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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.46 no.1 Porto Alegre jan./dez 2023  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2023.1.42727 

Outros Temas

Trabalho (Docente), Neoliberalismo e Produção de Subjetividades no Capitalismo Global: Evidências de uma "Nova Razão do Mundo" na Era Digital

(Teaching) Work, Neoliberalism and the Production of Subjectivities in Global Capitalism: Evidence of the "New Way of the World" in the Digital Age

Trabajo (Docencia), Neoliberalismo y Producción de Subjetividades en el Capitalismo Global: Evidencia de una "Nueva Razón del Mundo" en la Era Digital

Evandro Salvador Alves de Oliveira1 

Doutor em Educação pela Universidade de Uberaba. Doutor em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Portugal. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor titular no Centro Universitário de Mineiros e docente do Centro Universitário de Patos de Minas.

evandro@unifimes.edu.br


http://orcid.org/0000-0003-2228-9776

Sálua Cecílio2 

Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba.

salua@uniube.br


http://orcid.org/0000-0001-6035-1636

1Centro Universitário de Mineiros (UNIFIMES), Mineiros, GO, Brasil e Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), Patos de Minas, MG, Brasil

2Universidade de Uberaba (UNIUBE), Uberaba, MG, Brasil


Resumo:

Pesquisas indicam que a fábrica do sujeito neoliberal produz indivíduos (incluindo os docentes) que se tornam empresários de si e controladores de suas próprias regras, metas e resultados. Assim, o objetivo deste artigo é analisar aspectos sobre o campo tenso e fértil que envolve o mundo do trabalho (docente) e do neoliberalismo, buscando compreender como ocorre a produção de subjetividades nesse contexto compreendido como capitalismo global. Neste estudo, realizado com professores universitários, que integra uma rede de pesquisas sobre trabalho docente, os dados revelam como o trabalho tem sido modificado em razão dos fenômenos de diversas ordens que o atravessam em suas várias dimensões. A metodologia da pesquisa baseou-se na abordagem qualitativa e incluiu entrevistas semiestruturadas com 15 docentes do ensino superior, cujas respostas foram tratadas a partir da análise de conteúdo. Constatou-se que muitas mudanças têm ocorrido, relacionadas ao ritmo de trabalho que professores enfrentam atualmente, considerando diversas questões que remetem à intensificação do trabalho docente; os recursos tecnológicos digitais exercem um papel nesse processo e se configuram como um fenômeno que contribui para possíveis transformações nos sujeitos e na sociedade; e a produção das subjetividades tem sido atravessada por essas inovações pungentes que nos atingem em razão das novidades tecnológicas e mídias sociais com as quais os sujeitos estabelecem relações.

Unitermos: trabalho docente; cultura digital; ensino superior

Abstract:

Research indicates that the factory of neoliberal subject produces individuals (including teachers) who become entrepreneurs of themselves and controllers of their own rules, goals and results. Thus, the objective of this article is to analyze aspects of the tense and fertile field that involves the world of teaching work and neoliberalism, seeking to understand how the production of subjectivities occurs in this context understood as global capitalism. In this study carried out with university professors, which is part of a research network on teaching work, the data reveal how the work has been modified due to phenomena of different orders that it in its various dimensions. The research methodology was based on a qualitative approach and included interviews with higher 15 education professors, whose answers were treated using the content analysis. It was found that many changes have occurred, related to the pace of work that teachers currently face, considering several issues that refer to the intensification of teaching work; digital technological resources play a role in this process and are configured as a phenomenon that contributes to possible transformations in subjects and in society; and the production of subjectivities have been traversed by these poignant innovations that reach us due to technological innovations and social media with which subjects establish relationships.

Keywords: teaching work; digital culture; higher education

Resumen:

Las investigaciones indican que el tejido del sujeto neoliberal produce individuos (incluidos los docentes) que se convierten en empresarios de sí mismos y controladores de sus propias reglas, metas y resultados. Así, el objetivo de este artículo es analizar aspectos del campo tenso y fértil que involucra el mundo del trabajo (docentes) y el neoliberalismo, buscando comprender cómo se produce la producción de subjetividades en este contexto entendido como capitalismo global. En este estudio realizado con profesores universitarios, que forma parte de una red de investigación sobre el trabajo docente, los datos revelan cómo el trabajo se ha modificado debido a fenómenos de distinto orden que lo atraviesan en sus diversas dimensiones. La metodología de la investigación se basó en un enfoque cualitativo e incluyó entrevistas a 15 profesores de educación superior, cuyas respuestas fueron tratadas mediante la técnica el análisis de contenido. Se constató que se han producido muchos cambios, relacionados con el ritmo de trabajo que enfrentan actualmente los docentes, considerando varios temas que se refieren a la intensificación del trabajo docente; los recursos tecnológicos digitales juegan un papel en este proceso y se configuran como un fenómeno que contribuye a posibles transformaciones en los sujetos y en la sociedad; y la producción de subjetividades han sido atravesadas por estas innovaciones conmovedoras que nos llegan gracias a las innovaciones tecnológicas y las redes sociales con las que los sujetos se relacionan.

Palabras-clave: trabajo docente; cultura digital; enseñanza superior

Introdução: questões sobre o trabalho (docente) e o novo proletariado de serviço na era digital

Neste artigo, buscamos discutir expressões e contradições que permitem problematizar o tema que envolve o universo do trabalho (docente), do neoliberalismo e da produção de subjetividades no contexto do capitalismo global e flexível. Para começar o debate, convidamos a analisar com olhares mais críticos aquilo que diz respeito ao trabalho desenvolvido por sujeitos no século 21. Hoje podemos observar que existem aspectos bem distintos, em se tratando da natureza e atividades de trabalho desenvolvidas ao longo da história.

Além dos objetivos que moviam o trabalho nos primórdios (exclusivamente para a subsistência), os recursos e tecnologias utilizadas também eram bem diferentes dos que existem na era tecnológica e digital da contemporaneidade. Em contraponto, com o avançar do tempo e a consolidação do capitalismo no mundo, indivíduos que sustentam a indústria do trabalho passaram a sentir e absorver alguns efeitos negativos que esse sistema causa nas suas vidas. Tais impactos são consequências dos avanços tecnológicos e do ritmo frenético e mais acelerado de produção que passou a usurpar cada vez mais os recursos, as energias e o trabalho vivo e o das máquinas disponíveis na sociedade, como temos visto na literatura consultada e que iremos citar neste trabalho.

A compreensão que possuímos sobre trabalho se articula a uma perspectiva sociológica que nos permite entender seu conceito como um fenômeno em que o desejável é não separar as dimensões entre o sujeito, o trabalho por ele realizado e o processo de constituição do próprio ser, por meio do trabalho. Cecílio (2017) tem um entendimento que muito se relaciona ao que defendemos em nossa investigação, pois a autora entende que:

O trabalho é uma forma de estar no mundo, e por meio dele constituir-se, ao mesmo tempo que o constitui. Pelo trabalho, tem-se a expressão de cada ser e de suas circunstâncias. Por meio dele, cada um pode assumir sua modalidade de participação na sua divisão social e técnica da produção, orientada por um sistema econômico e social, em suas diferentes fases históricas, nos diversos lugares e nas variadas épocas que o demarcam. (p. 114)

Tendo em vista tal compreensão sobre o trabalho, o consideramos como um conjunto de atividades realizado por vários sujeitos no mundo, em que cada um realiza algo que o insere em um grupo social e em um processo produtivo específico. O trabalho confere, quando possível, o tom e o modo de operar, além de constituir respectivamente a divisão social e técnica da produção que é estabelecida por meio do trabalho. Em meio às produções que ocorrem pelos sujeitos, tendo como mola propulsora um sistema econômico e social com objetivos bem-demarcados, se estabelecem e se definem as trajetórias profissionais de muitos trabalhadores. No decorrer dessas trajetórias, o exercício de uma profissão e o desenvolvimento profissional docente acontecem. Nesse percurso, muitos fatores atravessam as relações que os sujeitos estabelecem com o contexto social e cultural, de maneira a modificar e/ou redefinir sua subjetividade, seus modos de significar o mundo e até mesmo a forma de se relacionar com o outro e consigo mesmo.

Com o intuito de aprofundar a discussão sobre esse tema, que julgamos indispensável na área da educação, destacamos que o trabalho desenvolvido neste novo milênio interfere diretamente na (re)configuração de perfis, identidades e produções de subjetividades que envolvem, por exemplo, indivíduos e máquinas como elementos centrais das novas relações de trabalho no setor de serviços. Trata-se da construção e gestão de um novo padrão de trabalhador – que buscaremos, aqui, evidenciar e problematizar. Ou seja, pretendemos mostrar o quanto vivemos em uma realidade que nos permite observar (e concordar) que o trabalhador de hoje é muito mais afetado por um sistema de proletarização e de intensificação do trabalho (docente), fortemente relacionado ao capitalismo em sua fase de acumulação flexível, e por uma progressiva "despossessão" (Rosso, 2017) de quem trabalha. Isto ocorre em prol do avanço dos interesses do capital orientado pelo engajamento e empreendedorismo cada vez mais plenos de quem trabalha, e precisa se garantir no mercado de trabalho, mesmo que aos moldes de "uma servidão voluntária" e consentindo com tal processo que se mostra inescapável e hegemônico na economia neoliberal, que se expande e se consolida na sociedade contemporânea, a ponto de parecer a única alternativa que nos resta. Indagamos: será que estamos diante de uma condição de desprofissionalização? É muito provável que sim. Rosso vai dizer que, nesse novo ciclo que envolve o mundo do proletariado, as jornadas de trabalho são mais prolongadas, bem como aumenta a intensidade do trabalho, sem contar que as condições de insegurança e insalubridade também se acentuam exponencialmente, causando adoecimentos, entre tantos outros aspectos.

Sob outro ponto de vista, vimos que Andrade e Ota (2015) tornaram pública uma entrevista realizada com Dardot e Laval, a respeito do debate intelectual francês e internacional sobre o neoliberalismo lançado na obra original La nouvelle raison du monde, que ocorreu em 2009, na França. Trata-se de uma relevante discussão e contribuição teórica, fruto das análises realizadas no âmbito do grupo de estudos criado por Dardot e Laval durante a primavera de 2004, que posteriormente originou a significativa obra A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, lançada em 2016. Tais autores atestam que a fábrica do sujeito neoliberal produz indivíduos que se tornam empresários de si e controladores de suas próprias regras, metas e resultados. Inclusive é essa mesma fábrica a responsável pela produção de sujeitos que se tornam responsáveis pelos seus próprios fracassos, isentando o Estado forte (guardião do direito privado) dessas culpas (Dardot & Laval, 2016).

Nesse contexto, vemos que o trabalho, hoje, possui outros significados e sentidos e é realizado sob ritmos e condições bastante desafiadores. Além de sentirmos viver, atualmente, uma nova razão de ser e estar no mundo, principalmente no universo do trabalho, estamos diante de novos proletariados de serviços na era digital – que trabalham incessantemente a serviço de "algo" que parece não ter fim. Esse fenômeno também é bastante explorado na obra de Antunes (2018). O autor aborda contrapontos muito importantes sobre o novo proletariado de serviços na era digital, com reflexões, críticas e apontamentos sobre o mundo do trabalho que acomete e assola a sociedade nos dias atuais – e que não podemos deixar de observar e discutir no contexto acadêmico e científico. Além das considerações de Antunes que trazemos para o debate neste artigo, também apresentamos algumas ponderações de Alves (2014), quando analisa criticamente o choque causado pelo capitalismo e seus efeitos na sociedade, dando visibilidade à nova degradação do trabalho, sobretudo no Brasil, em face do neodesenvolvimentismo.

Alves (2014) entende o neodesenvolvimentismo como um novo modelo de desenvolvimento capitalista que surgiu no Brasil a partir da virada do século, na década de 2000, momento em que o capitalismo global começou a ganhar mais força em pleno início do século 21. O teórico afirma existir um bloco histórico, composto por outros dois blocos e apresentado como um enigma, e que dentro dele há duas divisões inseridas: o neoliberalismo da década de 1990, marcado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, e o neodesenvolvimentismo, delineado pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Tais blocos, que para o investigador apresentam distinções significativas, pertencem a um bloco histórico denominado de "capitalismo flexível ou capitalismo neoliberal" (Alves, 2014, p. 11). Como o sistema capitalista, bem como qualquer outro sistema, possui um fator controlador, o bloco histórico do capitalismo flexível está sob a dominância do capital financeiro, sendo evidente que tudo isso reflete na natureza do trabalho de alguma maneira.

O trabalho na compreensão de Marx e algumas relações com o trabalho docente na cultura digital

Abordar questões sobre o trabalho é essencial para compreendermos aspectos que envolvem o "trabalho docente" na cultura digital, tempo histórico específico do século 21 que elegemos como foco para nossos olhares investigativos. No entanto, antes de avançar para o campo emblemático, fértil e tenso que envolve o trabalho docente e os desafios a ele relacionados, exploraremos o significado de "trabalho" evocando o teórico Karl Marx. Isso por entendermos que em sua produção bibliográfica existem teses basilares sobre a dimensão ontológica do trabalho em que se evidencia a constituição do ser pelo trabalho. O indivíduo, ao produzir serviços ou mercadorias, produz-se a si mesmo, seja por processos que viabilizam seu crescimento e realização, seja pela negação do que nele deveria firmá-lo como humano. É quando o trabalho se torna fonte e condição de alienação, degradação e corrosão. muito presentes em processos produtivos que se expandem na proporção inversa à afirmação do humano. Este parece se tornar menor em relação à mercadoria que produz, a ponto de ser quase invisível se comparado aos valores que seu trabalho produz, além dos valores de uso mais evidenciados na cultura orientada pelo consumo que norteia a vida de indivíduos e grupos.

Nessa perspectiva, a vida se mistura ao trabalho e por ele é sequestrada, de modo aparentemente tão natural que nem parece ser tal processo uma resposta do próprio sistema econômico, cultural e ideológico que cresce e se firma com a sociedade a que serve e ao mesmo tempo por ele é reproduzida. É a partir desse sistema e de seus efeitos que nos interessa compreender e explicar a vertente científica em que nos embasamos e nos debruçamos para pensar o trabalho docente em sua relação com a produção dos sujeitos contemporâneos na chamada "terceira modernidade," que marca o século 21 e seu atravessamento pelo "capitalismo de vigilância" (Zuboff, 2020), mantido pelas gigantes da tecnologia digital, como Apple e Google. Nossas compreensões e análises sobre o trabalho docente têm como base a teoria de Barreto (2012), Cecílio (2017) e Lessard e Tardif (2005), a título de exemplo.

Tomando como base tal contextualização, trazemos, em primeiro plano, o entendimento de trabalho segundo Marx, em seguida abordamos o trabalho assalariado como típico modo de produção capitalista; e, por fim, o esclarecimento e a compreensão de trabalho. Para tanto, os olhares são construídos a partir das condições contemporâneas em que se dá o trabalho assalariado em condições clássicas ou as mais específicas que caracterizam mutações nos conteúdos e formatos tidos como mais flexíveis. Tais conteúdos, quiçá, tornam-se mais instáveis e seguros aos típicos da "primeira e segunda modernidade", às quais se fizeram centrais a Revolução Industrial e a produção em massa. Nesse sentido, enquanto uma é marcada pela produção enxuta, a outra é inerente à Revolução Tecnológica de base microeletrônica (Castells, 2009). Por meio dela (revolução tecnológica) se funda e se expande o atual "capitalismo de vigilância" (Zuboff, 2020), caso possamos estabelecer aproximações entre o pensamento de Zuboff e do autor da obra A sociedade em rede.

O "trabalho", na compreensão de Marx (1980), configura-se como a atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso. É uma espécie de apropriação (pelos sujeitos) dos elementos naturais às necessidades humanas. Como argumenta o autor, o trabalho "é condição necessária eterna do intercâmbio material entre o homem e natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais" (Marx, 1980, p. 201). Marx entende o trabalho como a atividade necessária do ser humano voltada à criação de valores-de-uso, uma espécie de fenômeno inseparável entre sujeito e natureza, incapaz de sobreviver sem o contato íntimo entre ambos – o trabalho. Ou seja, o trabalho é uma condição da vida humana que não teria como deixar de existir por ser compreendido como uma atividade eterna, que por meio dela fornece condições para manter a sobrevivência. Sob outro aspecto, no que diz respeito ao "trabalho assalariado", uma atividade fortemente típica do modo de produção capitalista, no sentido de alienação, o teórico entende que este

é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua característica, portanto, ele não se firma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. (…) Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. (Marx, 2002, p. 114)

A compreensão de trabalho exposta anteriormente revela outro significado de trabalho para Marx. O trabalho assalariado, que para ele é uma condição de alienação, faz o sujeito negar a si mesmo. Significa que o indivíduo trabalha mesmo não se sentindo bem e feliz. Ocorre de maneira não "voluntária" e de certa forma imposta, forçada. Uma imposição que parte de um sistema organizado em torno do capital. O trabalho assalariado, nesse modelo de produção, sobrevive porque o sujeito produz a qualquer custo.

Com base nas visões acima, vemos que Marx defende a ideia de que o trabalhador se torna cada vez mais pobre à medida que produz mais riqueza.

O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e juntamente na mesma proporção com que produz bens. (Marx, 2002, p. 111)

Desse modo, Marx (2002) compreende que a sociedade transforma o sentido do trabalho em razão de um fenômeno que impulsiona os sujeitos a valorizarem mais as coisas/objetos. Isto possui relação com o universo que envolve o fenômeno do consumo. Para o autor, pelo fato de o trabalho não produzir apenas mercadorias, o homem também é produzido (si mesmo) por meio dele. Isto é, o trabalhador também é entendido como uma mercadoria, esta que, igualmente, produz bens e valores.

Nesse mesmo sentido, encontramos o entendimento de que uma importante fonte de criação de valor está relacionada ao saber, como destaca Antunes (2018). Para ele o saber se tornou a mais formidável fonte de valor. Tal questão, como pontua o autor, "está na base da inovação, da comunicação e da auto-organização criativa e continuamente renovada" (Antunes, 2018, p. 81). Em outras palavras, a ampliação do saber está atrelada à inovação comunicacional que, junto a ela, carrega o desenvolvimento de elementos capazes de extrapolar barreiras que anteriormente separavam fronteiras e espaços e agora se prestam à intensificação do trabalho e a dele extrair mais valor. Antunes (2018) ressalta que o "trabalho do saber vivo não produz nada materialmente palpável. Ele é, sobretudo na economia da rede, o trabalho do sujeito cuja atividade é produzir a si mesmo" (p. 81). Ou seja, o sujeito produz subjetividades e se constitui a partir de aspectos culturais, econômicos e políticos com os quais se relaciona no mundo do trabalho.

Na esteira desses apontamentos sobre o trabalho, saber e valor, chegamos à constatação de que, de certa maneira, por meio do trabalho docente sujeitos produzem mercadorias e a si mesmos nos tempos atuais. Assim, nesse tempo marcado por fortes relações com a cultura midiática, o trabalho docente no ensino superior requer ser conhecido e analisado com mais profundidade. Por esta razão, as discussões e análises que aqui se encontram se voltam às questões sociológicas relativas a esse tema, como temos vindo a referenciar.

Aspectos metodológicos

Neste artigo, não apresentamos apenas conceitos e problematizações sobre o trabalho (docente) à luz das referências teóricas exploradas ao longo do texto, nele também trazemos análises de conteúdo construídas a partir de entrevistas semiestruturadas, presenciais e on-line, realizadas com trabalhadores da educação pública em nível superior por meio de um roteiro contendo 12 perguntas. Aproximamo-nos de 15 professores do ensino superior e com eles dialogamos e construímos um rico e fértil material científico que se ancora na pesquisa de abordagem qualitativa e tem na metodologia da análise de conteúdo o alicerce de seu desenvolvimento metodológico, na qual utilizamos a teoria de Bardin (1977) como base.

Os docentes trabalhadores do ensino superior aceitaram participar da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A investigação objetivou compreender como as tecnologias digitais interferem no desenvolvimento do trabalho docente no ensino superior, de forma a analisar seu potencial para provocar mudanças nos modos de como o professor se relaciona com elas e delas se apropria no exercício de sua profissão docente. As narrativas dos professores investigados foram trabalhadas a partir de uma metodologia que orientou a organizar o material em unidades de conteúdo, proporcionando, assim, que a análise de conteúdo temática pudesse ser realizada. Nessas análises, buscamos construir intensas e frequentes "ruminações" (Ferraz, 2015) sobre a realidade do mundo do trabalho docente – apreendida e observada – e suas relações com as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), em uso crescente e quase absoluto na contemporaneidade.

A ideia de "ruminar" e produzir conhecimento no campo da educação

Julgamos ser bastante pertinente compreender algumas questões que apareceram na pesquisa de campo que realizamos com professores sobre trabalho docente e tecnologias digitais. A expressão "ruminação" que recuperamos no trabalho vem da ideia explorada por Ferraz (2015) em uma obra que reúne um conjunto de produções elaboradas ao longo dos anos em sua trajetória acadêmica. A autora bebeu na fonte de Nietzsche para problematizar o termo "ruminações", sempre indicando-o entre aspas. Trata-se de uma terminologia explorada pelo filósofo alemão Nietzsche, considerado uma importante referência no campo da filosofia, dadas as observações inusitadas e precisas que fazia a respeito da expressão "ruminação". Vem daí a ideia de "ruminar" o pensamento em vários estômagos, essas informações e conteúdos que bombardeiam os "leitores" da cultura atual. Será que nesta nova cultura os indivíduos possuem (ou querem) tempo suficiente para processar tudo aquilo o que leem? Os animais ruminantes possuem vários estômagos, o que permite que o alimento seja digerido por meio de um longo processamento digestório, que demanda significativo tempo. A ideia de ruminar o pensamento, apresentada pela autora, nos permite compreender que nós, seres humanos, precisamos processar as informações que nos atravessam na contemporaneidade da mesma forma que os ruminantes processam os alimentos. Ou seja, para serem digeridas por completo, é necessário que as informações (advindas por meio da leitura) passem por um caminho lento e dotado de vários compartimentos, para que exista tempo necessário para processá-las, digeri-las e consequentemente absorvê-las de maneira significativa.

Nesta direção, encontramos na produção de Ferraz aspectos relacionados com a cultura letrada na sociedade composta por constantes movimentos, metamorfoses e ciberespelhos, como argumenta a autora. Se, por um lado, Ferraz (2015) destaca que "a arte da leitura como ruminação requer o trabalho espiritual de vários estômagos" (p. 135); qual seja, durante o ato de ler o pensamento perpassar por inúmeros estômagos visando distintas interpretações e reflexões; por outro lado, convidamos o leitor a "ruminar", também, seguindo a ideia de fazer percorrer por vários "estômagos" (absorvendo os alimentos do presente e não os digerindo de imediato) aspectos sobre questões que envolvem o trabalho docente no contexto global, sem perder de vista fenômenos que acontecem na esfera do ensino superior.

O docente universitário, além de ser considerado, em nossa pesquisa, protagonista de processos, participante ativo, autônomo, dotado de escolhas, decisões e liberdades, é um sujeito que faz parte da cultura letrada mencionada por Ferraz, além de atuar e se constituir a partir de realidades e contextos sociais bastante desafiadores. E, nesta cultura letrada em que vivemos na contemporaneidade, marcada por tempos de dispersão hiperconectada, tal como argumenta Ferraz (2015), somos tomados pela forte tendência da digitalização e da virtualidade ao viver em uma sociedade acelerada e impulsionada por um sistema capitalista, que é complexo e sobrevive em razão da forma como a sociedade é organizada. Mais ainda, para trabalhar no meio educacional, em tempos de dispersão na sociedade e na escola, além de ter que se adaptar e saber lidar com as mudanças, transformações e inovações ocorridas nos últimos anos, há que se enfrentar um desafio maior ainda, pois existe uma forte tendência advinda do mercado que forja os sujeitos a produzirem além daquilo que já fazem no ambiente de trabalho. Ou seja, a busca pela superação de metas e constante aperfeiçoamento do currículo tem sido fator determinante para que indivíduos se mantenham em certas ocupações, cargos e empregos que exigem que metas sejam sempre cumpridas.

Nessa lógica, trabalhar em casa ou em outros espaços que não seu local de trabalho, ou aos finais de semana, feriados e férias, acaba se tornando um fenômeno cada vez mais naturalizado na cultura virtual, na fase do capitalismo de acumulação flexível, e fortalecido sempre mais e mais pela estratégia da despossessão. Nesta mesma lógica, ensinar e educar em tempo de dispersão hiperconectada, de aceleração nos acontecimentos das relações de modo a não encontrar tempo para digerir aquilo que atravessa o presente, de certa maneira afeta o percurso do trabalho que os indivíduos percorrem, trazendo consequências muito questionáveis.

Assim, ser sujeito que faz parte de um certo sistema, nesta sociedade que caminha a passos largos e acelerados, é se constituir enquanto ser humano que percebe as inúmeras consequências que o mundo do trabalho ocasiona na vida. Nesse sentido, o trabalho docente na educação superior, tomado por fortes relações com as tecnologias digitais, em nossa análise, possui múltiplas faces e transmutações.

Desse modo, buscamos nos apropriar da ideia de ruminação retomada por Ferraz (2015), exatamente por entendermos a importância de "digerir" alguns aspectos conceituais que, de certa forma, se tornam subsídios essenciais para as análises que aqui fazemos, dada nossa opção pela matriz epistemológica da dialética materialista que adotamos para alicerçar a investigação e as análises que aqui se encontram, por ser propícia e pertinente às discussões e considerações que se pretende sobre as relações dialéticas entre: o indivíduo e a sociedade; o trabalho e a subjetividade; a aparência e a essência. Daí julgarmos ser relevante ir além do manifesto, do estabelecido no discurso. É preciso buscar além das narrativas e desnudar o que a elas é subjacente, embora não verbalizado. Importa, pois, saber "digerir", se deter naquilo que o docente diz e buscar, a partir do seu discurso, entender e explicar como a linguagem reproduz seu contexto de trabalho, ao mesmo tempo que por ele é produzida. Por isso, pode ser estratégico "ruminar" conteúdos extraídos de falas retiradas das entrevistas, mas remetendo sempre ao contexto delas, de modo a compreender como o todo produz a parte e esta remete necessariamente àquele. Nada é inocente ou fortuito quando o que se pretende é a leitura crítica e dialética do real.

A analogia entre o trato do objeto deste artigo e o processo de ruminação, tal como proposto por Ferraz (2015), diz respeito à intenção de que as informações obtidas e os conhecimentos construídos a partir delas se constituam por meio de elaboração crítica intelectual e da ativação do pensamento de modo dinâmico, processual e com velocidade coerente com a natureza e complexidade dos objetivos, em sintonia com os fatos. Em outras palavras, significa mobilizar os processos psíquicos e "revirar as vísceras do pensamento" (Ferraz, 2015, p. 11) para assimilar significados e conteúdos que traduzam o que antes estava distante e agora se integra à subjetividade, na forma de conhecimentos, sentimentos e novos estímulos que são apropriados pelo sujeito.

O acesso à obra Ruminações nos proporciona uma série de provocações. Uma delas se refere aos processos de ir e voltar, bem como pensar e repensar no campo científico. Por esta razão trazemos Ferraz (2015) para o debate, pois a expressão ruminar, explorada por ela a partir de influências de outros teóricos, a exemplo de Nietzsche, refere-se a uma analogia que muito bem se articula com o processo de digerir, não só em "nosso estômago", como também em nosso cérebro, aquilo que é dado e posto no universo empírico e/ou científico.

Portanto, temos procurado exercitar esse processo de digestão, tanto no trabalho com as informações fornecidas pelos docentes entrevistados, que trazem, em suas palavras, conteúdos repletos de sentidos que dão margem a inúmeras possibilidades de interpretações e análises, quanto em nossas produções e publicações científicas elaboradas, por meio das reflexões e problematizações que temos feito. O entrecruzamento entre produção teórica e o material empírico selecionado permite ruminar sobre aspectos pontuais observados por nós durante o processo de tratamento dos dados.

Para além de ruminar pontos e contrapontos sobre os dados advindos da nossa investigação com os professores, buscamos refletir sobre o atual contexto e a realidade em que estamos inseridos, principalmente sobre um sistema maior capaz de influenciar fortemente processos e relações que ocorrem na educação e no mundo do trabalho de nosso país.

Cada parte da realidade estudada remete à totalidade. Daí que o olhar à questão política neoliberal possui lugar neste texto, sobretudo por entendermos que não se separa o fenômeno trabalho – suas condições, naturezas e processos – do sistema político e econômico que conduz a sociedade. Ter esta compreensão faz parte do processo de ruminar o pensamento sobre o real em suas relações dialéticas com a totalidade, dado que analisamos o trabalho a partir de uma conjuntura que o produz e é produzida por ele. Ruminamos o pensamento de modo a compreender como o trabalho docente transforma o sujeito, ao mesmo tempo que é transformado por ele e pelas circunstâncias e condições em que se dá.

Tendo em vista a perspectiva dialética que assumimos, a fala dos professores aqui objeto de nossas análises reforçam a existência de um sistema econômico que influencia a sociedade e a impulsiona a produzir e consumir cada vez mais, causando consequências que se refletem nas relações humanas, na natureza, no ritmo e na intensificação de trabalho, bem como na produção de um certo padrão de configuração de subjetividades. Como será observado neste texto, trechos de algumas entrevistas realizadas com quinze docentes do ensino superior municipal público revelam conteúdos que demonstram o que temos anunciado, sem perder de vista acontecimentos e relações que ocorrem no âmbito da cultura digital.

Desse modo, percebemos que ruminar aspectos do trabalho na perspectiva dialética implica perceber e analisar o trabalho docente e os efeitos dele na vida de professores imersos conscientemente (ou não) no contexto da cultura digital. Significa, também, olhar para a realidade a partir de uma compreensão que permite enxergar as tensões e contradições que surgem nas relações sociais e nas interações que ocorrem entre sujeito e tecnologias digitais. Por esta razão também recorreremos a Thompson (2008) para compreender um pouco mais sobre esses processos, pois o autor trata das "interações" que engendram as relações entre os sujeitos – fenômeno que nos interessa no contexto da investigação. Em outras palavras, o trabalho expõe quem o exerce a interações de diversas ordens, complexidades e consequências, ao mesmo tempo que por estas mesmas interações se produz. Por isso e nessa direção há uma mão dupla entre o trabalho e o ser. Eles se produzem e se afetam por meio de um processo contínuo, embora ora com avanços, ora com recuos; ora mais definido, ora mais fluido; ora mais prazeroso, ora permeado por conflitos, despossessão e sofrimentos. De qualquer modo, o que interessa é entender que tal processo é regido e alimentado por uma lógica que o permeia, o sustenta e o reproduz a seu serviço.

Daí a importância das análises relacionadas ao capitalismo global e ao sujeito neoliberal, indivíduo moldado por esse sistema político, econômico, cultural e digital, e que nele convive, ao mesmo tempo que o produz e por ele se reproduz. Tendo em vista esse cenário, suas raízes e expressões no contexto educacional e, em especial, nos profissionais e pesquisadores que o constituem e o divulgam, buscamos focar aspectos do trabalho docente no âmbito do ensino superior. Afinal, se na cultura digital indivíduos estabelecem relações com as inovações tecnológicas disponíveis na sociedade, é essa mesma cultura que desenha uma nova razão de ser e estar no mundo: o empreendedorismo e o empresariamento da vida e de si.

A "nova razão do mundo" e a produção do sujeito neoliberal: que tendência é essa?

É de teóricos como Dardot e Laval (2016) o pensamento que traduz a existência de um movimento na história da humanidade que, em poucas palavras, condiz com uma peculiar constituição de sujeitos dotados de uma "nova razão" de ser e viver no mundo. Esta nova razão (que se pretende ser lógica e ordenadora de significados, sentidos e ações) diz respeito a determinados modelos sendo assimilados e a serem seguidos, com base em princípios, valores e prioridades que alicerçam tendências políticas e culturais de uma sociedade em construção e que se pretende hegemônica, enquanto se impõe aos sujeitos individuais e coletivos, independentemente de fronteiras nacionais, geográficas e/ou culturais.

Referimo-nos a modelos de gestão da vida em muito definidos e sedimentados, por exemplo, por modos de ser e trabalhar, de um sujeito neoliberal que os desenvolve, carrega e expressa em consonância com uma ordem global dotada de formatos e características bem peculiares, que parecem se impor às subjetividades e profissões de modo totalizante e nem sempre abrindo espaços para expressões e práticas de si. Também podemos denominar esse indivíduo como integrante de um novo proletariado de serviços da era digital, como aborda Antunes (2018). O autor se baseia em lideranças sindicais e governos de recorte social-liberal para discutir a degradação das condições de vida e de trabalho dos novos proletários que sustentam a sociedade. Esses trabalhadores "vestem" uma nova roupagem que os impulsiona a agir como seres infalíveis e altamente produtivos. Trata-se, pois, de uma tendência que não tem como reverter, sendo impossível também deixar de perceber sua efetivação no contexto social e no mundo do trabalho.

A literatura permite-nos perceber como algumas análises que partem dessa orientação teórica perpassam entendimentos de autores não apenas do Brasil. À luz do que vimos com Dardot e Laval (2016), por exemplo, ser o mais eficaz possível, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem contínua, possuir flexibilidade frente às mudanças incessantes, ser especialista, são pontos fortemente visíveis em um sujeito neoliberal. Esse tipo de sujeito é competitivo, pois se vê, ou não, inteiramente imerso na competição do mundo do trabalho. Aqueles que ainda assim não o são, ou passarão pelas metamorfoses que os tornarão, ou simplesmente ficarão "para trás".

O sujeito neoliberal, subjetivamente, encontra-se envolvido num fluxo de atividades em que lhe é exigido o cumprimento de tarefas, por vezes, até abusivas – como trabalhar aos finais de semana, feriados ou mesmo na madrugada – para conseguir cumprir determinados objetivos, a custo de um "trabalho sem fim" e, às vezes, em um ritmo próximo ao "produtivismo negativo", reconhecido por um dos docentes entrevistados, que identifica ser uma dentre as tantas dificuldades atuais do trabalho docente no ensino superior:

Cebolinha3: sabe o que eu vejo na dificuldade do trabalho docente? Nós docentes normalmente temos a sobrecarga de trabalho. E são cargas horárias muito altas para atingir um nível de salário (…) e ainda tem o processo produtivista inserido, é o produtivismo negativo, porque é um produtivismo que você tem que cumprir datas, não sei o que… muito mais na forma do que de fato no conteúdo e aí isso acaba fazendo com que o trabalho docente seja desconfigurado em certos momentos.

Ter que "cumprir datas, metas, não sei mais o quê…", são atributos que o novo "empresário de si" não pode perder de vista. Ser empresário de si parece ser condição essencial para ingresso e permanência no novo proletariado de serviços da era digital. Dardot e Laval (2016) e Antunes (2018) defendem essa tendência e confirmam a ascensão desse movimento que, para Cebolinha, "desconfigura" o trabalho docente, como acredita e admite Cebolinha, o docente do ensino superior. Compreendemos, portanto, que não é só o trabalho docente que tem sido modificado, mas também as relações que se estabelecem fora do ambiente de trabalho. Para muitos e em diversas situações, a lógica do mundo do trabalho se expande para todas as demais esferas em que a autogestão e a regulação de si pelo estabelecimento de metas são o norte para sobreviver e viver no mundo do trabalho.

A narrativa de certa maneira é carregada de angústias sobre a percepção de Cebolinha a respeito do trabalho docente. Afinal, parece-nos que esse indivíduo é moldado para se constituir como um "ser humano" engajado plenamente e para o trabalho. Ele, em linhas gerais, entrega-se inteiramente à atividade profissional, pois não perde de vista – e não pode – a busca por resultados. Estamos diante de neosujeitos, como apontam Dardot e Laval (2016). Eles asseguram que a empresa de si mesmo possui dois rostos: "o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização. Oscilando entre depressão e perversão, o neosujeito é condenado a ser duplo: mestre em desempenhos admiráveis e objeto de gozo descartável" (Dardot & Laval, 2016, p. 374).

Quando falamos de "indivíduos" nessas condições, referimo-nos às pessoas em geral, com especial atenção aos trabalhadores. Como o trabalho é também e antes de tudo um meio de sobrevivência, para tal e quiçá para nele também melhor viver, é preciso conquistar determinados espaços a que nem todos sujeitos possivelmente possuem acesso, independentemente dos subprodutos que daí podem resultar. Isso porque o trabalho traz benefícios, mas contradições e situações que negam o humano e o alienam. Por meio do trabalho, sujeitos podem desenvolver depressão – talvez por causa de pressão e da perversão nos processos produtivos – que se torna crônica quando a exigência maior é ultrapassar metas e fazer a diferença a qualquer custo. Em meio a esse processo, as subjetividades também são afetadas; a dinâmica psíquica vai se estabelecendo e se singularizando em articulações permanentes com uma conjuntura e um tempo próprio. O reflexo disso é que esse novo modo de produção de subjetividades tem sido fortemente baseado na competição entre os sujeitos. Mas o que isso quer dizer?

Em uma sociedade com mais concorrência, os indivíduos se submetem a condições de vida e de trabalho que contribuem para o fortalecimento de uma ordem política e econômica assentada no neoliberalismo, resultando em transformações muito significativas para as pessoas, as empresas, e sobretudo para o Estado. Trata-se de uma nova configuração nos modos de vida que se alicerça no pilar da competição, pois "a racionalidade neoliberal impele o seu agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos. A economia torna-se disciplina pessoal" (Dardot & Laval, 2016, p. 331).

Ser competitivo, eis a questão. A produção no mundo do trabalho está associada à competição. Ou seja, quanto mais se produz, melhores condições de competir existem no mercado. No leque dessas discussões, abrimos um parêntese para refletir também sobre esse ponto que envolve competição e produtividade, tema que Castells (2016) também se dedica a analisar. Em sua obra A sociedade em rede, Castells (2016) é enfático ao argumentar que "a longo prazo, a produtividade é a fonte da riqueza das nações. E a tecnologia, inclusive a organizacional e a de gerenciamento, é o principal fator que induz à produtividade" (p. 150). O autor defende que a produtividade contribui para a melhora e o avanço da humanidade. Em sua visão sobre essa questão, que não escapa à lógica capitalista, as pessoas, empresas, governos e organizações têm sido motivados não pela produtividade, mas pela lucratividade e aumento do valor de suas ações.

Nessa ótica, a produtividade e a tecnologia podem ser meios importantes para a sociedade, no entanto, como destaca Castells (2016), não são os únicos. À medida que interagimos e incorporamos as inovações tecnológicas que passam a fazer parte das nossas vidas, de certo modo assumimos uma "nova razão no mundo" e nos deixamos conduzir e/ou somos levados por ela, em virtude das inúmeras possibilidades relacionadas aos recursos que elas oferecem. Concordamos com Castells, quando ele não vê mais a sociedade sem os recursos tecnológicos. Ele e nós não vemos como dissociar sociedade e tecnologia. Elas têm se tornado, como McLuhan (1995) percebe, não apenas extensões dos corpos, mas das mentes humanas. As tecnologias rompem as fronteiras entre o mundo do trabalho e a vida particular dos indivíduos. Eis, aí, o outro ponto a que pretendíamos chegar: a ruptura dessas barreiras.

O mote principal da próxima subseção deste artigo reside em apresentar e discutir mapeamentos que circunscrevem a cultura do sujeito neoliberal moldado pelo capitalismo global. Os indivíduos de modo geral, incluindo-se os professores, se tornam cada vez mais responsáveis por gerir potenciais "empresas" que, nessa lógica, são suas próprias vidas, que os levam a atuar como empresários de si mesmos. Isso significa que sujeitos contemporâneos têm desempenhado papéis sociais cada vez mais diferentes dos padrões construídos ao longo da história. No século 21, os empresários de si passaram a se multiplicar, principalmente porque "se não se adequarem, a sensação é de que ficarão para trás", como pontuou (e veremos pontuar) um dos professores entrevistados.

Capitalismo global, trabalho e empresariamento de si: a sensação de "ficar para trás"

Como temos vindo a referenciar, estamos diante da fábrica do sujeito neoliberal. A "empresa de si mesmo" que os autores Dardot e Laval (2016) exploram tem sido consolidada na cultura da sociedade neoliberal. Assim, percebemos que muitos fenômenos que acontecem nos dias atuais, presentes no mundo do trabalho, são reflexos de uma "cultura" impulsionada e produzida pelo neoliberalismo, favorecido pela cultura virtual e pela sociedade em rede. Inclusive, na fala dos participantes da investigação, constatamos a confirmação dos sentimentos que envolvem essa perspectiva que assola os docentes universitários.

Para Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo não é um herdeiro natural do primeiro liberalismo, nem deve ser compreendido como uma ramificação ou mesmo traição. Pelo contrário, nesse sistema, o foco não é mais saber qual tipo de limite dar ao governo político, ao mercado, aos direitos, mas perguntar como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si. Por isso a expressão "empresa de si mesmo", cunhada pelos teóricos, permite-nos construir algumas críticas e reflexões sobre o empresariamento de si.

Esta empresa tem sido estruturada e administrada pelo sujeito neoliberal que trabalha e vive de modo acelerado na cultura digital, cuja personalidade e laços sociais têm sido fortemente corroídos. Trata-se, na nossa observação, fundada nas análises de Sennett (2000), de tempos modernos em que a corrosão do caráter, dos comportamentos, das identidades e de outras estruturas da vida, em consequência do trabalho no novo capitalismo tomado pela globalização, tem sido consideravelmente potencializada e/ou intensificada. Nessa lógica, entendemos que o caráter pessoal, a restruturação do tempo e a ética no trabalho, a título de ilustração, são alguns dos temas que Sennett discute e problematiza.

As ideias de Sennett (2000) assumem perspectivas sociológicas muito pertinentes e apresentam-se afinadas com as apresentadas por Dardot e Laval (2016) que, de certa forma, encontram confluência na reestruturação produtiva dominada pela acumulação flexível e pela despossessão crescente e em expansão sem fim no mundo do trabalho contemporâneo. Os autores são assertivos ao afirmarem que "o acúmulo de tensões e problemas não resolvidos, o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam dias cada vez mais difíceis para as populações" (Dardot & Laval, 2016, p. 8).

Na esteira das reflexões de Dardot e Laval (2016), o sujeito neoliberal administra sua existência como produto e com base em princípios econômicos. Estamos vivendo momentos históricos em que a sociedade neoliberal transfere as responsabilidades para os indivíduos, forçando as pessoas a trabalharem de acordo com as condições às quais são submetidas. Isto faz com que o próprio caráter trilhe um caminho que o leve à corrosão (Sennett, 2000). Ou seja, o sujeito começa a viver determinadas situações na vida e no mundo do trabalho que são delineadas por um novo formato de caráter, ou melhor, novos modos de pensar e agir. De certa maneira, isso modifica a produção de suas subjetividades e muito provavelmente suas formas de ver e encarar a realidade.

A esse respeito, uma das docentes entrevistadas traz relatos que permitem compreender como é constituída a vida no trabalho, bem como a sensação que o sujeito sente em relação à cobrança e à necessidade de se manter atualizado, porque senão ele "acaba ficando para trás".

Pesquisador: O que realmente implica profissionalmente para você organizar o seu trabalho?

Frida Kahlo: A maior dificuldade que eu vejo é o tempo, justamente porque eu tenho uma carga horária altíssima aqui dentro da faculdade. Eu trabalho hoje com 8 disciplinas diferentes e antes eu trabalhava em dois cursos e hoje trabalho apenas em um curso. Mesmo assim isso não faz com que minha carga horária seja mais tranquila. Então, para eu agregar essas técnicas e tecnologias, o complicado não é eu querer fazer; o complicado é eu ter um tempo para elaborar isso, a gente tem uma fala que tempo a gente faz, mas hoje em dia temos tanta prioridade que eu não sei mais o que eu vou priorizar, então hoje em dia estou tendo categorias de prioridades, onde nem sempre vou conseguir trabalhar com essa técnica justamente porque eu não tenho tempo para elaborar isso bem.

Pesquisador: Você gostaria de fazer alguma síntese ou reflexão dessa entrevista? Quer fazer algum fechamento?

Frida Kahlo: Só para finalizar, eu penso o seguinte: eu tenho que trabalhar hoje com meu conhecimento tecnológico para que eu possa então trabalhar isso em sala de aula. Hoje estou em um momento da minha vida que eu vivo o "redescobrir" (d)a minha atividade, porque eu percebo que se eu não (me) adequar, acabo ficando "para trás".

Os trechos em negrito, marcados na fala da participante do estudo, que é docente do curso de Direito, apresentam subsídios que permitem identificar algumas características desse novo sujeito regido pelo autoempresariamento. Frida Kahlo primeiro reconhece a carga horária alta de trabalho que possui, pois trabalha com oito disciplinas diferentes. Em meio a tantas atribuições relacionadas ao ambiente de trabalho, ela "não sabe mais o que vai priorizar", ao ponto de ter que criar "categorias de prioridades", como diz. Isto ocorre em razão da "falta de tempo" que existe, ressaltada pela docente.

Não possuir tempo hoje em dia é um fenômeno cada vez mais real e naturalizado pelos indivíduos que convivem sob a lógica do capitalismo global e do neoliberalismo. São características do novo proletariado de serviços desta era que nos interpela. Falamos do privilégio da servidão, fenômeno explicado por Antunes (2018), que desenvolve suas densas análises sobre questões que se relacionam com o mundo do capitalismo e do trabalho. Apesar das condições adversas a que os sujeitos são expostos, para a maioria, mais vale se submeter do que ficar à margem do mundo do trabalho que cada vez mais se mostra como privilégio e exceção, quando muitos a ele não têm acesso. São aspectos muito latentes e presentes nos discursos dos docentes entrevistados, como diz Frida Kahlo, que destaca o quanto a ausência de tempo é algo que a assola e a afeta, ao ponto de ter que definir categorias de prioridades em sua vida.

A docente universitária, ao assumir que "hoje está em um momento da vida em que vive o ‘redescobrir’", faz-nos refletir que tal sentimento sinaliza novas condições/habilidades que os sujeitos precisam desenvolver para se manterem no mercado. Em outras palavras, "se não (se) adequar" às novas exigências, "acaba ficando para trás", como sente Frida Kahlo. Ela trabalha em um contexto capitalista em que ter uma carga horária "cheia" é mais vantajoso (financeiramente) do que possuir um regime de trabalho reduzido. No mundo capitalista, é extremamente importante ganhar bem, porque a moeda recebida em troca do trabalho precisa retornar ao sistema regido pelo capital em razão dos organismos que operam essa lógica, ou seja, precisa ganhar mais para poder, minimamente, dar conta de sobreviver de maneira digna segundo os padrões da sociedade.

A professora Luísa nos concedeu uma entrevista em que também apareceram algumas situações que permitem entender como a sociedade caminha no sentido exposto: de buscar ganhar mais para conseguir sobreviver e acompanhar as tendências em vigência e escapar às instabilidades e inseguranças do mundo do trabalho. Vejamos:

Pesquisador: você sempre teve a docência como trabalho?

Luísa: Sempre, em inserção profissional umas das primeiras. Assim, depois que me formei aí eu fui para o mestrado, fui viver de bolsa logo no início. Logo em seguida eu consegui esses bicos, na verdade a pós-graduação era um bico, pois era sábado, não era carteira assinada, etc.

Pesquisador: E durante a semana?

Luísa: Só aos sábados, no primeiro ano. (…) depois eu entrei em uma Universidade perto do Rio que se chama Barra Mansa e também era na graduação de psicologia.

Pesquisador: Mas, daí não era bico?

Luísa: Não, e daí não. Desde o tempo da UERJ já foram vínculos, e aí depois eu fui para Niterói em uma outra Universidade. E depois vim para cá. Então, eu trabalhava um pouquinho e migrava quando o salário era melhor, quando as condições eram melhores.

Como constatado nas falas registradas, a falta de tempo e a organização das prioridades são temas que aparecem com intensidade nos relatos dos entrevistados. A ausência de tempo ou a ocupação do tempo livre, com atividades criativas, que contribuam para a manutenção e reprodução desse sistema produtivo e capitalista, são tomadas como ponto de discussão, uma vez que temos percebido, cada vez mais, que as atividades docentes não têm ocorrido unicamente no ambiente de trabalho. Pelo contrário, professores levam trabalho para casa e trabalham aos finais de semana e feriados para cumprir as exigências postas pelo ambiente acadêmico.

Em se tratando dos aspectos "tempo" e "evolução da sociedade", vimos que De Masi (2000) inaugurou o discurso sobre o "ócio criativo" apresentando reflexões que tratam do "futuro do trabalho". O autor explora questões sobre a fadiga e o ócio na sociedade pós-industrial e discorre sobre esses pontos fazendo alusão ao homem como "máquina humana", expressão que ganha dimensão quando refletimos sobre essas questões. Se o homem é uma máquina, ele não pode parar de funcionar e nem cansar. Em outra produção, ele problematizou, de forma abrangente e orgânica, questões relativas ao trabalho, ao tempo livre e à evolução da sociedade. Isso está estreitamente ligado ao tempo e à produtividade.

De Mais (2000), em suas discussões sobre ócio, que se aproximam das teorias de Dardot e Laval (2016), enfatizou o aspecto da insatisfação provocada diante do modelo calcado na idolatria do trabalho e da competitividade, que se reflete, e muito, no ensino superior e no trabalho docente. Ou seja, o tempo livre parece ter sido, de forma "criativa", ocupado de modo a produzir e contribuir com o desenvolvimento de um sistema. No contexto da cultura digital, o tempo livre de professores tem sido, vertiginosamente, tomado pela esfera dos recursos digitais e tecnológicos que parecem propiciar e extrair mais trabalho, consequentemente mais valor, com tendências de o trabalho ultrapassar locais e tempos fixos, passando a se estender a locais antes reservados ao descanso, ao lazer e ao tempo livre; portanto, no caso dos docentes, fora do ambiente regido pelo vínculo empregatício, isto é, a escola e a sala de aula. Será que isso causa algum tipo de sofrimento?

Temos constatado que os "sofrimentos" e "desafios" que impactam os sujeitos (sobretudo os docentes), provocados pela subjetivação neoliberal que se opera na vida comum, no trabalho e fora dele, são inúmeros. A disputa provocada entre os indivíduos existe porque o sistema capitalista forja que as pessoas sejam incorporadas nesta cadeia de competitividade. Essas disputas também se fazem presentes na escola, e não deixam de atravessar as relações entre os sujeitos, inclusive os professores. Diante desse contexto de tensões, muitas transformações atingem a saúde do professor, também afetada em virtude de o neoliberalismo estabelecer metas de produtividade que podem desembocar em um produtivismo com métricas e objetivos desafiadores que o sujeito não consegue alcançar, contribuindo, de certa maneira, para o aumento do adoecimento, do absenteísmo e da insatisfação crônica de muitos.

Tendo em vista esses panoramas, entendemos que, com o avançar do tempo, os recursos disponíveis na sociedade evoluíram. Afinal, a revolução tecnológica digital inaugurou um novo tempo-espaço na sociedade. Podemos dizer, portanto, que se trata de um marco histórico em que as relações humanas podem ser permeadas pelas dimensões que a virtualidade e a digitalização permitem ocorrer. Em meio a esses processos, observamos a constituição crescente do sujeito neoliberal (quer sadio ou doente). Um indivíduo moldado por uma cultura dominante que nomeadamente tem sido conhecida e denominada de cultura digital, e que revela alguns pontos interessantes que merecem ser observados.

O sujeito neoliberal na cultura digital

A respeito do sujeito neoliberal inserido na cultura digital, compreendemos que esta imersão se trata de outro reflexo do neoliberalismo e dos tempos atuais, em que o consumo é quem orienta o trabalho dos indivíduos. Harvey (2008) argumenta que é preciso enfrentar o consumo como maneira de compensar a alienação experimentada pelo trabalhador. No sistema político neoliberal, percebemos, como diz Harvey (2008), que "aquilo que é negociado como mercadoria pelo capital, e distingue esse modo de produção, é a força de trabalho" (p. 74). Complementa o autor que

o trabalhador dispõe e vende essa mercadoria para o capitalista em um mercado de trabalho supostamente "livre". O comércio da prestação de serviços antecede o advento do capitalismo, é claro, e é bem possível que esse tipo de atividade continue existindo muito depois de o capital deixar de existir como modo viável de produção e consumo. Mas o capital entendeu que poderia criar a base para sua própria reprodução – com a esperança de que fosse permanente – pelo uso sistemático e contínuo da força de trabalho para produzir um mais-valor sobre aquilo que o trabalhador precisava para sobreviver com dado padrão de vida. Esse excedente está na raiz do lucro monetário. (Harvey, 2016, pp. 74-75)

A afirmação de Harvey (2016) nos faz entender que o uso incessante da força de trabalho produz aquilo que vários autores denominam de mais-valor, em se tratando de produzir trabalho. Ou seja, o sujeito desta nova cultura precisa produzir para sobreviver de acordo com os padrões de vida impostos pela sociedade capitalista. O que vemos hoje é a força de um trabalho que necessita ser desenvolvida para fornecer condições básicas de sobrevivência em meio ao contexto urbano e industrial construído pela acumulação flexível do capitalismo.

Não tratamos de defender a ideia de que o trabalho perdeu seu valor, pelo contrário. Reconhecemos que ele tem sido modificado e, na atualidade, possui outro caráter, se compararmos com o trabalho da Antiguidade, aquele desempenhado para a subsistência. O caráter que o trabalho assume hoje está atrelado à produção, à garantia e manutenção de espaço no cenário competitivo – de modo a garantir, também, a subsistência e o consumo.

No entanto, a fábrica que produz o sujeito neoliberal tem funcionado a todo vapor, pois, como afirmam Dardot e Laval (2016), tem conseguido produzir, profundir e circular, na sociedade, pessoas hipermodernas, imprecisas, flexíveis, precárias e fluidas. Para os autores, o sujeito neoliberal em formação "é correlato de um dispositivo de desempenho e gozo que foi objeto de inúmeros trabalhos" (Dardot & Laval, 2016, p. 321). E esses trabalhos revelam uma condição nova de homem, que permite modificar o ritmo de vida dos sujeitos, e muitos outros fenômenos objetivos e subjetivos.

Temos observado o esfacelamento das fronteiras que mantinham separadas a vida particular e a vida no trabalho; a (sensação de) sobrecarga de trabalho; a aceleração no(do) cumprimento de tarefas; a busca por resultados inalcançáveis; produção atrás de produção – em que o sujeito controla seu próprio ritmo, cobra de si, culpa a si mesmo, em linhas gerais, o sujeito se faz empresário de si mesmo. Estamos diante da construção de novas subjetividades.

Com base nas discussões apresentadas pelos autores já citados, compreendemos a ascensão de um movimento que envolve a cultura digital e as subjetividades. Esses aspectos, em tempos de capitalismo global e sociedade em rede, têm sido desenhados à medida que o sujeito neoliberal vive, estabelece relações com a cultura abrangente e se situa no mundo político, social e econômico. Trata-se de uma estreita afinidade com as novas formas de estabelecer relações nesse tempo compreendido como cultura digital.

Há sujeitos que desenvolvem habilidades para fazer parte de uma bolha que envolve a cultura midiática. E, ao fazer isso, indivíduos colocam em jogo o processo de produção de suas subjetividades. Dizemos isto porque submeter-se a determinados padrões de vida, modos de trabalho, maneiras de se relacionar com o outro e com objetos, à luz de um modelo que interessa ao sistema capitalista, significa perceber a produção de subjetividades a partir de determinados fins, cujos objetivos escapam ao controle do ser humano. Porém, ele é o responsável, o empresário de si mesmo. É um paradoxo. Senão, ele "ficará para trás".

Cabe analisar, nessa perspectiva, como o sujeito neoliberal, incluindo o docente universitário, está diante de uma forte aceleração e limitação na sociedade capitalista, como Haroche (2015) argumenta. A vida mental, diz a autora, é presa à tecnologia, à velocidade, de modo a induzir uma ausência de reflexão causada pela rapidez, pela instantaneidade e pela imediatidade (podemos dizer que falta "ruminar", como abordamos no início deste artigo). A tecnologia digital e a virtualidade, de certa forma, agem de modo a retardar a agilidade de pensar, refletir e construir questões críticas, o que ocorre, provavelmente, por conta de uma sujeição ao objeto tecnológico que nos absorve apenas como usuários. Como reconhece Haroche, convivemos e fazemos parte de um grupo de trabalhadores que possuem uma vida mental extremamente afetada pela ausência de reflexão, provocada pela rapidez com que vivemos e uma separação muito demarcada entre o fazer e o pensar. O ritmo apressado que envolve sujeitos no atual mundo do trabalho, aponta a pesquisadora, inviabiliza ou desacelera o próprio nível de criticidade e pensamento que poderiam ocorrer em escalas maiores com indivíduos da sociedade. Consequentemente, o processo de produção de subjetividades também é afetado.

A partir do que temos analisado, buscamos encontrar algumas razões concretas que existem na cultura do capitalismo global e que afetam a produção de subjetividades. Ao focarmos nesse campo temático, consideramos a presença dos recursos tecnológicos que fazem parte da sociedade e possibilitam seu funcionamento em rede cada vez mais expandido pela vida digital e pela cultura midiática. Dado o pressuposto de que as tecnologias digitais são aspectos fundamentais dos novos mapeamentos e desenhos sociais construídos e produzidos na atualidade, temos aqui o registro de uma hipótese.

Discutir subjetividades e o universo da cultura virtual implica explorar, em seu aspecto qualitativo, conteúdos, significados e inter-relações entre tecnologias digitais, mídias eletrônicas, capitalismo global e desdobramentos e interfaces na constituição dos indivíduos e das coletividades. É ter um olhar crítico e investigativo sobre quem são e o que os define, naquilo que fazem e no que são. Reconhecemos que esse propósito não é uma tarefa simples e fácil.

Adentrar nesse campo de estudo é importante para aprofundar os conhecimentos a respeito das subjetividades no sentido plural da palavra. Ou seja, é plural, pois são inúmeras as subjetividades, muitas e complexas as relações entre o contexto globalizado, a cultura e a constituição dos sujeitos. Desse modo, assimilar tais relações, distinguindo a sua natureza, seus conteúdos e implicações, significa conhecer uma alternativa para reduzir ou escapar a quaisquer formas e níveis de controle e sujeição, sobretudo, no aspecto da cultura virtual que tem atravessado a vida de sujeitos. Considerando o sistema capitalista que exerce significativa influência na produção subjetiva de sujeitos na cultura contemporânea, buscamos encontrar, na literatura, teorias que abordassem algumas implicações sobre essa possível influência.

Tendo em vista as questões que temos apresentado e discutido, consideramos que tanto o que entendemos como trabalho (bem como a produção de subjetividades), sem dúvidas, tem sido modificado em razão dos fenômenos de ordem política e econômica que o atravessam em suas várias dimensões. A partir do que vimos aqui, indagamos: como ocorre a produção de subjetividades nesse contexto emblemático que envolve o mundo do trabalho? Trata-se de uma questão para pensar, refletir, inclusive possível de ser respondida a partir do material teórico e empírico que apresentamos neste trabalho. Como possibilidade de elaborar uma das possíveis respostas, partiremos para as considerações finais deste artigo, que buscarão dar ênfase a questões sobre a cultura midiática em que os sujeitos vivem, trabalham e convivem na sociedade digital.

Algumas considerações: em questão à produção de subjetividades na cultura midiática

No bojo das discussões apresentadas nas seções anteriores deste artigo, está presente a questão da subjetividade. Nestas considerações finais, buscamos provocar reflexões sobre os processos que envolvem a produção de subjetividades, considerando os contextos que atravessam os sujeitos e a sociedade, além de explicar de que maneira alcançamos o objetivo deste trabalho.

Primeiramente reconhecemos que a cultura midiática se configura como um fenômeno que contribui para possíveis transformações nos sujeitos e na sociedade. Braga e Santaella (2017), por exemplo, trazem um pensamento que nos permite compreender o quanto a produção de nossas subjetividades é atravessada pelas inovações pungentes que nos atingem em razão das novidades tecnológicas e das mídias sociais. Conforme os autores enfatizam, existe essa fervura de era da conexão contínua porque acreditamos que

a aceleração e intensificação no uso das redes não teria sido possível se não tivesse se dado a entrada triunfal dos dispositivos móveis, ou seja, notebooks, palmtops, celulares com poderes computacionais cada vez mais incrementados, inclusive dotados de sistemas georreferenciais. (Braga & Santaella, 2017, p. 418)

Braga e Santaella (2017) discutem a evolução das mídias sociais ao longo da história e enfatizam o quanto fervem os acontecimentos que essa evolução suscita nesta era de conexão contínua, potencializada pelos artefatos móveis e eletrônicos. Os autores entendem a existência de constantes metamorfoses na cultura digital e na educação, o que de certa maneira interfere, também, nas formas como as subjetividades são produzidas na cultura midiática fomentada pela cultura do capital.

Logo, de antemão enfatizamos que não compreendemos a subjetividade apenas como produto da cultura capitalista, pelo contrário, concordando com Guattari e Rolnik (1999), que a entendem para além disso, pois os autores preferem usar a expressão subjetivação ou produção de subjetividades. Guattari e Rolnik (1999) propõem a ideia de uma subjetividade de natureza "industrial, maquínica"; traduzindo em pormenores, aquela basicamente "fabricada, modelada, recebida, consumida" (p. 25). Trata-se de um fenômeno que escapa de uma natureza essencialmente humana.

Consideramos, em segundo plano, que a indústria do capitalismo atinge praticamente todas as pessoas, inclusive de faixas etárias distintas, pois "é desde a infância que instaura a máquina de produção de subjetividade capitalística, desde a entrada da criança no mundo das línguas dominantes, com todos os modelos tanto imaginários quanto técnicos nos quais ela deve se inserir" (Guattari & Rolnik, 1999, p. 33).

Nesse processo, em que se instauram as máquinas de produção de subjetividade, estão as mídias. Os meios de comunicação, como explicam Guattari e Rolnik (1999), constituem uma espécie de "muro de linguagem", que, por sua vez, propõe, continuamente, modelos de imagens que fazem o receptor se conformar com aquilo que é posto. São diversos os tipos de imagens de racionalidade, de legitimidade, de justiça, de beleza, de cientificidade. Os meios de comunicação, no leque das reflexões desses autores, falam pelos e para os indivíduos, constituindo, assim, suas subjetividades.

Assim, vamos concluindo que viver no mundo composto por novos sentidos e razões, com bombardeamentos de imagens e informações que acontecem de maneira inevitável, significa pertencer a uma sociedade constituída por sujeitos que constroem pensamentos a partir de uma cultura que não escapa da globalização. Os relatos apresentados pelos docentes entrevistados revelam alguns dos conteúdos de suas subjetividades. Eles permitem compreender a "sensação" de pertencimento à cultura digital. Uma das entrevistadas, Angel, diz "me considero um pouco incluída neste contexto, sim"; enquanto Frida Kahlo argumenta o seguinte: "eu sinto que vivo em uma era que ela é totalmente tecnológica e todos que falam sobre isso têm um espaço a mais nos ambientes".

Compreendemos que a percepção de conviver em um mundo recheado de computadores ou tecnologias digitais, à luz do que veremos nas falas dos participantes da pesquisa, causa-lhes uma certa sensação de fazer parte de uma cultura midiática, tecnológica e globalizada, pautada na interface homem/máquina. Tal interface, conceituada como maquinofatura, provoca algumas revoluções que dizem respeito, principalmente, ao campo da computação e informação.

Temos observado na sociedade o crescimento e fortalecimento de uma cultura constituída pela tecnologia informacional. A esse respeito, entendemos que nem o trabalho sai ileso desse processo, nem os seus meios e condições, conforme descrito por Alves (2014) ao salientar o pensamento de que o trabalho "põe, como pressuposto efetivo, a ‘captura’ da subjetividade da pessoa humana por meio do espírito do toyotismo, implicando, de modo intensivo e extensivo, o processo de reprodução social do trabalho vivo" (p. 15). Nesse sentido, a captura da subjetividade ocorre também por influência das tecnologias digitais de informação e comunicação, assim como pelo forte poder controlador que elas exercem na vida e nas relações entre sujeitos.

Desse modo, entendemos a subjetividade como sinônimo de vida psíquica, de organização e funcionamento de processos psíquicos. Ela pode ser denominada como o que acontece de forma concomitante com o que socialmente é visível, faz parte do manifesto e do objetivo, em que não podemos separá-la da sociabilidade. Assim, ela refere-se a um processo que depende da relação com o outro. A partir desse ponto, entendemos que o desafio a enfrentar em nossas próximas pesquisas é conhecer e nos aprofundar no outro lado do mensurável e objetivo, que permite conhecer e analisar o subjetivo.

Como o tema da subjetividade se articulou ao objetivo central do artigo, destacamos que com o avanço da ciência moderna – quando o investigador passou a ter mais autonomia na pesquisa científica – emergiu o interesse em aprofundar os estudos sobre sujeito e subjetividade. Para Novaes (2015), a ideia de constituição de si, por meio da interação com o outro, fenômeno fortemente valorizado no campo da psicologia, evidencia a necessidade de reconhecimento das dimensões de afeto, sentido, significado e valor na produção do conhecimento. A presença do outro em suas relações dialógicas indica que a constituição da subjetividade não se realiza em uma atmosfera neutra de sentido e valor.

Portanto, ressaltamos que pensar na produção e constituição das subjetividades, sem considerar o sistema do capitalismo global e flexível que atravessa a sociedade – em que os modos de produção expressam significados e conteúdos específicos – é deixar de considerar um fator importante que nos permite compreender maneiras como as subjetividades são, ideologicamente, afetadas e construídas historicamente.

Por fim, nesses processos, consideramos que as tecnologias exercem um papel fundamental que implica a construção de um sujeito que permite a sua pele receber artefatos e novos traços de uma cultura digital e midiática, compondo, portanto, uma segunda pele. Se não fossem os aprimoramentos advindos das inovações tecnológicas, nossa "pele da cultura" e nosso ser não seriam modificados, não sofreriam novas anexações. Hoje podemos dizer, inclusive, que a "pele humana" possui novos elementos que a ela foram incorporados. Muitos produtos tecnológicos passaram a fazer parte de nossas vidas, ao ponto de não conseguirmos mais sobreviver sem eles. Ou, se esses fossem excluídos de nossos contextos, enfrentaríamos sérios problemas que afetariam as relações humanas na cultura que se estabelece. Tudo isso o que apresentamos são evidências de uma nova razão do mundo em tempos de cultura digital e de aceleração do ritmo do trabalho, e não podemos deixar de discuti-las nem de ampliar os debates. Afinal, importa que nesse contexto cada indivíduo possa se perceber, exercer sua autonomia e se revelar pelo que faz, de modo que nele se deixe mostrar e afirmar sua singularidade e diferença.

Agências de fomento

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

3Por uma questão ética e metodológica, optamos por não identificar as identidades dos entrevistados. Os participantes da pesquisa escolheram pseudônimos que pudessem identificá-los, a exemplo de Cebolinha, Frida Kahlo, Angel e Luísa, que aparecerão neste artigo. Os demais docentes que participaram do estudo encontram-se na tese de doutorado em Educação publicada no repositório da Universidade de Uberaba, intitulada "Dos cadernos amarelos aos arquivos infinitos": metamorfoses do trabalho docente na cultura digital, pontos e contrapontos na UNIFIMES/GO.

Os textos deste artigo foram revisados pela Texto Certo e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 23 de Março de 2023; Publicado: 15 de Dezembro de 2023

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