nessas avaliações. Por isso, no conjunto das relações sociais experienciadas, nos momentos formativos ou profissionais, elas mantêm ou transformam o campo permeado pela performatividade não como único aspecto do trabalho, porém como um dos elementos importantes da formação e do desenvolvimento profissional do professor.

Ressalta-se que as práticas docentes pautadas nos resultados do Enem se tornam mais intensas com os alunos do último ano do Ensino Médio e nos meses próximos à aplicação da prova. Assim sendo, seja em escolas com um desempenho elevado no Enem, seja em escolas com um desempenho baixo no Enem, há ações dos professores direcionadas ao preparo dos alunos para o exame, uma vez que os resultados da avaliação são um importante indicador da qualidade do trabalho dos professores e da escola, bem como um incentivo simbólico para que seus alunos ingressem na Educação Superior.

Ainda que haja práticas, percepções e discursos em comum entre os professores por área, vinculados ao contexto de formação e epistemologias curriculares de cada disciplina, aponta-se que a performatividade tem sido mais incorporada pelo compartilhamento de discursos na relação dentro da escola (intradiscurso) e entre as escolas, a política e a rede estadual do que por elementos vinculados à área de formação inicial docente. Significa que a aproximação entre as práticas dos professores se dá mais pelo fato de compartilharem o mesmo código no espaço estrutural social, do que o mesmo curso ou área de formação. Explica-se que o habitus profissional, apreendido na formação inicial, é transformado conforme as relações sociais no trabalho são estreitadas com o decorrer dos anos, dentro de cada (sub)campo, por meio da aquisição do código. É o (sub)campo agindo sobre os agentes que compartilham do mesmo código, revestido de um discurso consensual entre os professores (Bourdieu, 1989, 2002, 2004, 2008).

Assim, o sentido prático da performatividade nas condutas dos professores depende da operação (consciente ou inconsciente) do sistema de disposições que constitui a cultura performática da política do Enem no (sub)campo. A formação e a trajetória escolar são importantes para a introjeção da performatividade, na prática dos professores, mas só ganham sentido quando encontram um espaço social repleto de práticas de resultados sistemáticas, de disposições sistemáticas que tendem a engendrar disposições sistemáticas, sem que tudo isso seja produto de apreensões conscientes (Bourdieu; Passeron, 1992). Quer os professores tenham suas disciplinas avaliadas, fortemente, no Enem ou não, apresentam, no modo de enunciação (preocupação, motivação, empolgação, prolongamento do discurso), o desejo de colaborar com os resultados operacionalizados nas escolas, que variam conforme a classificação social em escolas de resultados ou carentes de resultados.

Nas áreas de exatas (Ciências Naturais), houve um modo de discurso consensual sobre o porquê abordar o Enem nas aulas, constituído sob a razão da política do exame dar sentido ao estudo de alguns conteúdos da área. Aparentemente, revelam que o uso do Enem colabora no aspecto de fornecer sentido ao ensino e à aprendizagem de alguns objetos de conhecimento da área, tradicional e historicamente, “taxados” como difíceis. Em uma linguagem simples, seria o equivalente a dizer: “Para que estudar esse assunto? Porque vai cair no Enem, concurso, vestibular etc.”.

A percepção dos professores sobre as dificuldades dos alunos nas Ciências (Química, Física e Biologia), assim como as dificuldades no próprio ensino dessas disciplinas e o menor rendimento dos alunos nessa área, fazem com que haja uma maior preocupação desses professores em dimensionar sua prática aos fins do Enem, trazendo questões, formas que os conteúdos são cobrados no exame e o que é exigido deles na avaliação. Constitui-se em uma forma de compensar as dificuldades de aprendizagem com a disciplina, dando sentido ao ensino de alguns objetos de conhecimento, relativamente distantes do capital cultural dos estudantes e dos professores.

Com os professores da área de Humanas, as implicações, na prática, envolvem a abordagem de questões do Enem como método de resolução de questões com uma menor regularidade do que nas outras áreas avaliadas. A redução da carga horária, devido à reforma do Ensino Médio, bem como as finalidades e os objetivos associados ao ensino das disciplinas dessa área do conhecimento e a menor dificuldade dos alunos nelas reduzem a intensidade da articulação.

Por tratar-se de uma área regular na educação dos alunos, preocupadas com aspectos sociais, históricos, filosóficos e espaciais que envolvem a formação humana, esses professores não utilizam o Enem com tanta frequência nas aulas, nem se preocupam tanto com o exame; contudo, engendram, também, práticas voltadas para a prova do Enem, porque compreendem-no como um teste de desempenho relevante para a mobilização social e escolar dos alunos e a mobilização social da escola perante a rede.

Já para os professores da área de Linguagens, principalmente Português, percebem-se práticas mais recorrentes do que nas outras áreas, cujas implicações se concentram na preparação dos alunos com aulas focadas na estrutura e na escrita de redações e na interpretação de textos. Como existe uma área própria da redação avaliada no Enem, fora a pressão escolar e social dada aos professores de Português por esses resultados, a prática docente desse grupo de professores tende a se adequar, fortemente, aos moldes das políticas de avaliação de larga escala - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e Enem -, pois a responsabilização simbólica gerada engendra disposições para práticas voltadas, diretamente, para tais políticas.

Aspectos da prática docente

Apesar das equivalências nas práticas docentes, adotadas pelas Escolas A e B, identificaram-se algumas diferenças na amplitude de direcionamento dessas práticas, as quais se atribui à posição social que as escolas possuem na estrutura educacional da rede estadual do Piauí. Coaduna-se, dinamicamente, com a posição que ambas ocupam no ranking do estado, pois, enquanto uma mantém o lugar de estar entre as “melhores” do Piauí, a outra se encontra entre as “piores” em termos de desempenho dos alunos no Enem. Esse distanciamento social e espacial entre as escolas é balizado, conforme Bourdieu (2004), pela distribuição de capitais nas suas diferentes formas ou no volume, ou no peso relativo das diferentes espécies de capital. Nesse caso, trata-se da operacionalização do capital simbólico que demarca as distâncias sociais entre os professores que atuam em uma escola de altos níveis de proficiência no Enem e os professores de uma escola com baixos níveis de proficiência.

Tendo em vista essas diferenças, salienta-se que os professores da Escola de altos resultados no Enem (Escola A), engendram práticas docentes acentuadas em diferentes nichos do exercício profissional orientadas para o exame. Têm-se práticas voltadas para o interior e exterior, as quais seguem as dimensões ou lógicas de ação de escolas com altas performances no quase-mercado escolar (Nogueira; Lacerda, 2014; Van Zanten, 2005), cujo trabalho docente, em nossa análise, é moldado para satisfazer as exigências de manutenção da posição da escola entres as melhores do estado.

O Quadro 1 apresenta uma síntese das práticas realizadas nas escolas. As distinções entre elas se dão com base na intensidade de disposições. Enquanto a Escola A dispõe de um conjunto ordenado de práticas performáticas para o Enem, interiorizadas por um discurso extenso de ações dotado de valor simbólico de satisfação para manter a excelência acadêmica, a Escola B dispõe de um conjunto menor de práticas, pois o discurso externalizado evidencia um sentido de irreversibilidade das condições e dos resultados, no sentido de garantia do mínimo a ser feito, diante das outras questões que compõem a realidade de uma escola do interior, como a indisciplina e o desinteresse.

Quadro 8 Práticas docentes manifestadas nas escolas participantes da pesquisa 

Tipos de práticas Características Sentido do discurso Escola
Práticas internas
Práticas treineiras recorrentes Questões do Enem nas aulas, aplicação de simulados, estudo das competências e habilidades nas aulas e estratégias de resolução de questões. Treinamento Escolas A e B
Práticas de estudos das habilidades do Enem Reuniões pedagógicas para análise e discussão dos descritores das habilidades do Enem, estudos e estratégias de recuperação das habilidades. Aperfeiçoamento / Formação para o Enem Escola A
Práticas de monitoramento Acompanhamento individual e/ou coletivo do desempenho dos alunos. Incentivo Escola A
Práticas de socialização Encontros comemorativos da aprovação dos alunos pelos resultados no Enem na escola. Responsabilização / Incentivo Escola A
Práticas exclusivas Oferta do curso de redação presencial aos alunos do terceiro ano e do Pré-Enem da Secretaria de Educação (Seduc) presencial. Meritocracia/ destaque Escola A
Práticas para o exterior
Práticas de marketing dos resultados Divulgação dos resultados nas redes sociais da escola e dos professores. Transparência/ Promoção da escola Escolas A e B

Fonte: Elaborado pelos autores com base no banco de dados da transcrição das entrevistas, 2023.

Supõe-se que a avaliação da produção docente, em um cenário imerso em políticas orientadas pelo discurso da performatividade, traduz-se nos resultados de desempenho dos alunos nas provas de avaliações externas (Enem, Saeb), conquistas em olimpíadas do conhecimento, aprovações em vestibulares, Sistema de Seleção Unificada (SiSU), Programa Universidade Para Todos (Prouni), e outros sistemas de seleção, além de altas taxas de aprovação escolar, conforme o Censo Escolar. Como fugir disso? É praticamente uma luta desigual, pois a própria posição do professor é vinculada aos níveis de proficiência e resultados de aprendizagem estudantil. Nos moldes de Bourdieu (2009), só há duas opções: ou os professores vão se adaptar ao (sub)campo ou lutarão para pôr em prática suas noções, mudando a estrutura do (sub)campo. Esta última, no entanto, é mais difícil.

No discurso dos professores da Escola A, percebem-se, pela linguagem corporal, expressões e modos de enunciação com ênfase, prazer e satisfação, que suas práticas são constantes, organizadas e compartilhadas sob o consenso de articulação entre o trabalho dos professores entre si e com a escola, buscando manter a posição de prestígio na rede, ou seja, de conservar o capital simbólico dado pela Seduc-PI, aos professores, alunos e demais pessoas da escola.

[...] a escola possui olimpíadas, concursos e simulados voltados para o Enem. A gente tenta estimular de todas as formas né! Desde pedindo planejamento pro professor, aplicando simulados constantes, fazendo encontros com as áreas, né! Toda semana a coordenação pedagógica se reúne com os professores das diferentes áreas pra saber como é que tá o trabalho em sala de aula. Então, assim, são algumas estratégias, um trabalho coletivo, que faz diferença nesses resultados, com certeza [expressão de felicidade] (Entrevista 8 - Professora de História e Coordenadora - Escola A).

A escola sempre tem projetos voltados para o Enem, olimpíadas, concursos. Tem um cursinho de redação gratuito às quartas-feiras, cursos preparatórios, aulas extras, cursos de Enem… também questões confeccionadas pelo pessoal da escola, já que aqui a gente tem esse aparato de poder confeccionar apostila…, e pelos resultados a gente supõe que temos feito um bom trabalho [riso de satisfação] (Entrevista 10 - Professora de Inglês - Escola A).

Portanto, pelo enunciado, os professores da Escola A definem seu estatuto de enunciação como profissionais que dispõem de uma constância de aplicação de simulados bimestrais em todas as séries do Ensino Médio, aulas extras, e o que tem sido o diferencial dessa escola. Segundo a professora de Português, a oferta de cursos de redação, “nas outras escolas, não é oferecido esse projeto, na rede todinha, só aqui”; e a execução do Pré-Enem Seduc-PI no formato presencial “também nenhuma outra escola tem nesse formato”.

Essa prática exclusiva na escola tem se constituído em um processo de responsabilização simbólica, pois os níveis de proficiência no Enem têm garantido um diferencial à escola na rede de ensino, ainda que os professores não o identifiquem como tal, pois, conforme Bourdieu (1989), o capital simbólico garante aos seus dominantes o poder simbólico que, embora não conhecido, é reconhecido como tal.

[...] a Seduc não faz a premiação para escola… agora assim, uma coisa a gente aqui há de reconhecer, é o fato de a secretaria ter disponibilizado um preparatório Pré-Enem exclusivo pra escola, ajudou! talvez seja esse o re-co-nhe-ci-men-to [professora faz o gesto das aspas e fala pausadamente] (Entrevista 8 - Professora de História e Coordenadora - Escola A).

Com relação à existência de recompensas para os professores, existe também essa percepção sobre a recompensa ser financeira, na medida em que, ao enunciar sobre a atribuição de sanções ou recompensas pelos resultados de seus alunos da prova do Enem, afirmam não haver essa atribuição monetária.

A gente não recebe premiação da escola, só um muito obrigado, você não fez mais que sua obrigação [risos]. Já dos alunos tem muito esse reconhecimento, todo final de ano, quem passa manda mensagem agradecendo, eles agradecem todo dia, todo dia eu recebo amor aqui [risos] (Entrevista - Professora de Química - Escola A).

Não tem premiação, além do elogio, não que eu saiba (Entrevista 10 - Professora de Inglês - Escola A).

Assim, os professores recebem o reconhecimento social e simbólico tanto da escola quanto dos alunos, pais e sociedade mediante felicitações, elogios e agradecimentos, além do prestígio da rede, o que também marca o objeto de disputa das escolas na rede estadual do Piauí. No entanto, alguns professores, especialmente os de redação, recebem mais do que o prestígio social, mas também uma pequena recompensa material que distingue a prática dos professores que trabalham com a redação, como processo de responsabilização pelos resultados dos alunos. A nota da redação é objeto de postagem nas redes sociais da escola e da rede; assim sendo, esses professores estão disputando o reconhecimento midiático e material da escola sem, contudo, receber sanções por esses resultados.

Eu já recebi, sim, premiação [professora aponta para a plaquinha na mesa] e aqui sempre tem. As premiações são feitas aqui na própria escola e a gente faz um ambiente útil, uma atividade lúdica e acaba parabenizando os professores por esse desempenho como uma forma também de incentivar os alunos. São parabenizados eles e nós. (Entrevista 9 - Professora de Português - Escola A).

Nesse contexto, existe uma expectativa maior da escola e da rede com a nota da redação, porque ela é o “carro chefe” das postagens nas redes sociais da escola e da rede, atuando como mercadoria nos meios virtuais que indicam a qualidade do aluno e do trabalho dos professores e da escola que ofertam o Ensino Médio no estado. Por mais que haja bons níveis de proficiência por área, os outros professores ou suas disciplinas e áreas não recebem o mesmo prestígio que os professores e as notas de redação dos alunos nas provas do Enem; o que evidencia uma maior cobrança e (auto)responsabilização pelo trabalho dos professores nos resultados de desempenho nessa área de linguagens (Português).

Esse mesmo fenômeno de cobrança e (auto)responsabilização foi expresso, também, pelos professores da Escola B. Contudo, as práticas docentes nessa escola são mais rasas na medida em que não há um projeto específico nessa unidade de ensino, e os professores tendem apenas a abordar questões do Enem nas provas e em algumas aulas, pois o foco da escola é outro, apesar do interesse em obter bons resultados. O que alguns professores fazem é participar como colaboradores do Pré-Enem Seduc, acompanhando aqueles alunos que se dirigem à escola aos sábados para as aulas virtuais na escola. Dos professores entrevistados, apenas o professor de Português da Educação de Jovens e Adultos (EJA) disse fazer plantões às vésperas do Enem e trabalhar com a redação nas aulas. Essa prática distinta dos demais é oriunda de experiências anteriores em outras escolas e na escola atual de trabalho, quando este estava no ensino regular, inclusive sendo esse professor apontado pela professora gestora como participante para a entrevista.

Apesar disso, esse professor tem um trabalho diferente na EJA, porque entende que o Enem não é o foco dessa modalidade, o que faz com que sua prática voltada para o exame não apareça nessa modalidade de ensino. Tal fato informa o seguinte: embora o habitus profissional dos professores seja permeado pela política do Enem no campo da performatividade, esta só é acionada em determinados espaços sociais de formação propícios ao cenário da política neoliberal. Supõe-se que, enquanto agentes socializados, as percepções sobre os objetivos do ensino nos quais o professor atua, o que ele valoriza para cada grupo de alunos e a posição da escola condicionam a manifestação de diferentes habitus, na medida em que sua subjetividade e a enunciação de um juízo classificatório no discurso são construídas com diferentes princípios de visão e divisão que mudam de eixo e de função (Bourdieu, 2004, 2008, 2009).

Nessa escola, com baixos resultados no Enem, a sensação que os professores transmitem e que define o estatuto de enunciação é de que não há muito o que ser feito, dada a realidade social dos seus alunos e as condições de trabalho desses professores. O discurso da professora gestora expressa essas interpretações.

A gente estimula os professores pra trabalharem voltados para o Enem, principalmente português e matemática, estimula os alunos a fazerem a prova, porque esses resultados são importantes pra que a escola seja vista pela rede, receba atenção e até mesmo recursos… olha a gente aqui tenta, mas é difícil pela realidade dos alunos [sensação de tristeza] (Entrevista 11 - Professora de Química e Gestora - Escola B).

Ainda que os professores da Escola B entendam que os resultados não estejam exclusivamente atribuídos ao seu trabalho, eles produzem sensações de tristeza, desânimo ou “fracasso” pelos baixos níveis de desempenho dos seus alunos no Enem. São os efeitos da performatividade na subjetividade dos professores, condicionando o êxito das práticas aos resultados de proficiência (Ball, 2004). É como se por mais que quisessem e se esforçassem para mudar a realidade, ela não pudesse ser transformada, por estar presa a uma estrutura social que tende a posicioná-los como estão.

Quando os professores dizem “a gente tenta estimular eles pra fazerem o Enem, mas tu sabe como é difícil…” ou “eu me cobro pessoalmente e a escola também cobra demais pra que tenham bons resultados” ou “a aprovação deles no Enem é um bom resultado, mas nós ainda não temos tanto, porque falta vontade deles ainda...” destacam, no contexto imediato e ideológico da enunciação, esquemas de classificação condicionados à sua condição social na estrutura educacional, associada a um juízo classificatório do que seria uma boa prática, um bom trabalho e um bom resultado no Enem para a escola. Assim, supõe-se que “[...] enquanto agentes socializados, somos capazes de perceber a relação entre as práticas ou representações e as posições no espaço social [...]” (Bourdieu, 2004, p. 159).

Os agentes sociais (professores) percebem as propriedades do seu espaço social pelas propriedades do seu subcampo, dotado de categorias de percepção comuns e que só podem ser decodificados pelos agentes que atuam nesse subcampo. Nesse sentido, as sensações, os sentimentos, os gostos, os valores e as práticas são compartilhadas pelo grupo presente em um espaço social simbólico de ação. Por isso, ainda que os professores das Escolas A e B sejam transpassados pelas mesmas políticas e valores, suas disposições e seu habitus profissional se diferem, em maior ou menor parte, por pertencerem a estruturas sociais objetivas distintas.

Enquanto, na Escola A, há um movimento para angariar um capital cultural de conhecimentos e práticas para o Enem, associado à performatividade como tecnologia política da escola; na Escola B, destacou-se um movimento menos preciso para angariar esse tipo de capital cultural voltado para avaliações de larga escala. Entretanto, os professores de ambas as instituições supervalorizam a prática de resultados como lógica de ação do habitus profissional.

O vocábulo “responsabilização” apresentou sentidos distintos entre os professores das diferentes escolas. Na escola com bons resultados, esse termo está associado aos aspectos positivos, simbolizando risos, felicidade e orgulho, que se expressam como reflexos de um bom trabalho desenvolvido pela equipe escolar. Na escola com baixos resultados, ele ganha o sentido negativo de tristeza, decepção e frustração, em que o discurso sempre é justificado por problemas de interesse e aprendizagem do aluno, mas não apareceu críticas à política, à rede ou ao próprio contexto como possíveis causas desses resultados. Assim, conforme Maingueneau (2008), embora apareçam em diferentes discursos, as palavras obedecem às restrições da semântica discursiva, cujo efeito do sentido “responsabilização” aparece como aquilo evidenciado por Brooke (2012): transferência de responsabilidades do Estado para as escolas e professores, na proposta de testes para as escolas americanas, após o relatório “Uma Nação em Risco”.

Conclusões

Das análises, compreende-se que os modos da atuação dos professores de cada área do conhecimento, em relação ao Enem, são balizados conforme a posição dos docentes nas escolas mais performáticas ou menos performáticas, não apresentando grandes distinções quanto a sua formação específica para a docência. Contudo, percebe-se, dentro de cada escola, práticas mais intensas dos professores de Português e Matemática, devido à pressão social e escolar e ao prestígio dessas áreas nas avaliações de larga escala, e práticas menos acentuadas com os professores da área de Humanas, tendo em vista a carga horária, a recorrência de questões e os aspectos epistemológicos das disciplinas que compõem essa área, voltada para uma formação social mais ampla do currículo. De modo geral, todos os professores apresentaram práticas discursivas impulsionadas pela performatividade como um forte elemento do habitus profissional no seu modo de atuação, na medida em que o próprio habitus profissional desses professores está predisposto a incorporar a performatividade, os quais se beneficiam mutualmente em uma relação dialética.

A política do Enem incorpora-se, portanto, nas práticas escolares como dispositivo operacional da performatividade para disseminar práticas de referências, estabelecer metas, valores pedagógicos, políticos e morais, indicar performances e traduzir a efetividade do trabalho dos professores e das escolas, formar subjetividades compartilhadas, conforme o campo social e fortalecer um senso de (auto)responsabilização simbólica dos agentes e das instituições pelos níveis de proficiência dos estudantes.

As implicações desse modelo de avaliação de larga escala alcançam a subjetividade dos agentes professores, que passam a atribuir parte dos resultados de seus alunos ao seu trabalho profissional, o que resulta na adequação de suas práticas às diretrizes do Enem, pois seu reconhecimento profissional (responsabilização simbólica) está atrelado à aprovação dos estudantes no Enem.

A predisposição do habitus docente para a incorporação de práticas performáticas é também influenciada pela trajetória escolar e profissional dos professores, que está permeada pela noção do mérito como parte do habitus dos agentes. É uma tradição subjetivada na formação do agente professor, que encontra no campo social da rede estadual de ensino do Piauí um espaço propício para transformação do seu habitus profissional. Com o estudo, foi possível perceber como o habitus é transformado no campo, por meio da relação dialética entre a subjetividade docente e a estrutura social do campo, na medida em que a noção de justiça social pelo mérito do desempenho engendrou disposições de conformação com a performatividade, pela política do Enem.

Conclui-se que, embora as políticas de avaliação mudem, é preciso mais do que isso para que a performatividade como valor simbólico da prática docente seja alterada, pois esta já está incorporada no habitus dos agentes, que apenas atualizarão seu habitus profissional a novas políticas. Para transformar práticas, discursos e valores, torna-se essencial transformar habitus e, para tanto, requer tempo e tradição para que as mudanças aconteçam, pois é um processo dialético entre a estrutura social do campo e a subjetividade dos agentes. Não basta mudar políticas, é preciso transformar habitus para alcançar políticas e agentes que priorizem uma educação pública de qualidade social-democrática para além de resultados de proficiência em avaliações de desempenho estudantil.

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1Optou-se por utilizar o termo “avaliação de larga escala” em vez de “avaliação em larga escala”, porque se considera que essas avaliações têm sido utilizadas como dispositivos de poder para inculcar modos de gestão, percepções e práticas para atender aos interesses das políticas de inspiração neoliberal, pautados nos valores do mercado, com ênfase nos resultados (lucro) dos investimentos na área educacional (Ferreira, 2021).

2Existem várias vertentes da análise do discurso; neste estudo, foi selecionada a análise de linha francesa que conecta o linguístico com o social e o histórico na tradição teórica de analistas do discurso franceses. O discurso, nesse sentido, é tido como uma prática discursiva.

3Na perspectiva bourdieusiana, a subjetividade possui tanto uma dimensão particular quanto uma dimensão social na qual os agentes internalizam o social e socializam o individual (exteriorização da interioridade e interiorização da exterioridade).

4A noção de capital é uma noção adjacente às noções primárias do habitus e campo do conhecimento praxiológico de Bourdieu. Concerne a tudo aquilo que é objeto de disputa em um campo e, portanto, valorizado e legitimado como recurso material ou imaterial de disputa entre os agentes, determinando a posição social de seus membros. Nesse sentido, para Bourdieu (1996), pode ser tanto um capital econômico, cultural, social, simbólico, científico etc., desde que haja agentes dispostos a lutar por esse recurso dentro de um campo.

Recebido: 03 de Dezembro de 2023; Revisado: 23 de Fevereiro de 2024; Aceito: 24 de Fevereiro de 2024; Publicado: 29 de Fevereiro de 2024

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