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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.3 Porto Alegre set./dez 2021  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.3.37364 

Outros Temas

Autoridade, obediência e disciplina na educação: reflexões sobre o discurso do Movimento Escola Sem Partido e dos apoiadores da militarização escolar

Authority, obedience and discipline in education: reflections on the discourse of the School Without Party Movement and supporters of school militarization

Autoridad, obediencia y disciplina en la educación: reflexiones sobre el discurso del Movimiento Escuela Sin Partido y de los apoyadores de la militarización escolar

Bruno Antonio Picoli1 

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó, SC, Brasil. Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0001-6831-2199

Milena Caregnato1 

Licenciada em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-0560-7712

Roberta Guimarães1 

Licenciada em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-2874-3044

1Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó, SC, Brasil.


Resumo:

O presente artigo procura refletir sobre o discurso empreendido pelo Movimento Escola Sem Partido (MESP) e pelos apoiadores do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) sobre autoridade, obediência e disciplina e a noção de Arendt de "autoridade na educação". Por meio de pesquisa bibliográfica define o conceito de "autoridade na educação" e, a partir de manifestações publicadas por apoiadores do MESP e do PECIM, as suas concepções de autoridade, obediência e disciplina. Após contrastá-las, conclui que a concepção de autoridade, obediência e disciplina do MESP e do PECIM expõe a democracia ao perigo porque limitam a educação à autoridade inquestionável e à obediência cega. Por fim, a partir da noção de "autoridade na educação", reflete e propõe uma provocação sobre o que pode ser, então, a obediência e a disciplina na educação em uma sociedade que se pretende democrática.

Palavras-chave: escola sem partido; militarização; autoridade; obediência; disciplina

Abstract:

This article seeks to reflect on the discourse undertaken by the School Without Party Movement (MESP) and by the supporters of school militarization (PECIM) on authority, obedience and discipline and the Arendt's notion of "authority in education". Through bibliographic research it defines the concept of "authority in education" and, based on manifestations published by supporters of MESP and PECIM, their conceptions of authority, obedience and discipline. After contrasting them, it concludes that the concept of authority, obedience and discipline of MESP and PECIM exposes the brazilian democracy to a radical danger because they limit Education to unquestionable authority and to blind obedience. Finally, based on the notion of "authority in education", it reflects and proposes a provocation about what can be the obedience and the discipline in education in a society that want to be democratic.

Keywords: school without party; militarization; authority; obedience; discipline

Resumen:

Este artículo busca reflexionar sobre el discurso emprendido por el Movimiento Escuela Sin Partido (MESP) y por los partidarios de la militarización escolar (PECIM) sobre la autoridad, la obediencia y la disciplina y la noción de Arendt de "autoridad en educación". A través de la investigación bibliográfica, define el concepto de "autoridad en la educación" y, basándose en las manifestaciones publicadas por los partidarios de MESP y PECIM, sus concepciones de autoridad, obediencia y disciplina. Después de contrastarlos, concluye que el concepto de autoridad, obediencia y disciplina del MESP y el PECIM expone a la democracia brasileña a un peligro radical porque limitan la educación a una autoridad incuestionable y a una obediencia ciega. Finalmente, basado en la noción de "autoridad en educación", refleja y propone una provocación sobre lo que puede ser la obediencia y la disciplina en educación en una sociedad que pretende ser democrática.

Palabras clave: escuela sin partido; militarización; autoridad; obediencia; disciplina

"Raciocinai, tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes, apenas obedecei!" (Kant, 2012, p. 153). A frase de Kant foi publicada em 1784 e nela o autor estressa uma das necessidades elementares da vida em sociedade: a obediência. Interessante que a sentença conste no seu ensaio mais influente em termos de educação, ou seja, no qual afirma que é pela educação que o ser humano se humaniza e em que estabelece que todo o empreendimento iluminista compreende um esforço educativo de uma época em esclarecimento (Kant, 2012, p. 151). Por outro lado, enfatiza também que um projeto educativo que interdita a liberdade, em que os "tutores" estão preocupados em manterem-se tutores, ou seja, em dirigir os destinos, interdita também a autonomia intelectual, a humanização: "Depois de terem, primeiramente, estupidificado seu gado doméstico e terem certeza de que essas plácidas criaturas não ousariam dar um passo sem o andador em que as puseram, mostram-lhes o perigo que as ameaça se experimentarem andar sozinhas" (Kant, 2012, p. 145). Não se quer entrar no mérito dos problemas do pensamento educacional iluminista, assim como dos problemas da definição a priori do que é um ser humano pleno (autônomo intelectual) o que deixava em situação difícil aqueles que ainda não estavam aptos para tal (as crianças), que já não estavam mais (os idosos e enfermos) e que por diversos motivos não estariam durante toda a vida (Biesta, 2018, p. 26).

Nos interessa aqui a ênfase na importância de obedecer. Kant sustenta que, em uma sociedade esclarecida, não há contradição entre pensar e obedecer. Sempre que se fala em obedecer é necessário estabelecer um objeto dessa obediência, ou seja, alguma coisa, instituição ou alguém que detém a autoridade digna de obediência, que inspire disciplina. O entendimento kantiano reverberou em autores nem tão kantianos, como Arendt e Milgram. Milgram (1963) afirma que é impossível viver em sociedades complexas sem um mínimo de obediência às leis, ao Estado, às forças de segurança, às tradições, enfim, às instituições em geral. Arendt não nega a importância do binômio autoridade/obediência, nem mesmo o entendimento kantiano de que é possível desvirtuar essa relação no sentido de exercer o império sobre a mente e as ações de indivíduos. Com essa lente, embora não só com ela, se propôs a analisar o fenômeno totalitário. Não foi sem escândalo, também, que ouviu da boca de Adolf Eichmann, durante seu julgamento em Jerusalém, que ele agiu como agiu durante a execução da Solução Final, porque obedecia fielmente ao Imperativo Categórico kantiano (Arendt, 1999, p. 153), embora o fizesse apenas de uma forma distorcida, já que as ações de um assassino não passariam sequer pela primeira máxima (Kant, 2018, p. 62). Contudo, por mais que Arendt salienta a importância da autoridade, afirma também que, há muito, nós, ocidentais, não sabemos o que isso significa (Arendt, 2016). Para a autora, a autoridade entrou em crise ao mesmo tempo em que a política entrou em ocaso, então, não faz mais sentido falarmos em autoridade, exceto em um campo específico da atividade humana que é impossível sem ela: a Educação.

O discurso de devolver a autoridade à educação e, logo, restituir a disciplina por meio da obediência, embala movimentos os mais diversos na contemporaneidade, talvez porque efetivamente sentimos agora, mais do que antes, a crise de autoridade e o ocaso da política. Destacam-se, como corolário do recrudescimento das relações e dos efeitos da própria crise, as propostas de reformas educacionais de movimentos neo/ultraconservadores. Em alguns países desenvolvidos, como EUA e Reino Unido (Apple, 2000; Rubin, 1972), esses grupos pautam muitas das discussões no campo educacional desde fins dos anos 1960. Não é coincidência que, no caso americano, isso se dá no período da integração racial que, críticas à parte, teve lugar na escola a partir do fim da década de 1950 (Arendt, 2004). No Brasil, muito em razão do atraso na universalização da Educação Básica e da interdição às reformas progressistas em curso na década de 1960 pelo Golpe Civil-Militar de 1964, experiencia-se agora a emergência desses grupos de forma organizada e propositiva. Para ficar claro, as demandas desses segmentos eram, em grande medida, atendidas pelo deficitário modelo de educação até então vigente, desde o acesso até o currículo, e foi com a redemocratização que seus interesses e privilégios passaram a sofrer concorrência. Dessa grande frente neoconservadora se destacam, no campo educacional, as ações do Movimento Escola Sem Partido (MESP) e a criação, via decreto, do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM). O MESP e os defensores PECIM usam, em vários momentos, do argumento de que o modelo de educação brasileiro fracassou em resultados e que perdeu a autoridade, assim, arrogam-se na condição de oferecer as soluções. Afirmam, também, que reestabelecerão e resguardarão a autoridade, manterão a disciplina e que o professor é a "autoridade máxima" em sala de aula e que, em razão disso, deve ser obedecido.

Nesta reflexão, a partir de referenciais bibliográficos e da análise de manifestações de apoiadores do MESP e do PECIM, buscaremos refletir sobre o que é autoridade na educação; qual a compreensão de autoridade, obediência e disciplina dos grupos neoconservadores brasileiros materializadas nas proposições do MESP e do PECIM; como elas, mesmo em diferentes frentes, se aproximam; e que tipo de relação/adesão elas produzem e, por fim, se há relação entre a concepção de autoridade desses movimentos e programas com a noção de "autoridade na educação". Para enfrentar essas questões, o artigo está organizado em quatro partes. Na primeira parte, discute-se o conceito de "autoridade" e "autoridade na educação". Na segunda, reflete-se sobre a emergência do MESP como movimento neoconservador organizado. Na terceira, discute-se o PECIM e os argumentos utilizados pelo Poder Executivo Federal que o apresentam como solução para os problemas educacionais brasileiros. Na quarta, enfrenta-se a questão do que é autoridade, obediência e disciplina para os apoiadores do MESP e do PECIM e em que medida essas concepções se aproximam entre si e se aproximam ou se distanciam da noção de "autoridade na educação". O argumento que se sustenta é que a concepção de autoridade, obediência e disciplina do MESP e do PECIM é perigosa porque oferece a autoridade inquestionável e a obediência cega como única relação possível, o que fragiliza e, mesmo ameaça à democracia e coloca o mundo, enquanto lugar da pluralidade, em perigo. Por fim, à guisa de conclusões, após enfrentar essas questões e em atenção à advertência de que a obediência não pode ser cega (Kant, 2012, p. 148; Arendt, 1999, p. 153) e à ideia de autoridade na educação de Arendt (2016), reflete e propõe uma provocação sobre o que seria, então, a obediência e a disciplina na educação em uma sociedade que se pretende democrática.

Autoridade e educação, autoridade na educação

Milgram (1963, p. 371) afirma que a "obediência é um elemento básico na estrutura da vida social", tão essencial que implica propósitos e destinos de uma coletividade. Todavia, afirma também que, há muito tempo, a ideia de obediência tem sido utilizada como justificativa para "crimes hediondos", dentre eles genocídios. Há, portanto, uma distorção da obediência no sentido de uma "obediência cega" e desresponsabilizadora atrelada a uma ideia de "autoridade" também distorcida. Arendt (2016) afirma que o conceito de "autoridade" sofre, desde os primórdios da modernidade, os efeitos uma crise cujo auge foram os regimes totalitários do século 20. Desse modo, para ela, não se deveria mais pensar o que é a autoridade, mas o que foi a autoridade (2016, p. 127), isto é, "tanto prática como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é" (Arendt, 2016, p. 129). Entretanto, a fim de que não se confunda com, e faça-se distinções entre governos autoritários, totalitários e tirânicos, Arendt compôs um conceito provisório de o que não é autoridade. Faz-se necessário compreender que a autoridade é facilmente confundida com forma de poder ou violência, pelo fato dela exigir obediência, porém, ao buscar obediência com uso da violência, isto é, ao fazer uso de "meios de coerção externos", aí já não existe autoridade.

A autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso (…) se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos. (Arendt, 2016, p. 129)

Visto isto, é importante entender quais foram as consequências dessa crise para o mundo político moderno, como afirma Arendt as "novas" maneiras de fazer o mundo/política, mexeram não apenas, nem primordialmente com a autoridade, mas sim, com os três pilares que, segundo a autora, garantiam a estabilidade da sociedade: a tradição, a religião e, só por fim, a autoridade, criando, por conseguinte, um efeito dominó na articulação do mundo moderno a partir de crises. Arendt afirma que "com a perda da tradição, perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado" (2016, p. 130), mesmo que esse fio por vezes possa acarretar uma predefinição do presente, e inclusive do futuro, cortá-lo totalmente é deixar a sociedade à mercê da ameaça do esquecimento, que por sua vez, resulta na privação da dimensão da profundidade, que para Arendt é equivalente à memória ou pelo menos à recordação. Há, portanto, uma ilusão de progresso, que foi essencial para a constituição da crise da autoridade que implica a possibilidade de reexperienciar a tirania e o totalitarismo em novas roupagens, já que em razão do esquecimento (pela perda de referenciais de autoridade) não estamos mais em condições de identificá-los (Adorno, 1995).

Considerando que "a autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado como sua inabalada pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres humanos necessitam" (Arendt, 2016, p. 131), sua perda significa, resumidamente, na perda do fundamento do mundo. Somada com a crise dos outros pilares, faz com que se viva em um mundo que se modifica com muita rapidez "como se estivéssemos vivendo e lutando em um universo proteico" (Arendt, 2016, p. 132), onde qualquer coisa, a qualquer momento, pudesse vir a se tornar outra coisa ou ter outro significado, visto isso, a crise da autoridade pode ser considerada equivalente à perda da segurança e/ou permanência do mundo político. O desvirtuamento do conteúdo da autoridade e a subversão da obediência tornou possível que o "não matarás" transfigurasse-se em "matarás" em um dos episódios mais terríveis da história humana (Arendt, 1999). Arendt (2016, p. 186-187) afirma que

viver em uma esfera política sem autoridade nem a consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os que o detêm significa ser confrontado de novo. Sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, auto evidentes, com os problemas elementares da convivência humana.

Não obstante, a crise da autoridade, de natureza e raiz política, não permaneceu restrita à tal esfera, chegando em seu sintoma mais significativo ao "ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação" (Arendt, 2016, p. 128), em que a autoridade era aceita da maneira mais natural possível, já que a criança, vista como estrangeira em um mundo que não conhece, precisa ser guiada a fim de conhecê-lo e ter condições de nele se inserir. Para a autora, a educação não pertence à esfera pública, que é o mundo, a política, assim como não pertence à esfera privada, que é a família. Pode-se dizer que a educação compreende a transição da segurança da família para os perigos do mundo público. Já a escola é a instituição que interpomos entre a família e o mundo. Por estar nesse "meio do caminho" é que, segundo Arendt, se faz necessário na educação o resgate da autoridade e, na escola, a mais importante autoridade, já que detém a maior responsabilidade, é a do professor, pois "o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade" (2016, p. 239), Arendt continua

Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir o mundo acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por esse mundo.

A educação compreende, em Arendt, a transição entre essas esferas e a escola a instituição que se preocupa em oferecer as condições. Essa transição é, concomitantemente, uma exclusividade e uma necessidade humana, já que os neófitos humanos, como algo mais do que simplesmente membros de uma espécie que habita o Planeta, passam por dois nascimentos distintos e possuem duplo aspecto (Arendt, 2016, p. 234) podem inserir novos começos e transformar o mundo, mas, para isso, precisam do mundo, de um espaço aberto à novidade. Nas palavras de Arendt (2016, p. 239), na "medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa chegue à fruição em relação ao mundo como ele é". A educação, então, também possui duplo aspecto: precisa proteger a criança, ou melhor, a possibilidade da novidade, mas não pode abandonar o velho, o mundo, já que é a própria existência do mundo enquanto um complexo humano marcado pela pluralidade que oferece as possibilidades para a natalidade, para o ingresso do novo. A dimensão conservadora da Educação se dá porque se quer conservar duas coisas: o mundo enquanto espaço público e, portanto, marcado pelas inúmeras manifestações de humanidade, e a criança, o potencialmente novo.

A autoridade do professor é muito diferente da autoridade outrora presente no mundo político. Ela não tem o objetivo de homogeneização, muito menos o de dar ordens. A autoridade do professor está na responsabilidade de formar seus alunos, ou seja, o professor é uma figura de autoridade na medida em que esse precisa ser uma figura respeitável para conseguir assumir seu papel de representante do mundo na sala de aula. Ela se manifesta constantemente na postura com relação a sua dupla responsabilidade, com o mundo e com o novo. Ou seja, pela manifestação sempiterna de seu amor pelo mundo. A autoridade do professor, embora não prescinda da qualificação, reside na dimensão ética de sua postura em sala de aula.

Ainda é preciso muito debate a respeito da melhor maneira de, como professor, exercer da "autoridade na educação". Aí vê-se a importância do professor como um profissional especialista na área que atua e com proficiência no que está transmitindo aos alunos, além da importância do investimento e da valorização dos cursos de licenciatura para a formação de cada vez mais docentes qualificados. A "autoridade na educação" implica assumir a responsabilidade pelo mundo em sala de aula em uma educação conservadora, não de conservadorismos políticos, mas sim de retomar a tradição a muito tempo em crise no mundo político, a fim de transmitir, repensar e criticar valores. Adorno reafirma a importância de se fazer isso quando fala "a elaboração do passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito, reforçando a sua autoconsciência e, por esta via, também o seu eu" (2008, p. 12), ou seja, o passado é essencial para conhecer o mundo que se vive e, ainda mais importante, é um fardo necessário: conhecer o passado para não esquecer das barbáries cometidas pela humanidade e só assim buscar meios para não reingressar nelas em suas novas roupagens. Muitas dessas barbáries estavam e estão alicerçadas na distorção da relação disciplinar entre autoridade e obediência.

Movimento Escola Sem Partido como manifestação do neoconservadorismo brasileiro

O avanço do neoconservadorismo é um fenômeno que ganhou espaço no debate público em todo o globo. Apple (2000) aponta os anos seguintes ao final da Segunda Guerra, mais precisamente nos anos de 1960, como o período de seu surgimento. Juntamente com os neoliberais, os populistas autoritários e a nova classe média profissional, os neoconservadores, segundo Apple (1997), formam a Nova Direita, grupo crítico ao Estado de Bem-estar Social que julgava a crise de 1970 nos Estados Unidos uma consequência das avarias dos movimentos e das transformações sociais ocorridas na década anterior. Considerando como o único caminho para sair da crise a restauração de valores que tinham como base central a família, a moral e o indivíduo, tais grupos mobilizaram-se para recuperar os "verdadeiros valores" dos Estados Unidos da América. Löwy (2015) discorre sobre a ascensão política e social de forças de extrema-direita, fascistas e racistas nos países europeus e no Brasil. Comparando o caso francês com o brasileiro, Löwy aponta dois fatores em comum no que se refere ao conservadorismo reacionário nos dois países: o culto à violência policial e a intolerância que, no caso brasileiro, parte da bancada evangélica neopentecostal. Mesmo fazendo uma leitura errônea do contexto conservador e da extrema-direita no Brasil ao afirmar que "grupos neofascistas existem, porém são marginais" (p. 662), Löwy já destaca o fato do crescente potencial conservador brasileiro onde "o chamado a uma intervenção militar, o saudosismo da ditadura militar, é sem dúvida o aspecto mais sinistro e perigoso da recente agitação de rua conservadora no Brasil" (p. 663). Não são marginais. Ao contrário, manifestam o que Adorno (1995, p. 30) chama de corrosão interna da democracia pelos grupos de tendência fascista, ou seja, do uso das instituições democráticas para a destruição da própria democracia. Miguel (2016) afirma que os grupos neoconservadores brasileiros atuam de forma mais organizada desde o início da segunda década do século 21 e que se distribuem em três grupos principais: libertarianistas, fundamentalistas religiosos e anticomunistas. Deve-se destacar que apenas o segundo grupo possui uma bancada consolidada no Congresso Nacional.

O Poder Executivo atual é produto da ação desses grupos e mobiliza pautas que interessam à agenda neoconservadora, especialmente no campo cultural. Antes mesmo da eleição de Bolsonaro, grupos de apoiadores já se movimentavam em defesa da "moral e bons costumes", obtendo, inclusive, alguns resultados favoráveis às suas pautas: o caso da Mostra Queermuseu, promovida pelo Santander Cultural em Porto Alegre (RS), em 2017, suspensa "após ataques e críticas, mobilizados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) nas redes sociais e no próprio museu. Como alegação, os críticos apontavam que as obras faziam incitação à pedofilia, a zoofilia e ofendiam a fé católica" (G1 RS, 2017). Embora para o Ministério Público do Rio Grande do Sul, a exposição não incorria em nenhum delito, crime ou contravenção, o órgão recomendou sua transferência para um local onde crianças e adolescentes não tivessem acesso. Um alvo recente da ação de censura neoconservadora foi a produção audiovisual do coletivo Porta dos Fundos para a Netflix intitulada "A primeira tentação de Cristo", disponível no catálogo global da plataforma desde o dia três de dezembro de 2019. Na sátira humorística, Jesus regressa do deserto acompanhado de outro homem. Os personagens deixam subentendido um envolvimento íntimo, o que despertou a revolta de conservadores cristãos que, por sua vez, iniciaram um abaixo assinado pedindo a proibição da veiculação do especial de Natal.2 Além disso, ações foram movidas na justiça comum. Sobre uma delas, em decisão liminar,

o desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, acatou (…) o pedido da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura e concedeu liminar ordenando que a Netflix retire de seu catálogo a produção (…) por julgar que o direito à liberdade de expressão, imprensa e artística não é absoluto. (Oliveira, 2020)

Decisão que foi derrubada no STF. Na decisão da Suprema Corte, o Ministro Dias Toffoli, destacou que o Supremo já firmou entendimento sobre a "a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana" e como "meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais" (Moura, 2020). Ainda segundo Oliveira (2020), a produção despertou reações de grupos conservadores do exterior, o que demonstra que o avanço desse segmento não se restringe ao Brasil. Por mais que pareçam ações desarticuladas, todas partem de membros da Nova Direita brasileira (Miguel, 2016) que, como já mencionado, vêm conquistando apoiadores e espaços importantes de debate e de decisão sobre as políticas públicas.

Inúmeros são os fatos que decorrem da movimentação dos grupos neoconservadores que, em sua maioria, são justificados por essa necessidade de restauração dos "verdadeiros valores", assim como foi o caso dos EUA na década de 1970 (Apple, 2000; Rubin, 1972). Engajados em causas dos mais variados setores sociais, neoconservadores têm na educação pautas de grande interesse. No Brasil, um importante aglutinador de grupos neoconservadores é o Movimento Escola Sem Partido (MESP) que, além de manter um site na rede mundial de computadores para divulgar suas ideias e oferecer um canal para que seus apoiadores se manifestem e denunciem práticas que consideram inadequadas, oferece modelos de notificação extrajudicial para ser entregue a professores e escolas, e modelos de projetos de lei para a implementação de seu "programa" para membros dos poderes legislativos das três esferas da República. O MESP é, hoje, no campo educacional, o maior representante do neoconservadorismo brasileiro.

Idealizado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o Movimento Escola Sem Partido define-se como uma associação sem fins lucrativos e sem vínculos políticos, ideológicos e partidários. Formado principalmente por pais e alunos que afirmam já terem sido vítimas do que definem como "doutrinação ideológica", o movimento luta contra a propagação política-ideológica promovida por "um exército organizado de militantes travestidos de professores que se prevalece da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes (aos alunos) a sua própria visão de mundo" (Escola Sem Partido, 2017). O complexo campo de discussão sobre o Escola Sem Partido (ESP) ganhou proporção nacional em 2014, quando o movimento criou e disponibilizou anteprojetos de lei, ou seja, modelos de projeto de lei (PLs) que podem ser replicados nas Assembleias Legislativas estaduais, nas Câmaras de Vereadores e, mesmo, no Congresso Nacional. A partir do anteprojeto para o Congresso, foram apresentados, então, os PLs 867/2015 (Câmara dos Deputados, 2015) e 193/2016 (Senado Federal, 2016). Além destes, outros projetos foram apresentados em diversos Estados e municípios do País que reproduzem, quase em sua integralidade, os anteprojetos disponíveis no site do movimento.3 Penna (2017), sobre o PL 867/2015, considera os ideários desse projeto como um caminho para promover o neotecnicismo, ao mesmo passo que promove uma desqualificação da função do professor em sala de aula, chegando ao ponto de defender que "não existe liberdade de expressão no exercício estrito de atividade docente" (Penna, 2017, p. 40). Guilherme e Picoli (2018), também sobre os projetos, apontam o MESP como a manifestação de um programa totalitário através do uso de dispositivos que deveriam proteger a democracia brasileira.

No cenário de polarização política em que as eleições de 2018 ocorreram, o ESP foi uma das bandeiras defendidas pelo então candidato Jair Messias Bolsonaro (filiado, quando eleito, ao PSL/RJ e, atualmente, sem filiações), bem como por sua rede de apoiadores. O processo eleitoral que acabou por eleger Bolsonaro, foi a confirmação do avanço do neoliberalismo, mas, principalmente, do neoconservadorismo por todo o País. Em tal contexto político, o MESP vem, primeiramente, para combater a doutrinação ideológica que, para seus apoiadores, é realizada diariamente por professores e professoras em sala de aula. Entretanto,

O crescimento da importância do MESP no debate público ocorre quando seu projeto conflui para o de outra vertente da agenda conservadora: o combate a chamada "ideologia de gênero". Antes, a ideia de uma "Escola Sem Partido" focava sobretudo no temor da "doutrinação marxista", algo que estava presente desde o período da ditadura militar. O receio da discussão sobre os papéis de gênero cresceu com iniciativas para o combate à homofobia e ao sexismo nas escolas e foi encampado como bandeira prioritária pelos grupos religiosos conservadores. Ao fundi-lo à sua pauta original, o MESP transferiu a discussão para um terreno aparentemente "moral" (em contraposição a "político") e passou a enquadrá-la nos termos de uma disputa entre escolarização e autoridade da família sobre as crianças (Miguel, 2016, pp. 595-596)

No governo Bolsonaro, esse tema volta a ser pauta no cenário político-educacional. Um novo PL do MESP foi apresentado à Câmara dos Deputados e a comissão para debatê-lo foi reaberta. Apensado ao PL 867/2015, o PL 246/2019 (Câmara Dos Deputados, 2019) mantém as premissas dos anteriores, mas com uma importante alteração, disposta no Art. 7°: procura assegurar "aos estudantes o direito de gravar as aulas, a fim de permitir a melhor absorção do conteúdo ministrado e de viabilizar o pleno exercício do direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola". Na justificativa há a afirmação de que as gravações não têm objetivo de vigiar a atuação docente, entretanto, no Art. 11 consta que "o Poder Público contará com canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato".

Em questão está o papel assumido pelo professor no processo de ensino-aprendizagem. Utilizando o slogan "Não mexam com nossas crianças. Meus filhos, minhas regras", Nagib, principal porta-voz do ESP, alega que professores estariam apropriando-se da autoridade moral dos pais (Penna, 2017). Pode-se ter tal afirmativa a partir do seguinte trecho retirado do site oficial do MESP e presente nas justificativas dos PLs apresentados e nos anteprojetos:

É fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes à determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. (Escola Sem Partido, 2017)

Na perspectiva dos apoiadores do ESP de que cabe ao professor a instrução e não a educação dos alunos, sendo essa de inteira responsabilidade dos pais ou responsáveis, uma vez que o debate sobre assuntos controversos e/ou atuais, não são necessários, ou mesmo, que consistem em desvio ético e legal, já que, direta ou indiretamente, questiona a autoridade familiar. Penna (2017, p. 35) adverte que

o discurso do Escola Sem Partido não foi devidamente enfrentado (…) desde o momento em que ele surgiu, em 2004, justamente por parecer absurdo e sem fundamentos legais para aqueles que conhecem o debate educacional, e também porque ele se espalha com muita força não em debates acadêmicos, mas nas redes sociais.

Neste momento, coloca-se mais um desafio proporcional à dimensão do MESP para enfrentar: o programa de militarização das escolas. Por ser proposto via Decreto (Brasil, 2019), faz com que sua implementação seja mais fácil que o ESP, visto que é um programa separado, não abrangendo todas as escolas. Deste modo, as escolas escolhidas são escolas públicas marginalizadas que, por consequência, possuem o menor índice de IDEB, localizadas em sua maioria nos bairros mais periféricos. É neste momento que o conceito de autoridade do ESP e do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares aproximam-se, alegando que tais escolas estão nesta situação em razão do fracassado sistema educacional existente e não pelo conjunto de situações estruturais que possibilitam essa realidade.

Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares como o novo tentáculo do neoconservadorismo brasileiro

Em setembro de 2019 o Poder Executivo Federal tornou público o Decreto 10004 (Brasil, 2019) que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). Trata-se da primeira política pública desenvolvida para a área na pasta desde o início do governo Bolsonaro e cumpre, parcialmente, uma das promessas produzidas durante a campanha eleitoral de 2018. O Ministério da Educação, a partir disso, estabeleceu o período entre seis e 27 de setembro do mesmo ano para que as secretarias estaduais e municipais de educação manifestassem o interesse em aderir ao programa. O exíguo prazo foi criticado pelas secretarias de Educação e por entidades do campo e produziu reações as mais diversas. Destaca-se a Nota de Esclarecimento, emitida pelo governo do Estado do Rio Grande do Norte, pela qual se afirma que, em razão da impossibilidade temporal de discutir qualitativamente o PECIM, o Estado optou pela sua rejeição (Rio Grande do Norte, 2019). Verificou-se também, uma corrida pela adesão, o que também não deixou de produzir efeitos adversos, como o pedido de exoneração da chefe da pasta da Educação do município de Poços de Caldas em Minas Gerais, após a prefeitura solicitar sua inclusão. (Mendonça, 2019). Conforme Mendonça (2019, p. 627), no balanço apresentado pelo MEC pouco mais de um mês após o lançamento do programa e passadas um pouco mais de duas semanas desde o encerramento do prazo para manifestação de interesse, 643 municípios e 16 Estados sinalizaram intenção de participação. Importante salientar que já existem, em 23 unidades federadas, um total de 203 escolas militarizadas em funcionamento. A previsão do MEC é a de que, até o ano de 2023, outras 216 escolas públicas das redes municipais e estaduais estejam em funcionamento nos moldes do PECIM (Planalto, 2019).

Dois argumentos são utilizados para endossar o PECIM e a transformação de escolas regulares em Escolas Cívico-Militares (ECIMs). O primeiro é o de que os ambientes escolares brasileiros facilitam a disseminação da violência, o que faz das escolas lugares inseguros para os estudantes e professores e, concomitantemente, lugares protegidos para a delinquência, especialmente relacionada ao tráfico de drogas. Assim, apenas com um modelo de rigidez disciplinar (militar) seria possível devolver segurança aos envolvidos no processo educativo. Antes de abordar o segundo argumento, é preciso estressar essa afirmação. É evidente que se registram casos de violência em escolas. Além disso, os recentes casos de ataques armados em escolas públicas brasileiras, dos quais destacam-se o de Realengo (RJ), em 2011, e de Suzano (SP), em 2018, deixam claro que é preciso qualificar a segurança escolar. Entretanto, é injusta e, mesmo absurda, a afirmação de que a violência é escolar. Ao contrário, ela é externa e estoura na escola, mas não só, também o faz em outros espaços, entre eles, locais de convívio familiar. Ou seja, o argumento é um reavivamento da corriqueira acusação de que a escola é a responsável pelas mazelas da sociedade. Desse modo, uma cortina de fumaça ideológica é projetada sobre um problema grave que, efetivamente, compete às forças de segurança, especialmente, às polícias. Embora possa produzir sensação de segurança, não produz efetiva segurança, haja vista que, do lado de fora da escola (militarizada), "a sociedade que paga a corporação militar para ter a garantia de segurança pública permanece sujeita a todo tipo de violência e continua desprotegida" (Mendonça, 2019, p. 623).

O segundo argumento é o de que o modelo militarizado registra melhores resultados em avaliações sistêmicas, novamente em razão da disciplina e do respeito estabelecidos nas escolas que já adotam o modelo (Pinheiro et al., 2019, p. 676). Antes de discutir o argumento, é preciso esclarecer que, embora o PECIM seja um programa do MEC estabelecido via decreto, em setembro de 2019, há Colégios Militares com longa tradição no Brasil e há, também, escolas estaduais militarizadas, especialmente nos estados de Goiás, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. Os treze Colégios Militares são vinculados ao Ministério da Defesa. São instituições que ofertam os anos finais do ensino fundamental e o ensino médio, regidas por legislação específica, portanto, não reguladas pela LDB, e atendem a 0,07% do total de estudantes que frequentam escolas públicas na mesma faixa etária. Desse pequeno grupo, mais de 80% é composto por dependentes de militares (Exército, Aeronáutica e/ou Marinha). O restante das vagas, abertas ao público em geral, é acessado por meio de processo seletivo. Já as escolas estaduais militares ou militarizadas existentes são instituições dos Estados administradas pelas forças de segurança, normalmente a Polícia Militar, mas, também, em menor quantidade, pelos Bombeiros Militares. Atendem ao público geral. Essa distinção é importante para analisar o argumento sobre os resultados acima da média nas avaliações, o que, em tese, evidenciaria a qualidade elevada da educação oferecida nessas instituições.

De acordo com o Ministro da Educação, Abraham Weitraub, no vídeo de divulgação do PECIM, em fala adornada com cenas de crianças uniformizadas em escolas militarizadas,

É um modelo que está tendo uma taxa de sucesso muito boa. Existe um respeito muito grande, uma autoestima de pertencer a uma escola cívico-militar. Não tem pichação, não tem bagunça, não tem vandalismo. As crianças estão lá para aprender e o desempenho que a gente vê, é muito acima da média brasileira. (Planalto, 2019)

A afirmação, então, induz o cidadão à conclusão de que há uma disparidade significativa entre as médias, em índices como o IDEB e em exames como o ENEM, das escolas militarizadas em comparação com a média das escolas públicas regulares. Entretanto, dados do próprio MEC desmentem a retórica. Em fevereiro de 2019, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma matéria sobre o desempenho dessas escolas comparando-as, por segmentos de renda,4 com escolas privadas e públicas, estaduais e federais, com mais de 61 estudantes participantes da edição de 2017 do ENEM. Doze, dos treze, colégios militares federais vinculados ao Ministério da Defesa foram analisados, todos pertencendo ao segmento de renda "muito alto". Neste grupo, a média dos colégios militares Federais ficou em 624,5, seguidos pelos institutos federais (614,2), pelas escolas estaduais regulares (614) e, só então, pelas escolas estaduais militarizadas (605,7). No segmento de "alto nível", sem os colégios militares portanto, a classificação ficou assim disposta: institutos federais (608,7), escolas estaduais militarizadas (563,30), escolas privadas (561,9) e escolas estaduais regulares (528,6). Entretanto, o levantamento salienta que 80 escolas estaduais regulares registraram médias superiores às médias das escolas militarizadas. Outro dado interessante é que a média dos institutos federais de "alto nível" superou não apenas as médias das escolas estaduais militarizadas do mesmo segmento de renda, mas também a do grupo de "muito alto nível". Já no segmento de escolas de nível de renda "médio", as médias registradas seguem a seguinte ordem: institutos federais (552,2), escolas privadas (532,5), escolas militarizadas (522,9) e escolas estaduais regulares (497,1). Além da diferença não ser tão grande quando afirma o ministro, os dados do MEC informam que 356 escolas estaduais regulares superaram as escolas militarizadas nesse segmento de renda. O desencontro entre a realidade dos dados e o discurso denuncia que a opção do governo pela militarização de escolas é ideológica. Por isso, não gera espanto que movimentos que há muito têm se dedicado a criar discursos e políticas públicas no campo educacional sob uma ótica de mercado, como é o caso do Movimento Todos Pela Educação, tenham se posicionado contrários ao PECIM. O argumento de que os indicadores são melhores faria sentido se o modelo a ser seguido fosse o dos Institutos Federais, também públicos, contudo, civis. Outra possibilidade coerente com a realidade (mesmo a orçamentária) é conhecer o que têm feito estas 356 escolas estaduais regulares do segmento de renda "média" que as fez superar as (ainda poucas) escolas militarizadas do mesmo segmento.

A distância entre o discurso do governo e a realidade dos dados também pode oferecer explicações sobre a pressa evidenciada nas datas entre a publicação do Decreto 10004/2019 e o teto para manifestações de interesse, por parte de Estados e Municípios, em participar do programa. Negar a realidade, conforme afirmara Arendt (1973, p. 333), é uma das principais características do pensamento totalitário. A despeito dos dispositivos no próprio decreto que estabelecem a necessidade de consultas à comunidade escolar com resultados vinculantes, o que em termos democráticos, demanda tempo, o prazo apertado encontra explicação na manifestação do próprio presidente da República durante o ato de lançamento do programa no Palácio do Planalto. Há um simulacro de democracia (Martins, 2019, p. 697). Conforme o chefe do executivo:

Me desculpa, não tem que aceitar não. Tem que impor. Se aquela garotada não sabe na prova do PISA regra de três simples, interpretar texto, não responde pergunta básica de ciência, me desculpa, não tem que perguntar ao pai e responsável nessa questão se quer escola com uma, de certa forma, militarização. Tem que impor, tem que mudar. (apud Silveira, 2019, p. 1)

Embora a manifestação do presidente da República contradiga uma das principais reivindicações do MESP, qual seja o do "direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções" Câmara dos Deputados, 2019, Art. IX) o que, visto superficialmente, pode indicar projetos antagônicos, uma análise mais detida denuncia a proximidade. A articulação entre MESP e militarização das escolas como parte de um mesmo projeto neoconservador fica também clara na defesa de ambos por parte do próprio presidente (durante a campanha e após empossado), do ministro da Educação e de deputados da base. O MESP e o PECIM são duas frentes, em parte articulada e em parte não, de uma mesma visão autoritária/totalitária de Educação e de mundo (Guilherme & Picoli, 2018; Ribeiro & Rubini, 2019), na qual a escola é esvaziada de seu conteúdo educativo e o mundo é fundado em relações verticalizadas e inquestionáveis, sem espaço, portanto, para algo diferente do que está posto. O ponto de encontro entre esses dois projetos neofascistas, são as concepções de disciplina e de autoridade, como veremos a seguir, a partir de manifestações de seus apoiadores e atentos à advertência de Penna (2017) de que não podemos mais negligenciar o absurdo e os seus veículos de difusão que hoje se aproveitam da ubiquidade e da pervasividade dos meios de comunicação não tradicionais, como as redes sociais e os veículos próprios, especialmente, sites de notícias politicamente direcionados.

Autoridade, obediência e disciplina no MESP e no PECIM

Um texto disponível no site Gospel Prime (cuja página oficial do Facebook conta com cerca de 600 mil "curtidas") intitulado "Quem tem medo do Escola Sem Partido?" levanta as seguintes questões: "quem teria medo de um cartaz voltado para informar os estudantes sobre os deveres dos professores, chamando a atenção para a importância da exposição da pluralidade de pensamentos, por exemplo? Os comunistas? Os socialistas? Os admiradores de Marx?" (Robson, 2018). Tais perguntas apontam, de forma implícita (mas nem tanto), para as respostas. Pela visão dos apoiadores do ESP, quem se preocupa com esse fato são os professores "doutrinadores". Induz à resposta de que se o professor ou a professora não utiliza a sala de aula como palanque ideológico e partidário, não tem motivos para preocupar-se com a fixação dos cartazes e/ou com a possibilidade de os alunos terem o direito de gravar suas aulas. De todo modo, mesmo sem ser uma lei em vigência, o ESP já afeta as relações estabelecidas entre professores e alunos, como bem exemplifica o seguinte trecho retirado de uma entrevista realizada pela BBC News:

Há alguns meses, em uma turma do oitavo ano, o professor de história Ricardo caminhava por entre as carteiras para checar que tipo de soluções os alunos estavam propondo para o país. Era essa a atividade do dia em uma das escolas privadas em que trabalha. Ele perguntou a uma adolescente qual era sua sugestão. "Matar todos os comunistas", ela teria respondido. "Perguntei o que são comunistas, mas ela não sabia, eram os pais que falavam isso. Tinha certeza que, se questionasse algo, seria demitido no dia seguinte. Então não falei nada". (Fagundez, 2018)

Nagib, em entrevista ao talk show de Danilo Gentili, afirma que:

O aluno tem direito a uma pluralidade de perspectivas em sala de aula. O problema é a politização do espaço escolar (…) Assuntos atuais ainda não estão estabelecidos, não há perspectiva histórica. O professor não tratar disso em sala, é prudência. Se tem tanto assunto para o professor falar, por que falar de assuntos controvertidos? (Nagib & The Noite, 2016)

A professora de inglês Virgínia Ferreira, que foi processada por abordar a temática do feminismo e da violência contra a mulher em sala de aula, em entrevista, afirma que "a direita faz uma relação entre doutrinação e grupos de esquerda, que são contrários ao Escola Sem Partido. E, na cabeça deles, falar de violência contra a mulher é uma pauta de esquerda e, portanto, uma doutrinação" (Jornal GGN, 2020). A professora conta que o intuito era fazer uma reflexão sobre a condição da mulher justamente por "já ter acolhido alunos que choravam por ter visto a mãe sendo agredida pelo pai em casa, ou ainda casos de alunas que sofreram abuso e violência dentro do próprio lar". Por que não abordar esse tipo de tema dada a sua importância para os jovens e as não raras impossibilidades de debatê-los em outros espaços que não a escola? O que seriam assuntos controvertidos para os defensores do ESP? Como não pôr em questão a opinião familiar de que para solucionar os problemas do País é necessário matar o outro, matar o que é contrário às opções ideológicas do seu grupo de iguais? Como pode a escola não tomar partido em temas como esses? Para o MESP, isso implica em questionar a autoridade familiar no processo de formação moral.

Mesmo não sendo lei, o ESP já é uma ameaça real para a autoridade do professor, ou melhor, para a "autoridade na educação" manifesta pelo professor na assunção de sua responsabilidade pelo mundo e pela criança. Como afirma Löwy (2015, p. 653), uma das características do neoconservadorismo é que sua influência é maior de que seu eleitorado, ou seja, embora paute o debate e, pelo uso de meios não legais, pressione para que suas bandeiras se tornem "a lei", nem sempre consegue tornar Lei sua agenda no processo que move de corrosão da democracia. Ao fixar esse cartaz e ao permitir a gravação do professor, como propõe o PL 246/2019 apresentado na Câmara dos Deputados, se dá ao aluno uma autoridade que não é dele e retira-se a autoridade do professor. A autoridade do professor como representante do mundo implica a responsabilidade de ajudar seus alunos a se inserir no mundo, isso não prescinde da abordagem axiológica de valores políticos, morais, familiares etc. Em outras palavras, os professores oferecem as ferramentas para que os alunos desenvolvam o senso crítico e as suas próprias opiniões pela mobilização crítica de valores que não são de direita ou de esquerda, mas bandeiras civilizacionais. Debater o racismo, a violência contra a mulher, a educação sexual, a violência do Estado e o respeito à comunidade LGBTQ+ não são pautas de um ou outro partido político, outrossim são pautas humanitárias, são valores como o respeito, que o próprio MESP, em teoria, defende que haja dentro das escolas. Trabalhar o respeito em sala não faz referência ao respeito que temos aos nossos iguais, deve-se ser, principalmente, o respeito à outridade, à diferença. Se o professor, a exemplo, não pode tratar sobre os direitos LGBTs por ser "imoral" e porque atacam a família tradicional, argumento claramente neoconservador, então o MESP defende, sim, uma bandeira ideológica.

Eliminar discussões sobre temas controversos e a possibilidade de que os valores familiares sejam discutidos pelos estudantes e pelos professores são ações que têm como objetivo reificar a opinião familiar (que pode ser radicalmente oposta a defesa democrática da pluralidade) e fazer com que valores que são respeitados por alguns, por escolhas religiosas, passem a ser entendidos como valores universais e, mais grave, inquestionáveis. Haverá, portanto, um doutrinamento. (Guilherme & Picoli, 2018, p. 8)

A retórica do MESP afirma, ao mesmo tempo, que nem sala de aula o professor é a autoridade máxima e que são responsáveis pelo desvirtuamento do papel de instrução da escola pela corrupção doutrinária e, portanto, não podem usar deste espaço e desta "autoridade" para ‘fazer a cabeça’ dos alunos" (Escola Sem Partido, 2019; Nagib & The Noite, 2016). O professor é a "autoridade máxima" enquanto seguir o programa, enquanto não oportunizar espaço de dissenso, enquanto não questionar o aluno, a não ser por meio de questões objetivas, sobre qual o resultado de uma equação matemática, qual a forma correta de conjugar um verbo, qual a data de início de um conflito e quem lutou contra quem. A partir do momento que ousar fazer questões que importam, questões que incomodam, que colocam em risco todos aqueles que se envolvem no processo educativo (Biesta, 2017), perdem, na visão do MESP, sua "autoridade" e se convertem em doutrinadores. São doutrinadores se ousarem questionar por que o currículo é esse e não outro, dentre os tantos possíveis. A concepção da relação pedagógica é clara: os alunos obedecem. Aos estudantes, então, não cabe questionar, assim como não cabe manifestar seus interesses específicos. É radicalmente vertical. Não que as questões objetivas acima não importem, e não que professores e alunos estão nas mesmas condições, em uma horizontalidade plena, afinal, há o professor ou a professora e há os alunos e as alunas. Ao contrário, essas questões importam tanto que não se pode limitar a educação a elas em si, justamente porque o conhecimento tido como formal, como científico, como o conjunto dos valores que devem ser ensinados a todos é, também, produto de conflitos de interesses, de tensões que atravessam a sociedade e que não se limitam à escola.

Assim como o MESP, o PECIM tem sua própria retórica acerca do que é autoridade, obediência e disciplina. De forma demasiado próxima, os apoiadores da militarização de escolas públicas (nunca é demais repetir, de bairros pobres com maioria negra), afirmam que

há muito, é observável a falência do atual sistema de ensino, que permite a alguns professores, politicamente motivados, usarem o público cativo dos alunos para a propagação de inverdades e doutrinação ideológica. Fato este que coíbe, nos educandos, o desenvolvimento do pensamento crítico. (Fiamenghi, 2019, p. 1)

Para o Presidente Bolsonaro, como solução para o fracasso educacional, "tem que botar na cabeça dessa garotada a importância dos valores cívicos-militares, como tínhamos há pouco no governo militar, sobre educação moral e cívica, sobre respeito à bandeira" (Verdélio, 2019, p. 1). O discurso criado pelo governo e seus apoiadores a fim de promover o PECIM perpassa esses dois argumentos: o sistema falho de educação atual e a importância dos valores cívicos-militares, especialmente, os da disciplina, da autoridade e da obediência. Ao lado desses, temos, também, o argumento dos altos resultados de performance das escolas cívico-militar já existentes. Entretanto, a proposta de implementação aparece vaga, onde ninguém, nem o próprio ministro, Abraham Weintraub, expõe a metodologia a ser utilizada para que os objetivos do PECIM sejam atingidos. Mesmo o projeto apresentando-se de forma difusa, a questão de obediência e de disciplina é algo sempre presente nas declarações do governo. É uma perspectiva distorcida de educação e de autoridade, assim como no caso do MESP.

O MESP ainda não passou de PLs; todavia, o PECIM, em fevereiro de 2020, encontra-se em processo de implementação em 54 escolas (MEC, 2020), ou seja, os grupos neoconservadores atuam em diversas frentes. A mobilização do discurso da autoridade militar oferece à população uma sensação de "segurança", de tradição e, por consequência, de defesa da família e dos valores por ela defendidos, algo que muito interessa aos neoconservadores: uma escola, como afirmou o ministro da Educação, onde as crianças respeitam o professor, onde não há pichação nem baderna. Oferece-se uma solução fácil e desresponsabilizadora (porque alguém que assume a "responsabilidade" de resolver o problema e liberta os demais desse fardo) para um problema complexo que exige engajamento e responsabilidade.

O assanhamento militar do neoconservadorismo, com suas soluções fáceis, não se limita ao campo educacional. Não é por acaso que muitas das principais pastas do poder executivo federal foram entregues a militares. Mesmo as pastas que não estão, encampam projetos e retórica militaristas, caso do próprio MEC. Assim, causa assombro, embora não causa estranhamento, que em seu discurso na cerimônia de posse, em 4 de março de 2020, a secretária de Cultura, uma civil, falou em "pacificação da cultura", se "apresentando para a missão" e batendo continência (O Antagonista, 2020). Já no campo da segurança pública se verifica o que Löwy chama de culto da "violência policial" com a desresponsabilização do agente que pratica o ato (o agente que obedece) que tanto preocupou Milgram e Arendt. O dispositivo do "excludente de ilicitude", do qual o presidente da República e o ministro da Justiça e Segurança Pública são os mais notórios apologistas e que conta com apoio significativo da população (Farias, 2019) é uma carta branca para matar. Assim como em nenhum documento oficial nazista se encontra a expressão "matar" em referências a judeus e ciganos (Arendt, 1999), mas sim termos técnico-jurídicos sofisticados com a mesma consequência, não há menção direta a "matar" no dispositivo do excludente de ilicitude. O mal praticado deixa de ser algo fora da lei, se internaliza na lei, se torna corriqueiro, banal. Não que o dispositivo de excludente de ilicitude, por outros meios, não seja a regra no caso de ações policiais, especialmente as que ocorrem em bairros pobres e comunidades, mas é inegável que a incorporação disso no texto da lei, a naturalização desse tipo de ação (sua normalização), significa um mergulho na catástrofe. Não se trata de um passo em direção ao abismo, mas um retorno ao abismo, pois, como diz Adorno, a catástrofe já é uma realidade, o que precisamos fazer é criar meios para não incorrermos nela novamente. Precisamos, portanto, pensar formas outras de compreender a autoridade, a obediência e a disciplina em uma sociedade que se pretende democrática.

Milgram, em artigo derivado de polêmico estudo realizado quase concomitantemente ao julgamento de Eichmann, afirma que para que toda a sociedade seja funcional e, portanto, ofereça aos seus cidadãos alguma segurança e alguma movimentação, exige algum grau de obediência. A advertência da necessidade e da importância da obediência já está manifesta no clássico ensaio "O que é o esclarecimento?", de Kant, de 1784. Nesse curto texto, mais de uma vez o filósofo assevera: "Pensai, mas obedecei!". O próprio Kant procurou, em sua busca por estabelecer a ação ética por excelência, critérios de teste de uma ação que deveriam ser obedecidos: as três máximas do Imperativo Categórico (Kant, 2018, p. 62, 73, 88), algo para obedecer, para o bom funcionamento da sociedade e para relações saudáveis com outros seres humanos, mesmo quando a autoridade externa (o Estado, a Tradição, a Igreja etc.) estivesse esfacelada: obedece-se à consciência como um esforço de não viver em contradição (Kant, 2012, p. 148). Para deixar claro, um exemplo: pela primeira máxima do Imperativo Categórico, a do princípio da universalidade, o roubo e o assassinato estão vetados, simplesmente porque não passam pelo teste dessa máxima, a não ser pela desobediência. O assassino e o ladrão são indivíduos em contradição, pois não aceitam ser padecentes do mesmo tipo de ação de que são agentes: sua ação não pode ser universalizada (Arendt, 1999, p. 153). É claro que não significa que assassinatos e roubos não ocorrerão. O que Kant afirma é a necessidade de obedecer às leis justas que tornam possível a vida em sociedade: "Pensai! Mas obedecei!". Isso, é claro, não significa que toda lei deva ser obedecida. Quando é subvertido o conteúdo que a faz ser reconhecida, que oferece o amálgama para a vida em sociedade, ou quando é imposta de forma arbitrária, não pode mais ser obedecida, a não ser pela subversão da obediência em subserviência e, mesmo, em cumplicidade. Kant mesmo era um entusiasta da Revolução Francesa. No filósofo encontra-se que a obediência não pode ser cega. Para Arendt (1999) e Milgram (1962), foi a obediência (cega, irrefletida, subserviente) o que possibilitou as catástrofes do século 20, o mal banal, o mal como operação burocrática, tão enfadonho quanto apertar parafusos: o soldado que não se recusa a cumprir uma ordem evidentemente imoral, que assimila o "matarás!" como ordem inquestionável já que advinda de uma "autoridade" para quem poderia transferir a responsabilidade. Obediente às ordens inquestionáveis resiste à tentação de não matar que, embora naqueles quadros pudesse ser ilegal, não era imoral (Arendt, 1999, p. 167). Essa "autoridade" que exige obediência cega é muita coisa, só não é mais "autoridade". A autoridade fracassou, está ausente.

Os grupos neoconservadores sentem a ausência, também manifesta em Arendt (2016), da autoridade na sociedade contemporânea. Esse sentimento é real e ele efetivamente torna mais difícil se movimentar no mundo, no constructo humano. Mas ao contrário de Arendt, só sentem o perigo. Para a autora, o perigo da perda da autoridade é, também, a oportunidade do novo, do imprevisto, daquilo que é tão grandioso quanto perigoso, daquilo que faz valer a pena ainda amar o mundo (amor mundi) e lutar por ele. Não por um mundo idealizado, mas pelo mundo como um lugar a ser preservado, conservado, um lugar onde é possível nascer. Entretanto, ainda conforme a autora, o mundo só pode ser salvo pela entrada constante do que é novo se em educação alguma forma de autoridade for exercida, o que aqui é tratado como "autoridade na educação": a manifestação do caráter conservador da Educação, ou seja, a manifestação concomitante do amor pelo mundo e do amor pela criança como um novo em potencial.

Como apenas sentem o perigo, mobilizando o pânico moral e o de identidade (Löwy, 2015), afirmam-se desejosos de restaurar a disciplina e "devolver a autoridade para o professor em sala de aula". Apelam a uma Era de Ouro da autoridade, a um tempo imaginário, anterior ao que afirmam ser a subversão da educação em doutrinação, como parte da grande conspiração de gays, comunistas, feministas etc. (Guilherme & Picoli, 2018). O que é grave na concepção da tríade autoridade-obediência-disciplina do MESP e dos apoiadores da militarização escolar é que a distorcem em poder, força, controle e interdição do questionamento. Ela educa para a obediência cega, para a não assunção da responsabilidade pelo mundo. Não só alguns temas estão vetados, como o próprio debate o está. Assim, está interditado, também, o pensamento. Para Arendt (1999), Eichmann não era um mal em si mesmo, apenas não pensava e, por isso, foi um dos maiores criminosos que já viveram. Para Milgram (1963), os participantes de seu experimento que aplicavam a punição pelo eletrochoque até o último estágio não eram vis, apenas agiam porque sentiam-se cobertos por uma "autoridade" para quem ofereciam sua obediência (cega), ou seja, entendiam que não eram os responsáveis pelas suas ações. Disciplinadamente obedeciam, seja por medo, por compactuar, por irreflexão etc. A concepção de autoridade, obediência e disciplina do MESP e do PECIM é perigosa porque oferece a autoridade inquestionável e a obediência cega como única relação possível, porque nos empurra para o abismo, para a possibilidade, temida por Adorno (1995), de que reingressemos, disciplinadamente, na catástrofe.

Conclusões

Arendt (2016) afirma que, mesmo que não seja mais possível pensar em "autoridade" na esfera pública e que a crise da autoridade atingiu mesmo as outras esferas, reitera que não é possível falar em educação sem autoridade. A autora não defende o entendimento de senso comum sobre o que é a autoridade e, logo, sobre o tipo de obediência que exige. Para ela, a autoridade na educação tem estreita relação com o duplo caráter conservador da própria educação: conservar o mundo enquanto espaço da pluralidade aberto para a inserção do novo e conservar a criança como um novo em potencial que pode se inserir no mundo. Então, pode-se afirmar que a "autoridade na educação" que não produz obediência cega e disciplina inquestionável mobiliza também o medo. Mas não é o medo da autoridade em si, o medo da punição, mas um tipo de medo salutar para uma democracia, ou seja, o medo que a própria democracia desapareça, o medo de que discursos corroam por dentro a própria democracia, alguns, inclusive, afirmando que a protegerão (Adorno, 1995). O tipo de medo mobilizado por uma educação conservadora, comprometida com a recusa em reingressar na catástrofe, é o medo de que o mundo, enquanto espaço plural para se tornar presença e conviver entre outros (não apenas com outros), seja destruído. Requer, portanto, a obediência por adesão crítica, porque há muita coisa em jogo e não podemos sucumbir à barbárie.

A concepção da relação educativa, da autoridade, da obediência e da disciplina manifesta pelo MESP e pelo PECIM não mobiliza esse medo salutar, mas tão só o medo embrutecedor que produz a obediência cega, daninha à democracia e à humanização. Produziu no passado e só oferece para o futuro a barbárie, a despeito de sua retórica envernizada de boas intenções. O MESP prega uma luta contra o abuso da liberdade de ensinar, afirmando que essa liberdade dada ao professor faz com que os alunos estejam sujeitos à doutrinação ideológica. Na concepção do movimento, o professor sempre é admitido como uma autoridade inquestionável, por isso o temor com a doutrinação supostamente perpetrada pelos professores que opõem à visão de mundo dos apoiadores do movimento. De qualquer modo, não se está falando em autoridade. Já o PECIM, projeto em implantação, prega-se a melhora da escola a partir da volta da autoridade, da obediência, da disciplina e dos "valores" pela inserção messiânica dos militares no ambiente escolar. O tipo de relação "autoridade-obediente" militar não compreende o que se defende aqui, a partir de Arendt especialmente, por "autoridade na educação" porque está baseada na disposição hierárquica e inquestionável, ou seja, em critérios que demonstram o fracasso da autoridade.

Se, a "autoridade na educação" não tem, a não ser pela distorção, relação com o que o senso comum entende por autoridade, mas tem relação com a assunção da responsabilidade pelo mundo como representante do mundo e com a manifestação do amor pelo mundo e pela criança, a "obediência na educação" também não pode ser a obediência pela coerção ou pela persuasão. A "obediência na educação" que possui estreita relação com a "autoridade na educação" precisa sempre ser democraticamente disciplinada, ou seja, sempre manifestar o desejo do mundo como um lugar para se experienciar e compartilhar na pluralidade, como um lugar que ainda vale a pena ser defendido, um lugar em que se quer entrar e, sobretudo, inserir algo novo. Isso se manifesta também no respeito pela fala do professor, o representante desse mundo, mas com a liberdade de questionar, com a liberdade de pensar outros mundos possíveis.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

2Cheng.org (2019). Especial de Natal porta dos fundos. https://www.change.org/p/netflix-especial-de-natal-porta-dos-fundos.

3Escola Sem Partido (2020). Anteprojetos. http://escolasempartido.org/anteprojeto.

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Recebido: 16 de Março de 2020; Aceito: 30 de Setembro de 2021; Publicado: 21 de Janeiro de 2022

Endereço para correspondência Bruno Antonio Picoli Universidade Federal da Fronteira Sul Rodovia SC 484 - Km 02 89815-899 Chapecó, SC, Brasil bruno.picoli@uffs.edu.br

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