Introdução
A discussão levantada neste trabalho trata das possíveis implicações na política do PNAE, ocasionada com a Extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e do controle social sobre a produção de alimentos saudáveis e livre de agrotóxicos. Situa-se no campo de pesquisa do controle social sobre a administração pública brasileira e tem como foco analisar possíveis consequências da Medida Provisória (MP) 870/2019, na garantia do direito à segurança alimentar e nutricional, assim como seus reflexos no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
A extinção do CONSEA, por meio da MP 870/2019, põe fim a um importante instrumento de controle social sobre a segurança da diversidade produtiva de alimentação saudável e a inclusão desta no cardápio do PNAE. A escolha dessa temática de estudo justifica-se por tratar de um recente acontecimento que, apesar de ser tema de amplos debates na atualidade, apresenta apenas uma produção científica (CASTRO, 2019) que aborda a extinção do CONSEA.
Para Barros (2014), o controle social é uma ação que surge no âmbito da sociedade civil, sendo este exercido sobre o Estado, precisamente sobre o Poder Executivo, na tentativa de organizar e sistematizar o acompanhamento e fiscalização da implementação das políticas públicas nas esferas do governo federal, estadual e municipal.
É fundamental para o equilíbrio da democracia de uma nação que as instâncias de controle social estejam em seu pleno funcionamento. De acordo com Santos e Ramalho (2011, p. 2), “para que este mecanismo funcione efetivamente como órgão de controle social, é preciso que a sociedade civil seja atuante, conhecedora de suas atribuições e que se imponha diante das situações que exijam sua intervenção”.
Diante disso, objetivamos apresentar a mesma redação do objetivo anunciado no resumo acerca da extinção do CONSEA, como instrumento de controle social sobre as ações do Estado que podem afetar a segurança alimentar e nutricional no PNAE, uma vez que este é um complemento ao controle social exercido nesse programa pelo Conselho de Alimentação Escolar (CAE), no âmbito da educação básica pública. Outrossim, evidenciam-se riscos a toda a população, comprometendo a subsistência de uma sociedade democrática e o seu modo de vida, uma vez que esse conselho possuía atribuição de combate ao uso abusivo de agrotóxicos na produção de alimentos.
Metodologia
Para que se possa compreender a relevância deste trabalho, Extinção do CONSEA como instância de controle social, órgão que complementava as ações do CAE no PNAE, buscamos evidenciar sua importância e as possíveis implicações advindas de sua ausência na política de alimentação escolar. Partindo da análise da MP 870/2019, da Constituição Federal de 1988, da Lei do PNAE (1947/2009), de relatórios e dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), enfatizamos que este trabalho é resultado de revisão bibliográfica, análise documental e estudo da legislação revogada ou substituída, numa tentativa de ressaltar a extinção do CONSEA como uma ameaça ao pleno funcionamento do PNAE e à saúde da população.
Este trabalho está estruturado de maneira a possibilitar a compreensão histórica do surgimento do controle social sobre a administração pública brasileira, sua evolução, criação do CONSEA como instrumento de controle social, suas contribuições ao PNAE e ao CAE, evidenciando sua extinção e ressaltando sua atuação no controle da produção de alimentos saudáveis num país aberto aos agrotóxicos.
Portanto, este trabalho organiza-se em tópicos que tratam dos antecedentes históricos do controle social sobre o Estado brasileiro, ressaltando a institucionalização do CONSEA e do PNAE enquanto instâncias políticas e instrumentos de controle social e, por último, trata da extinção do CONSEA, atendendo a interesses de classe, visando ampliar a produção de alimentos pelo uso em maior escala de agrotóxicos, em detrimento da saúde pública e da soberania e segurança alimentar.
Controle social no Brasil: antecedentes históricos na administração pública
Embora o CONSEA fosse um órgão consultivo diretamente ligado à Presidência da República, integrando o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)3, seu sucesso ou insucesso parece estar dentro da “regularidade”, quando olhamos para o histórico da implementação do controle social sobre o Estado brasileiro.
Mesmo que se verifiquem, em diversos momentos da história brasileira, movimentos populares buscando reconhecimento de suas demandas sociais junto ao Estado, seja ele imperial, republicano ou democrático, é somente nos anos que antecedem a Constituinte de 1988 que se percebe a sociedade civil avançando na participação em debates junto à administração pública, para pôr na agenda do Estado suas demandas sociais.
A ditadura militar certamente adiou avanços significativos na agenda social de políticas públicas, uma vez que o Estado ditatorial mantinha-se de costas à agenda democrática, evidente no seio da sociedade civil. Os pequenos avanços percebidos na política de controle social sobre o Estado brasileiro são considerados fenômenos recentes, ao compararmos a história da independência do País, ocorrendo, especialmente, no processo de redemocratização do país, posterior ao fim do regime militar no ano de 1986, quando o grande anseio popular deu-se pela abertura do Estado a sua participação nas discussões envolvendo políticas públicas. Para Correia (2000):
Os mecanismos de controle social são, ao mesmo tempo, resultados do processo de democratização do país e pressupostos para a consolidação dessa democracia. O fortalecimento do exercício do controle social sobre o Estado contribuirá para o alargamento da esfera pública e para a consolidação da democracia no Brasil (CORREIA, 2000, p.54).
Com o fim da ditadura militar, no ano de 1986, em consequência de muitas mobilizações sociais pela abertura do Estado, abriram-se novas perspectivas e esperanças de participação popular na definição de políticas públicas. E isso, certamente, contribuiu no processo de elaboração da Constituição de 1988, no surgimento do termo “participação popular” e, consequentemente, “controle social”, bem como na sua institucionalização nas políticas públicas, bandeira histórica de luta dos movimentos sociais brasileiros.
Entendemos o controle social na medida em que a sociedade luta contra o patrimonialismo presente na gestão do Estado, na figura das pessoas e setores sociais, que mesmo mediante conquistas institucionais, não reconhecem como legítima a participação cidadã nas políticas públicas. As práticas que distanciam o Estado do cidadão, utilizando-se de obscuridade administrativa nos serviços públicos, ainda são muito comuns. Carvalho (2006, p. 73) reforça essa tese, presumindo que “este controle é realizado na medida em que a sociedade civil interfere na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos interesses da coletividade”.
A participação e o controle social nos governos neoliberais de Itamar Franco (1992-1995) e de Fernando Henrique Cardoso (FHC – 1995/2003) foram elementos presentes e estratégicos para agregar o apoio da opinião pública, recém-saída de um Estado antidemocrático, às políticas reformistas de privatizações e de abertura ao capital estrangeiro. Contudo, a participação e controle social surgem com uma outra roupagem, até então pouco conhecida no cenário das políticas públicas, principalmente na educação, em que o caráter de participação e controle social parece confundir-se como “referendo a decisões já tomadas” em outras instâncias, gerando uma falsa sensação de estar controlando o que na prática não se controla.
De acordo com Bandeira et al. (2013):
(...) entende-se por “controle social” a prática social que supõe a participação de diferentes setores sociais, em todos os níveis de organização da sociedade, não se dando essa participação de forma difusa, mas institucionalizada (BANDEIRA et al., 2013, p. 345).
Com isso, no novo papel do Estado, que também ficou conhecido como modelo gerencialista, surge o conceito de “Controle Social”, implantado, conforme verificado anteriormente, pela reforma administrativa do governo FHC, a qual regulamenta a participação da sociedade nas instâncias colegiadas.
Nesse aspecto, por meio dos movimentos sociais e, principalmente, após as regulamentações de instâncias de controle social, previstas na Constituição de 1988, historicamente clamadas pela sociedade, esta tem procurado discutir dentro desses espaços as políticas públicas sociais, de forma a controlar socialmente o orçamento público do Estado brasileiro. Contudo, pesquisadores como Avritzer (2009) têm se manifestado quanto ao controle institucionalizado, como uma forma de limitar a participação social, o que certamente vai de encontro aos princípios buscados pela sociedade civil no processo de sua institucionalização.
Há movimentos na sociedade civil que têm evidenciado que as políticas de controle social propostas pelos governos neoliberais, hoje em vigor, não têm conseguido atender, de fato, às demandas para as quais foram criadas, gerando apenas uma falsa sensação de controle sobre aquilo que o Estado, ainda inflexível e burocrata, não quer deixar controlar e que, geralmente, não é percebido pelo grande conjunto da sociedade. Corroborando com esta ideia, Bobbio (2001) afirma que
[...] as instituições que os cidadãos conseguem controlar são cada vez mais fictícias como centros de poder. Entrementes, os vários centros de poder real de um Estado moderno, como as grandes empresas, ou os instrumentos mais importantes do poder real, como o Exército e a burocracia, não são submetidos a qualquer controle democrático (BOBBIO, 2001, p. 123).
Parece concordar com a ideia de que os mecanismos institucionalizados de controle social nas políticas públicas são como tecnologias criadas para que o cidadão sinta a sensação de estar participando do debate político, quando, na verdade, este pode apenas referendar sua própria exclusão das instâncias decisórias junto ao Estado inflexível e burocrata.
Os conselhos ainda são mecanismos, não os únicos, de participação. Porém, não como se apresentam hoje, em sua maioria sem espaço para o debate político, a deliberação e o controle social, caracterizando-se como espaços formais ou de faz de conta de participação (AVRITZER 2009, p. 138).
A institucionalização do CONSEA e do CAE/PNAE enquanto instrumentos e políticas de controle social
A partir da abertura política do Brasil, com o fim da ditadura militar, em meados da década de 1980, que contou com a participação de diversos intelectuais ativistas e movimentos sociais de esquerda, deu-se início ao progressivo surgimento e fortalecimento das organizações da sociedade civil. Tais movimentos sociais trouxeram ao debate o tema de combate à fome. Nesse aspecto, começam a surgir, pela primeira vez, em âmbito institucional, uma pauta da sociedade civil demandando uma política pública de segurança alimentar e nutricional.
Dois eventos importantes, na década de 1980, vão contribuir para o surgimento do termo “Segurança Alimentar e Nutricional”. Em 1985, surge o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no setor público, que foi formulado por técnicos vinculados ao Ministério da Agricultura. E, em 1986, é realizada a I Conferência de Alimentação e Nutrição, quando o conceito SAN é ampliado, pois inicialmente estava restrita à produção e abastecimento, passando a incorporar a qualidade dos alimentos, bem como a questão do seu acesso.
A Constituição de 1988 foi um marco importante na trajetória que iria implementar em âmbito nacional o CONSEA, pois fortaleceu organizações da sociedade civil, tais como: movimentos sociais, associações de bairros, Organizações não Governamentais (ONGs), entre outras de suma importância no empoderamento da sociedade civil, uma vez que se passou a prever a criação de formas e espaços de participação popular, facilitando a disputa pela agenda do Estado.
Segundo Sattamini (2013), a proposta de uma Política Nacional de Segurança Alimentar, que se refere à problemática da alimentação, foi elaborada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), em 1991, e foi aceita no início de 1993, pelo governo Itamar Franco, contribuindo como uma das fundamentações para a instalação do CONSEA (Decreto Nº 807/1993) e, consequentemente, para a introdução da questão agroalimentar e da fome na política nacional.
É importante ressaltar que, nessa trajetória de institucionalização do CONSEA, contou-se com a ajuda do “Ação da Cidadania”, projeto social, criado em 1993, cujo principal expoente era o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Esse projeto formou uma rede de mobilização no país para ajudar cerca de 32 milhões de pessoas que se encontravam abaixo da linha da pobreza, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
De acordo com Santos (2016), na organização política informal, pela criação do CONSEA, que foi levada a cabo por integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), com o objetivo de criar um campo de luta pela construção de um projeto de democracia populare de propor ações ao governo federal no âmbito da geração de trabalho e renda, reforma agrária, segurança alimentar, entre outros, encontrava-se o candidato à presidência derrotado nas eleições de 1989, Lula.
Apesar da longa demora para institucionalização do CONSEA, esse colegiado não durou muito tempo, pois, a partir de 1995, com a eleição de FHC à presidência da república, o CONSEA sofreu um processo de desestruturação, sendo substituído pelo programa “Comunidade Solidária", cujo foco era redistribuição de renda, combate à pobreza, estímulo à geração de emprego e de renda, entre outros, ficando a participação social esvaziada, dando-se, por fim, a sua extinção.
Conforme Santos (2009), após a extinção do CONSEA pelo governo FHC (1995), este foi recriado no governo Lula, por meio do Decreto nº. 4.582/2003 – posteriormente, substituído pelos Decretos nº. 5.079/2004; nº. 5.303/2004; nº. 6.245/2007 e Decreto nº. 6.272/2007–, que priorizou o combate à fome por meio do Projeto “Fome Zero”, criando também a conceituação oficial de segurança alimentar, por meio da Lei Federal nº 11.346/2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN).
Nesse aspecto, o CONSEA era o órgão de assessoramento à Presidência da República e tinha como competência institucional apresentar proposições e exercer o controle social na formulação, execução e monitoramento das políticas de segurança alimentar e nutricional, tendo caráter consultivo, composto por 1/3 de representantes de diferentes órgãos do poder executivo e 2/3 da sociedade civil. Ele foi instituído pelo Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), sua estrutura de governança previa como elementos centrais a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN).
Ressalta-se que o CONSEA foi um instrumento de controle social muito importante ao pleno funcionamento do PNAE, mesmo esse programa possuindo um instrumento próprio de controle social, o CAE, criado pela Lei nº 8.913/1994, hoje implementado pela Lei nº 11.947/2009, cujo objetivo é fiscalizar e acompanhar a execução do PNAE na esfera de cada ente federado. Nessa perspectiva, o CONSEA atuava para garantir alimentação livre ou com baixo teor de agrotóxicos, visando a qualidade da alimentação de toda a população, um fator que certamente tornava-se complementar ao trabalho desempenhado pelo CAE.
O CAE é um instrumento de controle social previsto no PNAE, que é coordenado nacionalmente pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE), autarquia do Ministério da Educação (MEC), que é responsável por elaborar, por meio de resoluções, as normas para controlar e destinar recursos financeiros aos entes federados que possuem educação básica pública, além de monitorar sua execução (BRASIL, 2009).
A política de controle social no PNAE, exercida pelo CAE, mesmo não representando os avanços ideais a um Estado democrático, parece ameaçada por atos do governo federal, entre eles: a extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que era responsável pelo suporte e investimentos de recursos na agricultura familiar; a diminuição dos recursos destinados a políticas públicas em educação, materializada na aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que a curto e longo prazo diminui drasticamente investimentos em educação; além da extinção do CONSEA, por meio da MP 870/2019, que indiretamente ataca o controle social sobre o PNAE, comprometendo a atuação do CAE.
Sem a atuação do CONSEA no monitoramento e na fiscalização do uso de agrotóxicos utilizados na produção de alimentação, entre elas, a escolar, a atividade do CAE fica parcialmente comprometida, configurando-se a extinção desse colegiado como barreiras ou limitações ao pleno exercício do controle social. Conforme Barros:
O principal objetivo do CAE consiste em zelar pela qualidade dos produtos, desde a compra até a distribuição nas escolas, prestando sempre atenção às boas práticas de higiene e sanitárias, além de fiscalizar a aplicação dos recursos transferidos (BARROS, 2014, p. 22).
Dessa forma, os valores de referência de energia, macro e micronutrientes, dos gêneros alimentícios devem ser acompanhados e fiscalizados pelo CAE (Anexo III da Resolução CD/FNDE N º 38/2009), por serem indispensáveis à promoção de uma alimentação saudável, principalmente na escola de tempo integral, uma vez que esta passa a ser a referência da alimentação dos alunos que passam boa parte de seu tempo sob a responsabilidade do Estado.
A ausência do CONSEA, que atuava para diminuir os altos índices de contaminação em alimentos por uso indiscriminado de agrotóxico, pode comprometer a atuação do CAE, contrariando as orientações da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) de 2001, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Instituto de Medicina Americano (IOM), adotadas pelo PNAE.
Diante da importância do controle social sobre as ações do Estado, compreende-se que a Extinção do CONSEA representará perda imensurável à efetivação da política de controle sobre a segurança alimentar no PNAE, cujo tal exercício é efetivado pelo CAE, o que compromete, de certa forma, a transparência sobre a administração pública brasileira, contido no art. 5º, da Constituição de 1988, que trata do direito a receber informações dos órgãos públicos, restando-nos reconhecer que existem ainda desafios a serem superados, entre eles, a reestruturação do CONSEA.
Produção de alimentos saudáveis num país aberto aos agrotóxicos: o peso da existência ou ausência do CONSEA no PNAE
Entre as primeiras publicações oficiais do atual governo brasileiro, está a MP 870/2019, que traz em seu texto uma extensa reestruturação dos órgãos da Presidência da República e de seus Ministérios, revogando o inciso II do caput e os parágrafos 2º, 3º e 4º do art. 11 da Lei 11.346/2006 (LOSAN). A partir dessa revogação parcial, conhecida na linguagem jurídica como derrogação, o atual presidente da república, Jair Bolsonaro, extingue o CONSEA, que por muito tempo ficou conhecido como um instrumento de participação e mobilização social na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
O CONSEA, além de ser considerado um complemento às atividades do CAE, no PNAE, era um espaço institucional de participação e controle social na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, para promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada. Nesse aspecto, verifica-se sua atuação expressa na Nota Técnica nº 02/2017 da ANVISA/MS (Ministério da Saúde):
1. A presente nota técnica visa apresentar o posicionamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária relacionado à Recomendação n. 028/2016, emitida pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA. Recomenda-se à Anvisa que revise o relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA de 2013 a 2015, para que seja incluída a análise dos dados referentes a exposição crônica (presença de agrotóxicos acima do limite permitido e/ou proibidos para a cultura), de modo a permitir a comparação com os relatórios dos anos anteriores, bem como sejam apontadas ações efetivas para a redução da exposição aos agrotóxicos, e assim seja retratada a real situação da exposição aos agrotóxicos para a população brasileira (BRASIL, 2017, p. 02).
As informações da nota técnica acima são frutos da Recomendação 028/2016 do CONSEA, por meio da qual a ANVISA revisa o relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, para que seja incluída a análise dos dados referentes à exposição crônica, referente à presença de agrotóxicos acima do limite permitido e/ou proibidos para a cultura. “Atualmente, este modelo de agricultura intensiva, mecanizada e dependente de agroquímicos é muito criticada por diversos movimentos e inclusive pelo CONSEA” (SATTAMINI, 2013, p. 40).
Constata-se que a atuação do CONSEA estava intimamente ligada ao PNAE, uma vez que objetivava também uma educação alimentar, contudo este desenvolvia um papel mobilizador e articulador das políticas de segurança alimentar e nutricional, o que certamente gerou diversos conflitos na sua área de atuação, principalmente, quando se observa a mobilização desse colegiado para tentar diminuir os avanços do uso de agrotóxicos na produção de alimentos, política essa que certamente contrariava os interesses da bancada ruralista no congresso, que, desde 2002, tenta aprovar um Projeto de Lei (PL) de flexibilização do uso de agrotóxicos na produção de alimentos.
A tabela a seguir registra informações contidas no Relatório da ANVISA (2016) sobre resíduos de agrotóxicos em alimentos, teste realizado em amostras colhidas em supermercados de todas as capitais do país, atendendo à solicitação do CONSEA. Nesse aspecto, observa-se que os resultados desse teste evidenciam contaminação de produtos também utilizados na alimentação escolar, o que nos dá indícios de que a atuação do CONSEA contrariava pretensões de quem desejava a flexibilização do uso de agrotóxico na produção de alimentos, uma vez que, nesses relatórios, é exposto o grau de contaminação de cada produto.
ALIMENTO | Nº DE AMOSTRAS ANALISADAS | Nº DE AMOSTRAS COM POTENCIAL DE RISCO AGUDO | % DE AMOSTRAS COM POTENCIAL DE RISCO AGUDO |
---|---|---|---|
Laranja | 744 | 90 | 12,1% |
Abacaxi | 240 | 12 | 5,0% |
Couve | 228 | 6 | 2,6% |
Uva | 224 | 5 | 2,2% |
Alface | 448 | 6 | 1,3% |
Mamão | 722 | 6 | 0,8% |
Morango | 157 | 1 | 0,6% |
Manga | 219 | 1 | 0,5% |
Pepino | 487 | 2 | 0,4% |
Feijão | 764 | 2 | 0,3% |
Goiaba | 406 | 1 | 0,2% |
Repolho | 491 | 1 | 0,2% |
Maçã | 764 | 1 | 0,1% |
Outros alimentos: Arroz, milho (fubá), trigo (farinha), banana, abobrinha, pimentão, tomate, batata, beterraba, cebola, cenoura, mandioca (farinha). | 6.157 | 0 | - |
TOTAL | 12.051 | 134 | 1,11% |
Fonte: Relatório sobre resíduos de agrotóxicos em alimentos/ANVISA (2016).
A intensificação da atuação do CONSEA, entre outras organizações da sociedade civil em favor de uma produção de alimentos livres, ou com um mínimo de uso de agrotóxicos, parece ter surtido efeito por algum tempo, pois o PL6299/02 que tramitava na câmara dos deputados federais e visava facilitar a liberação/flexibilização do uso de agrotóxicos na produção de alimentos, mesmo sem testes conclusivos dos órgãos ambientais, tinha ficado em segundo plano, pelo menos até 2018. Para o GREENPEACE:
O uso de agrotóxicos é classificado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) como uma das mais severas e persistentes violações do direito humano à alimentação adequada, indicando situação de insegurança alimentar e a possibilidade de desenvolvimento de diversas doenças agudas e crônicas (GREENPEACE, 2017, p. 45).
Um dado preocupante que vinha pautando a dura atuação do CONSEA pode ser visto no próprio site do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), ao registrar que, no ano de 2018, houve recorde no registro de defensivos (agrotóxicos), alcançando índice de 450, sendo 52 casos de baixa toxicidade e 388 casos de médio ou alto risco a saúde pública. O MAPA ainda informa em sua página que atualmente existem 1.345 pedidos de registro de novos agrotóxicos sob sua análise, além de diversos outros nos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e na Anvisa (BRASIL, 2018).
Para melhor ilustrar a assustadora escala de registro de agrotóxicos, mesmo com a atuação do CONSEA mobilizando a opinião pública, vejamos o gráfico a seguir, elaborado com base em dados do MAPA e do Diário Oficial da União (DOU):
Os dados apresentados no gráfico 1 são assustadores, não só pela notícia de extinção do CONSEA, como instância de controle dessa política, mas principalmente por verificarmos no DOU que tem sido registrado mais de um agrotóxico por dia, o que nos leva a crer que haverá novo recorde em 2019.
Fonte: Elaborado pelo autor, com base em dados do MAPA e publicações Diário oficial da União – 2005/2018.
Em razão da publicação da MP 870/2019 e da reação dos movimentos organizados da sociedade civil, que têm se posicionado contra tal medida, foram realizadas diversas audiências públicas promovidas pelo Congresso Nacional e que contaram com a participação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e do Ministério Público Federal(MPF). Na oportunidade, foram discutidos, em uma série de audiências, temas como: o direito humano à alimentação adequada e os impactos sociais da MP 870/2019.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, representada por Deborah Duprat, durante a audiência pública no Congresso sobre a extinção do CONSEA, destacou que é natural a adoção de reforma administrativa na gestão governamental, contudo ressaltou que direitos fundamentais, como à garantia de participação social, não podem ser suscetíveis a desestruturação organizacional. Nesse aspecto, o MPF recomendou a reabertura imediata do CONSEA e requisitou à Procuradoria-Geral da República, sob o comando de Raquel Dodge, que ingresse no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a inconstitucionalidade dos artigos que extinguem o CONSEA, constantes na MP.
Além da manifestação formal do MPF contra a extinção do CONSEA, diversas entidades manifestaram-se contra tal decisão, são elas: a Ação da Cidadania, o Sistema Conselhos Federal e Regionais de Nutricionistas, a Executiva Nacional de Estudantes de Nutrição, a Rede de Estudos e Ações em Justiça Alimentar, a Associação Slow Food Brasil, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, entre outros. Ressalta-se que não foram identificadas manifestações de apoio à MP 870/2019.
O PNAE é um dos programas sociais, que por meio da atuação do CONSEA, passou obrigatoriamente a comprar, no mínimo, 30% da agricultura familiar, incentivando e estimulando o desenvolvimento econômico e sustentável, contribuindo para a compra de alimentos frescos, como frutas, verduras e legumes. A materialidade dessa atuação do CONSEA ocorreu em torno da apresentação junto ao MEC de diversas propostas para melhorias do PNAE, efetivadas posteriormente pela Lei Federal 11.947/2009, conforme aponta matéria da Assessoria de Comunicação – ASCOM do MEC/FNDE (2007).
O presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), Chico Menezes, apresentou ao ministro da Educação, Fernando Haddad, pré-projeto de lei que prevê melhorias na alimentação escolar [...]. A proposta prevê a ampliação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para o ensino médio e os cursos de alfabetização de jovens e adultos, beneficiando cerca de oito milhões de alunos; a aquisição de alimentos diretamente na economia local, para valorizar a agricultura familiar (BRASIL, 2007).
Além dos avanços que resultaram da atuação do CONSEA no PNAE, outros não menos importantes foram observados, e são eles: a inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal, aprovação do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Plano Safra da Agricultura Familiar, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o Programa de Aquisição de Alimentos, entre outros.
Considerações Finais
O levantamento e a análise de informações sobre os antecedentes históricos do controle social no Estado brasileiro, constantes neste trabalho, revelam que esse mecanismo é recente, basicamente inexistente em outros momentos da história do Estado brasileiro, principalmente durante a ditadura militar (1964/1985), dando-se sua institucionalização com a CF 1988, após fortes mobilizações de movimentos sociais para inscrever na Carta Magna o direito à participação e controle social sobre as ações do Estado, que mesmo assim levaram anos para sua parcial regulamentação, reconhecida por pesquisadores, a exemplo de Avritzer (2009), Ribeiro (2004) e Sposati (1992), como insuficiente, instável ou não atendendo às expectativas da sociedade civil.
Percebe-se que a institucionalização do CONSEA e do CAE/PNAE, enquanto políticas e instrumentos de controle social sobre o Estado, não tem se firmado dentro dos propósitos de uma sociedade democrática. Assim, é possível afirmar que o objeto a ser “controlado” é temporário e inconstante, além de muitas vezes parcial, visto que depende do movimento real da conformação política ou correlação de forças em disputa na agenda governamental (MULLER, 2002), presentes no Congresso Nacional, que demarcam as formas de sociabilidade existentes no contexto do modo de produção, para se ter maiores ou menores avanços no controle social sobre o Estado.
Apesar da instabilidade ao longo da história do CONSEA, este possuía um papel fundamental e determinante como instrumento de controle social complementar ao realizado pelo CAE, no âmbito da segurança da alimentação escolar, uma vez que sua atuação estava relacionada principalmente à esfera de produção dos alimentos, agindo, sobretudo, no controle do uso de agrotóxicos. Dessa forma, a extinção do CONSEA impõe um duro golpe à política do PNAE, já que o CAE possui limites e ingerência sobre a produção da alimentação escolar.
Observamos que a extinção do CONSEA, fruto da MP 870/2019, está intimamente articulada à política neoliberal e neoconservadora de liberalização do uso de agrotóxicos sobre a produção de alimentos, antiga pauta de reivindicação da bancada ruralista, por meio do PL 6299/02, que tem, a cada ano eleitoral, conseguido ampliar numericamente sua representatividade no Congresso Nacional brasileiro, o que certamente resultou, em 2019, num movimento real de desequilíbrio na correlação de forças com ampla vantagem aos ruralistas, que têm conseguido demarcar espaço na agenda do Estado, e como consequência, a derrogação do CONSEA e a facilitação, por meio das agências do Estado, da liberação do registro e uso de agrotóxicos, entre estes, alguns já proibidos na União Europeia, alcançando número recorde no início de um governo que tem acenado para medidas antissociais e de desregulamentação de políticas públicas.