Introdução
O presente ensaio inscreve-se num exercício de análise e interpretação das racionalidades formais que subjazem à arquitetura do atual regime de autonomia, administração e gestão das escolas públicas em Portugal, restritamente subordinado à dimensão formal do Conselho Geral. Na sua definição orgânica e funcional, conforme o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril, trata-se de um órgão que, terminantemente, congrega as dimensões da colegialidade, eleição e participação pretensamente extensíveis a toda a comunidade educativa envolvente de cada agrupamento de escolas, com recurso ao poder formal da aprovação das regras fundamentais de funcionamento da escola (regulamento interno), das decisões estratégicas e do planeamento (projecto educativo e plano de actividades) e, ainda, do acompanhamento da sua concretização (relatório anual de actividades). Igualmente preponderante é a atribuição formal de lhe ser cometido o poder de eleger e destituir o director, que, consequente, lhe tem de prestar contas. Do ponto de vista da sua constituição, nenhum dos grupos representados neste órgão tem, por si só, capacidade de obter a maioria dos lugares.
Perspetiva-se a relação que, do ponto de vista normativo, este órgão potencia em termos de descentralização das políticas educativas e da autonomia das escolas, concertando a nossa análise com as prerrogativas suscetíveis de, normativamente, serem associadas à sua ação.
Trata-se de uma análise circunscrita ao sistema escolar público português, à qual agregamos a correspondente fracção de aquitetura teórica, concetual e normativa, necessariamente distinta face ao que seriam as incursões feitas no caso de adotarmos uma abordagem que contemplasse, também e/ou exclusivamente, escolas privadas. Sintetizamos, portanto, o nosso objeto de estudo à escala da rede pública de escolas portuguesas. Como tal, o recorte conceitual aqui mobilizado destaca-se pelo uso de uma terminologia que se sente mais permente ao nível da administração e gestão das escolas públicas, onde, a propósito, procuramos destacar sentidos de descentralização que se mostram dissonantes com a ideia de reestruturação e aprofundamento da autonomia das escolas. Subsidiariamente, procuramos sinalizar alguns significados acoplados à participação e à colegialidade que, por definição, deverão caracterizar a natureza, arquitetura e dinâmica do Conselho Geral, aferindo, ainda, a alguns contributos para a análise e interpretação da anatomia do poder que lhe é “concedido” pela tutela e usado na base da arquitetura formal que determina a sua constituição e o seu funcionamento.
Metodologicamente, procedemos a um exercício de análise de literatura assente numa pesquisa bibliográfica suficientemente compreensiva, caracterizada por uma arquitetura de análise e interpretação extensiva e reorientada das ideias do revisor face às ideias dos autores revisados, correspondendo a um ensaio analítico interpretativo (Lima, 1992; Estêvão, 1998), de um objeto de estudo que perspetivamos em linha com um “ângulo teórico específico” (Hammersley & Atkinson, 1994, p. 57). Indo além de uma mera determinação do estado da arte, concretiza-se o propósito de inserir o tema revisado dentro de um quadro de referência teórica polimórfica para, a partir daí, analisá-lo, (re)interpretá-lo e compreendê-lo (Luna, 1999). Em termos gerais, a abrangência da nossa pesquisa bibliográfica procurou focalizar-se na abordagem conceitual já com tradição no quadro da teoria da escola como organização, acorrendo a contributos de diferentes ciências sociais, como será o caso mais explícito da sociologia das organizações, ciência política e administrativa, com arranjos mais concretos ao nível da política e avaliação educacional, sociologia da educação, organização e administração escolar, desaguados em mais um contributo para o estudo da escola como organização.
A descentralização e a autonomia da escola na legislação recente
Os sentidos e significados que podemos apurar acerca da descentralização e da autonomia escolares tendem a conduzir-nos a interpretações distintas da (re)estruturação do sistema educativo e das respetivas políticas educativas. Sem nos debruçarmos, mais substancialmente, sobre uma definição categórica destes conceitos, interessa-nos, aqui, desenvolver uma primeira análise ao sentido que lhes subjazem no quadro do atual regime de administração, gestão e autonomia das escolas (cf. Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril e o Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho).
A propósito, acercamo-nos de um conjunto de sentidos de descentralização que se mostram dissonantes com a ideia de reestruturação e aprofundamento da autonomia das escolas, enquanto oportunidade efetiva para melhorar os índices de participação democrática dos seus atores. Pelo contrário, parece limitar-se à produção e institucionalização descendente de estruturas e de regras básicas pelas quais se rege a gestão das escolas, cedendo espaço para uma nova forma de regulação da administração e gestão da educação (Barroso, 2005), divergidas entre a ideia de “regulação autónoma. e a linha de uma “regulação de controlo” (Reis, 2013, p. 107).
A propósito, iniciamos a análise às dissonâncias aludidas em título referindo que o legislador apresenta-se com uma narrativa equivocada na relação que estabelece entre as estruturas ditas de primeira linha e o exercício da autonomia (auto-organização), pelo que induz a um sentido operacional de autonomia que deverá ser protagonizado por aquelas estruturas, sendo que “[…] o presente decreto-lei estabelece um enquadramento legal mínimo, determinando apenas a criação de algumas estruturas de coordenação de 1.º nível (departamentos curriculares) com assento no conselho pedagógico e de acompanhamento dos alunos (conselhos e directores de turma)” (Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de abril). Assim, esvazia-se de sentido o caráter autonómico das reais estruturas de primeira linha - Conselho Geral [1] , Diretor [2] , Conselho Pedagógico [3] e Conselho Administrativo [4] –, ainda que, ao fazê-lo, efetive uma agenda formal de instrumentalização dessas mesmas estruturas como extensões recentralizadoras do Sistema sob a capa retórica que concretiza em torno da autonomia.
Congruentemente, tal disposição do legislador surge no sentido de fazer depender o poder do exercício de autonomia das escolas da manutenção de instrumentos de vigilância e controlo da qualidade do serviço educativo planeado, organizado e executado pela ação centralmente normalizada e instrumentalizada daqueles órgãos, alegando que:
Convém considerar que a autonomia constitui não um princípio abstracto ou um valor absoluto, mas um valor instrumental, o que significa que do reforço da autonomia das escolas tem de resultar uma melhoria do serviço público de educação. […] A associação entre a transferência de competências e a avaliação externa da capacidade da escola para o seu exercício constitui um princípio fundamental. É a garantia da própria sustentabilidade da autonomia e do princípio da responsabilidade e da prestação de contas pelos recursos utilizados no serviço público […] (Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de abril).
Uma narrativa que nos leva a perspetivar o problema da descentralização como uma questão fundamental de poder, que é utilizado para efeitos de (re)estruturação e regulação do Sistema, tal como afirmara Thomas Popkewitz (1996, p. 119), tratando-se da “[…] evolução de poder, referindo-se este último às movimentações no locus de poder para contextos geograficamente locais, como por exemplo, através da governação da educação por parte da comunidade.” Também a propósito, António Bolívar (2000, p. 239) refere-se aos processos e às narrativas oficiais da descentralização como um mecanismo subtil que visa instalar a lógica de “decisão delegada”, com uma ampla tradução num portefólio de competências de gestão apenso às instâncias da periferia, com a consequência de ao “[…]invés de uma devolução na tomada de decisões pode ser uma forma mais súbtil de controlo, mediante um deslocamento da culpa ou incremento da responsabilidade […]”, em que autonomia passa a ser sinónimo de imputabilidade periférica (cf. Tardif, 2013). Para o efeito, o legislador, ainda que retoricamente, tem recorrido à vulgata da participação, instituindo um sentido formal de autonomia como “[…] um conjunto de liberdades para actuar demarcados em limites estritos e podem ser retiradas ou reduzidas se se infringirem esses limites […]. É um importante compromisso entre a liberdade e o controlo” (Ball, n.d., pp. 128-130), erosivamente estadeada e operada na base de premeditadas limitações práticas no seu pleno exercício, sobre o que o legislador assume uma narrativa suficientemente esclarecedora:
A prestação de contas organiza-se, por um lado, de forma mais imediata, pela participação determinante dos interessados e da comunidade no órgão de direcção estratégica e na escolha do director e, por outro lado, pelo desenvolvimento de um sistema de auto-avaliação e avaliação externa. Só com estas duas condições preenchidas é possível avançar de forma sustentada para o reforço da autonomia das escolas (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril).
Com efeito, o substrato legitimador instituído pelo legislador tende a afirmar um alegado reforço da participação:
[…] das famílias e comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos de ensino. É indispensável promover a abertura das escolas ao exterior e a sua integração nas comunidades locais[…]. assegurar não apenas os direitos de participação dos agentes do processo educativo, designadamente do pessoal docente, mas também a efectiva capacidade de intervenção de todos os que mantêm um interesse legítimo na actividade e na vida de cada escola[…] . Uma tal intervenção constitui também um primeiro nível, mais directo e imediato, de prestação de contas da escola relativamente àqueles que serve[…]. através da instituição de um órgão de direcção estratégica em que têm representação o pessoal docente e não docente, os pais e encarregados de educação […], as autarquias e a comunidade local, nomeadamente representantes de instituições, organizações e actividades económicas, sociais, culturais e científicas[…]. garantir condições de participação a todos os interessados, criar condições para que se afirmem […] lideranças eficazes. (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril).
Nesta linha de análise, o legislador, ao apelar e, até, seduzir pela narrativa da autonomia baseada na participação delegada nos diversos representantes da comunidade (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril), tem vindo a ensaiar uma pseudoparticipação (Ball, n.d., p. 128) ostentada, não como uma prerrogativa associada à autodeterminação das organizações periféricas, mas operada mais como um privilégio concedido pela tutela, em linha com determinados dogmas estandardizados e inquestionáveis (Fardella & Sisto, 2013), como disso são exemplo a menção normativista à prestação de contas, à qualidade, ao mérito, à eficiência e à eficácia da ação escolar. A propósito, Licínio Lima (2020, p. 175) questiona se se trata
de uma perspetiva eficientista e operacional de autonomia, de pendor gestionário, em contextos escolares heterogovernados, inscrita nalgumas das tendências de política e de nova gestão pública da educação que emergiram há já algumas décadas e que têm sido criticadas sob a definição genérica “gerencialismo”?
Tal narrativa parece corresponder ao incremento de estratégias de (re)burocratização, via Conselho Geral, que conduzem ao desígnio instrumental da aplicação da lei bem interpretada (Estêvão, 2000a), mantendo o funcionamento formal do órgão em linha com as “[…] representações organizacionais e administrativas […]” subordinadas “[…] à macro-organização, aos aparelhos centrais de controle, à produção jurídica uniformizante” (Lima, 1997, p. 13).
O problema da colegialidade e da participação (ou a falta delas) do Conselho Geral
No quadro daquelas estratégias de (re)burocratização sustentadas pela delegação normativa, A. Pérez Gómez (2000, pp. 170-172) refere-se à relação entre “colegialidade burocrática” e “cultura de colaboração” no sentido em que a relação estabelecida entre os atores escolares e a colegialidade instala uma nova perspetiva dos processos de (re)estruturação e funcionamento das escolas, subjacente à instrumentalização da fragilizada dimensão micropolítica escolar, em que a colegialidade, observada em sede de Conselho Geral surge, alternativamente, como:
[…] uma forma de co-optação […] no sentido de concretizarem propósitos administrativos e de implementarem imposições externas. De um ponto de vista micropolítico, a colaboração e a colegialidade estão estreitamente ligadas, ou aos constrangimentos administrativos, ou à gestão indirecta da aquiescência […]. Uma vez adoptada a perspectiva micropolítica, ela tem implicações importantes para a nossa compreensão da colaboração e da colegialidade (Hargreaves, 1998, p. 211).
Neste caso, o sentido da “colegialidade burocrática” assenta, fundamentalmente, numa espécie de artificialismo político, que visa controlar e evitar a verdadeira colegialidade assente na espontaneidade da ação dos atores. Essa colegialidade acaba por se instalar como uma imposição administrativa e resulta naquilo a que optámos por designar por uma participação obrigatória, arquitetada na base de uma racionalidade gestionária e inscrita, como diz o autor, na “prescrição autoritária”, enquanto instrumento de controlo, dos órgãos escolares e, em particular, do Conselho Geral, com a seguinte tradução:
O reforço do poder dos gestores, assessores e outros técnicos, em prejuízo da influência dos profissionais, educadores e professores, bem como da comunidade e da diversidade das suas organizações e dos seus interesses, em geral substituídos pela intervenção de representantes restritos dos interessados, tem contribuído para conceções mínimas de democracia no governo das escolas, para o reforço das estruturas de gestão de tipo vertical e para a concentração de poderes no líder formal (Lima, 2020, p. 181).
Neste encalço, assistimos a uma inoculação de processos legitimadores “dos movimentos de restruturação escolar baseados na ideia de accountability, ou seja, a prestação de contas através da avaliação, responsabilizando-se quem assume o poder por delegação” (Pacheco, 2000, p. 100), prescrita pela via subtil da tecnologia gerencialista do contrato:
O aprofundamento da autonomia das escolas decorrerá, em grande medida, através da celebração de contratos de autonomia […]. Toda esta trajetória de aprofundamento da autonomia das escolas é realizada em estreita conexão com processos de avaliação orientados para a melhoria da qualidade do serviço público de educação, pelo que se reforça a valorização de uma cultura de autoavaliação e de avaliação externa […] (Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho).
Ou seja, a tecnologia do contrato, ao ser apropriada, em pleno, pelo Conselho Geral, simetriza-se, de forma radical, com a ideia de um modelo recentemente instituído “mais avançado ou completo de accountability, porque consubstancia de forma articulada os três pilares fundamentais constituídos da avaliação, da prestação de contas e da responsabilização” (Afonso, 2019, p. 6), trasnformando-se esse órgão escolar na agência de base de uma longa hierarquia vertical de agências reguladoras da educação, que não exclusivamente nacionais.
Na linha do que Hargreaves (1998) nos lembrou a este propósito, diríamos que é atribuído à colegialidade e à participação, realizadas em sede de Conselho Geral sob o manto da autonomia, o estatuto de conjunturas privilegiadas de interpretação e de controlo de implementação das políticas educativas, concretizando uma “[…] reformulação mais geral das relações entre o centro e a períferia que se está a realizar actualmente [pois] incide e individualiza a responsabilidade da direcção de uma forma nova e diferente” (Whitty, Power & Halpin, 1999, p. 71).
É desta forma que a colegialidade e a participação aparecem como plataformas cruciais da implementação de políticas educativas de feição centralista, com a prerrogativa de reestruturar as escolas, via Conselho Geral, a partir do exterior, de que parece resultar:
[…] um movimento simultâneo para a descentralização de certos tipos de decisões e centralização de outras. Em particular, os governos centrais estão assumir, ou, em alguns casos, voltar a assumir um papel de poder, no estabelecimento de objectivos educativos gerais, impondo os currículos, objectivos educativos gerais e estabelecendo métodos comuns de prestação de contas, de modo que as decisões que se tomem a nível de cada escola se enquadrarem num marco geral de referência de prioridades determinadas pelos órgãos centrais […]. A imposição do currículo e da avaliação centralizadas constitui também uma forma de calibrar a actuação de cada escola” (Angus, 2001, p. 24).
Contraditoriamente, por um lado, o legislador privilegia o “[…] primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa nos limites de uma gestão eficiente dos recursos disponíveis para o desenvolvimento da sua missão” (alínea ., do n.º 1, do art.º 4.º, do Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de abril). Por outro, afirma que:
[…] a autonomia das escolas […] se refere à identificação das competências da administração educativa que devem ser transferidas para as escolas […]. a autonomia constitui não um princípio abstrato ou um valor absoluto, mas um valor instrumental […]. maior capacidade de intervenção ao órgão de gestão e administração, o diretor, e instituindo um regime de avaliação e de prestação de contas (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril).
Alinha-se, portanto, com um protocolo oficial de prestação e extração de contas (Lima, 2011), nos seguintes termos: “A maior autonomia tem de corresponder maior responsabilidade. A prestação de contas organiza-se […] pelo desenvolvimento de um sistema de autoavaliação e avaliação externa” (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril). Algo que tende a contrariar o pressuposto de que o Conselho Geral:
[…] não deve ser lugar consagrado apenas à prestação de contas de verbas públicas que adentram a escola, com o intuito de cumprir a formalidade dos gastos do dinheiro, o colegiado deve reunir-se para expressar a visão holística da escola e potencializar o diálogo entre diferentes atores (Borde & Damasceno, 2019, p. 65).
Sugere-se, então, a instrumentalidade do Conselho Geral como guardião de escolas bem autogeridas (cf. Sisto, 2011), vinculado à delegação por contrato, formalmente legitimada pelo “[…] princípio da contratualização da autonomia” (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril). Algo que corresponde à emergência de um novo registro legalista e normativo articulado e sincronizado com “[…] mecanismos performativos de privatização, padronização, exame e prestação de contas” (Carrasco, 2013, p. 4).
Há duas possibilidades de olhar para a condição do Conselho Geral:
ser […] autónoma ou heterônoma […] Autonomia significa, ao contrário de heteronomia, que a ordem da associação não é outorgada – imposta – por alguém fora da mesma e exterior a ela, mas pelos próprios membros e nessa qualidade qualquer que seja a forma em que tal tenha lugar (Weber, 1983, p. 108)
Não obstante, no caso da autonomia mitigada pela instrumentalidade dada ao Conselho Geral, a narrativa oficial privilegia a instrumentalização da dimensão micropolítica da escola, utilizando a arquitetura decretada da composição do Conselho Geral como plataforma mais privilegiada, para, juridicamente, produzir um sistema de sentidos e de significados subtil, mas estrategicamente atribuídos aos diferentes representantes que compõem o órgão. Por exemplo, ao ser atribuída a este órgão escolar, a prerrogativa do exercício da prestação de contas (sobre a ação do Diretor) tem vindo a emergir como um instrumento de colonização cultural conotada, por exemplo, com a ideia da escolha pública (Peters, 1994), simetrizando a atuação dos membros do órgão com uma conceção de clientela, cujos interesses é preciso que a escola satisfaça, viabilizando mais a participação dos atores representantes da comunidade educativa na forma de colaboradores-consumidores, e menos como verdadeiros decisores meso e micro políticos.
O espectro daquele clientelismo disfarçado, racionalizado pela incorporação de “novos” atores na escola na linha de uma educação com equivalência económica (Farias, 2000, p. 52), sugere a instrumentalidade do Conselho Geral como guardião de escolas autogeridas com relação à pretensão de as considerar como focos de gestão na base da “excelência” do rendimento dos alunos, com a consequência de que “[…] escola[…] só é autónoma dentro das margens dos gostos dos consumidores” (Gimeno Sacristán, 2001, p. 61) e dentro de um espaço temporal ordinário decretado a uma razão de três reuniões anuais (cf. n.º 1, do art.º 17.º do Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de abril).
Eis que a administração central se mune de um renovado centralismo regulador, demonstrando, ao mesmo tempo, uma apetência pela estratégia da autogestão das organizações escolares, em que a alegada autonomia protagonizada pelo Conselho Geral sucumbe a um processo de transferência de poder concretizado por um esquema racionalista de delegação por contrato (de autonomia), sendo que a “[…] transferência de competências da administração educativa para as escolas observa os princípios do gradualismo e da sustentabilidade[…] . Quanto à possibilidade de transferência de competências, o regime jurídico aprovado pelo presente decreto-lei mantém o princípio da contratualização da autonomia.” (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril).
Subsiste, na tecnologia do contrato, uma feição implementalista da dinâmica do Conselho Geral, no que concerne, em particular, às incumbências de aprovar as propostas de contratos de autonomia e de apreciar os resultados do processo de autoavaliação, em que “o contrato de autonomia é celebrado na sequência de procedimentos de autoavaliação e avaliação externa” (cf. n.º 4, do art.º 9º, e alínea . e ., do n.º 1, do art.º 13º, do Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de abril).
Uma feição que, per se, se articula com princípios dotados de um sentido gerencialista convergente, reduzindo a ação daquele órgão a um exercício de autonomia contratualizada e vigiada a partir de fora e (auto)gerida por dentro, garantindo que a “[…] associação entre a transferência de competências e a avaliação externa da capacidade da escola para o seu exercício constitui um princípio fundamental” (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril). Este princípio fundamental é transmutado num consentimento para a decisão vigiada, no quadro da nova genealogia da decisão em políticas públicas de educação, aqui traduzida na forma de regime de autonomia, administração e gestão da escola pública (Barroso, 2011; Lopes, 2012).
A normalização da autonomia das escolas, protagonizada, em particular, pela ação do Conselho Geral, estrutura-se na função que cabe a esse órgão de interpretar e aplicar o que tem que ser centralmente controlado, suscitando-se um enquadramento da autonomia como uma competência genérica de feição gerencialista (Rocío Fernández; Natalia Albornoz; Rodrigo Cornejo & Gabriel Etcheberrigaray, 2016) estrategicamente contratualizada.
Coerentemente, às lógicas instituídas pela tecnologia do contrato, associam-se as atribuições da nova gestão pública (Araújo, 2010), em que a ação dos membros do Conselho Geral não constitui, em si mesma, uma “[…] propriedade intrínseca, mas um efeito de sua relação com o estado no qual estão tanto empoderados como disciplinados” (Clarke & Newman, 1997, p. 29). Eis que a prerrogativa da autonomia (política) das escolas, suscitada a partir do Conselho Geral, se dilui numa antinomia autonómica instituída por lógicas contratualistas cujas regras se mantém heterónomas face ao reduzido e até nulo perfil autonómico desse órgão escolar.
Decifrando a subversão da tecnologia do contrato
Genericamente, apropriamo-nos de uma concepção de poder como “capacidade para a ação” (Friedberg, 1995, p. 253), perspetivando o Conselho Geral como um órgão escolar detentor de um poder meso político de charneira, em que se reconhece a necessidade da
[…] capacitação acerca da importância de suas funções, legislação, plano de ação, composição dos conselhos (paridade e representação), autonomia, periodicidade e quórum das reuniões (publicidade e transparência das ações), diálogo entre os pares da escola, a importância do registro (Atas), participação de todos os representantes nas discussões sobre as prioridades da escola, pois mesmo com a garantia das Leis e com o discurso de que as escolas deveriam ser administradas na perspectiva de uma gestão democrática, ainda precisamos avançar na direção de uma melhor concepção do exercício do poder no interior das escolas (Santos, 2019, p. 123).
Não obstante, à luz do enquadramento legislativo mais recente, ao tópico da anatomia do poder do Conselho Geral subjazem relações de poder e de (inter)dependências que tendem a ocorrer na base de uma racionalidade formal, referindo-se à proporção do cálculo quantitativo que é tecnicamente possível, desejável e que é realmente aplicado (Weber, 1993), neste caso particular, ao funcionamento daquele órgão. Assiste-se, neste caso, a uma distribuição do poder com recurso à tecnologia do contrato portadora de uma racionalidade de definição normalizada das necessárias (inter)dependências, para consolidar o exercício da autonomia instrumental, impedindo, assim, as periferias de aderir a outras (inter)dependências fora de controlo, tornadas ilegais. Portanto, reportamo-nos a um poder cedido que flui no sentido top-down, sem a alternativa de se instituir um poder de decisão política (ainda que subsidiário) no sentido down-up. Além disso, e não menos relevante, assiste a essa tecnologia do contrato a ideia de que cumpre com a função de reconhecer e garantir o “direito de gerir”, enquanto “grande promessa do novo gerencialismo” (Lima, 2019, pp. 4-5) às escolas.
Congruentemente, pelo destaque que o legislador dá ao Conselho Geral no quadro da narrativa desenvolvida ao nível da autonomia das escolas e da (implícita pretensa) descentralização das políticas educativas, percebe-se que a sua instrumentalidade não se limita à consideração formal de se tratar de um órgão estratégico da escola. Inversamente, podemos assumi-lo mais preponderantemente estratégico para a tutela em relação ao funcionamento do Sistema, sendo-lhe atribuídas relações de um poder calculado à feição de uma dependência relacional acondicionada a um quadro de metas definidas pela tutela e arroladas no processo de distribuição de recursos necessários para a sua gestão e realização nos contextos de operação (Martin, 1978).
Assim, é reforçando o efeito da autoridade legal racional da tutela como base última e exclusiva de aceitação e obediência no quadro da ação de um órgão periférico, tornando a sua obediência à regra central como um ato de (auto)consciencialização ou como um ato consciente (Martin, 1978). Ou seja, o poder para o exercício da autonomia deriva da aplicação racional e padronizada de pressupostos inquestionáveis, restringindo as alternativas políticas sobre as quais poderá haver uma disputa prática operada entre dependências orgânicas e institucionais de diferentes escalas hierárquicas, envolvendo todos numa espécie de consenso positivo ou, pelo menos, convergente. As decisões que poderiam ser tomadas a posteriori acabam por ser instituídas a priori, reduzindo a ação escolar do Conselho Geral a meras operações de rotina.
Então, a ação do Conselho Geral é submetida à lógica do contrato, enquanto tecnologia de inibição da consciência (meso e micro) política da escola. Diríamos, ainda, que o contrato, assumido como prerrogativa essencial desse órgão de direção escolar, surge como antídoto para tendências pluralistas da periferia, reconhecendo-se que o poder central instituído é operado pela sua capacidade de criar rotinas normalizadas no funcionamento do Sistema, com uma preponderante incidência na regulação das periferias (Barroso, 2005). A propósito, não nos é, aqui, estranha a alusão de Michel Foucault (1989, pp. 175-177), referindo-se ao poder como algo “essencialmente repressivo”, que pode ser perspetivado, no caso do contrato de autonomia, como um processo de anexação e submissão do Conselho Geral ao “poder-contrato” ou “contrato-opressão” de natureza jurídica e normativa.
Assim, a ação do Conselho Geral é normalizada para operar com uma noção de visibilidade organizada pela tutela, que tende a assumir uma feição de olhar “dominador e vigilante”, exercendo um poder “omnividente” (Foucault, 1989, p. 215) e instrumental, primeiro, sobre o seu próprio funcionamento, depois, sobre a ação escolar e o Sistema em geral. O que quer dizer que, ainda que subtilmente, o Conselho Geral parece ver confinado o seu campo de ação a um conjunto de atores, cujos interesses decorrem de um cenário fortemente normalizado a partir de uma instância que se apresenta com “princípios superiores comuns” (Friedberg, 1995, p. 264), transformando-se num instrumento para a realização de fins através do comando de outras agências de topo (Barroso, 2005). A propósito, Erhard Friedberg (1995, p. 264) ajuda-nos nesta compreensão, referindo-se a uma espécie de:
[…] mecanismo quotidiano e incontornável que mediatiza e regula as trocas de comportamentos indispensáveis à manutenção, ou êxito, de um conjunto humano marcado pela [perigosa] coexistência de actores relativamente autónomos e desenvolvendo racionalidades de acção limitadas, que, por essa mesma razão, são senão contraditórias, pelo menos divergentes, ou, para o exprimir de maneira mais neutra, não espontaneamente convergentes.
Ocorre dizer que o poder que é atribuído ao Conselho Geral pode ser circunstanciado na tentativa, historicamente conhecida (cf. Ortsman, 1984), da retórica de “explicação e de formação própria do movimento das relações humanas” (Friedberg, 1995, p. 62) no interior das escolas. Na linha do pensamento deste autor, é induzida a responsabilidade àquele órgão de
[…] acompanhar a racionalização para convencer os indivíduos a aceitarem as mudanças e a empenharem-se no novo jogo, persuadi-los da necessidade de novas estruturas formando-os, tornando-os aptos a situarem-se no novo mundo racionalizado, enfim, introduzir no funcionamento das organizações o suplemento de alma necessário para o tornar suportável (Friedberg, 1995, p. 62).
Eis, na linha do que anteriormente sublinhamos, um efeito de antecipação do legislador, no sentido de instituir mecanismos e processos burocráticos, a partir do Conselho Geral, com o objetivo de gerir dissidências, divergências e conflitos de interesses potencialmente inscritos nas relações e (inter)dependências entre a tutela e a periferia.
Neste caso, a anatomia do poder do Conselho Geral tende a variar entre: i) um “poder compensatório” (Galbraith, 1983, p. 21), conquistando a submissão do órgão pelo benefício que parece receber em troca: uma representatividade concreta e alargada de interesses da comunidade, que tende a exortar ao compromisso social e comunitário relativamente ao que é definido como função da escola e do Sistema, em que a submissão do órgão não é reconhecida, muito menos percecionada; ii) um “poder condicionado” (Galbraith, 1983, p. 41), na medida em se atribui ao Conselho Geral uma configuração de representantes da comunidade envolvente, com um claro reflexo da transferência de poder da sociedade para o interior do órgão (e da escola), com o propósito, precisamente, de condicionar a sua ação em função do espectro e da planificação social em que se insere, adotando a forma de um utensílio de poder periférico suficientemente maleável e afastando, convenientemente, os seus membros da compreensão das razões de fundo que explicam a posse e o exercício do seu poder. Neste caso, o poder é servido ao Conselho Geral pelo legislador devidamente acondicionado numa base cultural e simbólica que o leva a cultivar um conjunto de crenças que não nasceram no seu seio (cf. Galbraith, 1983, p. 155), estabelecendo uma relação sincronizada do exercício dos seus poderes com a arquitetura do Sistema e da sociedade, sem que a administração central abdique da sua feição centralista; iii) não se descarta, ainda, a possibilidade de se combinar instrumentos de “poder condigno” (Galbraith, 1983, p. 22), que surge, como antes observámos, bem clarificada no discurso oficial, induzindo a alguma espécie de sansão associada aos termos “responsabilidade”, “prestação de contas” e “avaliação externa”, cujas prerrogativas surgem, como vimos, como condições prévias para o exercício instrumental da autonomia.
Conclusão
Concludentemente, ao Conselho Geral não é agregada a prerrogativa da descentralização do Sistema e das políticas educativas, abreviando o sentido da autonomia das escolas na possibilidade de este órgão se apresentar com uma vocação especialmente orientada para decidir e interpretar o que tem que ser centralmente controlado, sob o jugo de um “consentimento” para a “decisão vigiada” em função dos objetivos educacionais oficialmente definidos num regime de absoluta exclusividade.
A ser assim, o Conselho Geral, na sua condição antinómica de órgão autónomo, dinamiza, per se, uma redefinição e a uma reafirmação, por parte da administração central, de poderes controladores ameaçados pelo ímpeto contestatário da democratização da escola pública, em que a tutela encontra, no efeito de normalização daquele órgão, via contrato de autonomia, uma nova forma de controlo mais subtil e legitimador da sua ação macro administrativa, servindo-se, para tal, do seu suposto funcionamento democrático.
Surgem-nos razões suficientes para perspetivar o Conselho Geral matizado por um sistema de poder tecnocratizado, incorrendo numa interpretação do seu funcionamento baseada na agenda do movimento da school accountability. Os aspectos sedimentares da eleição e colegialidade são ofuscados pela prioridade que é dada aos processos de indicação e a cooptação dos seus membros, em que uma tímida alegação da eletividade de alguns representantes (docentes, alunos e pais/encarregados de educação) surge muito pouco preponderante para o legislador.
Na verdade, não é feita qualquer referência explícita ou implícita à escola e seus órgãos – especialmente ao Conselho Geral – como contextos que albergam processos de descentralização das políticas educativas e do Sistema em si. Neste caso, aquele órgão emerge como um utensílio de poder periférico suficientemente maleável, em que, no quadro da anatomia do seu poder, o truque reside na atribuição substancial e relativamente equilibrada entre um poder compensatório, um poder condicionado e um poder condigno pela via da sua instrumentalização enquanto órgão de direção estratégica, que representa não a escola na sociedade, mas a institucionalização de uma planificação social no interior da escola.
Para finalizar, e referindo-nos, em particular, à anatomia do poder do Conselho Geral, associamos às anteriores prerrogativas um ideário de representatividade concreta e alargada de interesses da comunidade, que tende a exortar ao compromisso social e comunitário do órgão relativamente ao que é definido como função da escola e do Sistema – na base do seu poder compensatório –, a que se liga uma configuração suficientemente diversificada dos diferentes interesses da comunidade envolvente, suscitando uma transferência de poder da sociedade para o interior da escola, com o propósito, como já antes referimos, de condicionar a sua ação à feição da planificação social já determinada, pelo menos em parte, por aqueles interesses – sendo a via privilegiada para exercer o seu poder condicionado. Aventa-se a hipótese, ainda que, neste ensaio, esteja intencionalmente limitada à dimensão normativa, de o legislador operar com um importante sistema de determinações para a ação escolar e das respectivas contra-sanções (em caso de ação não conforme), na forma e na substância como normaliza as atribuições funcionais do Conselho Geral, a que referimos como poder condigno.