Introdução
A judicialização da educação é o fenômeno em que há o crescente “envolvimento das instituições do sistema de justiça em decisões sobre políticas educacionais, cuja definição e implementação são atribuições primárias dos legisladores, políticos e gestores públicos” (SILVEIRA et al, 2020, p. 721). Exigir a inclusão de beneficiários em políticas já existentes é uma das demandas em litígio por educação, sendo que requerer a matrícula de crianças nos sistemas públicos de ensino é justamente o que provoca menos controvérsias judiciais, ainda que o mesmo não se possa dizer em relação aos efeitos na administração (XIMENES et al, 2019). Em pesquisa sobre quase 20 anos de atuação do Tribunal de Justiça de São Paulo em matérias da educação, Silveira (2011) encontrou que 36% do total de decisões era referente ao acesso à educação infantil e apontou que os pedidos aconteciam de forma contínua, diferente dos litígios sobre outros temas, que eram pontuais. Como revela a autora (SILVEIRA, 2011), até a consolidação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) favorável à exigibilidade judicial de vagas de educação infantil, cujos leading cases4 tiveram origem em Santo André (SP), as decisões eram conflitantes, algumas concedendo o direito pleiteado, outras reconhecendo a razão dos Municípios.
No período em que esse entendimento começa a se firmar, Santo André “detém o recorde absoluto de recursos ao STF” (SILVEIRA, 2010, p. 112), nos quais o Município já alegava que as decisões provocavam a superlotação dos estabelecimentos de educação infantil, problema que se tornará crônico nos anos seguintes. Este problema decorre tanto da carência objetiva de vagas para o atendimento de toda a demanda como do modelo de judicialização disseminado, que privilegia demandas individuais e repetitivas. Em contraponto, o litígio coletivo é a estratégia defendida por ativistas e pesquisadores pela maior capacidade de promover a ampliação do atendimento, por prevenir distorções causadas pelo acesso desigual à justiça e por ser o meio processual que possibilitaria, ao menos em tese, uma discussão mais ampla sobre as políticas públicas. Diante disso é que se propõe uma alteração da forma de tratamento e análise da política de educação infantil no Judiciário, direcionando-se a atenção não só ao atendimento individual e imediato mas à necessidade de exigir planejamento e financiamento constantes e suficientes para o exercício do direito social (RIZZI, XIMENES, 2014; XIMENES, GRINKRAUT, 2014; GOTTI, XIMENES, 2018).
A oferta de serviços públicos, como a educação, depende de capacidades estatais como a organização do serviço, a contratação e a formação de educadores e demais trabalhadores, a infraestrutura e também o financiamento. Mais do que oferecer creches e escolas, é necessário oferecer ambientes seguros e acolhedores, além de profissionais bem preparados, com boas condições de trabalho e que possam fornecer às crianças os estímulos necessários para proporcionar seu desenvolvimento integral. Essa tarefa é repleta de desafios aos municípios tanto no atendimento quanto na qualidade, exigindo respostas complexas (GESQUI, FERNANDES, 2021), que por vezes escapam ao limitado escrutínio realizado no Judiciário quando está em questão um pedido de matrícula judicial mediante liminar.
Quinze anos após firmada a jurisprudência do STF, que levou à uniformização dos entendimentos nas instâncias inferiores, nos interessa saber quais foram as trajetórias da judicialização e do atendimento à educação infantil no município que se firmou como um ícone nessa trajetória. Reconhecendo assim o valor e a importância de realizar estudos de casos instrumentais (STAKE, 1995), sem por outro lado deixar de reconhecer os limites de tal abordagem para a extração de conclusões generalizáveis, voltamos ao município de Santo André - SP.
O município em questão está localizado na região do Grande ABC, na zona metropolitana de São Paulo, com população estimada em 693.867 habitantes (SEADE, 2020). Em 2019, a rede pública atendia 20.626 crianças em creches municipais (17.400) e conveniadas (3.226) e as creches privadas atendiam outros 11.047 alunos (INEP, 2019). Identificamos que, até 2017, último ano antes de uma alteração no padrão de atuação das instituições envolvidas, o município de Santo André parecia vivenciar a repetição da mesma forma de judicialização individual consolidada mais de uma década e meia antes, impulsionada na decisão do STF. Considerando a prevalência desse modelo de judicialização individual, decidimos focar a análise no período de 2006 a 2018.
Entendemos que o conhecimento sobre a trajetória da política educacional e os efeitos da judicialização deste caso específico pode lançar luz sobre outros casos semelhantes, em municípios nos quais o Ministério Público não desenvolveu atuação voltada às demandas coletivas e em que os juízes de primeira instância e os tribunais de justiça reconhecem a jurisprudência do direito individual à educação, mas rejeitam proposições coletivas, como até recentemente era o caso de Santo André.
Efeitos da judicialização
Este estudo se insere na discussão sobre a judicialização do acesso à educação infantil, extensamente desenvolvida nos últimos anos, especialmente com foco em casos de atuação coletiva (FELDMAN, 2017; TAPOROSKY, 2017; FELDMAN; SILVEIRA, 2019; SILVEIRA et al, 2020) e a partir do caso paradigmático desenvolvido no município de São Paulo (GRACIANO et al, 2006; RIZZI, XIMENES, 2010; GOTTI, XIMENES, 2018; XIMENES et al, 2019). As investigações sobre a atuação do Ministério Público, em especial a atuação extrajudicial (RODRIGUES, 2020) e o papel desse órgão no impulso à judicialização, ampliaram-se nos últimos anos.
Silveira et al (2020), nesse debate, desenvolveram um quadro teórico-metodológico para identificar efeitos diretos e indiretos da judicialização da educação infantil em casos de ações coletivas, compreendendo quatro dimensões de efeitos: política educacional, legislação, administração pública e sistema de justiça. No estudo, o quadro é aplicado à análise de um conjunto de casos de municípios com ações coletivas e Termos de Ajuste de Conduta (TAC) firmados com o MP. Nossa pesquisa vem se incorporar a essa nova perspectiva, que se dedica à análise dos efeitos da judicialização em políticas públicas de educação em diferentes municípios e contextos (SILVEIRA et al, 2020).
Silveira et al (2020) diferenciam os efeitos entre diretos e indiretos, incorporando assim a abordagem proposta por Gauri e Brinks (2008). Para os autores, os efeitos diretos são aqueles que derivam da decisão judicial, enquanto os efeitos indiretos são aqueles que se relacionam de alguma forma com a decisão, mas que eram imprevisíveis a princípio. Do ponto de vista metodológico, a observação dos efeitos diretos se dá na consideração sobre o cumprimento ou não das decisões judiciais e sobre que tipo de alteração a decisão provoca na política em questão; já a apreensão dos efeitos indiretos requer a incorporação de diferentes fontes na análise, privilegiando-se aspectos como a estratégia de atuação dos atores e as respostas que decisões judiciais provocam nos demais poderes (Legislativo e Executivo).
Sob esse enfoque, se olhamos uma medida liminar individual, o único efeito direto que ela produz é a matrícula da criança determinada na própria decisão. Por si só, sequer estaríamos diante de um caso de judicialização da política pública municipal, já que esta sequer teria sido objeto do pedido e da decisão. Para se compreender o fenômeno e não só o fato isolado é que se faz necessário considerar, portanto, não só o efeito direto de uma liminar judicial, mas sim efeitos diretos e indiretos que derivam de decisões liminares repetitivas em seu conjunto. Sob esta ótica, os efeitos se espraiam nos mais diferentes campos: na administração, no Poder Legislativo, no próprio sistema de justiça, etc.
Para apurar tais efeitos, conforme o referencial adotado, realizamos estudo quantitativo da dinâmica de matrícula, com dados da Secretaria Municipal de Educação e da Defensoria Pública; fizemos levantamento e a análise de documentos como o Plano Municipal de Educação e os relatórios de monitoramento da política, analisamos a produção legislativa sobre a temática no período e realizamos entrevistas com o promotor de justiça e o defensor público encarregados, bem como com um representante sindical. Também foi relevante, na compreensão das estratégias mais recentes, a observação da Audiência Pública sobre o tema, convocada pela Defensoria e realizada em 24 de março de 2018.
A judicialização da política pública de educação infantil no município
Até 2017, a judicialização da educação em Santo André foi caracterizada pelo fluxo de demandas judiciais individuais, que em geral obtinham a concessão de liminares determinando a matrícula de forma imediata àqueles que pleiteassem o direito na Justiça, tanto por advogados particulares quanto pela Defensoria Pública. Esse padrão de litígio, em geral com destacada quantidade de demandas, é o perfil mais comum nessa área de política pública. O tipo de determinação judicial obtido pelos demandantes em Santo André, contudo, difere da encontrada em São Paulo em um ponto central: como demonstram Gotti e Ximenes (2018), na capital paulista, a criança com decisão judicial ganhava preferência no atendimento e iria para as primeiras posições da lista de espera pública para aguardar o surgimento de uma vaga - como uma espécie de “fura fila”; enquanto isso, em Santo André observou-se a determinação de matrícula imediata.
Em Santo André, a liminar para matrícula imediata por vezes era direcionada a uma unidade específica e não dependia da existência de vagas, fazendo com que o município realizasse o atendimento para além da capacidade planejada. Esse modelo representa influência direta na implementação de políticas públicas, uma vez que força o município a ampliar seu atendimento, ainda que sem planejamento e sem previsão orçamentária para isso. Há, portanto, um efeito direto decorrente da forma de judicialização vivenciada pelo município, em que há a determinação de matrícula imediata e o cumprimento da decisão pela administração.
Entre 2006 e 2017 o crescimento no número de decisões liminares foi significativo. O município partiu do total de 106 matrículas por liminares ativas5 em 2006 para 2.155 em 2017. Como podemos observar no gráfico abaixo, foi na etapa creche (crianças de 0 a 3 anos) que a judicialização atingiu grandes proporções, ainda que o fenômeno também tenha se registrado em relação à pré-escola:
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Os anos de maior crescimento absoluto são 20126, com 488 liminares ativas a mais do que no ano anterior, e 2017, em que houve o crescimento de mais 484 liminares. Até 2009, há um relativamente baixo e próximo número de liminares concedidas para as etapas de pré-escolas e creches, mas, a partir de 2010 há um claro deslocamento, com o crescimento praticamente contínuo de demandas por creche enquanto os casos de pré-escola se mantém relativamente estáveis até 2013, quando começam a diminuir.
Como veremos, o efeito dessa dinâmica e da ampliação insuficiente das vagas públicas no município provocaram uma série de distorções no atendimento, na ocupação das unidades, com improvisos, e redução da jornada escolar. Considerando que, conforme o referencial teórico e analítico acima descrito, a judicialização individual em grandes proporções têm implicações coletivas, apresentamos a seguir os efeitos identificados em cada categoria proposta por Silveira et al (2020): política educacional, sistema de justiça, administração pública e legislação.
Efeitos na Política Educacional
Entre 2006 e 2017, as creches municipais passaram de 21 unidades para 35, com expansões quase ano a ano e consequente ampliação da capacidade de atendimento. A rede de escolas, por sua vez, foi ampliada de 44 para 51 unidades, apresentando esse salto em 2010, quando houve a municipalização de escolas estaduais. Uma vez que a priorização da construção de creches depende de uma escolha da administração, mas esta foi constantemente pressionada pelo reconhecimento jurídico do direito à educação infantil, principalmente após as decisões do STF de 2005 e 2006 contra o Município, consideramos a ampliação de creches e pré-escolas um efeito indireto da judicialização, ainda que não exclusivo.
Outro efeito indireto foi a alteração da composição e uma crescente especialização das unidades de educação infantil, que no município são denominadas “creches municipais”, com atendimento segmentado em 1º e 2º ciclos da educação infantil, correspondentes às etapas creche e pré-escola. Note que ocorreu uma ampliação significativa da capacidade de atendimento das creches municipais, mas que essa ampliação se deu principalmente para acolher a etapa creche, que passou de 2.394 para 7.530 vagas, quase triplicando durante o período analisado. Vejamos:
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Já em relação à etapa pré-escola acolhida nas creches municipais ocorreu uma redução: se antes essas unidades ofereciam 2.183 vagas para pré-escola, passaram a oferecer apenas 784 vagas para essa faixa etária em 2017. Há, portanto, um efeito de especialização das unidades e de escolarização da etapa de pré-escola que decorre da pressão judicializada por ampliação de acesso. Em 2017, mais de 90% das matrículas em pré-escola estão em Escolas Municipais de Educação Infantil e de Ensino Fundamental (EMEIEF) e o atendimento em unidades especializadas é remanescente:
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Ainda em relação à pré-escola, identificamos, como efeito indireto, a diminuição e, por fim, a extinção da política de ensino integral na rede municipal a partir de 2016, deixando as famílias da rede municipal desatendidas em relação ao período integral na faixa etária de 4 e 5 anos. A prefeitura ampliou discretamente o convênio com creches assistenciais que oferecem o período integral, ação insuficiente para atender toda a demanda.
A partir de 2014, quando aumentam substancialmente as matrículas por liminares, identificamos uma tendência perversa: como forma de atendimento, parte das crianças do último ano da etapa creche (a partir de 2 anos e 6 meses de idade) começam a ser atendidas em escolas (EMEIEF), movimento que continua se ampliando até o final de 2017. Esse deslocamento de uma fração das matrículas de creche para instituições escolares não planejadas para este atendimento revela uma tentativa da administração de improvisar a ampliação de sua capacidade como forma de conter a demanda por acesso. É, portanto, mais uma distorção provocada pela judicialização massiva, aliada à incapacidade de resposta proporcional do Município.
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Vale reiterar que os dados de ampliação da capacidade de atendimento e de construção de novas creches não indicaram inércia na administração, no entanto, a proporção de liminares concedidas cresceu de forma superior à ampliação planejada. Em relação ao atendimento, essa expansão culminou, em 2017, em nada menos que 28% das matrículas derivadas de decisões judiciais. Em outras palavras, não é exagero dizer que está em curso a alteração na porta de entrada do sistema público de ensino andreense, da secretaria de educação (Executivo) para o fórum municipal (Judiciário). Vejamos essa evolução:
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Para esclarecer a extensão dos efeitos da judicialização sobre a política educacional, consideramos ser pertinente aprofundar o olhar até o nível microinstitucional. Dessa forma, analisamos os dados de matrículas e de liminares em todas as faixas etárias de cada uma das 35 creches municipais. Os dados mostraram que mesmo unidades escolares do mesmo município vivenciam efeitos diretos e indiretos muito diferentes em função da judicialização. A faixa etária com resultados mais significativos é o berçário (6 meses a 1 ano e 6 meses de idade).
Analisando a participação de matrículas por liminares sobre o atendimento total com recorte berçário, descobrimos que, em 2017, a principal forma de acesso em 11 creches foi o Judiciário, com mais de 50% das matrículas sendo determinadas por liminares. Em outras 12 creches, as liminares representaram entre 25% e 50% das matrículas realizadas em berçários. Esses dados corroboram a percepção das diretoras escolares do município, registrada por Vieira (2020), sobre o que seria uma “cultura de liminar”, segundo a qual em algumas unidades as famílias priorizam pleitear a vaga no juízo sem sequer aguardar resposta da administração pública.
Relacionado a esse aspecto, os dados gerais obtidos sobre a capacidade instalada dos berçários e o atendimento efetivamente realizado mostram que há superlotação: são 1.716 vagas disponíveis para 1.927 matrículas realizadas, o que configura um excedente de 12,3%. Considerando os berçários das 35 creches da rede, 25 delas apresentam algum nível de atendimento excedente. Em duas unidades, esse excedente chega a 80% - o que equivale a dizer que uma sala recebe quase o dobro de bebês do que comporta fisicamente e, da mesma maneira, os profissionais responsáveis atendem quase o dobro do que deveriam. Esse dado é alarmante, especialmente considerando que a situação atinge crianças de até 1 ano e 6 meses de idade, que demandam cuidados como troca de fraldas, banho, mamadeira e/ou alimentação assistida.
Essa situação é resultado, em grande medida, da intensa judicialização por vagas. Nos berçários de 16 creches as matrículas por liminares representaram mais de 50% da capacidade, sendo que em 5 unidades essa incidência é 75% a 100% e em 3 a superlotação é inteiramente resultado de liminares, já que estas superam o número de vagas, uma incidência acima de 100%, portanto. Uma delas atinge o pico de 119% em 2017. Em outras palavras, nestas três creches, mesmo que a prefeitura matriculasse nos berçários somente as crianças determinadas por liminares, já haveria superlotação. Uma vez que a superlotação não depende de qualquer outra ação ou decisão além das matrículas, a consideramos como efeito direto da judicialização.
Efeitos na Legislação
Na produção legislativa, entre 2006 e 2017, houve uma lei para promoção da transparência em listas de espera (Lei nº 9.988/2017). Encontramos também a criação de um mecanismo de parceria com empresas privadas, segundo a proposta, para melhorias em creche (Lei nº 9.990/2017). Consideramos essa produção legislativa como efeito indireto do reconhecimento da exigibilidade judicial do direito à educação infantil, ocorrido após 2005.
No Plano Municipal de Educação (PME) de 2015-2025, sancionado pela Lei nº 9.723/2015, a primeira meta é a expansão da educação infantil, mantendo princípios de qualidade e progressividade. Nessa meta estão incluídas a universalização do atendimento da pré-escola, a ampliação do atendimento em creche, com a determinação de inauguração de novas unidades a cada dois anos e de maior participação da rede estadual no ensino fundamental, em compensação. Essas legislações específicas, bem como a definição de obrigações de ampliação no PME, podem ser também considerados efeitos indiretos na judicialização da educação infantil historicamente ocorrida em Santo André.
Efeitos sobre a Administração Pública
Como efeito sobre a administração identificamos a consideração sobre as liminares no planejamento. A Secretaria Municipal de Educação registrou, no 2º relatório de monitoramento do PME, que no início do ano as creches iniciam o atendimento respeitando a proporção aluno/professor adequada, tal qual proposta nos Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, mas ao longo do ano recebem determinações liminares, em quantidade imprevisível, o que pode alterar a proporção realizada (SANTO ANDRÉ, 2018).
Uma característica da judicialização em demandas individuais repetitivas é a sazonalidade das liminares concedidas. No início de cada ano existem menos liminares ativas, mas os números absolutos crescem mês a mês conforme novas decisões judiciais chegam ao longo do ano e as crianças são incluídas. O Município, portanto, alega que não teria como gerenciar o problema ao ponto de impedir a superlotação, a perda de capacidade de gestão sobre as unidades e a consequente deterioração de seu funcionamento é relatado como um efeito indireto sobre a administração. O gráfico abaixo demonstra essa dinâmica de sazonalidade, que se consolida nos últimos anos também com a ampliação do número de ações judiciais com liminares:
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados obtidos com amparo na Lei de Acesso à Informação (SME, 2018)
Uma vez que a proporção criança/educador é considerada um parâmetro mandatório para toda a rede de ensino municipal, e que essa dimensão é parte essencial do conteúdo jurídico do princípio da garantia do padrão de qualidade do ensino (XIMENES, 2014), e que as liminares afetam diretamente nesse aspecto, concluímos que existe uma piora no padrão de qualidade nas creches em que essa situação ocorre, um efeito direto do conteúdo das liminares judiciais que determinam matrícula imediata.
Em 2017, foi realizada a alteração dos critérios de classificação em lista de espera, em que o critério principal deixou de ser por vulnerabilidade social da família7, identificados através da participação em programas sociais como o Bolsa Família, e passou a ser de acordo com a situação trabalhista da mãe, favorecendo aquelas que estavam empregadas no momento da inscrição, contrariando estratégia do PME. Uma vez que os critérios de acesso são uma forma de gestão da entrada do acesso à educação infantil, este efeito foi considerado indireto em nossa classificação.
A Secretaria de Educação indicou que outro efeito direto na administração pública é o alto custo dos processos judiciais, devido ao grande volume de liminares que correm na justiça todos os meses, o que exige o deslocamento de servidores tanto da educação quanto da procuradoria municipal para acompanhamento.
Efeitos sobre o Sistema de Justiça
Tanto o defensor quanto o promotor público indicaram que a dinâmica de judicialização individual promovia uma alta demanda de trabalho em seus órgãos, sem que isso provocasse resultados realmente transformadores na política pública. Durante audiência pública ocorrida em março de 2018, a primeira realizada para discutir os desafios do acesso à educação infantil e a situação das vagas em creche por iniciativa desses órgãos, referiram-se aos processos judiciais em curso como “enxugar gelo”, demonstrando o entendimento de que as ações individuais não resolviam o problema coletivo.
Em 2018, iniciou-se a articulação entre Judiciário, Ministério Público (MP) e Defensoria Pública (DP) para buscar uma solução que fosse mais adequada à realidade do município. Desta articulação, houve uma primeira tentativa de um acordo para evitar a via judicial, que não teve sucesso. Por fim, foi firmado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre MP, DP e Prefeitura, que prevê a construção de creches, a realização de estudos sobre demanda por vaga, melhorias no sistema de inscrições e relatórios periódicos de acompanhamento. Trata-se, portanto, de um efeito indireto das ações individuais, tanto na administração como no sistema de justiça. O TAC é declaradamente resultado do processo de judicialização individual, devido ao reconhecimento, por parte dos atores envolvidos, do completo esgotamento do modelo de tutela individual e dos efeitos anteriormente analisados.
A partir de nossa pesquisa, identificamos que a DP foi ator essencial no ciclo mais recente de judicialização. Entre março de 2015 e março de 2018, quando o órgão passou a sistematizar os dados de sua atuação, a DP entrou com 3.198 pedidos de liminares em creches municipais, todos concedidos, segundo o órgão.8 Além de demonstrar a forte atuação da instituição, esse dado parece indicar que o acesso às vagas públicas via liminares beneficiou majoritariamente as famílias com menor poder aquisitivo, uma vez que a condição para que sejam representadas pela Defensoria é que possuam renda familiar de até 3 salários mínimos.
Como forma de ampliar o acesso à justiça, a Defensoria também realizou intenso trabalho de informação à população através da distribuição de folhetos informativos sobre o direito à educação infantil e os procedimentos para a garantia de vaga, o que também acabou por produzir maior procura. Chamou nossa atenção o fato da DP não atuar unicamente na via tradicional de viabilizar o acesso a ações judiciais, mas organizar uma ação de mobilização e de cobrança direta ao Executivo. Responsável por convocar a audiência pública de 2018, a DP encaminhou carta-convite a cerca de 2.500 famílias que buscaram vagas nos anos anteriores.
Portanto, podemos concluir que a atuação da Defensoria foi essencial também na mudança de padrão decisório ocorrida em 2018, com a efetivação do TAC, no qual, além de participar das negociações, também se comprometeu a colaborar com o processo de reorganização do município, buscando a resolução do conflito por vaga primordialmente pela via administrativa. A partir de 2019, as crianças que buscassem vagas via DP eram reportadas ao Executivo por meio de ofício, que tem 60 dias para responder a cada pedido, abrindo-se assim uma possibilidade de composição administrativa antes da judicialização.
Nesse sentido, o resultado do estudo corrobora em dimensão empírica a proposição de Cajuella (2016) sobre o órgão no município de São Paulo, quanto à inicial dificuldade da DP em apropriar-se de mecanismos coletivos. Apesar dessa dificuldade, identificamos que em Santo André houve uma adaptação e ampliação do escopo de intervenção rumo a uma atuação mais dialógica sobre a política pública em questão, em certo sentido refletindo o ocorrido na Capital do estado mediante a criação de um Comitê de Monitoramento no Tribunal de Justiça (XIMENES et al, 2019).
Consideramos, portanto, que a atuação da DP agregou um novo ator que foi essencial para a promoção do diálogo interinstitucional e que culminou na mudança estratégica do litígio por acesso à educação infantil na cidade, aumentando as possibilidades de promoção do direito à educação de forma mais justa e mais ampla, considerada a política pública. Silva (2018) aponta que existem poucos estudos acerca da relação entre a judicialização e a atuação da Defensoria. Esperamos que nossas conclusões contribuam para a ampliação do conhecimento nesta área.
Considerações finais
Os resultados da pesquisa empírica e, especialmente, de estudos de caso instrumentais, têm grande valor quando comparados, uma vez que permitem a identificação de padrões de semelhanças e também diferenças. O trabalho desenvolvido por Silveira et al (2020) representa uma ampla perspectiva da judicialização coletiva em educação infantil, uma vez que comparou efeitos diretos e indiretos em 8 municípios de quatro diferentes estados, selecionados a partir de base ampla de casos.
Na política educacional municipal, encontramos similaridades com os resultados de Silveira et al (2020), como a ampliação do número de matrículas e de vagas, a construção de creches, o aumento do número de alunos por turma, a ampliação do atendimento em creches conveniadas, a periodização do atendimento, ainda que em nosso caso tenha sido apenas o da pré-escola, e o aumento do acesso em via judicial. A superlotação e o deslocamento de faixas etárias de creche para escolas parece ser um efeito destacado na política educacional analisada, possivelmente relacionado ao modelo de judicialização vivenciado por Santo André (SP).
Na administração pública encontramos também no estudo de Silveira et al (2020) a alteração em critérios da fila de espera. Foi motivo de destaque em Santo André o alto custo das ações judiciais, possivelmente devido ao alto volume de ações que as liminares provocam em comparação com as ações coletivas. Em geral, as ações coletivas parecem provocar muito mais efeitos na administração pública do que as ações individuais.
No poder legislativo, identificamos semelhanças na legislação produzida sobre lista de espera, quando comparados a casos relatados por Silveira et al (2020). Em Santo André, houve também a inclusão de uma meta no PME voltada à ampliação da Educação Infantil. Em ambos os casos foram causados poucos efeitos na legislação. As maiores diferenças de efeitos entre a investigação de Silveira et al (2020) e o estudo aqui apresentado residem no sistema de justiça, uma vez que não encontramos similaridades entre os efeitos dessa dimensão, já que no caso estudado o principal agente de mudança no padrão de litígio foi a Defensoria Pública.
Essa circunstância é uma evidência de que o padrão de judicialização depende muito mais do posicionamento e da ação do sistema de justiça do que de outras dimensões, ampliando a responsabilidade de instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público na atuação em favor de uma política de judicialização que seja adequada ao contexto municipal e que tenha como resultado a promoção do direito à educação com parâmetros de qualidade.
O caso de Santo André é simbólico por seu destaque no processo de consolidação da jurisprudência no acesso à educação infantil. A análise temporal revelou que houve a ampliação do atendimento e consequente ampliação do direito à educação, inclusive com aumento da capacidade de atendimento e construção de creches no período. Ainda assim, tal expansão do direito não deve ser tratada com euforia, mas com cautela, porque a expansão de matrículas também carrega consigo violações das condições de trabalho, das condições de segurança e da própria qualidade da educação, princípio que deve ser sempre considerado na expansão do atendimento.
São preocupantes os dados de superlotação de creches, com consequente desrespeito aos parâmetros de atendimento à educação infantil e piora na qualidade da educação, especialmente se considerarmos que são bebês que vivenciam estas condições. Não podemos nos esquecer dos profissionais da educação, que ficam sujeitos ao adoecimento físico e mental por trabalhar em condições insalubres. Os mecanismos de monitoramento e interlocução entre instituições, como proposto no TAC efetivado em 2018, têm potencial de melhorar a situação da judicialização do município por promover parcerias e constante reflexão sobre a ampliação da rede de ensino.
Após 15 anos de judicialização, fica evidente que não há solução simples para a questão do acesso à educação infantil. Apesar de termos apresentado evidências do esgotamento da judicialização individual no município, isso não significa que essa não seria uma resposta válida em outros contextos municipais ou que não tenha sido importante para a ampliação do direito à educação no próprio município estudado. Em uma situação complexa em que há pressão pela expansão do ensino frente a limitadas capacidades financeiras e institucionais, não há resposta única nem solução mágica.
De toda forma, é certo que a articulação entre os poderes e entre as instituições como um esforço coletivo para a resolução de problemas têm potencial de produzir uma atuação mais ágil, contextualizada e bem-sucedida, efetivando o objetivo de atendimento dos cidadãos e das crianças e, principalmente, a garantia dos seus direitos.