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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 18-Jun-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.22846.036 

Seção Temática: A Educação Básica na América Latina: política, gestão e formação de professores

Brasil e Paraguai: especificidade fronteiriça nas práticas pedagógicas e legislação em vigência

Brazil and Paraguay: border specificity in pedagogical practices and current legislation

Brasil y Paraguay: especificidad fronteriza en las prácticas pedagógicas y la legislación en vigência

Mara Lucinéia Marques Correa Bueno* 
http://orcid.org/0000-0002-5785-9727

Alba Maria Bethania Sanchez Sanabria** 
http://orcid.org/0009-0001-4178-2059

*Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Ponta Porã. E-mail: <mara.marques@ufms.br>.

**Graduada em Pedagogia. Egressa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Ponta Porã. E-mail: <albabethania@gmail.com>.


Resumo

Neste artigo, analisa-se a educação em região de fronteira, com foco especial no contexto geográfico de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, Brasil, e Pedro Juan Caballero, Paraguai. O objetivo principal foi investigar de que forma os desafios, resultantes da diversidade cultural que caracteriza esse espaço geográfico, são tratados nos documentos oficiais da educação brasileira e se tais documentos garantem a atenção devida às particularidades da educação nas regiões fronteiriças do Brasil com o Paraguai. Para tanto, teve-se como questionamento de pesquisa: Os documentos oficiais garantem atendimento às especificidades presentes na educação fronteiriça do Brasil com o Paraguai? O trabalho foi dividido em três seções. Na primeira, abordam-se o conceito de fronteira e a realidade local da região de pesquisa. Na segunda, trazem-se informações sobre o regionalismo em documentos oficiais. Na seção derradeira, realiza-se a análise de duas propostas pedagógicas de escolas estaduais em Ponta Porã, a fim de verificar se elas contêm registros relacionados à realidade fronteiriça da região. Ficou evidente com o estudo realizado que os documentos oficiais que regem a educação brasileira, em todos os níveis governamentais, necessitam contemplar, em sua redação, o regionalismo e as especificidades de cada região, ou, ainda, assegurar que estados e municípios tratem, em suas normativas, de suas particularidades. Isso implica garantir que as normativas estaduais e municipais reflitam suas próprias realidades, representando um chamado à responsabilidade dos estados e municípios na elaboração de políticas educacionais alinhadas com suas necessidades específicas.

Palavras-chave: Políticas educacionais; Educação de fronteira; Documentos oficiais

Abstract

In this article, education in a border region is analyzed, with a special focus on the geographic context of Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, Brazil, and Pedro Juan Caballero, Paraguay. The main objective was to investigate how the challenges, resulting from the cultural diversity that characterizes this geographic space, are addressed in official documents of the Brazilian education and whether such documents guarantee due attention to the particularities of education in the border regions of Brazil and Paraguay. To this end, the research question was: Do official documents guarantee compliance with the specificities present in border education between Brazil and Paraguay? The work was divided into three sections. In the first, the concept of border and the local reality of the research region are addressed. In the second, information about regionalism in official documents is provided. In the final section, two pedagogical proposals from state schools in Ponta Porã are analyzed, in order to verify whether they contain records related to the border reality of the region. It became evident from the study carried out that the official documents that govern the Brazilian education, at all government levels, need to consider, in their writing, regionalism and the specificities of each region, or, even, ensure that states and municipalities deal in its regulations its particularities. This implies ensuring that state and municipal regulations reflect their own realities, representing a call for responsibility on the part of states and municipalities in developing education policies aligned with their specific needs.

Keywords: Education policies; Frontier education; Official documents

Resumen

En este artículo, se analiza la educación en la región de frontera, con foco especial en el contexto geográfico de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, Brasil, y Pedro Juan Caballero, Paraguay. El objetivo principal fue investigar de qué forma los desafíos, resultantes de la diversidad cultural que caracteriza ese espacio geográfico, son tratados en los documentos oficiales de la educación brasileña y si tales documentos garantizan la atención debida a las particularidades de la educación en las regiones fronterizas de Brasil con Paraguay. Para ello, se tuvo como cuestionamento de investigación: ¿los documentos oficiales garantizan atención a las especificidades presentes en la educación fronteriza de Brasil con Paraguay? El trabajo fue dividido en tres secciones. En la primera, se abordan el concepto de frontera y la realidad local de la región de investigación. En la segunda, se traen informaciones sobre el regionalismo en documentos oficiales. En la sección final, se realiza el análisis de dos propuestas pedagógicas de escuelas estatales en Ponta Porã, con la finalidad de verificar si contienen registros relacionados a la realidad fronteriza de la región. Quedó evidente con el estudio realizado que los documentos oficiales que rigen la educación brasileña, en todos los niveles gubernamentales, necesitan contemplar, en su redacción, el regionalismo y las especificidades de cada región, o, aún, asegurar que estados y municipios traten, en sus normativas, de sus particularidades. Eso implica garantizar que las normativas estatales y municipales reflejen sus propias realidades, representando un llamado a la responsabilidad de los estados y municipios en la elaboración de políticas educativas alineadas con sus necesidades específicas.

Palabras clave: Políticas educativas; Educación de frontera; Documentos oficiales

Introdução

A região de fronteira entre o Brasil e o Paraguai apresenta uma série de particularidades em relação à educação que merecem atenção e estudo. Essas especificidades surgem devido à convivência de dois países com culturas, línguas e sistemas educacionais distintos em uma área geográfica limítrofe, criando desafios e oportunidades únicas para o desenvolvimento educacional nessa região.

Um dos principais desafios na educação de fronteira é a diversidade cultural e linguística. A fronteira entre o Brasil e o Paraguai abrange uma vasta extensão territorial, habitada por diversas comunidades; assim sendo, promover a inclusão e respeitar as línguas e culturas locais é essencial para a construção de uma educação significativa. Nesse sentido, a pesquisa teve como questionamento: Os documentos oficiais garantem atendimento às especificidades presentes na educação fronteiriça do Brasil com o Paraguai?

Para realizar essa análise, foi escolhida uma abordagem baseada em pesquisa bibliográfica documental (Cellard, 2008) e análise de conteúdo (Bardin, 2016). Realizou-se uma revisão da literatura com base em autores que abordam questões ligadas à fronteira e à legislação educacional, tais como Haygert e Sturza (2015), Martins (1996), Pereira (2009), Rodrigues (2015), Silva e Torchi (2016) e Veiga (2004), bem como a análise das propostas pedagógicas de duas escolas estaduais. O objetivo principal deste estudo foi investigar de que forma os desafios, resultantes da diversidade cultural que caracteriza esse espaço geográfico, são tratados nos documentos oficiais, e se tais documentos garantem a atenção devida às particularidades da educação nas regiões fronteiriças do Brasil com o Paraguai. Os documentos oficiais analisados foram: a Constituição Federal de 1988, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, o Plano Nacional de Educação (PNE), o Plano Estadual de Educação (PEE), o Plano Municipal de Educação (PME) bem como o Referencial Curricular do município de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul (MS).

O trabalho foi dividido em três momentos. No primeiro, apresenta-se o conceito de fronteira e a realidade local da região onde a pesquisa foi realizada. No segundo, coletaram-se informações sobre o regionalismo em documentos como a Constituição Federal, a LDB, a BNCC, o PNE, o PME e o PEE. E, no último, foi realizada a análise das propostas pedagógicas de duas escolas estaduais de Ponta Porã, com a finalidade de verificar se elas apresentam registros referentes à realidade fronteiriça da região.

Conceito de fronteira e realidade local

O Brasil é o maior país da América do Sul e faz fronteira com dez países, são eles: Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa. A faixa de fronteira brasileira com os países da América do Sul tem 150 km de largura e apresenta uma área total de 1.421.344,688 km2, correspondendo a cerca de 16,7% do território brasileiro, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (Ferreira, 2023).

As fronteiras têm a função de definir a extensão territorial de uma entidade política, bem como regular as interações e as relações entre diferentes entidades. Cabe ressaltar que as fronteiras podem ser tanto físicas, como barreiras naturais, quanto políticas, como acordos formais entre governos. Elas desempenham um papel fundamental na organização e na estruturação do mundo em unidades distintas, permitindo a coexistência e a diferenciação entre diferentes grupos (Rodrigues, 2015).

No entanto, as fronteiras vão além do aspecto físico. Elas moldam relações sociais, políticas e culturais entre diferentes comunidades. Para Martins (2014), a fronteira não deve ser considerada somente um limite físico ou político-administrativo, pois o autor a entende como uma área dotada de especificidades e reconhece a fronteira como um espaço de interação entre povos e nações.

A fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano (Martins, 2014, p. 11).

De acordo com Silva e Torchi (2016), culturalmente, as fronteiras podem ser divisórias entre grupos étnicos, linguísticos ou religiosos. Elas podem ser fontes de enriquecimento cultural, permitindo a convivência de diferentes grupos, ou podem ser pontos de tensão e conflito. As fronteiras culturais não seguem necessariamente as fronteiras políticas, resultando em regiões onde múltiplas identidades se entrelaçam. Segundo as autoras:

A fronteira é um universo singular caracterizada pelos conflitos, negociações e preconceito, mas também pelas misturas de culturas e línguas, que se manifestam através desse contato. É o lugar de trânsito e todos os dias moradores da fronteira e visitantes (cada um com sua carga cultural e linguística) cruzam a fronteira deixando a marca da sua cultura. Por essa razão, ela está em constante transformação, e por não ser estática, está sempre produzindo alterações culturais e de linguagens (Silva; Torchi, 2016, p. 162).

O Mato Grosso do Sul é um dos estados brasileiros que apresenta como fronteiriço dois países sul-americanos, a Bolívia e o Paraguai. A pesquisa tratou da realidade do Brasil com o Paraguai, mais especificamente o município de Ponta Porã, que faz fronteira com a cidade de Pedro Juan Caballero (Paraguai), que são consideradas cidades-gêmeas. Segundo o IBGE (2022a), as cidades gêmeas podem ser definidas como aquelas que ficam uma ao lado da outra, mas localizadas em países diferentes. Sobre cidades-gêmeas Pereira (2009, p. 110) explicita que:

No caso das cidades geminadas de fronteira, em especial nas áreas secas, denominadas de fronteiras secas, a separação ocorre unicamente por uma “zona neutra”, que é a referida faixa pertencente aos estados em contato e não pode ser tocada. Nas cidades geminadas do estado de Mato Grosso do Sul, é comum não haver nenhum posto de alfândega, ou seja, de fiscalização e policiamento, ocorrendo uma livre circulação de pessoas de um lado para o outro, bastando atravessar uma rua ou avenida.

Para a autora, a proximidade geográfica dessas cidades faz com que a população compartilhe não somente o território, mas, consequentemente, toda a construção cultural dos povos de fronteira. Pereira (2009) destaca que as condições de vida na região fronteiriça afetam todos os habitantes, tornando a fronteira uma área onde a colaboração é necessária. Além disso, enfatiza que a fronteira é uma região onde ocorrem diversas interações e trocas entre as pessoas, e a educação desempenha um papel crucial na promoção da integração entre essas comunidades fronteiriças.

[...] a fronteira agrega especificidades que demandam no mínimo ações conjuntas dos países envolvidos, pois as condições de existência na fronteira tocam a todos que residem nessas áreas, portanto, a fronteira é uma zona constante de fluxos e complementaridades e a educação cumpre um papel fundamental na integração (Pereira, 2009, p. 108).

A região de fronteira sul-mato-grossense é marcada por uma rica diversidade étnica, cultural e linguística. No entanto, essas diferenças podem ser percebidas como barreiras, dificultando a construção de práticas integradoras e interculturais. Segundo Haygert e Sturza (2015), uma das principais maneiras de promover um contato pacífico e respeitoso nesse contexto é por meio da educação. As autoras consideram que o conhecimento desempenha um papel fundamental na transformação da perspectiva em relação ao outro.

Haygert e Sturza (2015) afirmam que investir em uma educação que promova a compreensão mútua, o respeito e a quebra de estereótipos entre as comunidades de fronteira é uma estratégia vital para promover a paz e a cooperação entre países vizinhos. As autoras argumentam que, por meio do ensino, é possível transformar as fronteiras de barreiras divisórias em pontes de entendimento e colaboração, beneficiando a todos os envolvidos.

A fronteira é um espaço visto de forma distinta das demais regiões do país, é um lugar com potencial para trazer benefícios socioeconômicos para os países envolvidos. E, certamente, uma das principais vias de possibilitar um contato pacífico e respeitoso é o ensino, o ensino da língua e cultura do “outro”, pois através do conhecimento é possível diminuir a resistência ao diferente, construindo o respeito ao “outro” e desfazendo estereótipos (Haygert; Sturza, 2015, p. 6).

O Estado de Mato Grosso do Sul, localizado na região Centro-Oeste do Brasil, apresenta uma vasta área territorial de 357.142,082 km2. Sua população residente é de aproximadamente 2.756.700 de habitantes, distribuídos em 79 municípios (IBGE, 2022b). De acordo com o IBGE (2022b), dentre esses 79 municípios, 44 são considerados fronteiriços, dos quais 32 estão situados dentro da faixa de fronteira, sete estão na linha de fronteira, e sete municípios são denominados cidades gêmeas, são elas: Bela Vista, Corumbá, Mundo Novo, Paranhos, Coronel Sapucaia, Porto Murtinho e Ponta Porã.

No contexto educacional, de acordo com o Censo de 2021 do Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep (2022), o Mato Grosso do Sul apresenta números significativos em relação à educação. O estado registrou um total de 125.245 matrículas na Educação Infantil, 391.975 matrículas no Ensino Fundamental e 109.762 matrículas no Ensino Médio. Além disso, o Mato Grosso do Sul mantém 1.131 escolas de Educação Infantil, 1.143 escolas de Ensino Fundamental e 440 escolas de Ensino Médio (Inep, 2022), proporcionando oportunidades educacionais importantes para as comunidades fronteiriças.

Especificamente no município de Ponta Porã, com uma população de 92.017 habitantes (IBGE, 2021), localizado na fronteira com a cidade de Pedro Juan Caballero, Paraguai, de acordo com o Inep (2022), no Ensino Fundamental, foram registradas 16.953 matrículas e, no Ensino Médio, 4.652 matrículas. O município conta com 37 escolas de Ensino Fundamental e 15 escolas de Ensino Médio, refletindo a demanda existente na área educacional da região.

Muitos desses alunos, matriculados nas escolas de Ponta Porã, são paraguaios que moram em Pedro Juan Caballero e possuem dupla nacionalidade. Eles atravessam a fronteira todos os dias para assistir às aulas. Assim, essas crianças e esses adolescentes enfrentam desafios diários, pois essas duas cidades, embora geograficamente próximas, pertencem a países diferentes e, portanto, enfrentam diferenças em termos de língua, cultura e sistema educacional. Dessa forma, é necessário desenvolver um trabalho pedagógico adequado para a realidade fronteiriça, considerando que a “[...] escola tem como preocupação levar o educando a participar da sociedade em que vive de forma ativa e efetiva, consciente e responsável pela transformação da realidade em que está inserido” (Silva; Torchi, 2016, p. 168).

Na seção seguinte, apresentam-se os documentos oficiais com o objetivo de averiguar se eles fazem referências às particularidades regionais encontradas nas regiões de fronteira.

Documentos oficiais e sua relação com a fronteira

A Constituição Federal (CF) do Brasil, promulgada em 1988, dedica um capítulo específico aos direitos sociais, que incluem as disposições sobre a educação (Brasil, 1988). As principais referências à educação na CF são encontradas nos arts. 205 a 214. Ela estabelece os princípios e as diretrizes gerais que norteiam o sistema educacional brasileiro e garantem o direito à educação para todos os cidadãos.

O art. 205 afirma que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família (Brasil, 1988). Além disso, destaca a importância da colaboração da sociedade na promoção e no incentivo à educação. Esse princípio coloca a educação como um pilar essencial para o pleno desenvolvimento da pessoa, sua preparação para o exercício da cidadania e sua qualificação para o mercado de trabalho. Segundo Cury (2013, p. 198):

Este desenvolvimento da pessoa não poderia se realizar de modo pleno, especialmente na educação básica, sem o concurso de várias mediações entre as quais a gratuidade, a obrigatoriedade, o financiamento e a valorização dos docentes. Tais mediações concorrem para o preenchimento das finalidades da instituição escolar: o desenvolvimento efetivo e de qualidade da capacidade cognitiva, marca registrada do homem, e a incorporação de valores ligados à cidadania e aos direitos humanos.

O documento menciona a importância dos profissionais da educação e estabelece diretrizes para sua valorização, incluindo planos de carreira e remuneração digna. A CF reconhece os direitos das populações indígenas e quilombolas à educação específica, respeitando suas culturas e tradições e garante a autonomia das universidades, permitindo que elas exerçam sua atividade de ensino, pesquisa e extensão sem interferência excessiva do governo (Brasil, 1988). A Constituição reconhece, também, a autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios na organização dos sistemas de ensino. Isso significa que essas entidades têm certo grau de autonomia para definir suas políticas educacionais, desde que estejam em conformidade com as diretrizes gerais da União.

Dessa forma, a CF de 1988 é fundamental para a educação no Brasil, pois estabelece princípios que promovem a universalização, igualdade de oportunidades, participação democrática e financiamento adequado do sistema educacional. A CF apresenta a base legal para a construção de políticas educacionais e para a defesa dos direitos educacionais de todos os brasileiros.

Do mesmo modo que a CF, a LDB - Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 - é a legislação fundamental que rege a educação no Brasil, definindo os princípios, os objetivos, a estrutura, a organização e o funcionamento do sistema educacional do país (Brasil, 1996). A LDB de 1996 trouxe várias mudanças e atualizações no sistema educacional brasileiro. Ela é composta por diversos artigos que abordam diferentes aspectos da educação no país. Alguns pontos importantes abordados nessa Lei incluem: estrutura do ensino, currículo, gestão democrática, financiamento, avaliação da educação, formação de professores, Educação Especial, valorização dos profissionais da educação, Educação Indígena e Quilombola e Educação a Distância. A versão da LDB aprovada em 1996 garante: ampliação do direito da educação dos 4 aos 17 anos, a Educação Básica e Superior, as modalidades de ensino, recursos financeiros destinados à educação, organização da educação nacional com a distribuição de competências educacionais entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (Brasil, 1996).

A BNCC (Brasil, 2018) é um documento educacional fundamental no contexto da educação brasileira. Ela foi criada para estabelecer os conhecimentos, as competências e as habilidades que todos os estudantes do país devem desenvolver ao longo da Educação Básica, que compreende a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Conforme definido na LDB de 1996, a BNCC deve nortear os currículos dos sistemas e das redes de ensino das Unidades Federativas, como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil.

A BNCC reconhece a importância da contextualização regional nos processos de ensino e de aprendizagem. Ela destaca a relevância de abordar temas locais e regionais nas escolas, de modo a tornar a educação mais significativa e relacionada à realidade dos estudantes. Isso é mencionado em diversos trechos do documento, que ressaltam a necessidade de flexibilidade e adaptação dos currículos para considerar as especificidades de cada região do país.

No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados, acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais (Brasil, 2018, p. 15).

O documento determina que a abordagem de temas contemporâneos deve ser preferencialmente transversal e integradora, permeando diferentes áreas de conhecimento e disciplinas, em vez de ser tratada de forma isolada. Dessa forma, os alunos têm a oportunidade de compreender a interconexão entre esses temas e desenvolver habilidades de pensamento crítico, resolução de problemas e cidadania responsável.

Cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora (Brasil, 2018, p. 19).

Similarmente, o PNE do Brasil é um documento que estabelece metas e diretrizes para a educação no país ao longo de um período determinado. O PNE mais recente foi aprovado por meio da Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, e tem vigência até 2024 (Brasil, 2014). O PNE é elaborado pelo Governo Federal em colaboração com estados, municípios e sociedade civil e serve como um instrumento de planejamento e gestão educacional para orientar as políticas públicas na área da Educação.

O PNE é revisado a cada dez anos e tem como objetivo principal promover melhorias significativas na educação brasileira ao longo desse período. É importante destacar que o PNE não é apenas uma responsabilidade do Governo Federal, mas também envolve estados e municípios, que devem elaborar seus Planos Estaduais e Municipais de educação alinhados com as metas e as diretrizes do Plano Nacional.

A proposta do MEC procura atender a distribuição das responsabilidades educacionais entre a união, os estados e os municípios nos termos da constituição de 88 e da emenda constitucional número 14, remete-se para os Estados e municípios grande parte das atribuições educacionais dos poderes públicos. A união competiria, além dos encargos na educação de nível superior, as funções da ordenação, avaliação e assistência técnica aos sistemas de ensino. Estados e Municípios seriam os principais responsáveis pela atuação educacional dos poderes públicos na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino de nível médio. O documento assinala ainda as responsabilidades da sociedade civil e de suas organizações na realização das metas estabelecidas para a educação no País (Beisiegel, 1999, p. 221).

Assim como o PNE, o PEE tem como objetivo estabelecer diretrizes e metas educacionais específicas para o estado, relacionadas ao acesso, à qualidade e à equidade na educação. Além disso, ele define as estratégias e as ações que serão implementadas para alcançar essas metas ao longo do período de vigência do plano, alinhado com o ciclo de vigência do PNE (Brasil, 2014).

O PEE de Mato Grosso do Sul foi criado de acordo com a Lei nº 4.621, de 22 de dezembro de 2014 (Mato Grosso do Sul, 2014), e é parte integrante da Lei nº 13.005/2014, que instituiu o PNE. O PEE-MS foi elaborado de forma coletiva, envolvendo a análise e a compreensão das necessidades de cada nível e etapa da educação. Ele define metas e estratégias a serem cumpridas pelo estado para contribuir eficazmente para o desenvolvimento da educação.

O PEE-MS foi elaborado de forma a atender às necessidades educacionais específicas do estado, considerando as diferenças regionais, socioeconômicas e culturais.

Essa diversidade requer a implantação de políticas públicas educacionais que absorvam as singularidades de cada grupo humano, em seus ciclos de vida, em cada contexto social, imprimindo grandes desafios ao cenário da educação escolar, como o de assegurar o acesso, a permanência com qualidade social e o êxito no processo de escolarização.

O atendimento a essas singularidades perpassa a definição de estratégias que considerem a realidade socioeconômica e cultural de cada região e vislumbrem melhorias na qualidade da educação desenvolvida no estado, por meio da formação de professores, da capacitação da gestão escolar e da melhoria das condições, físicas e pedagógicas, na estrutura das instituições educativas (Mato Grosso do Sul, 2014, p. 9).

O documento reflete a descentralização da gestão educacional no Brasil, com estados e municípios atuando de forma integrada para melhorar a qualidade e a equidade da educação oferecida aos cidadãos. Dessa forma, os municípios dentro do estado devem alinhar seus Planos Municipais de Educação com o PEE, garantindo a coerência e a integração das políticas educacionais em todos os níveis.

O Ministério da Educação e os sistemas de ensino, estadual e municipais, vêm desenvolvendo diretrizes e ações para o atendimento educacional da diversidade da população sul-mato-grossense, além de políticas específicas para a educação especial e as delineadas transversalmente voltadas para a igualdade de gênero, racial e outras diferenças. Entretanto, é preciso aprofundar o debate sobre qual educação - com a devida qualidade social - pretende-se oferecer em Mato Grosso do Sul (Mato Grosso do Sul, 2014, p. 9).

O PME de Ponta Porã é um documento que estabelece as diretrizes e as metas para a educação municipal pelos próximos anos. Foi criado em 2015, de acordo com a Lei Municipal no 4.100, de 2 de junho (Ponta Porã, 2015). O PME é elaborado de forma coletiva, envolvendo a análise e o entendimento das necessidades do município em relação à educação. Ele define metas e estratégias a serem cumpridas pelo município para contribuir eficazmente para o desenvolvimento da educação.

O PME de Ponta Porã está alinhado às metas e às diretrizes estabelecidas no PNE e no PEE-MS, de modo a contribuir para o cumprimento das metas nacionais e para o fortalecimento do sistema educacional como um todo. Ele estabelece metas educacionais específicas para o município, relacionadas ao acesso, à qualidade e à equidade na educação, à promoção do princípio da gestão democrática da educação pública, à valorização dos profissionais da educação, à superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação e na promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental (Ponta Porã, 2015).

Além disso, O PME de Ponta Porã define as estratégias e as ações que serão implementadas para alcançar essas metas ao longo do período de vigência do plano. O PME leva em conta as características e as demandas específicas do município, considerando as particularidades regionais, socioeconômicas e culturais. Ele reflete a descentralização da gestão educacional no Brasil, com municípios atuando de forma autônoma para melhorar a qualidade e a equidade da educação oferecida à comunidade local.

O município de Ponta Porã também conta com um Referencial Curricular que é o documento que orienta o trabalho dos professores, fornecendo informações sobre as habilidades e as competências que os alunos devem desenvolver em cada etapa da Educação Básica, bem como sugestões de atividades pedagógicas.

Considerando a especificidade das escolas da Rede Municipal de Ensino, a Secretaria Municipal de Educação, Esporte, Cultura e Lazer elaborou o Referencial Curricular- Ponta Porã, com a finalidade de atender a real necessidade educacional da comunidade pontaporanense. Assim, o principal objetivo deste documento é encaminhar o educando ao domínio dos conhecimentos da nossa realidade, visando as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e consciente de seus direitos e deveres, possibilitando aos segmentos das instituições de ensino focarem em um mesmo eixo norteador compreendido pela gestão democrática e o desenvolvimento integral dos educandos (Ponta Porã, 2022, p. 42-43).

O Referencial Curricular considera as especificidades da região de fronteira, ressaltando a necessidade de valorizar as diferenças culturais e linguísticas presentes no município e oferecer um ambiente educacional acolhedor para todos os estudantes, independentemente de sua origem ou língua materna (Ponta Porã, 2022).

A fronteira evidencia um forte laço cultural que perpassam [sic] todos os setores materiais e imateriais, pois uma das principais características da região é o hibridismo cultural, no qual distintas línguas, crenças e valores dialogam e corroboram para formação de uma sociedade ímpar que se destaca pela diversidade (Ponta Porã, 2022. p. 42).

O documento também enfatiza a importância de uma abordagem única e sensível por parte dos educadores em relação aos estudantes estrangeiros que ingressam nas escolas da região. Ele destaca a valorização das diferenças culturais e linguísticas desses estudantes como um elemento crucial para o sucesso educacional e a integração deles na comunidade escolar local.

Desse modo, um novo olhar deve sempre ser direcionado aos estudantes estrangeiros inseridos nas instituições de ensino do município de Ponta Porã, sobre sua identidade como fronteiriços, sempre enfatizando a cultura local nas práticas pedagógicas e valorizando esses estudantes para que se sintam capazes de construir uma educação diferenciada para as áreas de fronteira (Ponta Porã, 2022, p. 43).

O “olhar diferenciado” dos educadores refere-se à necessidade de reconhecer e respeitar as particularidades dos estudantes estrangeiros, levando em consideração suas origens culturais, língua materna e experiências de vida. Em vez de tratar todos os alunos da mesma forma, os educadores são incentivados a adotar uma abordagem que seja sensível às necessidades individuais de cada estudante estrangeiro.

Além disso, menciona as políticas educacionais implementadas pelo Estado de Mato Grosso do Sul que buscam promover uma educação inclusiva e equitativa para todos os estudantes, independentemente de sua origem cultural ou étnica. Essas políticas reconhecem a diversidade e a pluralidade cultural da região, reconhecendo que a inclusão e o respeito pelas diferenças são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária. Um dos documentos mencionados é a BNCC quando afirma que:

A Educação Básica deve compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento humano, assumindo uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente e do jovem, promovendo uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades. Reafirma-se que a escola, como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve promover práticas de respeito às diferenças e diversidades (Ponta Porã, 2022, p. 45).

A LDB, a BNCC e o PNE trabalham em conjunto para orientar a política educacional no Brasil, garantindo que a educação seja um direito acessível a todos os cidadãos, promovendo a qualidade e a equidade no sistema de ensino. Esses documentos operam no âmbito nacional, enquanto o PME e o PEE adaptam essas diretrizes e metas para níveis estaduais e municipais, assegurando a integração entre as políticas educacionais em todas as esferas do governo. Os documentos mencionados não abordam especificamente a questão das regiões de fronteira do Brasil de maneira clara ou explícita. No entanto, eles estabelecem princípios e diretrizes gerais que devem ser aplicados em todo o território nacional, independentemente da localização geográfica das escolas ou das particularidades das regiões de fronteira.

Tendo em vista que as regiões de fronteira do Brasil podem enfrentar desafios específicos, como a presença de populações indígenas, migração transfronteiriça, diversidade cultural e geográfica, entre outros, esses desafios podem requerer ações e políticas adicionais para atender às necessidades educacionais dessas regiões, mas isso geralmente é tratado em políticas e regulamentações mais específicas estadual ou municipalmente.

É importante destacar que, embora não existam políticas educacionais específicas para todas as regiões de fronteira do país, os documentos nacionais fornecem às escolas e autoridades locais a flexibilidade de adaptar suas diretrizes para atender às necessidades da região. Diante disso, a elaboração de políticas e estratégias educacionais específicas para regiões de fronteira é de responsabilidade dos estados e dos municípios, os quais podem identificar as particularidades de suas áreas e tomar medidas adequadas para atender às necessidades específicas da comunidade educacional.

Análise contrastante de projetos político-pedagógicos de escolas fronteiriças

Na CF de 1988, iniciaram-se as discussões sobre a gestão democrática da escola. Em seu art. 206, inciso VI, lê-se: “[...] gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Brasil, 1988, p. 138). A gestão democrática pressupõe o envolvimento de todos os agentes da escola na construção do ensino. Dessa maneira, esse discurso impõe às escolas uma nova maneira de gestão dos processos e das tomadas de decisões (Silva, 2018).

A gestão democrática busca promover a participação ativa e a colaboração de todos os atores da escola na definição de políticas, planejamento de atividades e na resolução de questões relacionadas à educação. Isso representa uma mudança significativa em relação a modelos de gestão mais centralizados e hierárquicos que eram comuns anteriormente. O objetivo é garantir uma educação mais inclusiva, equitativa e alinhada com as necessidades da comunidade local.

A partir disso, a LDB de 1996 prevê a elaboração da proposta pedagógica, que é um documento obrigatório para as escolas, o qual deve conter as metas, os objetivos e os meios que serão usados para concretizá-los. O documento serve como um guia para o planejamento estratégico da instituição educacional, como um instrumento de prestação de contas para a comunidade e visa garantir que a educação fornecida esteja alinhada aos valores e aos objetivos da instituição e seja eficaz na promoção do aprendizado e desenvolvimento dos alunos. “O projeto pedagógico é, portanto, um produto específico que reflete a realidade da escola, situada em um contexto mais amplo que a influência e pode ser por ela influenciado. Em suma, é um documento clarificador da ação educativa da escola em sua totalidade” (Veiga, 2004, p. 11).

O desenvolvimento de uma proposta pedagógica eficaz na educação é uma tarefa que requer a colaboração de todas as partes interessadas na comunidade educacional, professores, alunos, pais, diretores e membros da comunidade, os quais desempenham papéis cruciais nesse processo, contribuindo com suas perspectivas e identificando demandas reais que moldarão o caminho da instituição de ensino, pois o Projeto Político-Pedagógico (PPP) deve levar em consideração o contexto em que a escola está inserida e fatores específicos da comunidade escolar.

Construir projeto político-pedagógico é um processo dinâmico de ação e reflexão que ultrapassa a simples confecção de um documento. Como processo, não é pronto e acabado, porque é um movimento. Refaz-se ao tempo-espaço escolar, vai-se concretizando. A ideia de projeto é, então, de unidade, e considera o coletivo em suas dimensões de totalidade - política e participação. A construção de projeto é uma prática social coletiva, fruto da reflexão e da consciência de propósitos e intencionalidades (Veiga, 2004, p. 78).

O PPP é um documento que desempenha um papel fundamental na orientação do trabalho pedagógico em todos os aspectos da escola. Ele não se limita apenas ao aspecto acadêmico, mas também considera a dimensão social da educação. Portanto, ele não apenas define o que será ensinado, mas também como será ensinado, levando em consideração o contexto social, cultural e econômico dos alunos. Além disso, o PPP é um instrumento poderoso para a intervenção e a mudança da realidade, isso significa que ele não apenas reflete a visão e a missão da escola, mas também orienta ações concretas para melhorar a qualidade do ensino e promover transformações positivas na comunidade escolar e na sociedade em geral. Por essa razão, o PPP não é apenas um documento burocrático, mas uma ferramenta vital para a melhoria da educação e para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Nesse contexto, foi realizada uma análise dos PPPs de duas instituições de ensino localizadas em Ponta Porã. O objetivo primordial dessa análise consistiu em verificar se os documentos abordam devidamente as particularidades e os desafios associados à região de fronteira onde as escolas estão inseridas. O local onde essas escolas estão situadas é de grande relevância para o contexto da pesquisa. Ponta Porã é uma cidade fronteiriça, e essa posição geográfica confere à cidade e às escolas características singulares, como a convivência com culturas, línguas e realidades sociais distintas.

Para preservar as instituições, foram mantidas suas identidades em sigilo. A primeira escola será designada como “Escola A” e a segunda como “Escola B”. A seleção das escolas foi determinada pela sua localização geográfica. A Escola A foi escolhida por estar situada no centro da cidade, mais próxima da linha de fronteira, enquanto a Escola B está localizada em um bairro mais distante da linha divisória.

A primeira característica que merece destaque no PPP da Escola A é a sua conexão com a realidade que a cerca, bem como com as famílias dos alunos. Ele reconhece que a realidade social dos estudantes afeta diretamente sua vida escolar, e a escola utiliza dados levantados como subsídio para orientar todo o seu funcionamento. Esses dados são tratados com a devida relevância, transformando-se em currículo, objeto de planejamento e potencial de aprendizagem. Essa abordagem evidencia a preocupação da escola em oferecer uma educação contextualizada e significativa. Além disso, a escola estabeleceu como objetivos prioritários a busca pela excelência no ensino e o desejo de se tornar uma referência não apenas no Brasil, mas também no país vizinho, o Paraguai. Essa visão reflete a convicção de que a educação é direito de todos, independentemente da sua origem e que a escola desempenha um papel fundamental na promoção da igualdade, valorizando as diferenças individuais e culturais.

A escola também reconhece sua localização em uma região de fronteira entre Brasil e Paraguai. De acordo com o documento, cerca de 15% dos alunos são descendentes de paraguaios, muitos deles residem no país vizinho e são fluentes em três línguas: guarani, espanhol e português. Isso demanda uma abordagem educacional sensível à diversidade linguística e cultural, refletindo a necessidade de adaptar o seu PPP para atender às demandas específicas desses alunos.

Considera-se que as reflexões sobre a realidade local e as particularidades da comunidade escolar são ótimos caminhos na busca de uma trajetória de sucesso para os educadores e alunos. O PPP torna-se, assim, um instrumento de efetiva transformação da sociedade da região de fronteira entre Brasil e Paraguai, com o objetivo de preparar os alunos não apenas intelectualmente, mas também científica e profissionalmente, para compreenderem e participarem ativamente do processo de mudança da realidade social, econômica, política e cultural em que vivem.

A adesão ao Programa Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIF), a partir de 2008, evidencia o compromisso da escola com a promoção da amizade e cooperação interfronteiriça entre Brasil e Paraguai. Essa iniciativa, desenvolvida em parceria com uma escola paraguaia em Pedro Juan Caballero, valoriza a identidade cultural dos alunos e estimula a reflexão sobre práticas pedagógicas no contexto multicultural e trilíngue. O PEIF nasceu como uma proposta do Ministério da Educação (MEC), no intuito de oportunizar aos alunos das escolas da fronteira um novo olhar sobre sua identidade como fronteiriços, valorizando não só a cultura local, mas também os alunos, para que se sintam capazes de construir uma educação diferenciada para as áreas de fronteira, propondo uma reflexão sobre as práticas pedagógicas, oportunizando o conhecimento da realidade multicultural existente.

Segundo o PPP da escola, diante dessas mudanças que não são apenas de cunho cultural, mas que implicam mudança de metodologia, com enfoque voltado ao interesse dos alunos, houve, então, a necessidade de reestruturar o PPP, buscando, na adequação, inclusão de ações metodológicas que valorizassem e respeitassem essas singularidades, em conformidade também com a LDB de 1996, art. 12, inciso I a VII, que pontua que é necessário articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola (Brasil, 1996). Isso para que essa nova metodologia fosse ressaltada e, com a ajuda da comunidade, essas mudanças fossem efetivadas, de forma a garantir a construção de uma gestão democrática, com a participação de todos, inclusive daqueles que se sentiam excluídos.

Verifica-se, assim, que a proposta pedagógica expressa e assegura as ações da escola nas suas tomadas de decisões, nas mudanças que a escola realiza, nos rumos que a escola deve tomar, e, em se tratando de adequação, orienta as mudanças, acompanhando e avaliando essa nova trajetória que se deseja para a comunidade escolar. É com essa perspectiva que a Escola A realizou a adequação da sua proposta pedagógica para a implementação do PEIF. De acordo com o documento, a partir dessas mudanças, a escola passou a ter uma participação efetiva da comunidade escolar, reconhecendo as diferenças individuais que são evidentes. Com a aplicação da nova metodologia, houve um maior envolvimento de todos e uma troca de experiência única com os profissionais do país vizinho.

Em resumo, a proposta pedagógica da Escola A representa um exemplo concreto, ao menos na esfera do planejamento, como a construção de um PPP sensível à realidade local e às necessidades dos alunos que pode ser transformadora. Nessa região de fronteira, onde a diversidade linguística e cultural é um fato cotidiano, a escola se destaca ao preparar os alunos não apenas para o sucesso acadêmico, mas também para serem agentes de mudança em sua comunidade. O PPP se torna, assim, um instrumento valioso de efetiva transformação social e educacional.

A preocupação da Escola A em oferecer uma educação de qualidade para os alunos apresentou-se perceptível na sua proposta pedagógica, que é, antes de tudo, um instrumento ideológico e político, que visa, sobretudo, à gestão dos resultados de aprendizagem, por meio da projeção, da organização e do acompanhamento de todo o universo escolar. Dessa forma, a escola reconhece sua responsabilidade em preparar os alunos para compreenderem a realidade social, econômica, política e cultural em que vivem e para participarem ativamente do processo de mudança dessa realidade.

Já a proposta pedagógica da Escola B estabelece objetivos e metas voltados para a formação intelectual e moral do estudante, com vistas a torná-lo cidadão crítico e consciente para executar seus deveres com responsabilidade, e ainda capacitá-lo frente às mudanças do meio no qual está inserido. O PPP afirma que a escola tem como meta oferecer um ensino de qualidade que promova a formação de cidadãos críticos e conscientes para uma efetiva participação na sociedade, fundamentado em princípios democráticos, éticos e inclusivos.

A Escola B também quer ser reconhecida como acolhedora e inovadora e busca desenvolver o potencial dos estudantes por meio de práticas pedagógicas e administrativas cuidadosamente planejadas. Isso inclui campanhas de sensibilização para promover educação e respeito à diversidade cultural, étnica e religiosa. Além disso, o documento afirma que as necessidades da comunidade local são essenciais na elaboração do PPP, considerando que a escola não é um organismo isolado, mas um componente vital da sociedade em que está inserida.

De acordo com o documento, a missão da Escola B vai além de transmitir conhecimento; ela visa formar cidadãos críticos e conscientes. Os estudantes são incentivados a compreender seu papel como agentes de mudança em suas comunidades. E para alcançar essa visão, a escola apoia ações inovadoras e mudanças metodológicas, visando constantemente aprimorar o trabalho de sua equipe pedagógica.

No entanto, é importante observar que, embora a Escola B reconheça a importância do ambiente local no processo de aprendizagem, parece desconsiderar a realidade de fronteira vivenciada no município e não demonstra preocupação com possíveis alunos provenientes do país vizinho. Uma escola verdadeiramente inclusiva deve estar atenta a todas as nuances de sua comunidade, incluindo a presença de estudantes estrangeiros. Assim sendo, é preciso buscar maneiras de integrá-los adaptando a sua prática pedagógica a fim de apoiá-los no processo educacional.

Conclusões

Este estudo destacou a necessidade de desenvolver políticas públicas e iniciativas educacionais que reavaliem os currículos nas regiões de fronteira, com um foco particular na valorização da diversidade cultural e na superação de preconceitos. As escolas desempenham um papel fundamental na desconstrução desses paradigmas, pois são locais de diálogo, aprendizado e aquisição de conhecimento, onde os estudantes podem explorar a riqueza das diversas culturas e seu senso de pertencimento. É responsabilidade das escolas abordar, portanto, questões culturais e fortalecer os laços entre os países.

Observou-se que os documentos oficiais não demonstram, à primeira vista, uma preocupação evidente com as especificidades da educação em regiões de fronteira. A falta de abordagem clara dessas questões nos documentos governamentais levanta questionamentos sobre a adequação das políticas educacionais às necessidades particulares dessas áreas geográficas, onde desafios distintos podem surgir devido às complexidades inerentes às fronteiras. Observou-se, ainda, que, de acordo com a análise realizada nos PPPs de duas escolas, nem todas as localizadas na fronteira entre Brasil e Paraguai dedicam a devida atenção à realidade local do município. A falta de consideração adequada à realidade local pode limitar a eficácia das estratégias educacionais, ressaltando a importância de revisões e ajustes nos PPPs das instituições de ensino, visando uma abordagem mais integradora e alinhada às características únicas dessa área.

Além disso, é fundamental que o poder público, por meio de políticas e projetos, reconheça e celebre as múltiplas diferenças, assegurando que tanto o PEE quanto o PME contemplem propostas que possibilitem uma abordagem educacional diferenciada para os alunos de escolas localizadas em regiões de fronteira. Isso visa melhorar o desempenho desses estudantes. Embora a criação desses documentos orientadores tenha representado uma contribuição significativa para o avanço da educação no Brasil, é importante ressaltar que ainda existem vários desafios a serem superados para alcançar uma educação pública de qualidade.

Respondendo de maneira explicita ao questionamento central da pesquisa - Os documentos oficiais garantem atendimento às especificidades presentes na educação fronteiriça do Brasil com o Paraguai? , ficou evidente, com o estudo realizado, que os documentos oficiais que regem a educação brasileira nas três esferas, federal, estadual e municipal, necessitam contemplar, em sua redação, o regionalismo e as especificidades de cada região, ou, ainda, assegurar que estados e municípios tratem, em suas normativas, de suas particularidades. Essa ação representa um chamado à responsabilidade de estados e municípios ao olhar e delinear ações educacionais coerentes as suas reais necessidades.

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Recebido: 15 de Dezembro de 2023; Revisado: 28 de Abril de 2024; Aceito: 30 de Abril de 2024; Publicado: 13 de Maio de 2024

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