Introdução
Este estudo analisa documentos sobre as políticas de formação dos profissionais da educação disponibilizados no período de 2015 a 2019 no sítio eletrônico de entidades acadêmico-científicas brasileiras, representativas da sociedade civil, que atuam de forma crítica e propositiva no debate nacional das políticas educacionais. Dentre as entidades, a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) vêm exercendo relevante papel ao fortalecer as pesquisas sobre a formação de professoresa partir dos interesses da educação pública.
O posicionamento político e acadêmico das entidades diante das reformas nas políticas educacionais após o ano de 2016, mobiliza docentes e pesquisadores, entidades e instituições, por meio da organização coletiva de fóruns e espaços de discussão, a fim de fazer avançar o conhecimento no campo da formação de professores e os meios de resistência e luta pelos interesses do magistério.
Diante do momento político do Brasil5, do desmonte das instituições públicas, do desprezo à comunidade científica, da violência ao pensamento divergente e da violação aos direitos humanos, as entidades brasileiras têm se manifestado com intensa resistência, com o intuito de acautelar as políticas educacionais constituídas e rebater as proposições insurgidas fora do debate acadêmico e do interesse da sociedade. Esses tensionamentos foram amplamente discutidos pelas pesquisas no campo da formação de professores (BRZEZINSKI, 2006; DOURADO, 2015; FREITAS, 2018) por terem capilaridades transnacionais que exercem influência sobre o contexto das políticas de Estado com desdobramentos desse projeto neoliberal sobre a formação de professores.
Nesse contexto, as análises consideram a perspectiva de formação de professores assumida por Nóvoa (2017), como um processo contínuo ao longo da vida, que produz a profissão de forma coletiva, por meio de comunidades colaborativas que valorizam a experiência dos professores, seus saberes e sua produção. Dessa forma, compreendemos que a escola é um lugar prioritário no processo de produção de conhecimentos sobre a docência ede formação dos professores, tal como prevê a Resolução do CNE nº 02/2015. Entretanto, as críticas de Freitas (2018) evidenciam que o projeto político do Brasil tem priorizado o desenvolvimento econômico do capital privadoque acena para a educação institucionalizada como estratégia aos propósitos mercadológicos e como veículo de transmissão de ideologias ou visões de mundo que atingem a constituição dos currículos e objetivos da formação humana e da formação dos professores.
Pelo exposto os objetivos de estudo são: a) analisar as conjecturas que atualmente permeiam os embates acerca da formação de professores da educação básica no Brasil; b) analisar os tópicos defendidos e as proposições das entidades acadêmico-científicas no período, com foco nas políticas de formação de professores.
Tecituras metodológicas como demarcação para as operações analíticas
Como comunidades acadêmico-científicas, as entidades produzem documentos resultantes dos embates na constituição das políticas educacionais. Nesses textos, a perspectiva das entidades assume contornos diferenciados, com apontamentos ora mais objetivos, ora mais ampliados.
Neste estudo, tomamos os documentos publicados nos sítios eletrônicos das entidades entre 2015 e 2019, a partir do descritor “formação de professores” no título ou no corpo do texto. Foram selecionados 19 textos, identificados na forma de notas, cartas, boletins, manifestos, documentos finais de evento, documentos base de audiências e moções públicas que abordam a formação de professores, sendo 10 textos da Anfope, quatro da Anped, cinco assinados por várias entidades, conjunto ao qual nominamos como “Entidades Reunidas”6.
As análises consideram que a produção textual das entidades fabrica um lugar próprio de pesquisa, o campo da formação de professores, com sistemas de referências, suportes, tecnologias, fragmentos materiais e linguísticos articulados com o contexto sócio-econômico, político e cultural. As práticas produzidas nesse lugar dão contornos às múltiplas convenções instituídas no campo a partir das apropriações que os pesquisadores fazem da cultura tecnocrática hegemônica de pesquisa e do reemprego de técnicas onde se pode reconhecer os procedimentos das práticas cotidianas. O espaço das práticas revela a diversidade do campo, animado pelo conjunto das operações criativas e multiformes que nele se desdobram (CERTEAU, 2005).
Os textos mostram a articulação das entidades com a tradição da pesquisa educacional, revelando elementos constitutivos do campo da pesquisa sobre a formação de professores. Ainda que as análises sejam, ao mesmo tempo, apresentação e criação de quem analisa, Certeau (2005) fala de uma soltura do texto, na relação com quem o lê, que remete a uma significação social constituída a partir dos quadros de referência, do lugar de produção e da "subjetividade" em função dos quais organizamos nossas ações e pensamentos para esse estudo.
Os textos produzidos nos apresentam aquilo que o discurso oficial do Estado que “não fala”, permitindo “[...] dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto” (CERTEAU, 2005, p. 46). Assim, os jogos que se estabelecem nas análises do dito e do não-dito serão problematizados, observando as “leis” silenciosas que organizam os debates em seus diversos efeitos.
As categorias, tratadas nos seguintes tópicos, foram formadas na observância das temáticas mais debatidas nos textos e na importância dada pelos textos à citação de documentos oficiais como leis, decretos, medidas provisórias, resoluções e editais.
Crítica ao cenário político educacional em convergência com as políticas de formação de professores
Os debates das entidades em torno da formação de professores se dão em defesa da educação básica e do ensino superior, nos distintos movimentos de formação docente que inclui a formação inicial, a inserção profissional e iniciação à docência, a formação continuada, os cursos de especialização lato-sensu e o aprimoramento da formação acadêmica nos cursos de mestrado e doutorado, a articulação da formação ao desenvolvimento da profissionalidade docente, uma vez que a formação não pode estar apartada das demais políticas de valorização dos profissionais da educação, no reconhecimento de seus saberes e experiências.
As entidades (ANPED, 2019; ANFOPE, 2018d; ANFOPE, 2019) fizeram referência a dois marcos legais que sustentam as políticas de formação, a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 que aprova o Plano Nacional de Educação - 2014 a 2024 (PNE) (BRASIL, 2014) e a Resolução CNE/CP n. 2 de 1 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada de professores. Elas fazem oposição frontal às tentativas de inviabilizar o cumprimento do PNE, o que torna improvável a consolidação das diretrizes da Resolução CNE/CP n. 2/2015, política de formação de professores que promove sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus fundamentos históricos, políticos e sociais, na estreita relação com as condições de trabalho e carreira dos docentes.
As Entidades afirmam as suas críticas ao cenário político-educacional convergente com as políticas de formação de professoresporque inviabiliza o cumprimento do PNE, ameaça as instituições de formações de professores, com a tentativa de retirada da autonomia das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e aos sistemas educativos, acirrando a disputa entre as IES e centralizando as políticas educativas no Mec; descaracteriza o Conselho Nacional de Educação (CNE), fragilizando a participação da sociedade civil, das entidades acadêmico-científicas e dos movimentos representativos dos professores; vincula o desenvolvimento da educação às avaliações externas e em larga escala sustentando a lógica mercadológica e privatista, com amplos cortes no financiamento da educação, esvaziando o sentido público e a função social da escola, reduzindo o direito à educação à aprendizagem de habilidades e competências; culpabiliza os professores e as escolas pela má qualidade na educação.
As expressões assinaladas foram apresentadas ora com aprofundamentos teóricos, ora iniciadas a partir do olhar sobre o movimento político de 2016 que levouao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, tidas pelos textos como golpe, ao passo que as medidas do governo passaram a ser tomadas à revelia das disposições do PNE 2014- 2024, mediante atos arbitrários do governo de Michel Temer (ANFOPE, 2016a). Com relação aos apontamentos ao PNE 2014-2024, as entidades (ANPED, 2015a) questionam as ações do governo federal para o alcance das metas, face ao cenário brasileiro de dificuldades econômicas, enfrentadas com o "ajuste fiscal".
O corte do financiamento da educação está diretamente relacionado à Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que de acordo com os documentos, está na contramão das demandas sociais, sendo bancadas por movimentos políticos mais afinados com os contextos internacionais e as novas formas de exploração e colonização. Foi nessa direção que a EC instituiu o “teto de gastos públicos”, congelando os recursos federais por 20 anos. As análises revelaram que o impacto da EC 95/2016 atingiu as políticas de formação de professores, inviabilizando a execução do PNE 2014-2024 (ANFOPE, 2017a; 2018e), ao desmontar muitas das políticas de formação inicial e continuada instituídas, tais como o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) (ANFOPE, 2018b).
Em relação à formação e às condições de trabalho, a Anfope denuncia a aplicação da lógica empresarial às reformas educacionais, cujos pressupostos são danosos à carreira docente, com a instituição de avaliações e certificação para o ingresso e progressão na carreira, bem como a vinculação da formação aos conteúdos pré- estabelecidos conforme BNCC. Essa lógica revela proposições de desmonte dos cursos de formação de professores em nível superior, com a iniciativa de privatização da educação superior (ANFOPE, 2016a; 2017ª; ENTIDADE REUNIDAS, 2018a), ferindo a autonomia das universidades, assim como a centralização de ações de acreditação de cursos, a formulação de políticas de avaliação e monitoramento, forma de ampliar o controle sobre as instituições. Ademais, a ameaça à Lei do Piso Salarial Nacional aos Profissionais do Magistério (ANFOPE, 2016a) ampliando a desvalorização e a precarização da carreira.
Nesse cenário, os documentos apontaram que as políticas responsabilizam os professores pelos baixos resultados educacionais nas avaliações externas, estandardizadas a partir de indicadores internacionais, por seu caráter massificador e arbitrário à realidade das escolas brasileiras (ANFOPE, 2018e). Somou-se a isso, o repúdio à flexibilização da formação ao instituir o “notório saber” (ANFOPE, 2016c; 2017a) para o exercício da docência. Essa culpabilização dos trabalhadores e flexibilização das políticas ganharam contornos mais definidos a partir das pressões dos organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre os países da América Latina e Caribe, visando o cumprimento das metas das políticas neoliberais implantadas nas décadas de 1980/1990 e aprofundadas na mercantilização da educação organizadaem diversas vertentes políticas na atualidade (FREITAS, 2018).
As entidades denunciam a imposição contínua de políticas sem debate por parte das instituições governamentais, que têm excluído os profissionais da educação, estudantes e suas entidades representativas (ENTIDADES REUNIDAS, 2016; ANFOPE, 2016c), por instauração de processos autoritários e de perseguição aos movimentos organizados da sociedade (ENTIDADES REUNIDAS, 2016), e a formatação do CNE que exclui da participação ativa as organizações civis e acadêmicas. Essa situação tem levado à retirada de direitos sociais conquistados e, afetando, em especial os trabalhadores da educação, como ocorreu com a reforma do ensino médio, com a aprovação da BNCC e com a aprovação das diretrizes curriculares do ensino médio. As entidades defendem a reabertura do CNE para o debate de forma republicana, na expectativa de que este conselho retome o diálogo com a comunidade educacional brasileira (ENTIDADES REUNIDAS, 2017a).
Freitas (2018) aponta que o cenário político no campo educacional é um desdobramento das políticas sociais neoliberal da “nova direita” que pretende levar ao falecimento da democracia. O autor enfatiza que direitos como a educação são transformados em serviços, devendo ser entregue ao empresariado e afastada do Estado. Portanto, não cabe à escola a humanização ou transformação social, pois tem-se uma educação onde cada sujeito é responsabilizado, solitariamente, pela sua aprendizagem e pelo resultado do seu trabalho. Assim, uma escola para ter a sua qualidade aumentada deve ser inserida na lógica do mercado e organizada por ela, devendo ser regulada para isso da formação de seus profissionais, a distribuição do material didático, a base curricular, a sua temporalidade até a privatização da sua gestão (FREITAS, 2018).
No que tange às políticas para o campo da formação, recentemente se aprofunda a postura ideológica liberal e pragmática do início do século XX (FREITAS, 2018), cujo projeto teve mais adesão por parte do Estado brasileiro do que os projetos defendidos pelas entidades sociais e experiências bem sucedidas, comprovadas pelas pesquisas acadêmicas. Freitas (2018) destaca ainda, que a busca da qualidade por meio da padronização e automação das atividades, no sentido de formar cidadãos eficientes, competitivos, produtivos, rentáveis, é um desafio que a formação de professores enfrenta atualmente.
Nesse sentido, as críticas ao cenário político educacional que convergem com as políticas de formação de professores expressadas nos textos, elencaram emergentes debates que perpassaram os cortes no financiamento da educação pública e os processos de privatização que a assola. Somam-se a isso, a fragilização dos sistemas educativos, das instituições públicas formadoras de professores (pela perda de autonomia, pela não consolidação da Re. 02/2015-CNE), pela falta de diálogo com as entidades acadêmico-científicas e aquelas representativas dos movimentos dos professores e sociedade civil.
Crítica ao esvaziamento do projeto de formação inicial dos professores da educação básica
Os textos apontaram os movimentos governamentais que visam aprofundar a precarização da formação inicial dos professores. Nessa direção, a análise tomou como pontos críticos das políticas de formação a adequação da formação inicial à BNCC, a visão utilitarista e praticista que esvaziam o aspecto analítico e político, a implantação do notório saber, o ataque às Universidades públicas (seus gestores, professores, pesquisadores e estudantes), imposição de matrizes curriculares homogeneizadas, anacrônicas e retrógradas, descaracterização do PARFOR, priorização da formação em EaD em detrimento dos cursos presenciais, promovendo o aligeiramento da formação.
As manifestações das Entidades são em direção às políticas de exigências da formação inicial em nível superior para todos os professores da educação básica, nos Cursos de Pedagogia e demais licenciaturas. Diante do desmonte das políticas de formação, as análises apontaram a adoção, em todos os cursos de licenciatura, dos princípios da Base Comum Nacional (ANFOPE, 2016a, 2016c, 2018b, 2018c; ENTIDADES REUNIDAS, 2017b), a sólida formação, preferencialmente presencial e o fortalecimento dos programas de formação à distância para os professores que não tem acesso ao ensino presencial, como no caso da Região Norte (ANFOPE, 2018b), além de reivindicarem o fortalecimento das instituições públicas (ANFOPE, 2016b).
Outra premissa observada é o fortalecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Pedagogia (ANFOPE, 2016a; ENTIDADES REUNIDAS, 2016), bem como a do Decreto Nº 8.752/2016 (BRASIL, 2016), que dispõe sobre a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica. Nessa direção, reivindicam a continuidade do PARFOR, sem descaracterizações do programa, com autonomia, respeito às propostas curriculares exitosas e sem submissão a BNCC (ANFOPE, 2018b), ao passo que pedem a revogação da Portaria Nº 46/2016, que modifica as finalidades e objetivos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), desvirtuando sua proposta formativa original.
Ainda cabe destacar o protesto em favor da instituição de políticas de Estado que fortaleçam a relação entre a formação inicial, a formação continuada e a valorização dos profissionais da educação (ANFOPE, 2016b). Nessa direção, a formação de professores articula-se ao trabalho docente, em programas de formação cujo objetivo é desenvolver a profissionalidade docente e as escolas (NÓVOA, 2017). Essa perspectiva se distancia do paradigma processo-produto dos projetos burocrático-centralistas focados na regulação-avaliação (FREITAS, 2018) dos campos de atuação docente.
Crítica à desqualificação da profissão e dos processos de formação continuada de professores
Os textos das entidades evocam propostas de formação continuada com os saberes dos professores, sendo o espaço da escola constituído pela coletividade e vivido pelos trabalhadores, permeado de existencialidades como processos formativos, por isso defendem que a formação deve ser constituída promovendo maior autonomia e maior emancipação dos sujeitos. Aponta-se para políticas de formação continuada que se constroem dentro da profissão dos professores com propostas teóricas e projetos políticos em consonância com o trabalho docente (NÓVOA, 2017).
As entidades entendem que as Diretrizes Curriculares Nacionais de Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério incentivam a formação continuada contra os processos de desprofissionalização docente (ANFOPE, 2016c; ENTIDADES REUNIDAS, 2016, 2017b) e defendem a escola como espaço-tempo de interlocução entre diferentes atores, em busca da compreensão do fenômeno educacional, assim como o fortalecimento de grupos de pesquisa que integram pesquisadores dos programas de pós-graduação e professores da educação básica (ANPED, 2017).
Destaca-se a defesa da expansão da oferta de pós-graduação gratuita nos cursos lato sensu, mestrados e doutorados para professores da educação básica, como preconiza o PNE 2014-2024, porém as entidades reivindicam condições de estudo com a ampliação da oferta de bolsas de estudo para pós-graduação e de insumos para a aquisição de livros e financiamento para a participação dos professores em eventos científicos da área, a exemplo da Portaria n. 06/2018 e 07/2018, elaboradas em conjunto pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) Capes e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq) de 2010, ao normatizar que os bolsistas de cursos de pós-graduação poderão exercer atividade remunerada, especialmente quando se tratar de docência como professores nos ensinos de quaisquer etapas e níveis.
Nessa direção, o apoio à Resolução CNE n° 02/2015 (ENTIDADES REUNIDAS, 2017b) é uma forma de resistência ao desmonte da formação que se delineia na proposta de Base Nacional para a Formação de Professores (ANFOPE, 2016a; 2018b; 2018c; 2019), integrante da Política Nacional de Formação de Professores, lançada pelo Ministério de Educação (MEC) em 2017, de forma impositiva, sem novidades que pudessem beneficiar a formação dos professores e a articulação entre a formação inicial, formação continuada e condições de trabalho, salário e carreira dos profissionais da educação (ANFOPE; 2018e). Essa política governamental, baseada na formação por competências, enseja a redefinição da Resolução CNE nº 02/2015 para a adaptação da formação de professores à implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) na educação básica.
A crítica à desqualificação da profissão e dos processos de formação continuada de professores pelas entidades governamentais se fazem porque as Entidades entendem que existe a intenção do governo em esvaziar a formação continuada de professores, destruindo políticas consolidadas, como o PIBID e a implantação da Residência pedagógica, bem como promover o retrocesso em políticas conquistadas pela sociedade como a Res. 02/2015 que preconizam as Diretrizes de formação de professores.
Crítica à implementação da BNCC e à vinculação da formação de professores às avaliações externas e em larga escala
A produção desta categoria emergiu do discurso das entidades pela resistência em não reduzir a formação de professores à implementação da BNCC. As entidades se manifestam contrárias à centralização das decisões referentes ao processo de construção curricular no Ministério da Educação, ao descaso das políticas por ele emanadas em relação ao conhecimento produzido por escolas e universidades em torno da construção curricular, ao desrespeito à autonomia das instituições educacionais. Também rechaçam a priorização dos interesses mercadológicos do setor privado, em detrimento das necessidades das escolas públicas, a ênfase na produção de índices de desempenho, por meio da avaliação em larga escala, a padronização e homogeneização curricular, com base em uma concepção esvaziada e reduzida de currículo, alinhado à formação de habilidades e competências (ANFOPE, 2016a; 2018b; 2018c; 2019), (ANPED, 2018; 2019).
De acordo com os textos, os problemas trazidos pela BNCC e pela vinculação da formação de professores às avaliações externas e em larga escala são: esvaziamento do currículo e aumento do controle estatal nos processos educativos, diminuindo o sentido público das escolas e consolidando o apartheid social dos mais pobres; desconsideração das realidades da escola e sua função social, ameaçando a sua autonomia e a dos sistemas de ensino; consolidação da formação no ensino médio para mão-de-obra para o mercado de trabalho; ruptura com a Resolução 02/2015-CNE; não reconhecimento das entidades educacionais; tendência à estimulação de produção de materiais de formação à revelia dos professores e fragilização a autonomia docente.
É importante evidenciar que as investidas no sentido da padronização do ensino e homogeneização curricular vêm se dando a partir da década de 1990, por meio do falso discurso de democratização do ensino. Freitas (2018) destaca que nesse período as avaliações em larga escala assumiram o papel de controle da educação e que a formação dos professores vem sendo ajustada como estratégia para a implementação do currículo básico, em busca de índices de desempenho para atender aos critérios internacionais do mercado, expresso nas matrizes de referências dos exames nacionais.
A BNCC é a expressão da necessidade do gerencialismo aplicado à educação sustentado no discurso de eficiência e controle fazendo parte do aparato para a mercadorização da educação no conjunto da reforma empresarial da educação. Freitas (2018), enfatiza que é importante vincular a BNCC às avaliações censitárias, pois, juntas ampliam o controle das agências de formação de professores, abre fortemente as escolas para consultorias e assessorias e intensifica o mercado de materiais didáticos e a formação por plataformas interativas.
Os textos enfatizam, portanto, que a BNCC é mais um instrumento para a consolidação de um projeto global de educação, em que os países emergentes que ensejam participar da agenda econômica global precisam estruturar seus sistemas educacionais segundo as regulamentações internacionais (ENTIDADES REUNIDAS, 2017a; 2018a). Os instrumentos neoliberais, dentre eles a formação de professores na esteira da BNCC, faz parte de um projeto mundial, que visa reduzir a participação do Estado na garantia do direito público à educação e ampliar os movimentos privatistas da educação.
Crítica às políticas que estabelecem os Programas de Residência Pedagógica (PRP) e o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid)
Um manifesto da Anped (2018) expressa posição contrária ao que preconizam os editais Capes nº 6/2018 e nº 7/2018, os quais estabelecem, respectivamente, chamadas públicas para apresentação de propostas ao PRP e ao Pibid, ao passo que busca reafirmar a Resolução do CNE/CP 02/2015 como o documento balizador das políticas de formação docente.
Tais editais desconsideram o processo democrático de debates e a redefinição dos cursos de licenciatura, conquistada com a Resolução do CNE/CP 02/2015, e fragilizam outros pontos importantes das políticas educacionais: ferema autonomia e a isonomia universitária; desconstroem projetos comprometidos com a docência como atividade criadora e movimento profissionalizante; reafirmam matrizes homogeneizadoras para a formação; atacam as universidades públicas; impõem uma visão tecnicista à formação ao separar teoria e prática.O PRP é orientadado pelos princípios da BNCC.
Segundo a análise neste manifesto (ANPED, 2018), o Edital Capes nº 06/2018 faz o estágio supervisionado regredir ao seu sentido mais conservador, retomando a velha fórmula linear, baseada em fases consecutivas que incluem observação, participação e regência de classe. A metodologia do programa, caracterizada por reduzir as ações à distribuição, em horas, das atividades previamente definidas, conduz a uma inserção pontual do estudante na prática escolar e consolida uma relação hierárquica e excludente ao reduzir o exercício democrático e solidário na formação dos futuros professores. Ademais, o Edital CAPES nº 06/2018 reforça a cisão entre “teoria e prática” e “universidade e escola” como unidades concorrentes. Esse modelo reduz as possibilidades de práticas inventivas de formação que possam melhor atender às demandas dos diferentes contextos e desconsidera as experiências já produzidas em escolas e universidades brasileiras7.
De acordo com o manifesto das Entidades Reunidas (2018a), a subordinação da formação de professores à BNCC impõe perda da qualidade da formação docente nas IES, por meio de estratégias já identificadas: ampliação do escopo de controle sobre os professores pelo MEC, manipulação do currículo para articular ações institucionais das IES, transferência do controle das ações de formação docente das IES para o MEC/Capes, substituição das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de licenciatura por um programa de distribuição de bolsas.as IES, tentativa do MEC/Capes de legitimar o discurso de que os cursos de licenciatura das IES são “muito teóricos”, oferecendo a aplicação prática da BNCC como solução para esse problema.
Ademais, a concepção praticista é notada no programa, pela ênfase dada à elaboração e aplicação de materiais didáticos, planos de aula, avaliações e outras ações pedagógicas, de forma dissociada de movimentos reflexivos que ampliem a consciência sobre a própria prática. Nesse sentido, o programa dispensa os alicerces sócio-históricos na formação dos professores, que contextualizam os processos formativos e fortalecem as concepções críticas e emancipatórias sobre o trabalho docente.
Os estudos de Nóvoa (2017) desde a década de 1990 apontam para uma perspectiva colaborativa entre universidade e escola, ao referenciar a residência pedagógica como uma opção viável na formação de professores. Contudo, a lógica empresarial sobre a formação de professores se apropria da invenção do campo para produzir inovações geradoras de novos produtos e negócios lucrativos para fora do campo. Podemos dizer que corrobora com essa última perspectiva, o modo como o PRP8 foi capturado pelo modus operandi do governo de Michel Temer, que se abre à iniciativa privada, à terceirização e à exploração do trabalho, desconsiderando a forma como a imersão vem sendo investigada, experimentada e defendida pelas entidades científicas, pelas instituições formadoras e por entidades político-organizativos da área, assim como ocorre com o Pibid e ocorreu com a extinção do Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio (Pnem).
A partir dos referidos editais, o manifesto da Anped (2018) questiona o desinvestimento nos programas de formação de professores, quando os normativos determinam o rateio das bolsasentre os dois programas, antes destinadas exclusivamente ao Pibid. Ainda que a oferta de bolsas seja uma estratégia que possa estimular a escolha pela carreira docente e contribuir para a permanência dos estudantes no ensino superior, a prática da barganha expõe a ausência de diálogo e a forma impositiva de orquestrar as reformas educacionais.Da institucionalização do PRP, por meio da Portaria Nº 38/2018 à operacionalização, por meio do Edital Capes nº 6/2018, universidades, professores e a sociedade enfrentam a ameaça de entrega desta formação ao setor privado, uma vez que as retificações dos editais possibilitam inclusão dos estabelecimentos de ensino superior privados no rateio das bolsas (ANPED, 2018).
O silenciamento do debate sobre a cultura profissional evidencia que os professores são considerados meros implementadores de programas de governo.Assim, temos nos defrontado com políticas de desprofissionalização, de ataque às instituições universitárias de formação docente e de privatização da educação, desde o início do século XXI (NÓVOA, 2017), o que tem marcado o retorno de práticas de formação voltadas ao domínio de técnicas para a implementação de reformas baseadas no gerencialismo, como ocorre com a reforma curricular proposta pela BNCC, a partir dos referenciais dos testes de larga escala.
Considerações finais
A análise das conjecturas que atualmente permeiam os embates da formação de professores da educação básica no Brasil a partir das manifestações das Entidades entre os anos de 2015 e 2019 indicam que as diretrizes emanadas das políticas de formação atuam em favor da adesão do Brasil às políticas internacionais, beneficiando as grandes corporações e instituições educacionais alinhadas aos interesses mercadológicos e privatistas. O debate converge em denunciar que, na esteira da atual crise política, as políticas de formação de professores são estratégia de materialização desse projeto educacional, esvaziando o sentido público e a função social da escola.
Em defesa da educação básica e do ensino superior destacamos sua articulação ao desenvolvimento da profissionalidade docente, em que a valorização dos profissionais da educação e a legitimação dos espaços e tempos da formação e do trabalho docente fundamentam a política de formação proposta pelas entidades que, em síntese, promove sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus fundamentos históricos, políticos e sociais, na estreita relação com as condições de trabalho e carreira dos docentes.
Os mais relevantes pontos tomados pelas entidades acadêmico-científicas brasileiras estão em manter a legislação e os programas de formação que lograram êxito e buscar a ampliação do PRP e do Pibid. As entidades defendem a consecução das metas prevista no PNE 2014-2024 e a manutenção da Resolução do CNE Nº 2/2015 como instrumento normatizador da política nacional de formação dos profissionais da educação e continuidade e dos substratos que fomentam as políticas de formação, tais como a ampliação do fomento à pesquisa, o financiamento de bolsas de estudo, a melhoria das condições de trabalho e valorização docente.
A análise dos textos permitiu observar a manifestação das entidades acadêmico- científicas contra a centralização das políticas de formação no Mec e a redução da autonomia de escolas e universidades. As entidades evidenciam que o contexto é de esfacelamento das políticas de formação de professores construídas de forma democrática e, portanto, adverso aos interesses e lutas do magistério.As entidades manifestam-se em favor de que os processos de produção de políticas sejam democráticos e resultados de ampla participação de representantes dos setores interessados.