Introdução
O Ensino Superior (ES) moçambicano completa, em 2019, 57 anos de existência formal e esse marco importante oferece-nos uma oportunidade para pensarmos sobre os caminhos percorridos, suas características4, sua natureza e visão5 que hoje o ancora para a sua comparticipação plena no desenvolvimento do país. Criado em 1962, dia 21 de Agosto, com a abertura dos Estudos Gerais Universitários de Lourenço Marques6 na então capital de Moçambique, pelo Decreto-Lei nº 44.530, entendemos este fato como uma estratégia colonial e não apenas territorial moçambicana. Passados 15 anos e depois de revista a Constituição da República de Moçambique inicia, em 1990, uma filosofia virada para as ideologias típicas de economia de mercado. Como consequência, abre-se a possibilidade de criação de instituições educacionais não mais sob a tutela do Estado. Com a primeira Lei sobre o ES, n.º 1/93, de 24 de junho, permite-se a criação de instituições de ensino superior (IES) privadas e vive-se uma nova realidade de educação no país, com a criação de espaço para que as universidades públicas já existentes cobrem mensalidades aos estudantes dos cursos pós-laboral.
Em dez anos assistiu-se a uma complexidade de ações que visaram assumir o ES como motor para o desenvolvimento: o Governo moçambicano cria o Ministério do Ensino
Superior, Ciência e Tecnologia, no ano 2000, que, além de conceber e implementar o primeiro Plano Estratégico do Ensino Superior (PEES) para o período 2000- 2010, propõe a primeira Política de Ciência e Tecnologia para Moçambique. Diante dos desafios que se colocam à nova realidade e para a gestão do ES, surge a necessidade da alteração da Lei nº 1/ 93 e, em sua substituição, cria-se a Lei nº 5/2003, de 21 de janeiro, que em termos de regulamentação visou, entre outros aspectos fundamentais, ao controle da qualidade.
Esta nova realidade e suas consequências remete-nos à ideia de desinvestimento nas políticas do Estado concebido por Santos (2010) como coerente com a perda de prioridade dos setores sociais nas políticas públicas (saúde, educação, e segurança social), legitimado pelo modelo de desenvolvimento econômico neoliberal, imposto internacionalmente, desde os anos 1980. Em resultado disso, todo o financiamento, público ou privado passou a ser visto como investimento, cujo retorno deveria ser garantido pelos governos, conduzindo à crescente necessidade de se garantir a eficiência interna e externa dos sistemas por cada governo. Esse retorno de investimento vem mascarado, muitas vezes, com discursos da necessidade de elevação pessoal e do país, conducentes a melhorias das condições de vida da população.
Assim, este artigo apresenta uma análise das consequências da relação do ES com a ideia de que o mercado e suas forças poderão ser uma estratégia de regulação de conflito de classes, estímulo, qualidade e garantia de eficiência do ES a que Trein e Rodrigues (2011, p.776) chamam de “fetichismo do conhecimento mercadoria” e “produtivismo científico”. Com vistas à construção de nossos argumentos acreditamos que as reformas atuais do ES moçambicano são determinadas pela recomposição burguesa para refortalecer e restabelecer suas bases de acumulação de capital destruídas pela crise estrutural do capitalismo. Tomando como base José dos Santos Souza 7 (2015), procuramos resgatar alguns aspectos teóricos de análise que embasam os diferentes discursos acerca da formação para o trabalho, a partir dos anos de 1990, que têm como referência analítica a teoria da práxis material de Marx (1970, 1994, s/d; MARX, 1989).
Para Trein e Rodrigues (2011), a academia debate-se entre duas frentes na produção do conhecimento: o valor socialmente útil e transformador; o valor de troca mercantil resignado à lógica dominante e o conhecimento que acaba sendo convertido em mercadoria, ou seja, a submissão consubstancializada da ciência à produção burguesa.
Cônscios, porém, da existência de argumentos críticos à ideia da mercantilização, entendida aqui como o mercado e suas forças, como gerador de eficiência, qualidade e sustentabilidade, a mercantilização como genitura de financiamento, mais do que ser a resposta para a crise do desinvestimento (JONBLOED, 2003; MAMDANI, 2007), resulta na desigualdade de acesso, na ineficiência e baixa qualidade do ES moçambicano.
Ensino superior em Moçambique: desinvestimento do governo recai sobre estudantes
A falta de financiamento no ES público é um problema que afeta muitos países e suas manifestações variam de país para país e consoante a localização, no hemisfério norte ou sul (SANTOS, 2010). Isto quer, conforme a localização dos países, centro, semiperiferia ou periferia do sistema global (WALLERSTEIN, 2004; AMIN, 1992), as consequências da falta do financiamento tomarão várias formas. Nos países do Norte ou ocidentais, a situação do desinvestimento toma uma forma diferenciada. Geralmente, na Europa, exceptuando a Inglaterra, o sistema de ES é maioritariamente público. As instituições públicas encontram subterfúgios e poder de reduzir a incidência do desinvestimento público no ES, mesmo que tenham de recorrer ao mercado para produzir mais receitas.
No caso da periferia e em particular da África, a situação é, à prior, diferente. A crise da falta do financiamento do ES trouxe implicações energéticas e drásticas, como a expansão desregulada, fragmentária e uma massificação ao reverso, ou seja, massificação de egressos nas IES de caráter privado, assim como a diligência de instituições privadas sem condições mínimas ou básicas para o seu funcionamento.
Não obstante, o sistema do ES moçambicano experimenta um crescimento do número de estudantes de pouco menos de 5.000 em apenas três instituições públicas8, em 1989, para pouco mais de 82.000 estudantes, em 2011, distribuídos em mais de 38 instituições entre públicas e privadas (CHILUNDO, 2010 e WANGENGE-OUMA, 2011), um crescimento acelerado de estudantes e instituições inadequado e inconsistente.
A inadequação da falta do financiamento do ES em Moçambique ancora-se na sua excessiva e demasiada dependência em relação ao financiamento externo, nomeadamente, doações e créditos. Por exemplo, a Universidade Eduardo Mondlane 9 chegou a depender em mais de 50-60% do seu orçamento total de ajudas externas (WANGENGE-OUMA e LANGA, 2010). O paradoxo entre a necessidade de expansão do sistema e a redução e/ou relativa inconsistência de recursos fez com que o sistema, e em alguns casos as instituições, se adaptassem à nova e atual realidade social, política e econômica para sobreviver á austeridade.
O mercado surge, então, como um recurso à capitalização do ES ou como um negócio que está inserido numa lógica empresarial que deve e deverá ser rentável e mais lucrativa e o ensino/a universidade apresenta-se não como um serviço ou bem essencial, que deverá estar ao alcance de todas as pessoas, independentemente da sua capacidade financeira.
É fundamental apontar que esta situação acaba pondo em causa a democratização que tanto se propaga sobre o ES, além de tornar cada vez mais difícil e complexa a manutenção e alcance de um bom aproveitamento do ensino, pois, com os encargos das mensalidades, os custos elevados de alojamento, transporte, alimentação, material escolar, cuidados hospitalares em caso de necessidade, sobretudo para os estudantes que vivem em lugares mais afastados das respectivas universidades, são poucos os que conseguem acessar a universidade e a torna cada vez mais elitista.
Até os anos 1980, muitos stados africanos não tinham recursos para expandir o acesso ao ES. A expansão veio com as independências. Moçambique estava, como outros países, a caminho da falência e da ruina econômica. Foi graças a esta situação que Moçambique se vira às instituições de Bretton Woods: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que passaram a delinear as regras de funcionamento, utilizando- se dos programas de reabilitação econômica e readaptação estrutural.
Discutindo o conceito de mercadoria, Marx refere que:
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a sua natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (MARX [1980] 1994, p. 81).
Neste contexto, a mercadoria precisa ter alguma utilidade, isto é, um valor de uso. Cada mercadoria, portanto, é um meio material de um valor de troca, ou seja, o trabalho humano despedindo ou abstrato é germe, a fonte criadora do valor. Souza (2015, p. 274) chama-nos a atenção para o fato de o “ritmo e a direção do desenvolvimento dos sistemas educacionais no mundo contemporâneo serem determinados pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção”. Para isso, conta o nível de ampliação dos mecanismos de controlo social das decisões do Estado, materializando-se diretamente nos aspectos econômico, social e político, aplicação da ciência e da tecnologia nos processos produtivos.
A privatização do ES10 vem se constituído em uma ação de caráter técnico e político intrinsecamente ligado ao processo de alargamento da maquinaria e de reconfiguração dos mecanismos de mediação do conflito de classe, que se dá por meio de um aparente acesso e oportunidades iguais para todos. Mas o atual estágio de desenvolvimento tecnológico e científico remete-nos a olhar a formação pessoal e profissional como ação educativa que visa “à conformação técnica, política e cultural da força de trabalho, às necessidades da civilização urbano-industrial, presididas pela lógica científica da organização do trabalho e das relações de produção” (SOUZA, 2015, p. 274; NEVES, 1994). As oportunidades e o acesso ao ES são aparentemente iguais à medida que são poucos os indivíduos que conseguem ultrapassar os limitantes de acesso ao ES, encontrando justificativa nos seus rendimentos, devido à sua origem demasiada humilde. O ES moçambicano não é gratuito. Logo à entrada e mesmo antes, há taxas de inscrição por pagar, taxas a pagar por cada prova a realizar; taxas de matrícula a pagar depois da seleção por meio de exames de admissão- à semelhança do ENEM no Brasil-; e as mensalidades. O exame de admissão ao ES é o mesmo para todos e não diferencia o capital cultural de cada estudante, tomando em consideração a distribuição geográfica, portanto, uma forma de exclusão. É com base nesta lógica que a privatização, camuflada em expansão de acesso e oportunidades iguais, visa (con)formar um imenso contingente da população para encarar com naturalidade o carácter excludente da educação superior e, consequentemente, do mercado de trabalho sem responsabilizar o Estado.
Nesse diapasão, observamos que se o ES que se pretende responder como um desafio da construção da nação moçambicana, uma sociedade aberta e democrática com exercício ativo da cidadania não poderá se basear apenas em mecanismos assentes no trabalho e na obrigação, na qualificação e formação ampliada da pessoa humana que se quer valorizar com base no mérito, para melhor desempenho de funções e benefício pessoal e da sociedade, sobretudo porque estes objetivos não são compatíveis com a massificação sem qualidade, "com fins demagógicos e populistas" (MATOS e MOSCA, 2010, p. 297). Consequência futura ou presente é o assentamento da sociedade moçambicana fechada, isto é, uma sociedade formada por um contingente bastante reduzido de pessoas que têm privilégios sobre a maioria, reproduzida e protegida de acordo com os seus critérios e interesses que, por sua vez, inibem a organização de uma sociedade mais democrática, justa assim como o fechamento da expansão de oportunidades iguais, desemprego ou mesmo um emprego desajustado de técnicos com uma suposta qualificação superior.
Ademais, este tipo de ensino serve para alimentar instituições, organizações e economias ineficientes e deficitárias sob o ponto de vista de desenvolvimento humano, pois tais instituições apenas encontrarão sobrevivência usando-se de estratégias ou mecanismos contrários às atuais tendências de integração e internacionalização econômica e política. A expansão desregulada de IES privadas e o consequente pagamento de mensalidade obriga-as a ter uma gestão mais auto fiscalizada e em moldes de mercado ou empresariais, fato que a nosso ver afeta o ambiente interno quando põe em causa, seriamente, a credibilidade e objetivos institucionais, ao sobrepor mais o seu financiamento às famílias.
O PEES 2012-2020, por exemplo, identificou no plano anterior (PEES 2000-2010) um crescimento numérico de IES que coloca grandes desafios à qualidade e ao seu funcionamento: as IES não alimentam uma visão de um ES em expansão e acesso equitativo, com equilíbrio, qualidade, autonomia, não se guiam pelo princípio de democraticidade e desenvolvimento de atividades produtoras de conhecimento e objeto de reconhecimento nacional, regional e internacional (MINED, 2012), como consequência, há baixa qualidade dos graduados (o saber fazer não corresponde às expectativas do mercado de trabalho); percepção de baixa relevância dos cursos ofertados; baixo número de IES com níveis de pós-graduação e desalinhada com a investigação e deficiente.
Muitas pessoas trabalham para conseguir estudar e são inúmeras as famílias que fazem um grande esforço financeiro para cobrir as despesas dos filhos na universidade, para não falar no número crescente de estudantes que nem sequer equaciona continuar os estudos.
As pessoas deparam-se com dificuldades de acesso ao ES em vários setores da população, encontrando justificativa nos seus rendimentos, devido à sua origem demasiada humilde e até devido ao gênero, em especial porque as universidades são palco de desigualdade de gênero e de discriminação. O governo tem de atentar no marco de uma educação para todos e, por isso, ninguém deve ficar de fora.
Do ponto de vista mais estrito, o tipo de formação virado para o mercado atê-se na atualização técnico-política e cultural duradoira da força de trabalho escolarizada, depois da sua inserção efetiva no mundo do trabalho. Seu capital interesse, segundo Souza (2015), é fornecer habilidades para o trabalho na sociedade urbano-industrial, assim como dotar o atual trabalhador de aptidões necessárias para o regime de acumulação vigente, para além de resultar em um trabalhador com muita teoria, sobretudo nos cursos de licenciatura, e sem a devida inserção no mundo o trabalho.
Assim, podemos avançar que os investidores olham o ES não como um serviço público de responsabilidade entre gerações, mas como uma porta ou oportunidade de mercado/negócio.
Mercantilização, ensino superior, mecanismo de intermediação de conflitos de classe
Mercantilização do ES refere-se ao processo em que o desenvolvimento dos fins e dos meios, tanto no âmbito público quanto no privado, sofre uma reorientação sob ponto de vista da lógica e dos princípios do mercado e sob a qual o ES, sistematicamente, perde o estatuto de bem público, passando a assumir a posição de serviço privado e comercial (MAMDANI 2007; BOK, 2003 e WILLIAMS, 1995).
Trein e Rodrigues (2011); Souza (2015) e Neves (1994) mostram-nos, a partir de suas reflexões, como a ciência e a tecnologia são utilizadas pelo espírito empresarial para a ampliação e exploração da classe trabalhadora, aumentando-lhe a produtividade. O lucro ou a mais-valia é o resultado lógico-necessário da incorporação do valor de uso do conhecimento ao seu suposto valor de troca. Em outras palavras, a supremacia da ideologia da mais-valia - com todas as suas consequências - é uma estratégia através da qual se procura, simultaneamente, acelerar, controlar e baratear a produção de conhecimento-mercadoria, quer na forma de objetos tecnológicos patentes de produtos, ou mesmo de mercadoria-educação, isto é, da força do trabalho qualificado, de acordo com as necessidades do espírito empresarial, sendo que o produtivismo, neste contexto, é “fantasma-fetiche que assombra/seduz, com promessas e ameaças, a Academia” (TREIN e RODRIGUES, 2011, p. 778).
O percurso da área da educação, em Moçambique, indica que é um dos campos do conhecimento que enfrenta maior expansão e encara pressões variadas frente a outras áreas mais consolidadas e reconhecidas pela comunidade científica moçambicana. Os diferentes e escassos períodos pelos quais passou o setor educacional mostram certa fragilidade da área se tomarmos em conta o tempo de maturação necessário para o aprofundamento de todo e de qualquer conhecimento científico.
Parece lícito observar que a necessidade estrutural do capitalismo de ampliar, mesmo que de forma limitada, as oportunidades de acesso ao conhecimento para uma restrita e pequena parcela da classe trabalhadora explica-se através de um discurso integrador de defesa da universalização da educação e seu acesso, aumento das oportunidades do ES e profissional. Porém, um discurso necessário à manutenção do monopólio do conhecimento.
O capitalismo apresenta-se, neste aparato, em um modo particular de difusão e amplificação capitalista, sendo que as burguesias locais são cúmplices e consocias menores e subalternas dos centros hegemônicos do capitalismo e se caracteriza por um aumento desigual e conjugado que concentra riqueza e paupérie, superexploração da classe trabalhadora e domínio de processos educativos e formativos para o trabalho simples na divisão internacional do trabalho (NEVES e PRONKO, 2008, p. 8).
O processo de mercantilização no ES, em Moçambique, é resultante da instauração da “segunda república”, em 1990, que introduz a democracia multipartidária e a economia do mercado. A aprovação da Constituição da República de Moçambique, de 1990, abandona a ideologia socialista (1977-1987) que se seguiu à adoção da orientação
Marxista-Leninista, pela FRELIMO11, em 1977, como linha ideológica de organização do Estado e da estrutura social da sociedade moçambicana lograda a independência.
Devido às condições econômica, social, histórica e política de 1992, conjugadas ao fim da guerra civil acontecida desde finais da década de 1970 e do sistema socialista já consumado, a vitória do capitalismo fazia-se sentir em toda a sociedade moçambicana. O Governo recorre às organizações não-governamentais para minimizar a crise, no sentido de que tais organizações, de acordo com Dale (2002), têm a capacidade de assegurar o setor socioeconômico, porém vão exercendo influências sobre as políticas educativas, financiando projetos de desenvolvimento humano e apresentando propostas e pacotes aos países em desenvolvimento.
A Lei 1/93 do ES foi o primeiro instrumento oficial a criar condições para o surgimento de provedores privados, destacando-se, assim, a sua multiplicação entre os anos 1994-5. Entre 2000 e 2010 uma nova fase de explosão de provedores públicos e privados de ES. Por um lado, o governo conseguiu um empréstimo do Banco Mundial para implementar o Plano Estratégico para o Ensino Superior (PEES - 2000 a 2010) que tinha como objetivo primordial a expansão do acesso (MOÇAMBIQUE. MESCT, 2000), respondendo, assim, às exigências da visão do Banco Mundial sobre a forma como deveria operar o ES.
Nessa ótica, se o país quisesse expandir o seu ES deveria fazê-lo diferenciando as instituições, incluindo a abertura de espaço para os provedores privados. Deveria criar condições para que as instituições públicas multiplicassem ou diversificassem as suas fontes de financiamento, o pagamento de mensalidades por estudantes, por forma a contribuírem nas despesas da sua formação (WORLD BANK, 1994). Estavam, assim, operacionalizados, incluído para o setor público 12 , os cânones e as prescrições entre mercado e ES.
Fonte: DNES - MCTESTP. Dados estatísticos sobre o ensino superior em Moçambique, 2016 (2017) - [Adaptado].
Sob a ótica do discurso ilusão, a burguesia tem o controlo do acesso ao conhecimento científico e tecnológico aplicado na produção, dando azo a variados modelos de formação ou mesmo de qualificação profissional, que na análise de Souza (2015, p. 286), ocasiona o surgimento da duplicidade “entre formação para o trabalho intelectual- destinado a uma elite da classe trabalhadora - e formação para o trabalho manual - destinado à grande maioria dos trabalhadores”, portanto, uma controvérsia no processo do valor de capital no concernente à educação, também advinda do surgimento de necessidades novas formação para a vida e para o trabalho. Trata-se do acesso limitado ao conhecimento técnico-científico a uma restrita força de trabalho, sendo que a grande maioria do contingente trabalhador é atendida por um tipo de formação fragmentada e de qualidade baixa19.
Mesmo que em termos práticos e simplistas a ampliação das forças produtivas exija o desenvolvimento quantitativo e qualitativo da escolarização, ou que a classe trabalhadora e organizações sociais lutem por maior escolaridade e formação política que lhes permita ir em direção a um novo tipo de sociedade, a estratégias de sua cooptação pelo modo mercantilista para a restrição dessa possibilidade não lhes conduziria ao sucesso e fortalecimento. Neves e Pronko (2008) apontam que o sucateamento ou o desmantelamento do socialismo real, o desemprego se dão de maneira profunda e violenta pela precarização do trabalho, desqualificando a política, para além de recorrer a uma desmedida e intensa incursão ideológica, mas buscando, desse modo, depredar a diferença de classe mediante a ideia da “colaboração e harmonia social”.
Dito de outro modo, ao mesmo tempo que o modelo capitalista de absunção do valor de troca fica desgastado, corroído, em parte por conta do aparecimento de novas buscas pelo emprego, formação, instrução, etc, o novo problema obriga à classe dominante a procurar novas estratégias que possam garantir o consenso desejado à inculcação da hegemonia de sua concepção de mundo, sendo, por isso, necessário abafar o conflito de classe por meio do fetiche do conhecimento mercadoria.
Nesse contexto, o Estado assenta em variadas atividades práticas e teóricas com as quais a classe dominante justifica e mantém o poder, assim como para ter a anuência dos dominados por meio da hegemonia.
É no contexto peculiar do desenvolvimento da visão mercantil e do desenvolvimento capitalista que as burguesias locais são sócias menores e subordinadas às burguesias dos centros hegemônicos do capitalismo, combinado a um crescimento desigual e conjugado que concentra riqueza e miséria, superexploração da classe trabalhadora e a dominância de processos educativos e formativos para o trabalho simples na divisão nacional, quiçá internacional do trabalho.
Que desafios para o ensino superior moçambicano? Educação como política social do estado
A proporção mercadológica que o conhecimento científico toma, tanto pelo capital simbólico que origina, ao aumentar prestígio e reconhecimento, quanto pela relação mercantil direta que pode assumir, por exemplo, ao limitar e restringir o acesso das pessoas, por meio da imposição do pagamento das mensalidades, caracteriza a academia como uma produção individual e o seu acesso como propriedade privada. Essas duas dimensões fazem com que o trabalho coletivo necessário à produção do conhecimento seja camuflado e o valor de uso social seja concebido como valor de troca, particularmente numa sociedade de classes como a moçambicana.
Marx, na sua obra O Capital, capítulo A maquinaria e a indústria moderna, descreve o papel assumido pela técnica, ciência e tecnologia sob o uso capitalista: "Poder-se-ia escrever toda uma história das invenções, feitas a partir de 1830, com o único propósito de suprir o capital com armas contra as revoltas dos trabalhadores" (MARX,1994, p. 499). Marx mostra-nos como a tecnologia, a técnica e a ciência são instrumentalizadas pelo modelo capitalista para aumentar a exploração dos subordinados, acrescentando-lhes a produtividade e corroendo as suas possibilidades de se insurgir contra o capital.
Não é obra do acaso que instituições não-governamentais: Banco Mundial e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) recomendam às chamadas "economias emergentes" o financiamento governamental e empresarial às atividades de pesquisa acadêmica, desde que essas tenham como perspectiva a sua mudança em patentes, em que seu número é usado como marcador de hierarquização entre países e centros de pesquisa. É interessante notar que há aqui uma mudança do Banco Mundial em relação às teorias do retorno (social) do investimento público no ES: a redescoberta de que o ES é capaz de marcar no desenvolvimento acelerado dos países da periferia.
O mercantilismo precisa ser encarado, em Moçambique, um desafio que se coloca ao ES como política social, na medida em que o graduando pode não encontrar um ambiente de exigência e rigor que lhe permita optar pela diferença entre o ensino profissional e o médio secundário e, por conseguinte, um reduzido contingente possa realmente estudar. Como resultado, gerar-se um ciclo de ineficácias e ineficiências de todas as partes que “reproduzem mediocridade” (MATOS e MOSCA, 2010, p. 298), reforçando-se, simultaneamente, com a lógica de retorno imediato pretendido pelos investidores e prestadores de serviço público (incluindo as universidade públicas), docentes e estudantes.
A política educacional como política social - fração da política pública- coloca-se às instituições de ensino superior (IES) o papel de criação de um sistema nominal numa efetiva diferenciação funcional, na medida em que quase todas são vocacionadas ao ensino (LANGA, 2014). Pouco mais de 95% dos estudantes das IES, sobretudo as privadas, é composto por estudantes de graduação, não importando se trate de um instituição universitária ou politécnica, o que resulta na secundarização das atividades de pesquisa e investigação, destacando-se que nem sempre se deve a falta de meios materiais para o efeito, mas, sim, a ausência de uma visão estratégica e da importância da diferenciação prática.
Para isso, o Estado deverá priorizar o ES de qualidade, não dominado pela ideologia de mercado, que sob um discurso falacioso tudo resolve e estabiliza automaticamente - a liberalização caótica do ES - e eventualmente pervertido por indivíduos que vêm na política e no mercado plataformas de reforço comum e proveito individual.
Do contrário, o ES continuará sendo um advento do capitalismo, sendo o progresso o motor que amplia a demanda social pela escola num contexto de mercado em que a formação é cada vez mais concebida como um mecanismos de ascensão para a mobilidade social, um critério de diferenciação social. Portanto, uma questão de poder e não de saber ou de conhecimento. Como observa Langa (2012, p. 34), o prazer de buscar o saber, o conhecimento pelo conhecimento, o desenvolvimento de uma cultura intelectual, ficou conexo da corrida pelos diplomas.
Uma clara evidência disso consiste no considerável crescimento que o ES moçambicano experimentou nos últimos vinte anos, tendo-se diferenciado e se tornando diverso, atualmente composto por instituições universitárias, politécnicas, academias e institutos (tabela 1).
Um outro desafio sugerido por Matos e Mosca (2010) aponta às universidades públicas, privadas ou associadas a vários tipos de organizações (por exemplo congregações religiosas) a prestarem serviços à sociedade, pois funcionam com mecanismos autônomos, não podendo ser geridas em defesa ou reprodução de interesses do governante do dia, ou mesmo serem utilizadas como instrumentos para fins alheios à investigação e ensino, sobretudo se considerarmos que o fundamento do conhecimento do e sobre o ES em Moçambique, desde a sua constituição, assenta mais numa base “experiencial, normativa-regulativa e menos numa base acadêmico - científica” (LANGA, 2014, p. 37) sobre a instituição social do ES.
Ademais, o desafio, hoje, é o de ir em direção ao outro, ou seja, à sociedade como um todo e à classe trabalhadora, em especial. Sem essa ligação dificilmente poderemos voltar a nós mesmos, cheios de sentido qualitativo do nosso fazer que não se pauta no individuo em si, mas, sim, na interlocução com as demandas de outrem, rumo a uma sociedade emancipada e mais justa. Em outras palavras, precisamos resgatar o valor de uso social do trabalho na academia e com isso, superar o valor de troca material e simbólico que caracteriza o trabalho intelectual produzido no meio acadêmico.
Consequência negativa disso é a formação de grande parte dos graduados do ES com deficiências de formação (cursos genéricos, docentes mal formados, insuficiência de bibliotecas, laboratórios e recursos tecnológicos).
Necessário se faz que o Estado moçambicano assuma a sua responsabilidade pelo ensino em Moçambique, um ensino sem menos bolsas, sem mais empréstimos, público e gratuito à semelhança de outros países. Não se pode admitir que privados decidam sobre o futuro das universidades moçambicanas. Os estudantes universitários precisam levar em conta estas reivindicações e fazer delas as suas linhas vermelhas, há muito esquecidas, assim como potenciar o movimento estudantil para conquistar os seus direitos de volta.
Considerações finais
Neste esboço tentamos elucidar que o desinvestimento, a privatização e a mercantilização do conhecimento nas instituições de ES em Moçambique, tanto públicas quanto privadas, são cada vez mais intricadas e ambas fazem parte de um novo acordo de política global virada para interesses de mercado, o que faz da educação um dos locais de luta de classes, de busca de oportunidades e de conformação da classe trabalhadora, sendo que a própria educação muda com isso.
Contudo, a serventia do setor privado é o mais evidenciado e colocado em prática, porém, resulta em desigualdades sociais, particularmente por ser bastante seletivo e individualista, e os valores do profissionalismo são secundarizados em favor dos primeiros. Mesmo a multiplicação de cursos oferecidos em instituições de ES moçambicano: ciências sociais, cursos superiores de tecnologias, o ES à distância, empreendedorismo, entre outros, são espaços de formação, mas outros servem mais para conformar, porquanto, não levam à empregabilidade. Eles criam uma ilusão de que as pessoas precisam se qualificar para o trabalho e/ou para um trabalho melhor e mais bem remunerado, sendo que na prática tal promessa não se concretiza, na maior parte das vezes. A multiplicidade dos tipos de instituições do ES assenta no conjunto dos mecanismos de ampliação do ensino virado para o mercado, através da oferta de cursos que respondam às demandas emergentes no âmbito da Educação Para Todos, portanto, mecanismos de conformação e regulação de conflito de classes.
As políticas públicas neoliberais, no campo educacional, elucidam que o Estado moçambicano não confronta as diretrizes dos organismos internacionais, mas, sim, as implementa em larga escala, valendo-se de instrumentos de coerção legal e ampla massificação ideológica para um consenso ativo e passivo.
Assim, consideramos que o "mercado educacional" tornou-se em um dos lugares importantes da luta de classes, mudando a própria educação. Ela é repleta de atores interessados e preocupados em si mesmos e em busca de oportunidades, sendo que a formação de pessoal mais qualificado funciona como um mecanismo de conformação da luta de classes.