Considerações Iniciais
A dança é elemento constituinte da cultura popular e faz parte do cotidiano social, como uma forma de expressão presente em todas as camadas sociais. O movimento e o gesto são as configurações elementares e primitivas da dança e constituem a primeira forma de manifestação das emoções do ser humano e a exteriorização delas (Franco & Ferreira, 2016). É considerada por autores como um acervo de formas de representação do mundo, exteriorizada pela expressão corporal, assim como o jogo, a ginástica, o esporte, a luta, e outras manifestações corporais que podem ser identificadas como representações simbólicas de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas (Coletivo de Autores, 1992).
Historicamente, a dança esteve presente na Educação Física (EF), inicialmente por meio da ginástica, com o intuito de desenvolver o organismo e educar e doutrinar o corpo (Santiago & Franco, 2015). Vertentes mais atuais consideram os seus benefícios como facilitadores no processo de inclusão, na dimensão escolar ou comunitária, pelas suas características de desenvolvimento da comunicação, expressão de sentimentos e elaboração de senso de coletividade (Santos & Figueiredo, 2003).
Nessa perspectiva, os benefícios e as contribuições que a dança pode proporcionar às Pessoas com Deficiência (PCD) são largamente discutidos, ampliando-se às dimensões formais e não formais da Educação. Envolve aspectos referentes à estética, à criação, à socialização e à cultura, os quais, pela via do movimento rítmico, possibilitam profundas transformações no campo emocional e motor. Dessa forma, saúde, qualidade de vida e o alargamento de linguagens são desencadeadas pela reabilitação ou pela reeducação da motricidade, levando o corpo da PCD a se tornar uma ferramenta da imaginação (Mauerberg-deCastro, 2005).
Tais benefícios e contribuições desencadearam uma vertente específica para as PCD: a dança adaptada, consolidada por meio da dança educacional e de seus elementos como dança criativa. Sendo assim, um cenário mundial de inserção da PCD no universo da dança passa a ser viabilizado, com viés esportivo, terapêutico, educacional, artístico e de lazer. No Brasil, esse movimento tem como marco os anos de 1980, porém, em termos literários, há registros desde o ano de 1957 (Mauerberg-deCastro, 2005).
Dessa forma, entende-se a deficiência como um fenômeno representativo na sociedade, e a luta pelo reconhecimento dos seus direitos teve início:
[…] após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o Holocausto, quando houve ascensão do movimento dos Direitos Humanos (DH), que desaguou na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e em Novos Movimentos Socias (NMSs – 1960), fortalecendo o movimento da PCD. (Lacerda, 2020, p. 2)
Assim, a educação de PCD nas escolas regulares e nas salas comuns foi muito influenciada pelo movimento dos direitos humanos, inicialmente com o foco na igualdade, deslocando-se, em seguida, para o tema da “diferença” (Candau, 2008). Entretanto, muitas das vezes, atualmente, atribui-se a essa educação um sentido equivocado: de assistência às PCD (Mazzotta, 2011).
Corroborando o exposto, há eventos como a Conferência Mundial de Educação para Todos em 1990, na Tailândia, que resultou na criação da Declaração Mundial sobre Educação para Todos (DMSEPT, 1990), e a Conferência Mundial sobre necessidades Educativas Especiais, em 1994, em Salamanca, na Espanha, culminando na Declaração de Salamanca (DS, 1994), que contribuíram para a construção de diversas reflexões, nos âmbitos nacional e internacional, sobre o assunto. Nesse movimento, em 2015, foi sancionada a Lei Brasileira de Inclusão da PCD (Brasil, 2015). Deve-se mencionar, ainda, a existência do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), presente no Brasil desde 1950, influenciando na efetivação dessas iniciativas legais em defesa das PCD que se exaltam a partir dos anos 2000.
Diante dessa breve contextualização, referente à Dança e às PCD, questiona-se o porquê de existirem poucos estudos sobre essa temática, sobretudo no que se refere à sua relação com a dança e com seus possíveis benefícios. Partindo desse questionamento e considerando o processo multifacetado de constituição dos sujeitos em sociedade, estabeleceu-se como questão central deste estudo: Quais interfaces são estabelecidas entre dança e PCD na produção científica em periódicos brasileiros da EF?
Segundo Rossi e Munster (2013), pesquisas envolvendo a interface “dança e deficiência” no Brasil tiveram início na década de 1980, e três motivos influenciaram esse fato: 1) a instituição de políticas públicas e a promulgação de leis direcionadas à educação de PCD na sociedade; 2) os benefícios que a dança proporciona a esse público; e, 3) a implantação de cursos de graduação e pós-graduação na área, incentivando pesquisas acerca da Educação Especial e das PCD.
Esse estudo problematiza, portanto, como a relação entre dança e PCD tem sido evidenciada em periódicos brasileiros da EF, no período de 1979 a 2019. O recorte temporal justifica-se por dois aspectos: 1) o Movimento Renovador da EF brasileira, que, com a perspectiva de distanciamento da EF da eminente vertente da aptidão física e do alto rendimento, lança um olhar sobre essa área pautado nas ciências humanas e sociais, tornando-se um marco importante a partir da década de 1980 (Bracht, 1999; Machado & Bracht, 2016); 2) a afirmativa de Rossi e Munster (2013) de que as publicações nessa área começaram a surgir na década de 1980, influenciadas pelas políticas públicas e pelas leis direcionadas à inclusão da PCD, fato também confirmado por Santos e Figueiredo (2003) e Oliveira et al. (2019).
Com isso, este estudo justifica-se por se tratar de um tema de relevância para a área de EF, tanto no contexto escolar quanto no não escolar, considerando que, nas últimas décadas, uma série de investimentos sociais e políticos no âmbito da inclusão tem ocorrido e gerado estudos científicos, ainda que inexpressivos, em especial, sobre dança e deficiência.
Apresentadas as considerações iniciais, o estudo se divide em 5 seções: Metodologia; Dança e PCD nos periódicos brasileiros da EF: o panorama geral; Dança e PCD nos periódicos brasileiros da EF: tempo e espaço; Considerações finais; e Referências.
Metodologia
Este estudo consiste em pesquisa indireta, descritiva, de caráter bibliográfico e em abordagem quanti-qualitativa, uma vez que analisou os significados atribuídos pela produção de conhecimento sobre EF em relação às discussões referentes à dança e às PCD. Fundamenta-se na busca de estudos realizados e publicados por autores que se dedicam às referidas temáticas em periódicos da EF (Mattos et al., 2008), portanto, trata-se de uma revisão sistemática de literatura, por apresentar uma questão específica, fontes e estratégias de busca de dados explícitas, estabelecendo a relação entre abordagens quantitativas e qualitativas (Rother, 2007).
Identificar dados numéricos referentes à dança e às PCD nos periódicos, assim como verificar que dimensões dessa temática são mais evidenciadas neles, aproxima-nos de uma abordagem quantitativa. Por outro lado, apresentar a descrição dos estudos levantados, entender o trajeto da inserção da dança e da deficiência como categorias investigativas na construção de conhecimento em EF e buscar relações com outros marcadores históricos, sociais, culturais e legais nos situam em uma abordagem qualitativa (Gomes & Araújo, 2005; Mattos et al., 2008).
O estudo se define metodologicamente em três etapas:
1ª) Coleta de dados – selecionaram-se 14 periódicos brasileiros da área de EF, com ênfase nas dimensões escolar e não escolar, que disponibilizam suas edições em formato eletrônico. O fácil acesso a essas fontes e a visibilidade delas justificaram sua escolha como lócus de pesquisa. Analisaram-se os periódicos desde suas primeiras edições, buscando estudos que priorizam a temática sobre a dança e a PCD. Assim, o recorte temporal foi delimitado entre 1979 – em razão da criação da Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE, 2021) – e 2019 – período de encerramento da coleta. O ano de 2009 demarca o período mínimo para criação dos periódicos investigados, uma vez que configura quase 10 anos de sua existência, período satisfatório para sua consolidação como espaço de divulgação de conhecimento. Também, como critério de seleção, buscou-se por periódicos sediados nas 5 regiões do país, com o intuito de ampliar o espectro investigativo, entretanto esses não foram encontrados na região Norte do país.
Revista | Sigla | Ano criação | Instituição | Sigla |
---|---|---|---|---|
Revista Brasileira de Ciências do Esporte | RBCE | 1979 | Universidade de Brasília | UnB |
Revista Brasileira de Ciência e Movimento | RBCM | 1987 | Universidade Católica de Brasília | UCB |
Motrivivência Revista de EF, Esporte e Lazer | MREFEL | 1988 | Universidade Federal de Santa Catarina | UFSC |
Revista de EF | REF | 1989 | Universidade Estadual de Maringá | UEM |
Movimento Revista de EF | MREF | 1994 | Universidade Federal do Rio Grande do Sul | UFRGS |
Motriz Revista de EF | MREF | 1995 | Universidade Estadual Paulista | UNESP |
Revista Corpoconsciência | RCC | 1997 | Universidade Federal do Mato Grosso | UFMT |
Revista Pensar a Prática | RPP | 1998 | Universidade Federal de Goiás | UFG |
Revista Conexões | RC | 1998 | Universidade Estadual de Campinas | UNICAMP |
Caderno de EF e Esporte | CEFE | 1999 | Universidade Estadual do Oeste do Paraná | UNIOESTE |
Revista Mackenzie de EF e Esporte | RMEFE | 2002 | Universidade Presbiteriana Mackenzie | UPM |
Revista Brasileira de EF e Esporte | RBEFE | 2004 | Universidade São Paulo | USP |
Revista Arquivos em Movimento | RAM | 2005 | Universidade Federal do Rio de Janeiro | UFRJ |
Cadernos de Formação Revista Brasileira de Ciências do Esporte | CFRBCE | 2009 | Universidade de Brasília | UnB |
Fonte: os autores.
O processo de busca do material consistiu-se em dois momentos. Primeiro, o levantamento das publicações via leitura dos sumários de cada edição das revistas. Tal procedimento se justifica pelo fato de algumas revistas, em especial aquelas criadas na década de 1980, apresentarem suas primeiras edições em arquivos Portable Document Format (PDF) único, impossibilitando o acesso aos dados por descritores. Segundo, utilizou-se da ferramenta de pesquisa por descritores com o intuito de reduzir a chance de que alguma publicação fosse excluída. Os descritores utilizados foram “deficiência” e “deficiência or dança”, com e sem o uso de aspas, como orientado para refinamento de busca por descritores, sugerido pela maioria dos periódicos.
Foram encontradas 26 publicações que evidenciam a temática, contudo uma delas apresentava somente o título, o resumo e as palavras-chaves, portanto foi excluída. Com isso, 25 artigos definiram nossa amostra.
2ª) Categorização e elaboração da descrição dos estudos – procedeu-se à leitura cuidadosa e ao fichamento do material, filtrando informações como instituição de origem dos pesquisadores, palavras-chave, objetivo do artigo, metodologia da pesquisa, discussão dos dados e conclusões. Em seguida, realizou-se o levantamento quantitativo do material, na tentativa de elencar o movimento epistemológico de constituição desse campo, destacando: 1) os anos em que as publicações passaram a integrar o panorama investigativo dos periódicos e a relação com outros possíveis demarcadores (legais, por exemplo); 2) sobre quais contextos (escolar e/ou não escolar) versavam essas investigações; 3) identificação de em que vertentes a temática “dança e PCD” era evidenciada e, com isso, levantamento de possíveis lacunas investigativas; 4) destaque dos tipos de abordagens investigativas (empíricas e/ou bibliográficas); 5) as bases de formação dos autores.
3ª) Análise qualitativa dos dados – a partir dos dados quantitativos levantados nas 1ª e 2ª etapas, os 25 artigos que integram a amostra foram categorizados, descritos e contextualizados à luz de referenciais teóricos e documentos legais específicos das áreas da EF e deficiências. Antecipamos que o estudo aponta para mudanças de perspectivas nos campos teóricos sobre dança e PCD, exaltando estudos recentes sobre Dança Esportiva em Cadeira de Rodas (DECR) e possíveis influências de legislações na área da educação inclusiva.
Dança e PCD nos periódicos brasileiros da EF: o panorama geral
A discussão sobre dança é apontada por diversos autores como restrita ao campo da EF, e, quando relacionada às discussões sobre deficiência, os dados tornam-se ainda mais inferiores. Em consonância com essa afirmativa, no levantamento realizado nos 14 periódicos, foram evidenciadas 237 publicações sobre deficiência e 290 sobre dança. Dentre essas, 25 relacionam “dança e deficiências”, em contexto educacional e não educacional, e concentram-se em 8 periódicos, como descrito na Figura 1.
Vieira e Tavares (1997, p. 2008) destacam que o encontro entre dança e deficiência foi possível a partir de “[…] paradigmas emergentes da modernidade e da pós-modernidade.” Nossa perspectiva, de um modo geral, os trabalhos refletem sobre o universo da dança e deficiência, seus significados, emoções, expressões, em uma perspectiva de corpo para além do físico, mas que também visa à melhora da qualidade de vida, da autonomia, da inclusão, e assim por diante, por meio de análises e interpretações que avaliam a linguagem verbal e não verbal. Tais estudos contribuem “[…] para a ampliação da aprendizagem e a formação humana” (Santos & Figueiredo, 2003, p. 107), tendo em vista uma provável transformação social e pessoal.
De acordo com os dados da Figura 1, observa-se que as publicações, maioritariamente, estão voltadas para o contexto não educacional, com 14 publicações, com maior interesse para a dança em perspectivas artísticas, seus significados e possibilidades.
Onze publicações exaltam o contexto educacional enfocando o processo de ensino e aprendizagem, a arte, a reabilitação, o esporte, com finalidades pedagógicas, terapêuticas, entre outras. Dentre elas, 1 abrange a dimensão formal da educação e 10, a não-formal, através de atividades extracurriculares, como projetos e pesquisas.
Este fato coincide com o apontado por Santos e Figueiredo (2003), ao afirmarem que a dança como conteúdo educacional prevalece na perspectiva extracurricular, incitando interpretá-la como um conteúdo negado e, possivelmente, não inserido no currículo. Seria esse o motivo de não atrair a atenção de pesquisadores da área educacional?
Em relação à questão anterior, vários são os fatores que podem influenciar no baixo número de pesquisas na área de EF e dança no contexto formal. Sousa et al. (2010) afirmam que, predominantemente, os docentes de EF ensinam a dança na escola sem experiências teórico-práticas suficientes, tendo vivenciado práticas dançantes na formação inicial ou na vida pessoal, favorecendo a perpetuação do modelo esportivo e biologicista. Consequentemente, isso levanta indícios sobre o baixo interesse de pesquisadores em relação à área.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), das áreas de EF e Artes, a dança está inserida entre seus conteúdos. No primeiro, abrangendo os temas da cultura corporal de movimento, das atividades culturais como jogos, esportes, lutas e ginásticas; no segundo, faz parte das linguagens artísticas: artes visuais, dança, música e teatro (Brasil, 1997; 2016). Portanto, em ambos os casos, a dança não está inserida no currículo escolar como uma disciplina autônoma, dessa forma, esse pode ser um dos motivos pelos quais ela prevaleça na perspectiva extracurricular e não formal.
Sobre a dimensão educacional não formal, os 10 estudos enfocam majoritariamente finalidades pedagógicas, com foco no processo ensino-aprendizagem, trabalhando a dança em estabelecimentos como associações de apoio a PCD, academias, centros e companhias de dança etc. Rossi e Munster (2013) afirmam que essas investigações, de maneira geral, preocupam-se em envolver a ação docente no intuito de orientar e estimular o aluno para o movimento livre e para técnicas de diversas danças, havendo movimento consciente, reflexivo e que respeite suas individualidades.
Os 25 artigos foram alocados em 10 categorias, sendo elas: Deficiência Física (DF) com 9 estudos, Deficiência Intelectual (DI) com 05, Deficiência Visual (DV) com 3, Revisão de Literatura (RL) com 2, DI e DF, Deficiência Auditiva (DA), Deficiência Geral (DG), Deficiência Múltipla (DM), Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Mães de PCD com 1 estudo cada. Ver Figura 2.
De acordo com o objetivo desta pesquisa, descrever esses estudos é um dos focos, o que será realizado para, em seguida, prosseguir com as análises e com as discussões. A Figura 3, abaixo, apresenta a divisão dos artigos por categorias.
Publicados entre 1997 e 2019, os 9 artigos da categoria Dança e DF problematizam sobre o universo da Dança em Cadeiras de Rodas (DCR) e Dança Esportiva em Cadeiras de Rodas (DECR), a saber, 8 no contexto não educacional e 1 no contexto educacional não formal.
Seis deles são de viés humanista, fundamentados em abordagens qualitativas. A importância para o desenvolvimento humano pela via da prática da DCR e DECR é o foco desses estudos, sendo a maioria deles abrangendo a dimensão artística. A exceção é o estudo de Silva et al. (2009), que, através de uma pesquisa-ação, problematiza as possibilidades da DCR como auxiliar para o desenvolvimento educacional de uma menina de 9 anos, com paralisia cerebral, pesquisa que envolveu também mães e docentes.
Os demais estudos de caráter empírico tiveram como população jovens e adultos praticantes de DECR e atletas dessa modalidade, como especificado em Ferreira (2000), Ferreira e Ferreira (2004) e Freitas e Tolocka (2005).
Também de abordagem qualitativa, mas de caráter bibliográfico, Vieira e Tavares (1997) refletem sobre a dança e as PCD, concluindo que ela pode revelar a significação de um ser interagindo com o mundo que o cerca. Nesse trajeto, o corpo substancial e o corpo relacional foram olhares lançados por Rigo et al. (2019) ao pesquisarem as possibilidades e as implicações desses conceitos no movimento de dançarinos na DECR.
Três estudos empíricos ressaltam viés biológico e abordagem quantitativa, com enfoque em dançarinos jovens e em adultos, que são eles: Peres et al. (2007), Barreto et al. (2010) e Paula et al. (2011). O primeiro avaliou a contribuição da amplitude de movimento para o tronco em paraplégicos; o segundo identificou as qualidades físicas necessárias à realização dos passos básicos de DECR; e o terceiro estudou o comportamento da frequência cardíaca em atletas do gênero masculino do VII Campeonato Brasileiro de DECR, realizado em 2008, em Santos - São Paulo (SP).
Cinco artigos integram a categoria Dança e DI. Três deles possuem enfoque na Síndrome de Down (SD), e 2 na DI de forma mais abrangente. Dois focam no contexto não educacional, e 3, no educacional não formal, desenhando um recorte temporal entre 2008 e 2019 e fazendo abordagens qualitativas de pesquisa.
No sentido mais amplo, os 3 estudos que enfocam a SD destacam a dança como fator importante na melhoria da qualidade de vida dessas pessoas, independente da faixa etária. Com viés empírico, Maia e Boff (2008) verificaram o auxílio oferecido pela dança na coordenação motora de crianças com SD, e Flores e Bankoff (2009) estudaram a influência da dança expressiva sobre o equilíbrio corporal estático em adolescentes com SD. Em estudo bibliográfico, Furlan et al. (2008) pesquisaram o desenvolvimento do esquema corporal em pessoas com SD na dança.
Destacando a DI de forma mais ampla, Alves et al. (2012) buscaram uma visão multidisciplinar em benefício de crianças e adolescentes com DI matriculadas em uma escola de ensino especializado para PCD de Juiz de Fora - MG. Lopes et al. (2019), por sua vez, identificaram possíveis contribuições da dança e da expressão corporal ao processo de ensino-aprendizagem de 2 discentes de 11 anos, um com DI e outro com transtornos de aprendizagem (TA). Ambas investigações adotaram abordagens qualitativas pautadas em estudos empíricos.
Destacando o período de 1999 a 2008, 3 estudos discutem a relação Dança e DV, assumindo abordagens qualitativas, em um contexto não educacional. Em um estudo empírico, com jovens e adultos que praticavam dança, e em outro bibliográfico, Figueiredo et al. (1999a; 1999b) ressaltam a dança como meio de olhar o corpo para além do que os olhos enxergam. Essa percepção permeia as reflexões teóricas de Cazé e Oliveira (2008) ao refletirem sobre as possibilidades do corpo cego e sobre a interação com a dança na construção da autonomia. Com isso, a dança é interpretada como parte do conhecimento humano e como um espaço de construção de saberes na inter-relação entre corpo, ambiente e cultura.
Sob abordagem qualitativa e de caráter bibliográfico, Santos e Figueiredo (2003) exaltam a dança sem especificar as deficiências, portanto alocados na categoria Dança e DG. Esses autores analisaram a dança na educação formal e destacam a necessidade de pensar formas de propiciar sua inclusão.
De abordagem qualitativa, 5 pesquisas empíricas destacam a dança sob temáticas diferenciadas, sob perspectivas não formais de educação, categorizadas como DA, DM, TEA, Mães de PCD e DI e DF, respectivamente.
Lopes e Araújo (2009) focaram no ensino de sapateado para 5 crianças surdas e 1 ouvinte, através da compreensão das estruturas rítmicas e da percepção da vibração dos sons emitidos pelas batidas dos pés. O grupo conseguiu executar as atividades propostas, adaptando-se a um ritmo comum ou satisfatório.
Relatar e analisar os processos de ensino e aprendizagem da dança de salão para uma jovem com DA e DV foi o objetivo de Zaniboni e Rodrigues (2013). O aprendizado ultrapassou os limites da técnica e possibilitou a superação física, emocional e social, além de viabilizar a inclusão e a realização social.
Boato et al. (2014) verificaram as contribuições de um trabalho de expressão corporal e dança no desenvolvimento sócio emocional de uma criança com TEA. Comprovaram que a criança se comunicava e relacionava-se com o meio quando respeitadas suas possibilidades e que a dança pode influenciar significativamente no processo de inclusão social e educacional.
Lopes e Araújo (2015) pesquisaram mães de crianças e jovens com DF e DI que participavam de atividades práticas de dança, via proposta de contato e improvisação, junto a seus filhos. Notou-se interações significativas mediadas pelo movimento corporal, evidenciando benefícios nos aspectos motores, emocionais e afetivos, das mães e dos filhos.
Oliveira et al. (2019) verificaram a percepção de crianças sem deficiência sobre a performance de um grupo de dançarinos com DI e DF, através da dança e por intermédio de atividades interativas. Indícios de superação de preconceitos e construção de conhecimentos acerca das PCD foram evidenciados.
Finalizando as descrições das categorias e partindo para a análise do material, destacam-se 2 estudos de Revisão de Literatura que se situam na interface entre as perspectivas educacional e não educacional.
Com ênfase no potencial da dança como elemento de transformação pessoal e social para PCD, Santos et al. (2019) levantaram essa temática nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Base Acervus (UNICAMP). Não foi estabelecido recorte temporal para as buscas, e o estudo não apresenta descrição sistematizada dos dados, aproximando-se de uma revisão narrativa de literatura (Rother, 2007).
Rossi e Munster (2013) analisaram a produção científica sobre dança e PCD em teses e dissertações nacionais em uma abordagem quanti-qualitativa, utilizando uma revisão sistemática de literatura (Rother, 2007), assim como a pesquisa apresentada aqui, realizada em periódicos da EF, que se identificou como “Nosso Estudo”. Dessa forma, a seguir, serão delineados aproximações e distanciamentos entre esses dois estudos.
Entende-se que os 2 estudos se complementam, assumindo representatividade para a área investigativa, mesmo enfatizando lócus diferenciados: o primeiro, dissertações e teses, o segundo, periódicos brasileiros da EF. Sobre o recorte temporal, Rossi e Munster (2013) encerram em 2012, e o Nosso Estudo abrange até o ano de 2019, representando, assim, perspectiva de continuidade investigativa em relação ao primeiro, mesmo não se tratando da mesma fonte de coleta de dados.
Rossi e Munster (2013) evidenciaram que as pesquisas que envolvem dança e deficiência têm se desenvolvido em diferentes contextos e finalidades, em que o contexto se refere a “onde” a dança se insere, e a finalidade diz respeito ao “porquê” de essa dança se desenvolver. Em suma, os contextos podem ser artístico, educacional, esportivo e de reabilitação; e as finalidades, de performance, pedagógica, terapêutica e competitiva/alto rendimento.
Rossi e Munster (2013) identificaram predominância da dança no contexto educacional e artístico, com finalidades pedagógicas e performáticas, respectivamente. O Nosso Estudo descreve a predominância da dança desenvolvida no contexto não educacional, artístico e com finalidades pedagógicas, performáticas e gerais. Em relação aos contextos, portanto, os trabalhos diferem no quesito “onde” as pesquisas foram realizadas, porém se aproximam nas finalidades, pois apresentam fins pedagógicos e performáticos, em sua maioria.
De acordo com os resultados apresentados por Rossi e Munster (2013), houve aumento de produção (dissertações e teses) nos 5 anos anteriores a 2012, aspecto evidenciado também nas publicações de Nosso Estudo, que, de acordo com o Figura 3, indica uma regularidade anual de publicações entre 2007 e 2015, sendo interrompido em 2016 e retomado em 2019.
Em Rossi e Munster (2013), os estudos prevalecem com ênfase em populações de adultos com DF, aporte teórico predominantemente embasados na teoria de Rudolf Laban, perspectivas de ensino-aprendizagem da dança, sendo a contemporânea e a DECR as mais acionadas. Tais dados também coincidem com o Nosso Estudo, cuja categoria mais evidente foi a DF com 09 estudos, com enfoque em DECR, e, para aquelas anunciadas, a vertente contemporânea foi a mais destacada.
A DECR internacional surgiu nos anos de 1960, na Europa, e teve sua primeira competição em 1977. No Brasil, a DCR desenvolveu-se no final da década de 1980, por influência de grupos estrangeiros de viés competitivo. Criou-se, a partir da iniciativa da UNICAMP, ao promover o I Simpósio Internacional de DCR, em 2001 (Confederação Brasileira de Dança Esportiva em Cadeira de Rodas [CBDCR], 2021).
Diante disso, esse maior número de pesquisas sobre DECR pode ser explicado no Brasil por ser uma modalidade esportiva, relativamente nova, que ainda necessita de mais pesquisas para sua ampliação, sustentadas em contextualizações mais aprofundadas, como afirmam Freitas e Tolocka (2005) e Rigo et al. (2019).
Por fim, os 2 estudos se diferem na perspectiva estrutural. Enquanto Rossi e Munster (2013) apresentam e discutem em vários aspectos as 35 produções identificadas, sem referenciá-las, Nosso Estudo avança no sentido de descrever e referenciar os 25 artigos encontrados, oportunizando maior proximidade com o conteúdo e acesso a ele.
Da mesma forma, outras vertentes de problematização foram adotadas aqui, quais sejam, o estabelecimento de relações com a produção na área e possíveis afinidades com demarcadores históricos, sociais, culturais e legais e, também, identificação de quais instituições e regiões do Brasil têm se dedicado à temática, assim como o perfil acadêmico de suas autorias.
Dança e PCD nos periódicos brasileiros da EF: tempo e espaço
Nota-se a prevalência de pesquisas empíricas na amostra, 17 delas, e 8 de caráter bibliográfico. A predominância de abordagens qualitativas de pesquisa é outro aspecto identificado em 20 dos estudos, o que indica a valorização de aspectos subjetivos ressaltando a dança como “[…] um elemento de transformação pessoal e social pois permite experiências e reflexões sobre a aceitação de diferentes corpos e expressões, sem atribuir juízo de valores negativos a qualquer tipo de diversidade.” (Santos et al., 2019, p. 271).
A aceitação de diferentes corpos e expressões se evidencia ao observarmos a variedade de deficiências e temáticas relativas aos estudos, assim como os sujeitos envolvidos, uma vez que, dos 17 estudos empíricos, 9 enfocam isoladamente crianças, jovens e adultos, e 08, a correlação entre essas gerações.
Considerando o recorte entre 1979 a 2019, a análise dos dados demonstrou que o interesse investigativo sobre dança e deficiência se manifesta nos periódicos a partir do ano de 1997, estendendo-se até 2019.
Observa-se uma linearidade de publicações que varia entre 1 e 2 estudos anuais. Em 2008, o número de publicações aumentou para 3, e, em 2019, foram contabilizadas 4. Presume-se que as publicações tenham sido motivadas e influenciadas por legislações voltadas às PCD criadas nos anos de 1990, em especial, no campo da educação, como afirma Santos e Figueiredo (2003), tais como o Plano Decenal de Educação para Todos (PDEPT), Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e, posteriormente, o Plano Nacional de Educação (PNE) etc. (Brasil, 1993; 1996, 2014), como evidenciado na Figura 4.
Sobre o destaque, ainda que tímido, para o maior número de publicações em 2019, não foi encontrada nenhuma relação específica para tal fato, porém alguns pontos podem ser levantados. Os 4 estudos, Rigo et al. (2019), Lopes et al. (2019), Oliveira et al. (2019) e Santos et al. (2019), apontam mudanças de perspectivas históricas sobre o corpo e as PCD e discutem os processos de ensino e aprendizagem da dança e suas possibilidades para comunicação, interação, contato, conhecimento, participação e transformação. Dos 11 autores responsáveis pelas pesquisas, apenas 4 não têm formação inicial em EF, mas trabalham com o conteúdo ou na área de educação, assim como “[…] as discussões sobre corpo, linguagem corporal na Educação Física, no Brasil, encontram-se, entre outros, ancoradas nos debates sobre a fenomenologia […]” (Gehres et al., 2020, p. 4), com autores como Elenor Kunz. Esses estudiosos exaltam uma perspectiva de corpo que vai além do biológico, aspecto fortemente evidenciado na área de EF.
Outra variável que pode ser indicativo de influência do número de publicações são as instituições de origem dos pesquisadores e as respectivas regiões em que se encontram. Identificaram-se 4 das 5 regiões do Brasil: Nordeste, Sul, Centro-Oeste e Sudeste, sendo esta última com 19 estudos, destacando 13 instituições. Ver Tabela 2.
Pode-se justificar esses valores pelo fato de que no Sudeste encontram-se os núcleos e os grupos de pesquisas mais representativos nessa área, destacando a UNICAMP e, respectivamente, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), UFRJ e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), confirmando que o crescimento da produção científica está diretamente relacionado ao investimento na melhoria da infraestrutura de universidades e institutos de pesquisa, investimentos que são destinados potencialmente à região Sudeste, com destaque para os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (Sidone et al., 2016).
Em número mais reduzido, temos na sequência a região Centro-Oeste, com publicações da UnB, da UFG e a da UCB, convergidas em 4 publicações. A região Sul evidenciou 2 publicações, 1 pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e outra da UFSC. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) demarca a região Nordeste com 1 publicação.
Por fim, saber a formação acadêmica das autorias também é interessante. Das 25 publicações, evidenciaram-se 48 pesquisadores, dos quais 30 são graduados em EF, 6, em EF e ouros cursos, 3, em Fisioterapia, 1, em Fisioterapia e outro curso, 1, em Pedagogia, 1, em Pedagogia e outro curso, e 6, em outras áreas como Fonoaudiologia, Medicina, Arte Educação, Dança, Administração de Empresas e Engenharia elétrica.
Entende-se que a área de maior interesse no tema é a EF, resgatando a dança como um importante tema da cultura corporal, ainda que negado historicamente por esta área (Coletivo de Autores, 1992). Por outro lado, a correlação com outras áreas de conhecimento ressalta a “[…] versatilidade da dança, capaz de envolver diferentes contextos e finalidades, a caracteriza como agente interdisciplinar, pois pode abranger duas ou mais áreas do conhecimento.” (Rossi & Munster, 2013, p. 185).
Considerações finais
Na análise de significados atribuídos pela produção de conhecimento, em periódicos da EF, sobre dança e PCD, de 1979 a 2019, foram evidenciados 25 estudos, entre 1997 e 2019, em 8 dos 14 periódicos investigados.
Perspectivas não educacionais foram eminentes na amostra, assim como olhares mais humanísticos sobre a temática, destacando a DF. A região Sudeste se destaca na produção, assim como a formação em EF nas autorias, relacionando-se ao fato de os periódicos serem da EF.
Diante do que foi apresentado, conclui-se que ainda existem poucas publicações envolvendo dança e PCD na literatura brasileira. É importante apontar essa questão, uma vez que, segundo legislações específicas e referências teóricas da área, quando se trata das PCD, a dança é um elemento que possibilita o desenvolvimento e poderia impulsionar perspectivas inclusivas nos mais variados contextos sociais. Os resultados indicam que os estudos com viés educativo e pedagógico estão presentes tanto no contexto formal de educação quanto no não formal, reiterando a importância dos estudos nos dois contextos, pois, como destaca Severo (2015), a formação humana, como processo de ensino e aprendizagem, pode ser diversificada e complexa e necessita de mais estudos.
Como limitações do estudo, dissertações e teses, livros, textos completos e resumos em anais de eventos, não somente da EF, são outras fontes para discussão da temática não contemplados aqui, mas que, posteriormente, serão foco de nossas investigações. Portanto, longe de esgotar as lacunas expostas, almejamos contribuir de forma positiva com essa área de conhecimento, a fim de que o processo de inserção de PCD na sociedade seja menos demarcado pela exclusão.