Introdução
O presente artigo é fruto de dissertação de mestrado, cujo objetivo consiste em expor uma análise acerca das trajetórias escolares de estudantes vinculados ao Programa de transferência de renda Bolsa Família (PBF)3, nos anos finais do ensino fundamental, relacionando as diferentes tipologias de trajetórias escolares à segregação socioespacial presente no município de Curitiba, verificando os efeitos das desigualdades socioespaciais sobre as desigualdades escolares. O estudo, com caráter quantitativo e longitudinal, definiu como coorte inicial os alunos vinculados ao PBF e matriculados no 6º ano do ensino fundamental (EF) em escolas situadas no município em 2013, a fim de acompanhar seus percursos entre os anos de 2013 e 2017.
Alguns indicadores sociais como a existência de ocupações irregulares, empreendimentos da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (COHAB-CT) e áreas de intervenção da política de habitação, disponibilizados pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC, 2017), bem como os dados censitários referentes à renda per capita e população não branca (raça/cor), disponibilizados pelo Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) e o percentual de estudantes vinculados ao PBF em cada instituição de ensino do município, foram utilizados para subsidiar a produção de mapas, que apontam a distribuição das escolas, relacionando-as com dados georreferenciados, o que permitiu cotejar a localização das referidas instituições com as desigualdades territoriais de Curitiba.
As trajetórias escolares podem ser entendidas como “os percursos percorridos pelos indivíduos ao longo da sua vida escolar” (BITTAR, 2015, p. 49), fazendo referência ao acompanhamento do estudante ao longo dos anos, durante seu processo de escolarização, como se desenvolveu seu histórico escolar e acadêmico. Bourdieu (2006, p. 189) retrata a “[...] construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”. Os estudantes são submetidos a transformações durante o período de escolarização, as quais podem incidir sobre suas trajetórias, tornando-as malsucedidas ou irregulares, ou permitindo que eles permaneçam e concluam a escolaridade de maneira exitosa e sem intercorrências durante o percurso.
Estudos recentes (GAYA, 2019; LUNELLI, 2020; SOARES; ALVES; FONSECA, 2021) procuram analisar as trajetórias escolares dos estudantes como uma dimensão importante da qualidade da educação e da garantia do direito de acesso, permanência e conclusão da escolaridade. Nesta perspectiva, as trajetórias não são tomadas como percursos individuais, mas como expressão coletiva das condições de realização do direito à educação de qualidade para todos.
O direito à educação não está plenamente atendido para todas as crianças brasileiras, uma vez que, após o acesso à escola, muitos estudantes têm suas trajetórias interrompidas por uma ou mais barreiras (reprovação, abandono ou evasão). Trajetórias irregulares denotam desigualdades, marca estrutural do país, e se iniciam com a entrada na escola. (SOARES et al., 2021, p. 17).
A revisão de literatura indicou a insuficiência na definição de apenas duas categorias dicotômicas para a análise das trajetórias (contínua x interrompida), em virtude da multiplicidade das situações encontradas nas vidas escolares dos estudantes acompanhados. Os autores citados utilizam diferentes tipologias para analisar as trajetórias escolares. Gaya (2019) elaborou seis categorias para pesquisar os percursos escolares no ensino fundamental, elencando três grupos de trajetórias: alunos concluintes, alunos não concluintes e alunos sem informação sobre as trajetórias. Soares, Alves e Fonseca (2021) classificaram as trajetórias educacionais em três tipos: regular, com poucas irregularidades e com muitas irregularidades, destacando que “há grupos sociais mais sujeitos a uma trajetória regular e outros com percurso marcado pelo insucesso” (p. 17).
Dito isso, delimitar o recorte desse estudo aos estudantes cujas famílias são beneficiárias de um programa de transferência de renda, é uma forma de analisar as trajetórias educacionais das crianças e adolescentes pobres e olhar para um público que, historicamente, esteve excluído do universo escolar e não teve garantido o seu direito à educação por conta de sua origem ou classe social. Aponta o escopo da pesquisa para a população pobre que não conta com acesso igualitário aos serviços educacionais, ao comparar com outros grupos da população, bem como aos demais direitos sociais garantidos constitucionalmente.
Aspectos metodológicos
A tipologia construída para efeitos deste trabalho foi inspirada nos estudos anteriores, mas mantém diferenças importantes. Foram criadas cinco categorias: 1. trajetórias contínuas ou protegidas, para representar os estudantes cujas trajetórias apresentaram um fluxo contínuo entre as séries escolares, atingindo a etapa do ensino médio, seja no ensino regular ou na modalidade educação de jovens e adultos; 2. trajetórias interrompidas ou acidentadas com uma reprovação, cujos alunos apresentaram matrícula no 9º ano do ensino fundamental até o final do período analisado; 3. categoria interrompida com múltiplas reprovações, que contempla os estudantes que atingiram o 8º ano do ensino fundamental ou série / ano escolar inferior e apresentaram, durante seus percursos, múltiplas reprovações ou experiências de fracasso escolar. Por fim, outras duas categorias foram elencadas para análise acerca das trajetórias escolares dos estudantes vinculados ao Programa Bolsa Família: 4. migração para a educação de jovens e adultos de ensino fundamental e, 5. sem informação (quando não há informação sobre o estudante no Sistema Presença que permita identificar a sua trajetória).
As informações existentes no Sistema Presença permitiram a construção de um banco de dados longitudinal relacionado a estudantes vinculados ao PBF. As informações referentes a cada ano foram organizadas de forma a permitir o acompanhamento de sua situação educacional por meio do Número de Identificação Social (NIS4) de cada estudante, o que também possibilita a identificação de situações envolvendo a baixa frequência à escola, violação de direitos, ausência ou omissão do poder público em relação à garantia do direito à educação compulsória. Além desta estruturação, foram agregadas outras variáveis para compor as informações sobre as escolas, disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), ampliando as possibilidades de análise e potencializando o uso da base de dados. Com isso, o banco de dados passou a apresentar cinco anos de informação sobre um mesmo grupo de estudantes, abrangendo os arquivos de 2013 a 2017.
Ao verificar a dependência administrativa das instituições de ensino cujos estudantes vinculados ao PBF fazem parte da coorte desta pesquisa, observou-se que 79,6% das matrículas estão concentradas na rede estadual de ensino, um contingente de 9,9% dos estudantes está vinculado à rede municipal, apenas 0,4% apresentam matrícula na rede privada de ensino e 10,2% não apresentam informação acerca da dependência administrativa das instituições escolares.
Para cotejar o percentual de estudantes vinculados ao programa em cada instituição de ensino curitibana, foi necessário agregar informações acerca do número total de matrículas no 6º ano do ensino fundamental em 2013, disponibilizadas pelo Censo Escolar do INEP. Deste modo, possibilitou-se estimar o percentual de beneficiários em cada estabelecimento de ensino e verificou-se que o contingente de estudantes cujas famílias são beneficiárias do PBF pode variar entre 0,8% (uma escola da rede privada de ensino) e 64,3% (uma instituição da esfera estadual) do total de matrículas na referida série escolar, conforme exposto na tabela 1.
VÁLIDO | 169 | |
---|---|---|
AUSENTE | 2 | |
MÉDIA | 16,3112 | |
DESVIO PADRÃO | 10,71353 | |
MÍNIMO | ,80 | |
MÁXIMO | 64,30 | |
PERCENTIS | 20 | 6,8000 |
40 | 12,9000 | |
60 | 17,9000 | |
80 | 25,0000 |
Fonte: Elaborada pela autora (2020), com base em Sistema Presença, 2013; Censo Escolar – INEP, 2013.
Dentre as escolas analisadas, 169 apresentaram dados satisfatórios para a elaboração das categorias e foram incluídas na análise, enquanto duas não possuíam informações acerca do número de matrículas no 6º ano do EF em 2013. Do contingente total de alunos matriculados no 6º ano em Curitiba, chegou-se a uma média por escola de 16,3% de estudantes cujas famílias são beneficiárias do PBF, com desvio-padrão5 de 10,7. Considera-se que há grande dispersão em relação ao percentual de estudantes beneficiários nas escolas do município, pois o coeficiente de variação (proporção do desvio-padrão em relação à média) chega a 65,5%. Em seguida, por meio de uma medida separatriz, o conjunto de dados foi ordenado em cinco partes iguais, em que cada ponto de corte representa um quintil e cada quintil representa 20% dos dados.
Estabeleceram-se, deste modo, cinco categorias para a organização das escolas, de acordo com o percentual de estudantes vinculados ao PBF nos estabelecimentos de ensino de Curitiba, que estão detalhadas no quadro 1 e que subsidiarão a produção de três mapas do município com a distribuição e localização das escolas, relacionando-as com alguns indicadores sociais georreferenciados como renda per capita, raça/cor ou áreas de intervenção da política de habitação. Estes dados auxiliam nas análises acerca da concentração de pobreza em Curitiba e a distribuição de oportunidades educacionais quando cotejados com as tipologias de trajetórias escolares.
1º QUINTIL | 2º QUINTIL | 3º QUINTIL | 4º QUINTIL | 5º QUINTIL |
---|---|---|---|---|
0,3% até 6,7% | 6,8% até 12,8% | 12,9% até 17,8% | 17,9% até 24,9% | 25,0% até 64,3% |
MUITO BAIXO | BAIXO | MÉDIO | ALTO | MUITO ALTO |
Fonte: Elaborado pela autora (2020), com base em Sistema Presença e Censo Escolar, 2013.
O banco de dados inicia com 4.397 estudantes considerados ativos no Sistema Presença, que eram acompanhados pelo PBF, matriculados no 6º ano do EF em escolas das redes municipal, estadual e privada, situadas no município de Curitiba, representando 100% da coorte que compõe a pesquisa. Contudo, no ano de 2017, 3.007 estudantes deixam de ser monitorados pelo sistema, o que significa que apenas 31,6% da coorte inicial (1390 casos) se manteve até o final do período temporal analisado. Essa perda gradativa de casos é uma das principais limitações da pesquisa de caráter longitudinal, observadas em outros estudos com esse caráter.
Caracterização do município de Curitiba: um cenário da segregação socioespacial
Considerada a quarta cidade mais rica do país, Curitiba é referência em planejamento urbano, com qualidade de vida elevada quando comparada aos padrões nacionais, além de ser reconhecida por seu aspecto ecológico. Tal imagem idealizada do município rendeu análises e críticas sobre o mito de “cidade modelo” construída a partir de uma “espetacularização” do espaço que encobre as desigualdades e a pobreza que acompanham a concentração de renda (GARCIA, 1997; OLIVEIRA, 2000). A capital paranaense apresentou, no ano de 2010, um índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0,823 – ocupando a 10ª posição no ranking entre os 5.565 municípios brasileiros6, superior à média do estado do Paraná (0,749) e o do Brasil (0,727). O Índice de Gini7 (2010) era de 0,565, enquanto no Brasil, no mesmo ano, o indicador era de 0,5304 e no Paraná 0,5416. Assim, o município apresentava indicadores mais elevados de qualidade de vida, mas também apresentava indicadores mais elevados de desigualdade.
Curitiba divide-se em 10 administrações regionais, que funcionam como uma espécie de “subprefeituras”, cujo objetivo é viabilizar o atendimento à população dos 75 bairros da cidade e realizar ações e planejamento no âmbito local. A tabela 2 apresenta alguns indicadores que expressam o IDHM, a população estimada – em número de habitantes e o número de famílias que são beneficiárias do PBF, para debater acerca das profundas desigualdades socioespaciais existentes no município.
REGIONAL | IDHM | POPULAÇÃO | FAMÍLIAS PBF | Proporção de famílias beneficiárias em relação à população % |
---|---|---|---|---|
Tatuquara | 0,715 | 112.873 | 4.144 | 3,7 |
Bairro Novo | 0,750 | 163.651 | 3.560 | 2,2 |
CIC | 0,755 | 200.271 | 3.740 | 1,9 |
Cajuru | 0,306 | 232.563 | 3.423 | 1,5 |
Boa Vista | 0,339 | 263.556 | 3.456 | 1,3 |
Pinheirinho | 0,792 | 151.202 | 1.913 | 1,3 |
Boqueirão | 0,311 | 205.243 | 2.177 | 1,1 |
Matriz | 0,923 | 208.674 | 1.676 | 0,8 |
Portão | 0,366 | 134.437 | 1.407 | 0,8 |
Sauta Felicidade | 0,355 | 166.525 | 906 | 0,5 |
Total | 1.394.000 | 26.407 | 1,4 |
Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados disponibilizados por SOUZA (2017); Folha de Pagamento PBF (Dezembro, 2019) e IPPUC – População estimada (2016).
A organização social do território segmenta e segrega boa parte da população de baixa renda, que se concentra nos bairros mais periféricos da cidade, compondo parte das ocupações irregulares e as áreas de intervenção da COHAB, como os reassentamentos e conjuntos habitacionais populares. A tabela 2 é capaz de indicar as áreas de Curitiba que concentram maior vulnerabilidade socioeconômica ao apresentar o índice de desenvolvimento das diferentes regionais e o número de famílias que estão vinculadas ao PBF.
As regionais Tatuquara, Bairro Novo e CIC, por exemplo, apresentam um contingente maior de famílias beneficiárias. A condição do Tatuquara pode ser ainda mais complexa, pois, além de indicar número superior de indivíduos vinculados a um programa social de transferência de renda, conta com uma população estimada inferior dentre as outras nove regionais. A proporção de famílias vinculadas ao PBF em relação à população na regional Tatuquara é de 3,7%, a mais alta entre as regionais, enquanto a média na cidade é de 1,4%. Cabe acrescentar que esta proporção não se refere ao número de beneficiários, mas ao número de famílias em relação à população residente na regional.
Esses indicadores sociais podem contribuir para as análises acerca das condições que podem gerar diferentes percursos escolares dos estudantes, pois expõem determinadas regiões do município que estão mais suscetíveis à concentração de pobreza e, sobretudo, maior percentual de alunos vinculados ao PBF no interior de suas instituições de ensino.
Trajetórias escolares e segregação socioespacial em Curitiba: uma análise a partir dos estudantes vinculados ao Programa Bolsa Família
A segregação escolar está relacionada à concentração de estudantes que apresentam determinadas características em comum, em espaços específicos (COSTA; BARTHOLO, 2014; VAN ZANTEN, 2010). Estas características podem ser compreendidas como uma desvantagem social, entendendo que podem amplificar as desigualdades sociais e apartar ou segmentar diferentes grupos conforme seu nível socioeconômico, cor / raça e o local de moradia. Um tipo de segregação comum entre as escolas brasileiras é o agrupamento ou concentração de alunos das classes populares em instituições de ensino situadas em bairros mais pobres, cujas escolas apresentam pouco prestígio e baixa reputação no aspecto educacional e social.
No Paraná, há orientações para a realização da matrícula dos estudantes da rede pública de ensino utilizando o local de moradia de suas famílias como um dos critérios. Por meio de um Sistema de Georreferenciamento de Escolas, a Secretaria de Estado da Educação (SEED) encaminha os alunos à escola da rede estadual mais próxima de sua residência. Sobre o uso de ferramentas de georreferenciamento para organizar a distribuição das matrículas dos estudantes entre as escolas da rede pública de ensino, Koslinski et. al. (2013, p. 1198) destacam que “esse sistema, ao impor uma restrição geográfica às matrículas, pode potencializar o impacto da segregação residencial sobre a segregação escolar”.
O fato de criar barreiras para que os pais ou responsáveis definam a escola de sua preferência para efetivar a matrícula dos alunos, potencializa ou reproduz a segregação residencial nas escolas uma vez que restringe o acesso à escola vinculada à comunidade de residência (VAN ZANTEN, 2010; COSTA; BARTHOLO, 2014; KOSLINSKI; ALVES; LANGE, 2013), o que afeta consideravelmente as oportunidades educacionais nos diferentes bairros e territórios do município, por manter certa concentração dos estudantes oriundos das classes populares em estabelecimentos de ensino que carregam um estigma perante a sociedade, seja devido ao perfil da população que atende, ao rendimento dos alunos nas avaliações em larga escala, condições de infraestrutura e segurança ou outras características.
A concentração dos estudantes com certas características em determinados territórios de Curitiba pode ser observada pelos diferentes percentuais de alunos vinculados ao PBF nos estabelecimentos do município. Escores muito distintos da média (16,3%) aferida, ou seja, percentuais muito próximos dos extremos da distribuição, seja perto de zero ou de 60%, podem ser considerados características de segregação socioespacial e educacional. Enquanto há escolas e regiões da cidade em que quase não se encontram estudantes vinculados ao PBF, há outras em que 60% de seus estudantes estão inseridos no programa.
Ao explanar sobre a organização do município, é importante destacar que a distribuição das escolas da rede estadual de ensino apresenta uma divisão territorial diferente da definida pela rede municipal. A distribuição das escolas municipais não é compatível, necessariamente, com a organização da SEED8, contudo, por conta do contingente de estabelecimentos escolares que compõem a rede estadual de ensino e que estão inseridos neste estudo, será utilizada a divisão estabelecida pela SEED. Deste modo, as escolas das redes privada e municipal, que também compõem a coorte desta pesquisa, foram distribuídas de acordo com os setores da rede estadual.
CATEGORIAS | DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA | TOTAL | ||
---|---|---|---|---|
Estadual | Municipal | Privada | ||
Muito baixo | 21 | 0 | 12 | 33 |
Baixo | 32 | 2 | 0 | 34 |
Médio | 30 | 4 | 0 | 34 |
Alto | 30 | 4 | 0 | 34 |
Muito alto | 33 | 1 | 0 | 34 |
146 | 11 | 12 | 169 |
Fonte: Sistema Presença e Censo Escolar 2013, tabulados pela autora (2020).
O percentual de estudantes vinculados ao PBF nas dependências das instituições de ensino de Curitiba é bastante desigual, apresentando variações entre 0,8% e 64,3%, destacando, ainda, que há duas instituições da esfera estadual e uma de dependência administrativa federal que ofertam os anos finais do ensino fundamental, que não contam com nenhum estudante beneficiário entre seus alunos matriculados.
Para exibir a desigualdade existente entre as diferentes regiões de Curitiba, o gráfico 1 apresenta a distribuição das escolas de acordo com o setor da SEED e o percentual de estudantes vinculados ao PBF. O diagrama de caixa (ou boxplot) mostra a dispersão dos dados das respectivas variáveis, exibindo o menor e o maior escore, informando, também, as medidas de posição como a mediana e os quartis (FIELD, 2009).
Observa-se a profunda desigualdade entre o percentual de estudantes vinculados ao PBF e a consequente concentração de pobreza em determinadas áreas do município, expressas pelos diferentes setores regionais. O Bairro Novo possui duas escolas que apresentam valores atípicos ou extremos na distribuição dos dados, representados pelos círculos acima e abaixo do diagrama - trata-se de uma escola privada, cujo índice de estudantes do PBF é de 2,2%, enquanto os demais escores variam entre 13,5% e 33,9%, o que pode ser observado de acordo com a localização da caixa junto ao eixo Y. O segundo valor atípico ou outlier é uma instituição de ensino de competência estadual cujo índice é de 42,9%.
O setor CIC não conta com nenhuma instituição de ensino na categoria muito baixa, apresentando maior concentração nos índices alto e muito alto, revelando as desigualdades sociais existentes na extensão de seu território. Os setores Bairro Novo e CIC são os que apresentam maiores medianas em relação ao percentual de estudantes vinculados ao PBF, acompanhadas de menor dispersão, assim verifica-se uma concentração de escolas com alta proporção de estudantes pobres, em condições de vulnerabilidade social.
Os setores Cajuru e Portão apresentam maior dispersão ou variabilidade dos dados, que é representada pela dimensão do diagrama. A distribuição das escolas entre as diferentes categorias demonstra que há estabelecimentos dispersos nos dois extremos: índice muito baixo e muito alto. As instituições de ensino do setor Portão apresentam percentual entre 1,0 e 37,6%, com um escore discrepante (outlier), cujo valor é de 64,3%. Já a regional Cajuru conta com escores distribuídos entre 1,9 e 47,4%.
O setor Centro é a região que apresenta a menor dispersão entre os dados, cujas escolas estão concentradas entre as categorias muito baixa e baixa, ressaltando a hipótese de que a região localizada ao centro de Curitiba conta com poucos estudantes vinculados ao PBF em suas dependências. Os demais setores apresentam distribuições intermediárias, com uma variabilidade no percentual de estudantes por escola que pode estar relacionada à diversidade de características de ocupação do território do município.
Os três mapas apresentados a seguir (Figuras 1, 2 e 3) permitem observar o perfil populacional e sua relação com o percentual de estudantes vinculados ao programa nas respectivas instituições de ensino. Para tanto, foi utilizado um software que possibilita a realização de análises de dados georreferenciados. A localização das escolas foi cruzada com os dados municipais como a existência de ocupações irregulares, empreendimentos da COHAB e com os dados censitários de renda per capita e população não branca (raça / cor). Os mapas apontam a localização das 172 escolas inseridas na análise, sendo 169 delas com índice de estudantes beneficiários entre 0,8 e 64,3% e as três instituições de ensino públicas que não apresentam nenhum estudante vinculado ao PBF.
A Figura 1 expõe informações sobre o nível socioeconômico dos habitantes, de acordo com a renda per capita. Vale destacar que foi trabalhado com o valor do salário mínimo nacional correspondente a 2010 – ano do Censo Demográfico do IBGE. A Figura 2 apresenta a distribuição das instituições de ensino com informações acerca do contingente de população não branca no território. Para a produção deste mapa, foram agregadas as categorias pretos e pardos da variável cor/raça. A Figura 3 apresenta as regiões de intervenção da política de habitação de Curitiba.
Ao realizar a distribuição das escolas entre os territórios do município, relacionando a localização das mesmas com alguns indicadores sociais capazes de revelar o perfil populacional, podem ser identificados grandes contrastes em Curitiba. O índice de estudantes vinculados ao PBF mostra-se bastante desigual não somente entre as instituições escolares, mas também entre os diferentes territórios do município, o que pode ser observado pela localização das escolas que estão representadas por diferentes cores, de acordo com o índice de estudantes beneficiários em seus estabelecimentos. Os mapas apresentam a localização central de Curitiba e os raios concêntricos que expõem o distanciamento do centro das demais regiões a cada 5 quilômetros.
A Figura 1 demonstra que as regiões Central e Norte, assim como os bairros de seu entorno, áreas cuja renda per capita da população se mostra superior aos demais territórios, são também as que concentram as instituições de ensino com os menores índices de estudantes cujas famílias são beneficiárias do PBF. “As escolas localizadas nas áreas centrais e mais abastadas da cidade tendem a receber alunos com nível socioeconômico mais alto” (KOSLINSKI; ALVES; LANGE, 2013, p. 1182). O setor Centro possui apenas uma instituição de ensino com índice alto de estudantes vinculados ao PBF, os demais estabelecimentos permanecem nas categorias muito baixo e baixo. Percebe-se, igualmente, que pelo menos quatro das escolas situadas no primeiro raio e que apresentam índice muito alto estão próximas de áreas de ocupação irregular, conforme demonstra a Figura 3.
As três escolas representadas pela cor azul e que não contam com nenhum estudante vinculado ao PBF situam-se no primeiro raio concêntrico – indicando que são estabelecimentos mais próximos da região Central. Duas destas instituições contam com um processo seletivo para ingresso dos alunos nas etapas do ensino fundamental e médio ou por meio de análise curricular. Os candidatos às vagas passam por uma seleção para matricular-se nessas instituições, consideradas de prestígio em função da qualidade do ensino ofertado, pelas altas proficiências na Prova Brasil e devido à alta seletividade do alunado que compõe seu grupo. A inscrição para o teste classificatório sugere, inclusive, os anos de nascimento dos estudantes – eliminando, de imediato, crianças e adolescentes que apresentem defasagem ou distorção idade-série.
De maneira geral, as instituições de ensino que concentram maior contingente de estudantes vinculados ao PBF, representadas pelas cores laranja (índice alto) e vermelho (muito alto) estão, em sua maioria, em bairros mais periféricos, sobretudo na porção sul da cidade. Vale destacar que a região sul de Curitiba apresentou os indicadores mais altos em termos de desigualdades sociais. Os mapas comprovam que estes bairros possuem estrutura social mais fragilizada que os demais, tendo em vista que, na porção sul do município estão presentes os setores com precariedade habitacional, alta densidade populacional e baixa renda.
Na região Sul do município - que abarca as regionais Boqueirão, Pinheirinho, Bairro Novo e Tatuquara (no extremo sul) e nas regionais Cajuru e CIC - estão concentradas as áreas de intervenção da política de habitação, locais que apresentam grande fragilidade habitacional, conforme evidenciado na Figura 3. São essas mesmas regiões que concentram o maior contingente de população não branca, de acordo com a Figura 2, que mostra a região central de Curitiba como uma área “predominantemente branca”.
Assim, verifica-se a presença de um entrecruzamento entre desigualdades múltiplas, relacionadas à renda, ao pertencimento étnico-racial, às condições de oferta educacional, à distribuição de oportunidades pelo território do município. Estas desigualdades se complexificam e sua interação produz barreiras para a realização de uma educação de qualidade para todos. Lima (2011, p. 236), ao explanar sobre o campo de estudo das desigualdades raciais, ressalta que
a ênfase ocorre tanto na sobrerrepresentação da população negra entre os pobres, como na proporção de pobres dentro de cada grupo racial. Há mais negros (pretos e pardos) entre os pobres, da mesma forma que há maior proporção de pobres no grupo negro do que no grupo branco (LIMA, 2011, p. 236).
Desta forma, percebe-se que existe uma relação entre raça / cor e condição de pobreza na capital. A região Central do município - cuja população apresenta maior renda per capita, conta com uma área melhor localizada geograficamente, com reduzida presença de população negra – concentra as instituições com menores índices de estudantes vinculados ao PBF. De maneira oposta, estão as regiões periféricas do município, com a presença de áreas de ocupação irregular, famílias de baixa renda e com a presença marcante de população não branca – cujas instituições de ensino permanecem entre as categorias alta e muito alta de percentual de estudantes vinculados ao PBF.
Embora o estudo tenha identificado que há concentração de estudantes vinculados ao PBF em determinadas escolas, cujo entorno possui domicílios com população de menor renda, com maior percentual de população não branca e maior presença de áreas de ocupação considerada irregular, assim como área de atuação de políticas de habitação da COHAB, as análises indicam que essa concentração não está associada à produção de trajetórias escolares mais contínuas ou interrompidas. É relevante socialmente indicar que a concentração de estudantes cujas famílias são beneficiárias do PBF não está atrelada à definição das trajetórias escolares. Há um grande conjunto de questões relacionadas a fatores individuais, institucionais, de políticas educacionais e sociais que interferem nos percursos escolares e precisam continuar sendo estudados.
A tabela 4 expõe a distribuição das categorias de trajetórias escolares entre os setores da Secretaria de Educação, para analisar se há algum padrão de percurso escolar de acordo com as diferentes regiões do município.
SETOR SEED | CATEGORIA TRAJETÓRIA ESCOLAR | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Contínua ou Protegida | Interrompida com uma reprovação | Interrompida com múltiplas reprovações | Educação de Jovens e Adultos (EJA de EF) | Sem informação | ||
SEM INFORMAÇÃO | Contagem | 85 | 15 | 16 | 11 | 41 |
% | 50,6% | 8,9% | 9,5% | 6,5% | 24,4% | |
BAIRRO NOVO | Contagem | 181 | 36 | 18 | 17 | 76 |
% | 55,2% | 11,0% | 5,5% | 5,2% | 23,2% | |
BOAVISTA | Contagem | 52 | 12 | 7 | 5 | 23 |
% | 50,0% | 11,5% | 6,7% | 4,3% | 26,9% | |
BOQUEIRÃO | Contagem | 45 | 15 | 6 | 14 | 35 |
% | 39,1% | 13,0% | 5,2% | 12,2% | 30,4% | |
CAJURU | Contagem | 110 | 20 | 18 | 16 | 35 |
% | 55,3% | 10,1% | 9,0% | 8,0% | 17,6% | |
CENTRO | Contagem | 7 | 1 | 2 | 1 | 7 |
% | 38,9% | 5,6% | 11,1% | 5,6% | 38,9% | |
CIDADE INDUSTRIAL | Contagem | 87 | 23 | 6 | 17 | 52 |
% | 47,0% | 12,4% | 3,2% | 9,2% | 23,1% | |
PINHEIRINHO | Contagem | 50 | 8 | 11 | 5 | 32 |
% | 47,2% | 7,5% | 10,4% | 4,7% | 30,2% | |
PORTÃO | Contagem | 29 | 5 | 8 | 11 | 37 |
% | 32,2% | 5,6% | 8,9% | 12,2% | 41,1% | |
SANTA FELICIDADE | Contagem | 38 | 7 | 9 | 9 | 14 |
% | 49,4% | 9,1% | 11,7% | 11,7% | 18,2% | |
TOTAL | Contagem | 684 | 142 | 101 | 106 | 357 |
% | 49,2% | 10,2% | 7,3% | 7,6% | 25,7% |
Fonte: Sistema Presença e Censo Escolar 2013, tabulados pelas autoras (2022).
Observa-se que, embora a distribuição dos estudantes vinculados ao PBF seja bastante desigual, não apenas entre as instituições de ensino, mas entre as diferentes regionais do município, as trajetórias escolares se mostram mais contínuas em todos os setores analisados. Ainda que algumas áreas, como Portão, Centro e Boqueirão, apresentem percentuais inferiores de trajetórias protegidas quando comparadas aos demais setores, tal fato pode ter relação com o número de estudantes que se enquadram na categoria de trajetória sem informação, que se apresenta igualmente elevada entre os três setores citados.
Os resultados apontam que o fato de ser um estudante vinculado ao PBF pode ser um importante fator de proteção das trajetórias escolares e de garantia de permanência no sistema de ensino com avanço entre as séries. Os dados indicam que 49,2% dos estudantes beneficiários do PBF apresentam trajetórias contínuas durante o período em que se mantêm vinculados ao programa, com a conclusão do ensino fundamental, atingindo a etapa do ensino médio.
Quando considerada a porcentagem válida, excluindo os casos sem informação, que chega a um quarto do total de casos ativos, esse percentual aumenta para 66,2%. Isso pode ser um indicativo do poder de proteção da trajetória escolar para os estudantes que se mantêm vinculados ao PBF e são acompanhados pelo Sistema Presença, uma vez que, historicamente, os estudantes mais pobres convivem com situações ainda mais agudas de fracasso escolar.
Com relação ao percentual apresentado, cabe salientar que outros estudos acerca das trajetórias educacionais revelam resultados similares. Gaya (2019), ao analisar o percurso escolar dos estudantes no município de Pinhais/PR, por meio de uma perspectiva longitudinal, apontou que 54,5% dos estudantes apresentaram trajetórias contínuas e concluíram o ensino fundamental durante o recorte temporal da pesquisa. Já Soares et al. (2021) indicam que 53,1% dos estudantes que compõem a coorte de seu estudo foram classificados na trajetória regular. Ambos os estudos utilizaram dados do Censo Escolar do INEP para subsidiar as pesquisas.
Considerações Finais
A organização social do território curitibano tende a segmentar, confinar e reforçar um “verdadeiro apartheid entre classes” (OLIVEIRA, 1998, p. 215). Grande parte dos habitantes de baixa renda, com pouca escolaridade e recursos restritos para uma inclusão social efetiva, reside nas áreas periféricas da cidade. Periferia esta, afastada dos bairros mais requintados, que distancia a população dos principais equipamentos educacionais e culturais e, nas palavras de Bourdieu (2008), mantendo-os presos a este lugar. Não obstante, as práticas de diferenciação foram criadas pelas políticas de habitação do município, que concentraram boa parte da população pobre nos conjuntos habitacionais da cidade, situados nas áreas periféricas e próximas, de certa forma, de outras áreas de ocupação irregular.
Um dos objetivos da presente pesquisa era investigar se as desigualdades socioespaciais presentes no município de Curitiba impactavam, de certa forma, nas trajetórias escolares dos estudantes vinculados ao PBF. Ainda que a coorte do estudo seja composta por estudantes vinculados a um programa social de transferência de renda, com
um público específico, que historicamente sofre com os efeitos das desigualdades sociais sobre as oportunidades educacionais, os dados revelam que o percentual de estudantes que apresentou trajetórias contínuas ou protegidas, em torno de 50%, é similar a outros estudos que analisam, igualmente, os percursos escolares, utilizando coortes mais abrangentes. E, quando se consideram apenas os estudantes que permaneceram vinculados ao programa durante todo o período, o percentual se eleva para 66%. Tais dados podem evidenciar o poder de proteção das trajetórias educacionais dos estudantes enquanto estão vinculados ao programa.
Os resultados podem refutar a ideia de que as trajetórias escolares dos estudantes vinculados ao PBF poderiam ser condicionadas ou sofrer influência da concentração de beneficiários nas escolas, ou seja, de que tais alunos poderiam apresentar diferenças em seus percursos de acordo com a categoria em que os estabelecimentos escolares estivessem inseridos.
Isso não significa afirmar que a segregação socioespacial e a segregação educacional não produzam efeitos sobre as trajetórias escolares dos estudantes da cidade. Para isso, seria necessário outro tipo de análise, considerando todos os estudantes matriculados em escolas do município e não apenas o grupo que compôs a coorte deste estudo. Assim, considera-se a necessidade de ampliação e aprofundamento do debate sobre segregação socioespacial, educacional e pobreza.