SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19TIRIBA, Léa. Educação Infantil como direito e alegria: em busca de pedagogias ecológicas, populares e libertárias. São Paulo: Paz & Terra, 2021. 308 p. índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 18-Jun-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.23475.054 

Entrevista

Educação e racismo: o contexto colonial português e os resquícios na atualidade - entrevista com Patrícia Ferraz de Matos

Patrícia Ferraz de Matos* 
http://orcid.org/0000-0001-7322-3756

Maria Julieta Weber** 
http://orcid.org/0000-0001-6172-8597

*Investigadora do Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. E-mail: <patricia_matos@ics.ulisboa.pt>.

**Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: <mjbaweber@uepg.br>.


Apresentação

Patrícia Ferraz de Matos é antropóloga e Investigadora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (ULisboa). Docente do Curso de Doutoramento em Antropologia (DANT) da ULisboa, tem colaborado também em cursos de Licenciatura e de Pós-Graduação de outras instituições, dentre as quais: Universidade de Évora, Universidade de Oxford, Universidade de Cagliari, Universidade do Porto, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade Complutense de Madrid, Universidade de Coimbra, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Autônoma de Madrid, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Licenciou-se em Antropologia na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC). Em estudo de dissertação de Mestrado no Instituto de Ciências Sociais da ULisboa, Patrícia Ferraz de Matos analisou as representações raciais produzidas no contexto do Império Colonial Português nas primeiras décadas do século XX. Ela recebeu o Prémio Victor de Sá de História Contemporânea, sendo publicada em português pela Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa, 2006 [1ª edição], 2012 [2ª edição]), em inglês pela Berghahn Books (Oxford e Nova Iorque, 2013) e revisado nos seguintes espaços de divulgação: Journal of the Royal Anthropological Institute; American Anthropologist; Social Anthropology, Anthropologie Sociale; Journal of Iberian and Latin American Studies; Cahiers d’Etudes Africaines; e Journal of Tourism and Cultural Change. Em sua tese de doutoramento em Ciências Sociais, na especialidade de Antropologia Social e Cultural no Instituto de Ciências Sociais da ULisboa, estudou as relações entre Antropologia, nacionalismo e colonialismo, no período entre o fim da monarquia e o Estado Novo em Portugal.

No referido estudo, ela abordou a biografia intelectual de Mendes Correia (1888-1960), a partir de pesquisas a acervos de Portugal (Lisboa, Porto, Coimbra e Torre de Moncorvo) e do Brasil (Salvador e Rio de Janeiro). A tese foi recentemente revisada e publicada em 2023 por Berghahn Books (Oxford e Nova Iorque). Patrícia Ferraz de Matos é Editora Associada do Anthropological Journal of European Cultures; Diretora Adjunta da Revista Análise Social; Coordenadora da Europeanist Network (EuroNet) da European Association of Social Anthropologists (EASA); Membro Correspondente, em Portugal, da History of Anthropology Network (HOAN) da EASA; Membro do Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland; e vogal do Conselho Consultivo da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas de Língua Portuguesa, em representação do membro benemérito ICS-ULisboa.

Em seu currículo, os termos mais frequentes da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: História da Antropologia; Antropologia em Portugal; Sociedades Científicas; Escolas de Antropologia; Nacionalismo; História da Ciência e Redes; Escola de Antropologia do Porto; Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia; Mendes Correia; Ciência e Política; Antropologia do Colonialismo; Colonialismo português; Exposições Coloniais; Raça e Racismo; Representações Raciais; Eugenia; Miscigenação; Luso-tropicalismo; Discriminação social e de gênero; Propaganda Colonial; Imaginação Imperial; Filmes coloniais; Fotografia Colonial; Estudos Sociais da Ciência. Ela recebeu os seguintes prêmios em sua trajetória acadêmica e profissional: Prêmio Victor de Sá de História Contemporânea 2005; Prémio ERICS (ICS-ULisboa/CGD) 2014; Prémio Científico - Menção Honrosa (ULisboa/CGD) 2019.

Maria Julieta Weber: Antes de tudo, agradecemos pela entrevista e pela oportunidade de diálogo. Os temas concernentes ao racismo são de extrema relevância para a área das Ciências Humanas e Sociais. A partir de suas pesquisas em Antropologia Social e Cultural, de que forma podemos estabelecer conexões entre “raça” e racismo?

Patrícia Ferraz de Matos: Existem vários contextos em que podemos encontrar essa conexão: na história dos Estados Unidos da América (com as diferenças entre um Sul escravista e um Norte abolicionista, por exemplo); no contexto do Apartheid, na África do Sul; ou no contexto nazi, durante a Segunda Guerra Mundial, embora existam outros exemplos espalhados pelo mundo.

Falando do contexto que tenho analisado, que é o de Portugal, nas suas relações com outros países, no âmbito da sua história colonial, considero que a ideia de raça foi estruturante e estruturadora, por exemplo, para o que foi constituído como Império Colonial Português. Tal é possível verificar tanto num contexto mais longínquo, como num contexto mais recente, pois em ambos os contextos foram sobretudo as pessoas africanas, racializadas, com a cor de pele mais escura, que foram as mais sujeitas a uma maior discriminação.

Foi a ideia de raça, associada à cor da pele, que permitiu distinguir e hierarquizar os seres humanos de distintas latitudes. Tal é possível verificar em formulações que encontramos, ao longo do tempo, sobretudo desde o século XVII, mas também antes, em filósofos e outros pensadores, mas também em cientistas, provenientes de áreas como as Ciências Biológicas, mas também a Medicina e a Antropologia Física. Nessas formulações, que recorrem frequentemente a escalas cromáticas, são os negros e as negras que surgem, na maioria das vezes, no patamar mais baixo das hierarquias civilizacionais onde era organizada a diversidade humana. E são eles que foram os mais discriminados e explorados.

Num contexto mais longínquo, podemos referir a escravatura e o tráfico de escravos. Nesse processo de traficar pessoas, Portugal foi o país europeu que mais pessoas traficou - perto de seis milhões. Tal não significa que Portugal tenha escravizado todas essas pessoas, mas que teve um papel importante no tráfico (o que ocorreu também em combinação com algumas autoridades africanas) e que contribuiu para a deslocação em massa de pessoas e famílias desde a África até as Américas, passando por outros países europeus, como o Reino Unido, por exemplo, onde o Porto de Liverpool teve um papel importante.

No contexto mais recente, que é o da ocupação e colonização efetiva de territórios africanos, entre os finais do século XIX (em que a África foi dividida e partilhada por vários países europeus) e os inícios do século XX, podemos referir a legislação que foi produzida com vista a organizar o Império Colonial Português. Dessa legislação, destaco as sucessivas versões do Código do Trabalho dos Indígenas, logo no início do século XX, para regulamentar o trabalho forçado ou as culturas obrigatórias (um eufemismo para trabalho forçado). Para isso, foi criado o Estatuto de Indígena - que era sobretudo aplicado ao africano negro, que não sabia ler e escrever e que não seguia a religião católica, precisamente à maioria da população que existia em Angola, Moçambique e Guiné. As pessoas que tinham o Estatuto de Indígena eram obrigadas a trabalhar e tinham de pagar um imposto. Em alguns casos, poderiam vir a ter o Estatuto de Assimilado (quando demonstravam que já tinham meios de subsistência, falavam e escreviam o português e tinham demonstrado ter-se afastado de práticas culturais que eram consideradas primitivas pelos colonizadores). Contudo, o alcance da cidadania plena era restrito a poucas dessas pessoas. E assim foi até 1961, quando finalmente foi abolido o Estatuto de Indígena, coincidentemente no mesmo ano em que rebentou a guerra colonial em Angola.

Nas várias entrevistas que fiz durante a minha pesquisa, constatei que o quotidiano colonial era racista - dentro das casas, mas também nas ruas. Embora não houvesse uma segregação instituída, como no caso do Apartheid na África do Sul, ouvi relatos, por exemplo, sobre Lourenço Marques (hoje Maputo), de que: os brancos e as brancas circulavam no passeio, enquanto os negros e as negras circulavam na estrada; nos cinemas, os brancos e as brancas sentavam-se em frente à tela, enquanto os negros e as negras iam para detrás da tela e viam as imagens ao contrário etc. Eram sobretudo os negros e as negras e os mulatos e as mulatas que serviam os brancos e as brancas, tanto dentro como fora de casa - nas roças e nas indústrias.

Maria Julieta Weber: No seu livro As Côres do Império: representações raciais no Império Colonial Português , foram abordadas questões referenciais sobre as origens de um (pre)conceito como fundamentação da discriminação racial. Quais foram os discursos, as imagens e os saberes das representações raciais abordadas?

Patrícia Ferraz de Matos: A tese desse livro é a de que foi através da produção de discursos (legislativos, políticos e de propaganda), de imagens (desenhos, cartazes, fotografias e filmes) e da produção de conhecimento científico (tendo aí um papel fundamental as Ciências Biológicas, a Antropologia Física e a Medicina) que essas representações raciais (e muitas vezes racistas) foram fundamentadas e disseminadas. E é interessante verificar que alguns dos agentes dessa produção e disseminação atuavam em domínios tão distintos como o político e o científico (não necessariamente ao mesmo tempo, pois alguns professores universitários tinham licenças para exercer cargos políticos, como o de ministro ou de deputado) e o facto de atuarem em diferentes áreas dava-lhe um poder notório, não só efetivo, mas também de influência.

Esses discursos, imagens e saberes acabaram por contribuir para a divulgação de preconceitos sobre as populações autóctones que habitavam os territórios administrados por Portugal em África e na Ásia. Os preconceitos mais negativos foram associados sobretudo às populações africanas. Por exemplo, a ideia de que os africanos eram mais preguiçosos, desleixados, lascivos, praticavam a poligamia, tinham superstições sem qualquer fundamento, estavam próximos do mundo animal (não humano) e tinham uma fisionomia semelhante à do macaco, eram irracionais, podiam praticar o canibalismo ou eram infantis.

Os preconceitos associados às populações asiáticas incluíam o vício do jogo (em Macau, por exemplo) e as práticas ferozes de batalha (como o costume de cortar cabeças dos guerreiros timorenses). Já os mestiços e as mestiças eram descritos como estando entre dois mundos e, por isso, foram vistos algumas vezes como uma ameaça, tanto para o mundo dos brancos e das brancas, como para o mundo dos negros e das negras, por se pensar que não se enquadrariam em nenhum desses mundos ou porque o resultado de misturas biológicas consideradas tão distintas poderia resultar em problemas de saúde. Mais tarde, veio a perceber-se que esses receios eram sobretudo sociais e culturais e não tinham fundamentação biológica.

Mas este tipo de representação contribuiu para estabelecer uma hierarquia entre as pessoas que habitavam o Império Colonial Português, não só em termos de estatuto social de origem, mas também e, sobretudo, recorrendo ao fator racial e à cor da pele.

Maria Julieta Weber: Estudos de cunho biográfico têm sido objeto de muitas pesquisas nos meios universitários, notadamente a partir dos desdobramentos teóricos e metodológicos da Nova História Política e da História Intelectual. Em seu estudo antropológico sobre a vida e a obra de Mendes Correia (1888-1960) e a Escola de Antropologia do Porto, durante a primeira metade do século XX, foram evidenciadas questões centrais sobre as relações entre a Antropologia, o nacionalismo e o colonialismo. Quais foram essas relações? E o porquê da escolha do estudo da biografia intelectual de Mendes Correia?

Patrícia Ferraz de Matos: O livro procura demonstrar que a institucionalização da antropologia em Portugal esteve ligada a um contexto em que foram formuladas várias teses nacionalistas e colonialistas e que essas teses influenciaram uma parte do tipo de conhecimento que foi estimulado e produzido. Esse contexto incluiu ainda a criação de sociedades e associações científicas, revistas, escolas, cursos universitários e museus.

Para estudar esse contexto, escolhi analisar a produção intelectual (e também política) de uma das figuras mais importantes do domínio intelectual da primeira metade do século XX em Portugal, António Augusto Esteves Mendes Correia, formado em Medicina, mas que veio a ser professor das Faculdades de Ciências e de Letras da Universidade do Porto. Publicou vários livros e artigos, alguns nas revistas internacionais mais prestigiadas na altura. Veio também a ser presidente da Câmara Municipal do Porto e, mais tarde, deputado na Assembleia Nacional. No geral, enquanto ocupou esses cargos, Mendes Correia foi um reformista social, ao ter sido, por exemplo, o primeiro presidente da Câmara Municipal do Porto a preocupar-se com a construção de habitações para as classes pobres e com a necessidade de a população trabalhadora (dos campos e das fábricas) ter uma alimentação de acordo com o seu esforço físico. E, enquanto deputado na Assembleia Nacional (ocupando um lugar na Câmara Corporativa onde representava os interesses do Porto e do Norte em geral), destacou-se, por exemplo, ao defender o voto alargado a todas as mulheres, em 1946, e em defender a abolição do Estatuto de Indígena em 1951. Esse estatuto só foi abolido, contudo, em 1961, já depois de Mendes Correia ter falecido.

Portanto, a sua obra intelectual e política permite averiguar muitos dos temas que, na primeira metade do século XX, foram importantes para a Antropologia e Ciências afins. Depois de se dedicar largamente ao período da pré-história e à arqueologia, motivado por conhecer o passado de Portugal e dos portugueses na Península Ibérica e na Europa, Mendes Correia foi influenciado pelas teses racialistas (e racistas) que circularam pela Europa de então, muitas vezes vindas do Reino Unido, da França, da Alemanha e de Itália. Essa vaga, que caracterizou a Antropologia Física produzida entre meados do século XIX e a primeira metade do século XX, foi atrativa para muitos médicos e para pessoas que tiveram formação em Medicina, como foi o caso de Mendes Correia. Portanto, estudar o lugar dos portugueses no caldo europeu e as suas semelhanças e diferenças com outros povos, sobretudo da Europa e do Norte de África, estimulou outra parte dos seus escritos.

Mais tarde, já nos anos 30, período durante o qual o regime do Estado Novo (1933-1974) desenvolveu iniciativas no sentido de reforçar a presença de Portugal no domínio colonial, Mendes Correia começou a refletir também sobre esses territórios (em termos geográficos, de clima, de fauna e de flora) e ainda em termos dos seus habitantes humanos. E também não humanos, de que o estudo inovador que incentiva sobre os gorilas do Maiombe, em Angola, é um excelente exemplo. Vários anos antes de Jane Goodall, Mendes Correia estava convencido de que o estudo dos grandes primatas, como é o caso dos gorilas, podia ajudar a compreender o comportamento humano.

É nessa altura, num contexto em que foi necessário afirmar a legitimidade da colonização, baseada muitas vezes numa superioridade civilizacional - a europeia - e que procura justificar a oportunidade de se investir nesses territórios (embora esse investimento venha a ser sobretudo de extrativismo e sustentado à custa da exploração de pessoas) que encontramos em Mendes Correia escritos que denunciam apreciações, como a de que os africanos têm um índice de robustez mais elevado (o que podia ser entendido como sendo mais aptos para o trabalho físico) ou a sugestão de que os mestiços não deviam ocupar cargos públicos. E isto embora em 1951 tenha sido uma voz isolada na Assembleia Nacional quando defendeu a abolição imediata do Estatuto de Indígena, pois considerava essa divisão, entre os habitantes do “império” e os habitantes da chamada metrópole, injusta e absolutamente anacrónica. Foi, contudo, muito criticado por outros deputados que entendiam que as pessoas com o Estatuto de Indígena não estavam ainda preparadas para deixar de o ter...

Maria Julieta Weber: Em sua tese de Doutorado, revisada e publicada em 2023 por Berghahn Books , a Educação foi correlacionada à higiene racial, aperfeiçoamento da “raça” e eugenia. Há repercussões desse pensamento na atualidade?

Patrícia Ferraz de Matos: A Educação pode ter um papel crucial ao ajudar a desconstruir mitos e preconceitos do passado e do presente, tanto na formação de professores e educadores, como das próprias crianças, jovens e adultos. E isto porque os resquícios do passado podem sempre aparecer no presente. O mesmo acontece com pensamentos que, na ânsia de obter melhorias no corpo, no seu desempenho intelectual e físico, podem desencadear o estímulo de práticas mais intrusivas, em nome da saúde, mas também da melhoria social, convidando à aplicação de medidas eugénicas ou de aperfeiçoamento das pessoas. E isso pode ser tanto ou mais perigoso quando se acredita numa possível correlação entre a componente biológica e a componente comportamental, de modo determinista, como acontecia no passado.

Podemos falar de uma eugenia positiva, no sentido de procurar promover as condições sociais (de higiene, saúde, alimentação e habitação), mas também negativa, quando o que está em causa é, por exemplo, a esterilização de algumas pessoas, com deficiências profundas, mas também outras pessoas, cujo alcance das suas doenças não é ainda suficientemente conhecido, e que são englobadas conjuntamente. Estou a referir-me, por exemplo, ao debate recente motivado pela associação portuguesa Voz do Autista [https://vozdoautista.pt/esterilizacao-forcada/], que tem vindo a trazer a público a situação da esterilização forçada de menores com deficiência, incluindo autistas, sem uma participação alargada das próprias pessoas autistas. Existem ainda na Europa três países em que a esterilização de menores é permitida por lei - Chéquia, Hungria e também Portugal.

Além disso, é cada vez mais frequente a utilização de tecnologias biométricas, como técnica de vigilância e controle de crime, para identificar cidadãos, mas também pessoas imigrantes. E é preciso chamar a atenção para o facto de que a utilização dessas tecnologias pode ser influenciada pelo racismo e pela xenofobia, que podem levar à discriminação, detenção e até morte de pessoas, nos próprios centros de controle de fronteiras, por exemplo. Tais procedimentos podem conduzir a que algumas pessoas nem cheguem a ser julgadas em tribunal. E isso sobretudo devido ao preconceito, ao facto de terem determinadas proveniências, não saberem falar a língua do país ou não terem contatos que lhes permitam ter acesso a um emprego e a habitação. Para isso têm contribuído as redes ilegais de tráfico humano, que existem na Europa, mas também noutras latitudes, havendo entre as vítimas muitos homens, mas também mulheres e crianças.

Maria Julieta Weber: O luso-tropicalismo foi abordado na coletânea “ Novas Perspetivas sobre o Luso-tropicalismo ”, organizada com Michel Cahen. Quais os desafios atuais do tema do luso-tropicalismo no pensamento social brasileiro no que se refere às questões de “raça”, miscigenação e preconceito?

Patrícia Ferraz de Matos: Esse volume, que organizei com Michel Cahen, reúne trabalhos de 11 autores que se debruçaram sobre o tema do luso-tropicalismo e a forma como a sua análise pode ser útil para perceber vários contextos ligados à colonização portuguesa. No caso do meu artigo, que integra esse conjunto, procurei analisar, por um lado, as contradições entre discursos sobre a ideologia da tolerância racial, que foram muitas vezes influenciados pela tese luso-tropicalista de que a colonização portuguesa foi diferente e, por outro, discursos que fundamentam e naturalizam a existência de desigualdade social, fundada no fator racial.

Essa argumentação com base racial, e racista, tem origem no período colonial, pois, como referi anteriormente, a ideia de raça esteve muito presente nos processos de subjugação colonial, o que inclui o Brasil. Mas é interessante verificar como se evoluiu de diferenciações, nem sempre necessariamente racistas, para formulações discriminatórias e racistas, que começam em classificações baseadas na “cor” da pele, mas que acabam por lhe associar preconceitos, como o de que algumas pessoas são mais inteligentes ou têm mais capacidade de trabalho, até ao ponto de lhes ser negado, ou dificultado, o acesso a determinados recursos, que podem ir desde o emprego até à habitação, passando por esse espaço tão importante, de crítica e de desconstrução (embora também de poder), que é a escola e os outros locais de ensino e formação.

Um dos aspectos mais interessantes que verifiquei no meu artigo foi o facto de nos últimos anos ter aumentado a população negra nos Censos do Brasil (no que se refere à autoclassificação), e isso não significa que os negros e as negras estejam a se reproduzir mais, mas sim que há cada vez mais pessoas a identificarem-se como pardas e como negras. Para tal, têm contribuído vários movimentos afro e associações, cujo crescimento em todo o Brasil tem despertado um maior agenciamento e envolvimento de pessoas. Ademais, o sistema de cotas em algumas universidades, embora receba ainda muitas críticas, tem contribuído para que um número significativo de pessoas aceda ao Ensino Superior e adquira mais ferramentas para enriquecer a sua luta, em termos de representatividade e de acesso a recursos.

Maria Julieta Weber: É possível apontar resquícios de manifestações do racismo na atualidade, tendo em conta o passado colonial português?

Patrícia Ferraz de Matos: O contexto da descolonização trouxe várias mudanças e melhorias. Discriminar uma pessoa em função da sua cor da pele, etnia ou religião passou a ser crime na Constituição Portuguesa e também na legislação. Mas, de vez em quando, verificam-se crimes de ódio, suscitados precisamente pela questão racial e por preconceitos que continuam a persistir.

Há cada vez mais pessoas racializadas a estudar nas escolas secundárias e nas universidades, mas essas pessoas estão ainda sub-representadas na sociedade: nos partidos políticos e na Assembleia da República; nos lugares de topo das universidades, dos tribunais ou de instituições públicas ou privadas, como empresas; na comunicação social - nos jornais, na televisão e na rádio, embora exista a RTP1-África e a RDP2-África, com programas muito interessantes divulgados em Portugal e nos países de expressão portuguesa, mas não se pode dizer que exista essa representatividade quando se liga a televisão portuguesa (com apresentadores negros e negras ou asiáticos e asiáticas), ou seja, existem casos muito pontuais em que isso acontece.

Mas já existem negros e negras a integrar o elenco de telenovelas, por exemplo. E existem exemplos de negros e negras que se têm destacado recentemente no desporto, como Patrícia Mamona e Nelson Évora. Alguns deles conseguiram obter cidadania portuguesa, precisamente por se terem destacado em competições internacionais, mas há ainda negros e negras, descendentes de negros e negras que vieram para Portugal na altura da descolonização, que não obtiveram a cidadania portuguesa.

É sobretudo no campo artístico e musical que algumas pessoas racializadas (algumas provenientes de meios sociais desfavorecidos ou da periferia de Lisboa) se têm destacado, havendo hoje uma geração fulgurante e notável - Sara Tavares (entretanto falecida), Dino D’Santiago ou Mayra Andrade são alguns desses nomes.

Para a visibilidade das pessoas racializadas, têm contribuído bastante as associações de afrodescendentes e alguns movimentos sociais. Uma dessas associações é a Djass, cuja proposta para edificar um memorial às pessoas escravizadas foi aceita em 2019 pela Câmara Municipal de Lisboa, mas que até hoje ainda não foi construído.

Têm-se registado evoluções positivas, mas uma preocupação eminente é o avanço da extrema-direita em Portugal, uma vez que a sua ideologia preconiza ideias racistas e xenófobas, defende restrições (discutivelmente seletivas) na imigração, numa altura em que o país está a receber vários cidadãos estrangeiros devido aos contextos económicos e de guerra que têm assolado o mundo. Este contexto é ainda dificultado pelo facto da maioria da população auferir salários baixos e porque o custo de vida tem aumentado bastante - primeiro foi a crise económica de 2008, depois a crise sanitária com o Covid-19, em 2020 e 2021, e depois a guerra, ou as sucessivas guerras, na Europa e no Médio Oriente, ou seja, sucessivas crises, que vêm muitas vezes a adensar-se umas às outras.

Portugal atravessa ainda uma crise na habitação neste momento, a especulação tem aumentado muito, os níveis de inflação dispararam e pode ser necessário receber mais refugiados e/ou pessoas que vêm em busca de uma vida melhor (que deve ser um direito para todos e em todos os lugares). Temo que Portugal e outros países da Europa, como menos arcaboiço económico, possam vir a ter uma crise social eminente e é em momentos de crise social que também os preconceitos raciais, étnicos e religiosos se agudizam.

No passado, a variedade humana que constituía o chamado império colonial foi vista como uma riqueza - Portugal era dado a ver como um país que administrava territórios com muitas diferenças entre si, mas onde se falava maioritariamente a língua portuguesa (embora saibamos que isso não era verdade em muitos locais). É importante ter em conta que, quando se fala em integração na sociedade portuguesa, tal não significa que as pessoas tenham de ser todas iguais, ter as mesmas crenças ou fazer as mesmas coisas, pois anular as diferenças é também uma forma de discriminação. O multiculturalismo ou respeito pelas diferenças significa isso mesmo - que várias pessoas diferentes podem coexistir havendo espaço para afirmarem precisamente aquilo que são e fazem de diferente. Mas, para isso existir, é necessário que as pessoas sejam antirracistas. E os racistas estão na Europa, mas também em África e em todos os lugares. Assim, se as pessoas não tiverem uma educação antirracista desde a infância, em casa e na escola, serão racistas. É preciso educar para o respeito pela diferença, para compreender a diferença, mas há ainda um longo caminho a fazer.

Um dos assuntos que tem vindo a lume ultimamente é o da reparação do passado - de Portugal relativamente às ex-colónias. Tal foi evocado, por exemplo, pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, que ocorreram em Abril de 2024. Algumas pessoas sugeriram logo a vertente económica como forma de compensação, como está a ser pensado em outros países europeus. Porém, para já, e não apenas pelo seu lado simbólico, mas também pelo seu significado, e efeitos que pode ter, a médio e a longo prazo, creio que um campo que podia ser incrementado é precisamente o da Educação, no sentido de incluir nos manuais escolares e nos programas de ensino, não apenas os aspectos mais conhecidos do chamado período das Descobertas (durante o qual os portugueses estiveram na vanguarda devido aos seus modos de navegação e de utilização de instrumentos, como o astrolábio), mas também os menos conhecidos (ou mesmo desconhecidos) sobre o que foi o colonialismo, o tráfico de escravos e a escravatura e o trabalho forçado.

Todo este passado é muito violento, envolveu vários traumas, sendo um dos últimos o da guerra colonial (entre 1961 e 1974), mas, devido às omissões existentes nos manuais (ou ao pouco tempo que os professores dedicam a estes temas), criam-se ideias muito diferentes do que foi a realidade, o que não ajuda a compreender o presente e os resquícios do racismo que dele fazem parte.

Maria Julieta Weber: Muito obrigada!

1RTP - Rádio e Televisão de Portugal.

2Estação de rádio portuguesa da rede RTP.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons