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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.43 no.2 Porto Alegre maio/ago 2020  Epub 01-Fev-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.2.35974 

Dossiê: Formação em Movimento

Capital humano e panorama educacional: sobre a atualidade da Crítica de Heydorn ao Plano Estrutural para a Educação (1970)1

Human capital and educational landscape: on how current Heydorn's Critique of the Structural Plan for Education (1970)

Capital humano y panorama educativo: sobre la actualidad de la Crítica de Heydorn al Plan Estructural para la Educación (1970)

Dirk Stederoth2 

Mestre e Doutor pela Universidade de Kassel, Alemanha. Professor de Filosofia no Instituto de Filosofia, Universidade de Kassel/Alemanha.


http://orcid.org/0000-0003-3823-7057

2Universidade de Kassel (UNIKASSEL), Kassel, Alemanha.


Resumo:

o ensaio reconstrói a história das reformas do sistema educacional alemão, escolhendo a famosa crítica de Heinz-Joachim Heydorn, dos anos 1970, como eixo da argumentação. Tanto a pré-história dessa crítica quanto as políticas das últimas décadas revelam uma continuidade da orientação pedagógica que, desde o conceito do capital humano até os critérios de competência e de adaptação às demandas da economia e da tecnologia em permanente transformação, perde de vista o homem. Ao invés de focar em competências humanas imediatamente aproveitáveis, o autor pleiteia em favor da formação universal, convencido ser essa a melhor condição para se enfrentar os desafios da dinâmica inscrita ao mundo moderno.

Palavras-chave história das reformas educacionais; diretrizes educacionais; capital humano

Abstract:

The essay reconstructs the history of the German education system reforms, choosing the famous Heinz-Joachim Heydorn's critique in the 1970s as the centerline of the argument. Not only the pre-history of this critique but also the policies of the last decades would reveal a continuity of pedagogical orientation that, from the concept of human capital to the criteria of competency and adaptation to the demands of the ever-changing economy and technology, loses sight of man. Instead of focusing on immediately useful human competencies, the author advocates for universal education, convinced this is the best condition to cope with the challenges from the dynamics contained within the modern world.

Keywords history of education reforms; education guidelines; human capital

Resumen:

El ensayo reconstruye la historia de las reformas del sistema educativo alemán, eligiendo como eje de argumentación la famosa crítica de Heinz-Joachim Heydorn, de los años 70. Tanto la prehistoria de esa crítica como las políticas de las últimas décadas revelarían una continuidad en la orientación pedagógica que, desde el concepto de capital humano hasta los criterios de competencia y adaptación a las demandas de la economía y la tecnología en permanente transformación, pierden de vista al ser humano. En vez de focalizar en competencias humanas inmediatamente aprovechables, el autor se posiciona a favor de la formación universal, convencido de que es esa la mejor condición para enfrentar los desafíos de la dinámica inscripta en el mundo moderno.

Palabras clave historia de las reformas educativas; directrices educativas; capital humano

Não há nenhuma dúvida de que a História é marcada por repetições, e isso é demonstrado pela continuidade de situações de conflito e de crises, que bem caracterizam nossa contemporaneidade. Embora tais repetições não constituam de forma alguma um eterno retorno do mesmo, os velhos conflitos e crises estão presentes no que surge de novo, seja de forma consciente, seja de modo sub-reptício, revestindo-se de acordo com a mudança de contextos em roupagens modificadas, que não seguem apenas um modismo contingencial. Eles são muito mais a expressão de um desenvolvimento, cujo objetivo ainda não pode ser explicitado, mas que, por causa de seus autores, jamais ocorre de maneira completamente despropositada, na medida em que as pessoas, na interação com seu meio ambiente, e umas com as outras, adiantam esse desenvolvimento, inscrevendo-se no mesmo. O objetivo é sempre o ser humano – mas aquilo em que ele vai se desenvolver, só pode ser determinado por um espaço de tempo provisório.

Ao tomarmos a Crítica do Plano Estrutural (1970), de Heydorn, como documento central da reforma educacional dos anos 1970 do século 20, será válido contextualizar essa crítica no contexto da época e, então, evidenciar algumas correlações com nossa atual reforma educacional, mas, acima de tudo, será importante posicionar ambas as reformas educacionais em uma dinâmica histórica, na qual as pessoas canalizaram suas possibilidades históricas em uma direção específica. Essa dinâmica liga ambas as reformas em uma continuidade, na qual contextos modificados, que caracterizam nosso presente, aparecem como transformações que produzem novas possibilidades. Mas, primeiramente, nos ocupemos de Heydorn e de sua discussão com a emergência do Plano Estrutural e da reforma educacional dos anos 1970.

A guerra fria dos sistemas educacionais – sua pré-história

Este período tem início em 4 de outubro de 1957 com um acontecimento que, à primeira vista, não tem nada a ver com uma reforma educacional: neste dia a União Soviética lançou o Sputnik, o primeiro satélite na órbita terrestre. No entanto, a reação dos Estados Unidos, antagonista no jogo de poder dos grandes sistemas da época, reação essa conhecida como o “choque do Sputnik”, mostrou-se decisiva para a modificação e a reforma dos sistemas educacionais das sociedades ocidentais. O global player na corrida da guerra fria pela supremacia tecnológica e a responsável pela adaptação dos sistemas educacionais ocidentais foi a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico.

Conforme Kim (1994) e Daniel Tröhler (2013, pp. 60-77), as reações dos Estados Unidos a esse choque do Sputnik não se limitaram à fundação da National Aeronautics and Space Administration (NASA), em 29 de julho de 1958, uma vez que elas também incluíram a ofensiva educacional expressa no National Defense Education Act (NDEA), promulgado em 2 de setembro de 1958. Essa ofensiva, com significativo aporte financeiro, propunha, entre outras coisas, o fortalecimento das áreas das ciências, da matemática e das línguas modernas, além da introdução de testes para identificação de superdotados;2 a ofensiva teve também ressonância internacional por meio da fundação de um comitê da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico, o Comitê para Pessoal Científico e Técnico (CSTP), que tinha como uma das suas principais tarefas o fomento industrial dos estados do sul europeu, os quais ainda estavam mais voltados para a agricultura.

Já o Projeto Mediterrâneo Regional (MRP) deixava claro que se planejava uma transição da OEEC (Organização para a Cooperação Econômica Europeia) para a OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), além de uma ampliação do número de membros da referida organização. Vale ressaltar que, de acordo com Trödler (2013),

neste contexto, “desenvolvimento” não era pensado simplesmente como a ampliação do que já existia (…), mas como a adaptação a um modelo que deveria ser seguido, (…) cuja materialização foi a ampliação e a reforma do sistema educacional de acordo com as premissas da OECD. (p. 64)

Essa reforma foi então implantada pela OECD de forma padronizada por meio da formação de planejadores educacionais nacionais em programas de treinamento, cujos participantes eram preparados para um planejamento educacional uniforme.3

Em que consistia, no entanto, a estratégia unificada da OECD, pela qual os sistemas educacionais nacionais deveriam ser mensurados? Para responder a esse questionamento são esclarecedoras as contribuições de um ciclo de conferências da OECD: Conferências sobre Políticas de Crescimento Econômico e Investimento em Educação, que ocorreu de 16 a 20 de outubro de 1961, em Washington. Um excerto de uma das conferências deixa mais do que evidente o quanto um conceito dominava o palco histórico; sobre ele, Gary S. Becker introduz uma ampla discussão três anos mais tarde com o seu livro Human Capital, no qual faz referência explícita ao problema da educação.4 Eis o trecho (Bringolf et al., 1966, p. 40):

Hoje é indiscutível que também o ensino é parte integrante do conjunto da economia, que é tão necessário preparar as pessoas para a economia quanto os produtos e as máquinas. O ensino tem seu valor equiparado ao das estradas, siderúrgicas e fábricas de adubos químicos. Podemos, inclusive, assegurar, sem constrangimento e com consciência econômica, que o acúmulo de capital intelectual é comparável em importância ao acúmulo de capital real – a longo prazo talvez até mesmo mais importante.

Bem em sintonia com o atual e disseminado discurso do estreito vínculo entre a teoria da formação e do capital humano, Dammer (2015, p. 136) se coloca consoante: o “capital intelectual” é equiparado ao “capital real” (isto é, “estradas, siderúrgicas”, etc.) e ressignificado em uma grandeza economicamente quantificável. Não somente os atores educacionais surgem sob outra ótica no cenário de uma comparação desta natureza, quando os atores passam a ser caracterizados como “fator de produção professor” e “a matéria-prima aluno” (Bringolf et al., 1966, pp.44-45); o próprio conceito de educação acaba, neste contexto, sendo redefinido na perspectiva da utilidade econômica flexível:

O conceito de formação geral clama por uma nova definição. (…) O objetivo deve ser fomentar, por intermédio da formação geral, a capacidade para uma adaptação sempre nova, para lidar racionalmente com novas situações e gerar esquemas de pensamento flexíveis para todos os grandes desafios do conhecimento”. (Bringolf et al., 1966, p. 37)

Outro componente importante da capitalização humana da educação, já expressa nesse antigo documento da OECD, é a elevação estatística das grandezas contabilizáveis do capital educacional, com a qual é possível, sobretudo, uma inclusão integral do sistema educacional em uma balança econômica geral:

O planejamento educacional deve tornar-se parte integrante de toda política econômica nacional. (…) Elaborar um sistema de orientação por padrões estatísticos, assim como fez a economia nacional para a comparação do desenvolvimento econômico e dos gastos do governo, deve ser encarada como uma das primeiras e mais urgentes tarefas do planejamento educacional”. (Bringolf et al., 1966, p. 64)

O colosso numérico editado anualmente desde 2000 pela Education at a Glance, pelos indicadores da OECD,5 assim como pelas instituições educacionais bastante abrangentes da OECD,6 mostram com clareza meridiana o quanto este planejamento educacional padrão se alastrou na nossa época.

Mas até que ponto essa pré-história atuou sobre a reforma educacional dos anos 1970? Essa influência se evidencia de forma paradigmática em uma conferência de Leonard Froese em um congresso do Instituto para Pedagogia da Unesco, ocorrida em Hamburgo, de 18 a 21 de junho de 1968, com o tema Sobre a situação da Educação na República Federativa Alemã, evento ao qual Heydorn (1971) faz referência explícita.7 Froese (1969, pp. 106-118) aborda um cenário vinculado aos desdobramentos da guerra fria descrita, na medida em que compara a política educacional da República Federativa Alemã com a da República Democrática Alemã. Partindo do “questionamento: que rumos devemos tomar em meio à competição tecnológica entre o oeste e o leste, já há muito tempo em andamento” (1969, p. 1078), Froese chega, depois da exposição das reformas de ensino na Alemanha Oriental, ao diagnóstico de:

que o governo da Alemanha Oriental soube inequivocadamente reconhecer melhor os ‘sinais dos tempos’, além de interpretá-los e aplicá-los na prática melhor do que nós. O comitê central da SED9 tem razão ao constatar que, na Alemanha Oriental, pela primeira vez na história alemã, foi possível reunir todas as instituições e os respectivos empreendimentos educacionais ou, mais precisamente, como se diz naquele país: unificar”. (Froese, 1969, p. 113)

Nestes termos, Froese recomenda para a política educacional da Alemanha Ocidental uma unificação completa das instituições de ensino e sua correspondente orientação para a funcionalidade econômica e efetividade, ao descrever como seu objetivo:

O que se deve referir a nós e à Alemanha Ocidental é a plena funcionalidade e a máxima efetividade de todo o nosso sistema educacional: da formação geral e da profissionalizante, da escolar e da universitária, tanto da pública como da privada, independentemente, por assim dizer‚ do jardim de infância ao pós-doutoramento, para utilizar um slogan do Conselho da Ciência. Neste cenário, importa reconhecer, da política cultural e financeira, seu contexto socioeconômico mais abrangente, ou seja, a política de reforma do ensino coerente consigo mesma, da forma como não somente os especialistas, mas também muito mais a economia há muito exige. (Froese, 1969, p. 114)

Heydorn (1971) então descreve o princípio educacional, que encontra na conferência de Froese “uma formulação extremamente precisa”, como segue:

O princípio da tecnologia da produção é transferido de maneira abrangente ao processo de ensino. Uma vez que as condições de produção sempre mudam, os processos de racionalização tornam necessárias adaptações constantes, fazendo com que todo o processo de ensino necessite ser adaptado para atender a essas exigências. O currículo sofre, com isso, uma modificação constante, sua origem histórica é cortada. A educação é diluída em estatística, a sua utilidade específica determina o seu valor. (p. 14)

Com isso, Heydorn atinge o âmago da problemática da transformação dos currículos em capital educacional e humano útil, na medida em que ele aponta para um nivelamento da diferença dos pontos conflitantes entre o setor econômico e a instituição educacional, mais concretamente entre a formação profissional e a geral, enquanto eliminação daquilo que é especificamente humano e, com isso, da própria história. Se a formação de pessoas é vista somente como fator estatisticamente quantificável em um acontecimento mecânico-econômico, a dimensão histórica de uma formação humana para o humano fica necessariamente relegada a um plano ultrapassado. A pessoa mesma é degradada a uma mercadoria fabril orientada para uma necessidade econômica, que deve ser produzida adequadamente nas fábricas de ensino, e acaba perdendo, com isso, a visão daquilo que ela pode e quer ser para além das leis mecânicas de valoração. A pessoa enquanto pessoa – e com isso também a sua dimensão histórica – sai do âmbito de consideração e é substituída por uma fungibilidade econômica total.

A implementação dessa inversão de valores deve ser garantida nos esforços de reforma por meio da disposição de objetivos educacionais, conforme disposição no Relatório do grupo de trabalho III. Normas de ensino do congresso em pauta e do qual Heydorn os cita:

Objetivos educacionais deveriam designar qualidades de conduta, as quais a sociedade deseja que o aprendiz adquira. A indicação ideal de objetivo educacional consistiria na nomeação precisa de uma função ou categoria de função e na definição daquelas condutas do aprendiz que deveriam valer como indicações manifestas de sua resolução. (Führ & Ulrich, 1969, p. 77)

Nessas formulações não apenas são sugeridos os preceitos do conceito de competência que nos ocupa hoje tão amplamente (e para o que ainda se voltará), mas, além disso, nessa disposição de objetivos de aprendizagem indica-se também a forma de operacionalização que possibilita a sua quantificação estatística. Desta forma está expressa no relatório citado a listagem das vantagens dessa disposição de objetivos de aprendizagem: “Dados concretos de objetivos de aprendizagem são um pré-requisito para os controles de resultados urgentemente necessários. Sem os mesmos, não é garantido que os objetivos de aprendizagem realmente exerçam a função normativa delas esperada” (Führ & Ulrich, 1969, p. 78).

Heydorn reage a essa disposição de objetivos de aprendizagem e ao controle de sua eficiência com uma crítica mordaz:

A fábrica de ensino é submetida a um sistema de controle variado que controla cada passo isoladamente. Isso não é apenas um retrocesso a uma teoria mecanicista, que podia ser considerada ultrapassada com o fim do século 18: pelo contrário, esta tendência identificável de um totalitarismo de fato somente se diferencia desagradavelmente dos fenômenos totalitários registráveis por ela não ter nem mesmo uma consciência de si mesma. Percebe-se como o esclarecimento se despede no século 20 enquanto ironia. (Heydorn, 1971, p. 15)

Heydorn vê então a materialização dessa fábrica de ensino no conceito de Escola Integrada, cuja crítica detalhada ele faz na sua principal obra, Sobre o Conflito entre a Educação e a Dominação, a qual porém não será abordada aqui de forma pormenorizada; a crítica se refere a essa “instituição de abastecimento para a grande indústria”, como Heydorn a denomina, em última análise, a partir dos mesmos pontos, que ele expõe em sua crítica no Plano Estrutural para o Sistema de Ensino (Deutscher Bildungsrat, 1970), que trataremos a seguir.

Educação e avaliação – a Crítica de Heydorn ao Plano Estrutural

Essa análise pormenorizada da pré-história foi necessária para deixar claro a partir de que contexto Heydorn critica o plano estrutural. O plano representa para Heydorn o ponto culminante das tendências da reforma educacional discutidas nos anos 1960, na medida em que ele as reúne em um projeto de reforma integrada. A crítica de Heydorn aborda, primeiramente, os seis elementos do plano estrutural: aprendizagem inicial, formação contínua, currículo, diferenciação, objetivos de aprendizagem e assessoria pedagógica, embora ele aborde apenas superficialmente as áreas de formação contínua e assessoria pedagógica. Em um segundo momento ele apresenta uma caracterização geral, na qual outras questões centrais do plano estrutural, tais como o caráter científico e a relação mais estreita entre a educação geral e a profissional, são focadas. Também se segue essa bipartição nesta apresentação crítica.

Heydorn começa com uma crítica à teoria do talento, constante no plano estrutural, a qual se encontra no capítulo “Aprendizagem inicial” e que se origina, sabidamente, de Heinrich Roth. Ela parte do princípio fundamental de que os “talentos herdados (…) somente são transformados em competências e habilidades por meio de estímulos diretos e indiretos que a criança experimenta no seu meio ambiente” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 41). Nesse caso, depende de que desde a mais tenra infância os estímulos do meio ambiente (família, vizinhos, pré-escola, escola etc.) sejam ajustados à capacidade responsiva individual e à sensibilidade da criança (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 42), ou seja, que exista um “ajuste” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 42) entre o meio-ambiente e a disposição ou interesse individual, para que as habilidades correspondentes possam se desenvolver. Correspondentemente explicam-se as habilidades insuficientes tanto na carreira escolar avançada, quanto na vida adulta, menos por talento insuficiente, do que muito mais por adaptação insuficiente na socialização individual, pelo que, então, também o aprendizado escolar, desde o início, essencialmente, deveria ser orientado para os interesses individuais da criança.

Este conceito de talento com que hoje novamente nos deparamos, a propósito, com roupagem neurocientífica-construtivista10, é confrontada por Heydorn com a tese histórico-materialista, segundo a qual as teorias do talento se transformam com os requisitos de produção e as respectivas necessidades de força de trabalho, de modo que, por exemplo, o dom de todos para ler e escrever verifica-se apenas quando “o analfabetismo torna-se um impedimento para o desenvolvimento de processos industriais” (Heydorn, 1972, p. 83). Já que atualmente em uma sociedade industrial desenvolvida a variedade das competências e das habilidades necessárias dificilmente pode ser ignorada e “previsões em vista do caráter de mobilidade da sociedade são incertas” (Heydorn, 1972, p. 84), o sistema de ensino deve procurar conciliar os interesses individuais com os estímulos necessários. Heydorn conclui:

Como resultado, a teoria do talento visa a aproximar-se das necessidades da produção tanto quanto possível, abrindo maiores espaços de mobilidade, que correspondem de maneira versátil às estruturas de qualificação atuais (…) Heydorn chega à conclusão de que “Com isto os conceitos estáticos do passado continuam a ser relativizados, sem ser eliminados, e os momentos de dominação implícitos garantidos, embora adaptados”. (Heydorn, 1972, p. 84)

A crítica de Heydorn não se restringe, por conseguinte, para um aprendizado movido por interesses em si, mas para a sua adequação e redução a demandas socioeconômicas desejáveis.

A organização desse ajustamento é então garantida por meio do conceito do currículo, já que o plano estrutural entende por currículo

a disposição organizada de certos processos de aprendizagem de conteúdos definidos, visando a objetivos de aprendizagem específicos. Estes podem ser definidos como um comportamento ou como modo e grau de capacidades, habilidades ou conhecimentos específicos. O currículo é o fator determinante para a organização, tanto de processos de aprendizagem na escola, como fora dela. Os currículos expressam quais objetivos educacionais a sociedade deseja alcançar e quais caminhos conduzem a eles. (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 58)

Os currículos devem representar, dessa forma, a estrutura organizacional para todos os processos educacionais, nos quais se integram os objetivos educacionais e os conhecimentos, capacidades e habilidades ligados a eles, além disso são determinados por eles “além de objetivos educacionais e dos conteúdos, também as respectivas sequências e processos de aprendizagem, assim como os métodos, materiais e tecnologias de ensino correspondentes” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 62). Em relação aos planos de ensino a serem aprovados, que constituem uma organização de conteúdos relevantes, os currículos devem organizar de maneira muito mais abrangente os objetivos e processos do aprendizado, na medida em que deve corresponder ao “planejamento educacional (…) uma missão de revisão descontínua do currículo” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 64). No que tange ao alcance dos currículos, ele fica evidente na descrição do quadro de referência, pois os currículos “podem ser circunscritos desde a áreas profissionais passando pelos vários níveis da orientação científica, atingindo áreas da vida tais como o morar, a vida familiar conjunta, a relação com as pessoas, a atividade política, a religião, a arte, o esporte, entretenimento, entre outros” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 60).

Para Heydorn evidencia-se neste programa o “mecanismo perfeito da indústria” (Heydorn, 1972, p. 85) que aproxima “todas as áreas […] da mesma maneira sob o ponto de vista dos processos de exploração” (Heydorn, 1972, p. 85). Já que os currículos não só abrangem quase todas as áreas da vida, mas como também devem abranger todas as instituições de ensino, do jardim de infância, passando pelas escolas regulares e profissionalizantes, até as instituições de formação complementar profissional e privada, para Heydorn isso se apresenta como um “planejamento sem lacunas” (Heydorn, 1972, p. 85) no qual a educação no sentido universal deve ser sincronizada com as exigências sociais e econômicas. O interesse do aprendiz, individualmente considerado, só tem ainda espaço no sentido de ele poder eleger prioridades em um contexto de prioridades já elencadas.

A concretização dos currículos, no tocante aos processos de aprendizado a serem realizados nas instituições de ensino, é assegurada pelos objetivos de ensino, que devem ser de tal maneira desenhados ou operacionalizados, que eles sejam passíveis de controle por meio de testes, uma vez que: “controles de objetivos de aprendizado devem ser entendidos como paradas em um processo que é interpretado como um circuito regulador, no qual são comparados valores de referência e valores concretos” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 89).11 Dessa forma são diferenciados níveis diversos de performance, que se manifestam nos “quatro estágios dos objetivos de aprendizagem” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 78). O primeiro implica a simples reprodução de um conteúdo de memória; o segundo manifesta-se na “reorganização autônoma do que foi aprendido” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 79); o terceiro consiste na transferência de princípios básicos do que foi aprendido a outras tarefas e, o quarto, por fim, distingue-se pelo “pensamento para resolver problemas e método de raciocínio descobridor”, que apresentam “o estágio de desenvolvimento do aprendiz a partir das novas capacidades desenvolvidas” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 80). Haydorn vê nos primeiros três estágios uma restauração do sistema escolar tripartido ajustado às circunstâncias modificadas, algo que já se materializou no sistema curricular das Escolas Integradas. No quarto estágio, contudo, ele vislumbra uma “nova teoria de elite” (Heydorn, 1972, p. 89), que no âmbito da abertura da formação continuada para amplas camadas da população, mantém aberta uma porta de seleção para as camadas dominantes. Resumindo:

No lugar do sistema de isolamento, que separa os ramos escolares, entra uma espécie de estratificação de valor aristotélica, só que no estágio mais alto ela não vê a si mesma como razão imaterial no prazer estético, ao se identificar com o ‘top management’ ou com a pesquisa científica. (Heydorn, 1972, p. 88)

Outro elemento do plano estrutural apresenta a diferenciação que lhe é central, uma vez que por meio dela se dá a conciliação concreta entre o interesse individual e as demandas da sociedade: “A diferenciação entre necessidades individuais de aprendizado e as exigências da sociedade tornam necessário um sistema educacional diferenciado” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 70). O plano estrutural faz distinção entre uma diferenciação externa, que envolve os tipos de escola, os ramos, as turmas e os grupos e entre uma diferenciação interna, relativa a conteúdos, mídias e métodos de aula. Além disso, a maneira e o grau da diferenciação relacionam-se com os diversos estágios do sistema escolar, em que o grau de diferenciação aumenta de etapa em etapa. Segundo Heydorn deve-se também introduzir “a seu devido tempo processos de especialização, para fazer a passagem entre estudo, formação profissional e atividade profissional. (…) Deve ocorrer, a partir da escola, uma transição ininterrupta para o mercado de trabalho, sintonizada com as demandas deste” (Heydorn, 1972, p. 89). Essa observação de Heydorn é confirmada pela oferta extensiva de assessoramento que o plano estrutural propõe e na qual os professores precisam ser integralizados como professores conselheiros por meio de formação suplementar. À tarefa da orientação escolar, assim como ao assessoramento profissional, que devem ser desenvolvidos de maneira extensiva e sistemática, é acrescentada a função de administrar possíveis contradições entre interesses individuais e exigências da sociedade: “O sistema educacional não é capaz de resolver conflitos entre necessidades da sociedade e interesses individuais. Contudo, eles podem se tornar mais transparentes e atenuados por intermédio do assessoramento na formação profissional” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 93). Assim cabe em última análise ao professor conselheiro deixar claro ao aprendiz, quando seus interesses não estão de acordo com a sociedade, ou com o sistema de produção, e colocá-lo nos conformes; de igual forma está implícito na responsabilidade do professor que, segundo Heydorn, é alçado a uma nova função no sistema de ensino: “Ele é educador, avaliador, conselheiro, inovador. Ele é o operador de uma tecnologia” (Heydorn, 1972, p. 91).

E, para prosseguir com a caracterização geral de Heydorn, ele inicialmente atribui ao plano estrutural características muito progressistas que podem ser observadas, por exemplo, na equiparação formal por meio de um princípio unificado, no qual ele percebe “a racionalidade avançada através de um planejamento inter-relacionado” (Heydorn, 1972, p. 93), de melhora tanto das “chances de ascensão dos filhos das classes trabalhadoras” (Heydorn, 1972, p. 93), como também na integração da formação profissional com a formação geral. Igualmente Heydorn salienta

que este progresso é altamente dialético. Ele aceita as necessidades da história e as paralisa no interesse de uma ordem social existente. (…) O progresso é confrontado com um significativo avanço dos mecanismos de controle, para encobrir sua perspectiva humana. Os mecanismos de controle são aperfeiçoados pela mesma tecnologia que fomenta o progresso. (…) No relatório, a tecnologia torna-se simultaneamente progresso e meio de paralisação. (Heydorn, 1972, p. 94)

Heydorn vê o núcleo dessa paralisia na transmissão de um conceito científico positivista afilado de forma tecnológica, transferido da ciência para a esfera da sociedade e da educação.12 Essa transferência vem acompanhada da impressão de que os processos de aprendizado possam ser quantificados da mesma forma, de que possam ser planejáveis e utilizáveis, da mesma maneira como isso possa valer para grandezas científicas e econômicas. Embora o planejamento racional seja visto como algo sofisticado por Heydorn, também está presente na forma técnica desta racionalidade o obstáculo para o seu próprio progresso, uma vez que, para serem diretamente mensurados, os processos de ensino devem ser adaptados a exigências relacionadas a seu aproveitamento.

Essa dialética mostra-se claramente na relação entre a formação geral e a profissional. Contrariamente a uma separação abstrata e leiga de ambas, Heydorn vê precisamente na sua ligação um progresso significativo, já que: “Apenas na interdependência entre formação geral e formação profissional é que a formação torna-se um agente, uma alavanca para sua concretização” (Heydorn, 1972, p. 95). Sob o paradigma tecnológico da ciência, no entanto, essa interdependência produtiva dilui-se em seu extremo oposto:

A relação entre a ciência positivista e a formação profissional é a relação do estabelecimento das necessidades da sociedade para a sua máxima exequibilidade. A relação é funcional, não perspectivista. (…) Tudo permanece integrado na imanência dos processos de aplicação, sem força modificadora. (Heydorn, 1972, p. 96)

Essa força modificadora, que poderia introduzir o momento de formação geral na interdependência produtiva, já que inclui a dimensão humana e assim também a história, além de manter aberto o futuro, é aniquilada nesse processo de utilitarização e, com isso, a contradição produtiva é nivelada (Heydorn, 1972, p. 96). O nivelamento do momento da formação geral para favorecer uma suave transição da formação em especialização profissional exclui gradualmente a possibilidade de as pessoas compreenderem-se a si mesmas como sujeitos da história e de tomarem parte de sua transformação.

Neste contexto permanece aberto para Heydorn apenas um caminho:

Só se pode almejar romper a reforma positivista em sua progressão. Formação profissional, cujo caráter elevadamente universal anuncie a crescente obsolescência do conceito de classe, deve ser vinculada a uma formação geral, que deve oferecer à pessoa a possibilidade de estabelecer-se como sujeito histórico. Apenas dessa forma produz-se um contexto que não permite ao mundo científico e humano desmoronar, tornando reconhecível a similaridade dos seus elementos através da história da evolução humana. Uma associação desta natureza para o benefício das pessoas torna-se de fato apenas hoje em dia possível. (Heydorn, 1972, p. 98)

Aqui é evidenciada a concepção de que as pessoas aprendem a entender-se a si mesmas como agentes de sua história, de que por meio do desenvolvimento tecnológico não precisa mais ter papel central a subsistência no embate com a natureza, de que pode tornar-se sua missão a criação livre e produtiva de seus relacionamentos. Para Heydorn esse caminho ainda está aberto, mesmo que ele tenha ficado totalmente encoberto pela reforma, da maneira como ela é exposta no plano estrutural.

Capital humano e padrão de ensino – a atualização

As extensas passagens de Heydorn anteriormente citadas demonstram de maneira impressionante como elas podem ser quase diretamente transferidas para a nossa situação atual. Mas, antes que esta transferência possa entrar em foco, analisemos primeiramente as continuidades e as diferenças com a reforma que nos remete às iniciativas Bolonha e PISA, algo convincentemente demonstrado nos respectivos fundamentos dessa reforma. Saul B. Robinson enumera, no seu texto “Reforma do Ensino como Revisão do Currículo”, de 1967, três abordagens relevantes para a reforma daquela época: “a) a abordagem econômico-estatística e b) a sociopolítica e […] c) a abordagem da ‘tecnologia’ e ‘racionalização’ da aula” (Heydorn, 1972, p. 127). A abordagem econômica-estatística justifica a reforma com aspectos orientados para necessidades econômicas, enquanto a abordagem sociopolítica compreende a educação menos como necessidade econômica e mais como um direito civil, para o que, Robinson cita Dahrendorf como referência (Heydorn, 1972, p. 129). O terceiro enfoque, o tecnológico, é mais caracterizado enquanto proposta de reforma de ensino, cuja referência à “aula programada”,13 em Robinsohn, sugere o seu contexto behaviorista. Faz parte da ambiguidade da reforma educacional dos anos 1970 poder se reencontrar todas as três abordagens no Plano Estrutural e reivindicá-las para si: o econômico-estatístico, por causa da forte orientação por demanda e o planejamento de ensino e gestão baseados na estatística; o sociopolítico, devido à maior leniência das instituições de ensino para com as camadas mais distantes da educação; o tecnológico do ensino por causa da teoria educacional e da racionalização do ensino por meio de métodos orientados por currículos e objetivos de aprendizado.

Neste contexto, analisando-se as reformas, que já nos ocupam há mais de 15 anos, pode-se dizer que a abordagem sociopolítica perdeu totalmente a importância e apenas volta à lembrança quando o Estudo PISA renovadamente expõe a extrema interdependência entre pobreza e acesso deficiente à escola na Alemanha – mas é uma imagem rapidamente fadada ao esquecimento. No que tange ao paradigma behaviorista da abordagem tecnológica, entrementes ele se transformou totalmente em um paradigma teórico-sistêmico construtivista, a partir do qual é dada continuidade aos fundamentos do conceito de competência, ao qual Ludwig Pongratz se refere:

O conceito de competência, muito em voga na reforma atual, com certeza não é a solução: ele é o problema. Sobretudo na sua forma de ler construtivista, ele sugere uma súbita autocriação: cada um se torna a origem de seus próprios modelos de interpretação e horizontes de valores: cada um torna-se produtor de seu próprio sentido, pelo qual ele vai se orientar. (…) Ou seja, sentimento (e não reflexão) revela-se como marco desta percepção de competência”. (Pongratz, 2009, p. 7314)

Enquanto o enfoque sociopolítico anda esquecido e o paradigma tecnológico se transformou de behaviorista em construtivista, o enfoque econômico-estatístico, no entanto, mostra-se ainda mais relevante. Ele constitui ao mesmo tempo a continuidade ininterrupta entre o Plano estrutural e a reforma que se seguiu a ele na nossa situação atual. Como a crítica de Heydorn volta-se principalmente às partes do plano estrutural que podem ser relacionadas a essa abordagem, justifica-se na continuidade dessa abordagem também a atualidade da sua crítica. Se começarmos a procurar, no cenário atual da reforma de ensino, por um documento comparável ao Plano estrutural, podemos encontrá-lo especialmente no relatório de especialistas Para um desenvolvimento de padrões educacionais nacionais (Klieme et al., 2007), que foi apresentado em 2003 por Eckhard Klieme e um grande grupo de outros cientistas da educação, cuja tarefa consiste em: “esclarecer tecnicamente o conceito do padrão de ensino e apresentar para ele uma concepção global de como padrões educacionais deveriam ser estabelecidos para o sistema de ensino alemão e como eles poderiam ser desenvolvidos e utilizados” (Klieme et al., 2007, p. 11). A necessidade de uma renovada concepção de padrões de ensino deveu-se a que, como consequência dos resultados relativamente ruins dos alunos alemães nas provas comparativas internacionais PISA e TIMSS,15 o Ministério da Educação já em 2002 havia aprovado padrões de ensino para algumas matérias, no entanto sem uma concepção abrangente do que deveria valer afinal como padrão de ensino.

Como renovação significativa neste conceito de padrão educacional é definida pelos autores a coerente orientação de output:

Se o nosso sistema educacional foi até agora exclusivamente direcionada pelo “input”, isto é, por meio de planos de orçamento, planos de aula e políticas diretivas, requisitos de formação para os professores, diretrizes de avaliação, etc., a partir de agora será sempre mais frequente o discurso de que a política educacional e o desenvolvimento das escolas deveriam se orientar pelo “output”, ou seja, pelos desempenhos da escola, principalmente pelos resultados de aprendizado das alunas e dos alunos. (…) O output torna-se assim um ponto decisivo de referência para a avaliação do sistema escolar e para medidas de aperfeiçoamento e desenvolvimento. (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 61)

Mesmo que isso seja considerada uma reatualização da crítica do Plano Estrutural à simples relação de conteúdo dos planos de aula (Stederoth, 2016, pp. 8-32) e da necessidade de organizar a formação de acordo com objetivos de aprendizado, o pensamento curricular já tinha em vista que para a organização dos objetivos de aprendizado, portanto para o output, também era necessária a organização dos métodos e materiais da aula, portanto, do input. Algo que, devido à posição dos especialistas, é relegado à indiferença: em última instância não tem importância se a competência da leitura é obtida pela leitura de um clássico ou pela leitura de um manual de instruções – central é, apenas, que os alunos e, por extensão, os formandos, dominem essa competência e possam colocá-la como capital humano à disposição das exigências da economia.

Mas, há ainda uma consequência adicional nessa orientação de output: a mensuração do output torna-se a questão central da pesquisa educacional e do acompanhamento científico da reforma. O crescimento exponencial da pesquisa educacional empírica, a distribuição desproporcional de recursos para projetos de pesquisa da mensuração de competência, a introdução extensiva de medidas de controle nas instituições de ensino, a introdução dos ECTS16 no ensino superior – tudo indica para onde se vai, quando o ensino é organizado pela lógica do output. Trata-se da produção e da gestão empresarial de capital humano na medida em que os padrões a serem controlados são definidos pela economia (BMBF, 2004). Que tal exacerbação não seja a tese pós-factual de um teórico da conspiração, mas algo discutido com total transparência, pode ser constatado nas palavras de saudação do representante do BMBF,17 Herbert Diehl, em um seminário de 2004, organizado pelo BMBF sobre o tema “Bem de Investimento Educação” (BMBF, p. 3), em que declara:

Nós todos sabemos: o apelo de Lisboa, de tornar a Europa o espaço econômico mais competitivo baseado no conhecimento, somente pode ser atendido se os recursos humanos necessários para o desenvolvimento de nossa economia e sociedade estiverem disponíveis tanto hoje quanto no futuro. (OECD, 2008, p. 31)

Enfim, o relatório da OECD Educação em um Olhar 2008 expõe com extrema clareza, qual ênfase deve ser estabelecida: “Uma tarefa primordial dos sistemas educacionais consiste em abastecer o mercado de trabalho com a quantidade e a variedade de competências de que os empregadores necessitam” (Klieme et al., 2007, p. 19) Trata-se, portanto, da produção de recursos humanos, de capital humano, e da adaptação, na medida do possível, do mesmo às necessidades do mercado de trabalho. Se nesse contexto fizermos uma retrospectiva à crítica de Heydorn, então o que ele aborda criticamente no Plano Estrutural tornou-se, nesse ínterim, uma evidente obviedade. O problema da pesquisa atual de ensino não é que em nosso sistema de ensino primariamente se trate da utilidade do ensino e de seu respectivo ajuste a uma forma empresarial, mas muito mais a questão da concepção efetiva do padrão de produção, assim como seu planejamento e gestão empresarial.

Seria de se comprovar se o que o relatório Klieme entende como “padrão de ensino”, confirma isso. No relatório consta:

Padrões de ensino, como são concebidos neste relatório, abrangem objetivos gerais de ensino. Eles nomeiam as competências, as quais a escola deve transmitir às suas alunas e alunos para que determinados objetivos centrais de ensino sejam alcançados. Os padrões de ensino estabelecem quais competências as crianças ou jovens devem ter adquirido até certo grau de escolaridade. As competências são descritas tão concretamente, que elas podem ser convertidas em tarefas e ser coletadas com o auxílio de procedimentos de teste. (Klieme et al., 2007, p. 62)

Pontos de partida são, portanto “objetivos de ensino gerais”, e o relatório se refere ao “consenso prático” (Klieme et al., 2007, p. 63), de acordo com o qual o sistema de ensino deveria “preparar para o papel de cidadão” (Klieme et al., 2007, p. 63), o que implica “atuar como cidadão responsável de forma autossuficiente”.18 No entanto, o problema consiste em que objetivos tais como “responsabilidade” não se deixam operacionalizar consensualmente (OECD, 1991, p. 68), pelo que o foco dirige-se para competências, que desde o princípio são voltadas para sua operacionalização. Que uma “discussão autêntica sobre questões comumente reconhecidas” da nova avaliação do sistema educacional somente pode ocorrer na base de “informações e indicadores estatísticos”, já foi constatado no relatório internacional da OECD de 1991 sobre “Escola e Qualidade”, cujo original foi publicado em 1989 (Klieme et al., 2007, p.32), ao qual o relatório se refere explicitamente. O que não se deixa medir e, por conseguinte, também não se deixa gerir economicamente, não pode ter um papel central no sistema educacional - o desfile triunfal do entendimento científico positivista temido por Heydorn parece anunciar aqui sua última investida.

Contudo, de onde devem provir as competências operacionalizáveis, se elas não são concretizáveis a partir dos objetivos educacionais gerais consensuais? Também sobre isso o já mencionado relatório da OECD – Education at a Glance 2008, dá uma ideia clara, quando nele é destacada uma deficiência na padronização internacional de competências:

Em uma comparação dos níveis de escolaridade atingidos em cada país (…) pressupõe-se que os conhecimentos e habilidades transmitidos em uma área de formação sejam iguais em todos os países. No entanto, a constituição das habilidades e conhecimentos do capital humano varia muito de país para país e depende da estrutura da economia e do grau de desenvolvimento econômico geral (…). A classificação internacional padrão das profissões (ISCO) oferece uma (…) possibilidade de relacionar o output do sistema de ensino com o mercado de trabalho. Afinal, as classificações das profissões relacionam-se com o grau do desenvolvimento econômico e a procura por habilidades e conhecimentos e, assim, servem como uma grandeza mensurável para a necessidade geral de formação. (OECD, 2008, p. 31)

O sonho que é aqui acalentado e possivelmente também realizado, é o de um monitoramento internacional padronizado da formação, no qual todos os componentes se engrenam como um mecanismo de relógio, em que o “mecanismo industrial perfeito” diagnosticado por Heydorn tomaria uma proporção tal, com a qual o próprio Heydorn provavelmente só poderia ter pesadelos.

O que fazer? – uma perspectiva

Esse pesadelo, que se tornou uma realidade espantosa nas fábricas de ensino no Japão e na Coréia do Sul, parte sempre de um princípio, o de que o ensino de competências imediatamente utilizáveis é o caminho mais apropriado para a satisfação das necessidades econômicas; esse pressuposto está baseado em um modo de pensar mecânico, que funciona de acordo com o princípio key-lock. Se pegarmos, por exemplo, a competência técnico-científica, a competência matemática e também a competência de leitura extremamente pragmática, não como elas se apresentam nos testes PISA, mas – como já mencionado – da maneira como foram estabelecidas no National Defence Education Act (NDEA), de 1958, então com essas competências principais são focados, sobretudo, contextos técnicos, que se aproximam de uma problemática e de uma forma de pensar correspondente. Por outro lado, em contrapartida, contextos sociais, todo o campo do motivacional, da personalidade com suas disposições psíquicas e normativas, assim como o campo do criativo, tudo é excluído de um acesso mecânico dessa natureza, por isso eles somente se deixam parcamente ou de forma alguma operacionalizar em forma de teste.

Face ao cotidiano da Pessoa Flexível, como Richard Sennett já o descreveu enfaticamente no final dos anos 1990 (Sennett, 1998) são, porém, exatamente essas competências que deveriam distinguir uma pessoa nessa vida opaca e multifacetada. Para uma participação produtiva nessa vida impregnada de situações mutáveis e contextos sociais, necessita-se mais ainda de habilidades sociais e comunicativas, assim como das vantagens de uma autorreflexão e uma reflexão crítica sobre o ambiente, do que de competências especializadas e orientadas para a profissão. E, assim, se poderia argumentar com uma pragmática contundente: de que servem ao mercado de trabalho especializado trabalhadores qualificados que, depois de 20 anos de repressão ininterrupta, lotam as psiquiatrias com burnout ou sintomas neuróticos, porque não aprenderam a integrar à sua personalidade as exigências dos diversos contextos e situações, dos quais a sua vida está impregnada, e, devido à falta de competências pessoais, sempre reprimiram as crises, ao invés de trabalhá-las refletidamente.

Resumindo: as instituições de ensino precisam focar exatamente no oposto do que gradualmente foi nelas inscrito a partir do “choque do Sputnik”. Elas precisam afastar-se de conteúdos educacionais utilizáveis e concentrar-se novamente nas pessoas. Heydorn vai direto ao ponto no final do seu texto Por uma nova edição do conceito de ensino, quando ele escreve contra a lógica da exploração do seu tempo: “nas condições atuais, será importante formar a pessoa para a sua universalidade, que já está alicerçada em sua tendência. Isto significa formação de todo o seu organismo como desenvolvimento de sua autoconsciência” (Heydorn, 1972, p. 150). Essa perspectiva aparentemente contraintuitiva pode igualmente servir como fio condutor para a situação atual, pois – poderíamos dizer por outro lado de maneira pragmática – somente uma personalidade formada de maneira integral possui a competência de suportar as condições reais e, acrescente-se ainda, que somente essa personalidade estaria apta a abraçar as possibilidades históricas e gradualmente configurar as condições para tornarem-se mais suportáveis.

O que fazer? Que seja, neste sentido, referida a perspectiva do resultado em aberto de Heydorn: “É necessário delinear a antítese, sobre a qual somente a história humana se mantém. Esta é uma coisa difícil, já que ninguém pode sair da sociedade, a antítese quer ser desenvolvida a partir do seu próprio corpo” (Heydorn, 1972, p. 101).

1Tradução do alemão realizada por Adilsom Eskelsen.

2Ver a terceira parte da Resolução: “Financial assistance for strengthening science, mathematics, and modern foreign language instruction”, além da quinta parte: “Guidance, counseling, and testing; identification and encouragemen to fable students”.

3“Por meio dos programas de formação visava-se a um duplo objetivo: por um lado, os participantes deveriam apropriar-se das teorias gerais e das estratégias do planejamento educacional e, por outro lado, visava-se à adesão dos participantes a ideologias embasadoras destas teorias: o processo de estandartização das políticas educacionais necessitava de atores que deveriam ser formados” (Tröhler, 2013, p. 70).

4Ver Gary S. Becker (1964) e Schultz (1960).

5Neste relatório estatístico são apresentados e avaliados diversos indicadores estatísticos em comparação internacional (países da OCDE e outros). O relatório atual de 2015 tem um volume de mais de 700 páginas na versão alemã.

6A respeito das seções da OCDE relacionadas com a educação na contemporaneidade, ver: Jacobi (2007, pp. 166–181).

7Ver também: Heydorn (1970, p. 303).

8Destaques no original.

9Nota do tradutor: abreviatura de Partido Socialista Unificado da Alemanha.

10Assim como a pesquisa neurobiológica do aprendizado parte de uma “transição mais ou menos oscilante entre o que é inato e o que é aprendido, em muitos desempenhos comportamentais ambos os componentes se confundem. Isto significa que quase todo comportamento de alguma forma é modificável através de experiência individual e exercício. Porém ao mesmo tempo todas as competências de aprendizado precisam de condições estruturais e funcionais no sistema nervoso e no repertório de conduta, os quais não são novamente aprendidos, mas devem estar inerentemente disponíveis” (Menzel & Roth, 1996, p. 239).

11“A construção de currículos requer que para cada área de aprendizado sejam desenvolvidos objetivos de aprendizado. Estes objetivos de aprendizado serão escalonados temporalmente e no conteúdo representarão uma sucessão de objetivos de aprendizado cada vez mais complexos. Os objetivos de aprendizado devem ser hoje definidos mais claramente em todos os níveis, para que se expresse claramente quais aptidões e formas de pensamento um aprendiz deve possuir. Uma operacionalização dos objetivos de aprendizado desta natureza permite controles objetivos” (Deutscher Bildungsrat, 1970, p. 82).

12“Ciência surge na concepção positivista do capitalismo tardio. Ela tem a ver com mensuração, valoração, estatística, visa à quantificação. Ela orienta-se por processos de conhecimento das ciências naturais e procura transpô-los aos contextos sociais” (Heydorn, 1972, p. 4).

13Ver Correll, 1965.

14Ver com relação a sua crítica ao paradigma construtivista na Pedagogia: Pongratz (2005).

15Nota do tradutor: Trends in International Mathematics and Science Study.

16Nota do tradutor: European Credit Transfer System.

17Nota do tradutor: Ministério da Educação e da Pesquisa.

18Objetivos educacionais sonoros e ambiciosos, tais como “responsabilidade”, ou seja, a habilidade de participar responsavelmente de uma sociedade democrática, não se presta a uma discussão de mensuração empírica. Mas até agora não há consenso sobre a operacionalização adequada (Klieme et al., 2007, p. 64).

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Recebido: 14 de Outubro de 2019; Aceito: 25 de Março de 2020; Publicado: 02 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Universidade de Kassel, Alemanha. Mönchebergstraße 19, 34125 Kassel, Alemanha d. stederoth@uni-kassel.de

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