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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.17 no.53 Curitiba abr./jun 2017  Epub 28-Fev-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.17.053.ao11 

Dossiê

A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI?1

The new international agenda for education 2030: soft consensus or a tool for mobilization of education’s actors in the XXI century?

Agenda internacional de educación para 2030: consenso “frágil” o instrumento de movilización de las partes interesadas de la educación en el siglo XXI?

Abdeljalil Akkari1  *

1Université de Genève, Suisse


Resumo

Neste artigo, analisaremos as questões da agenda internacional para a educação em 2030. Inicialmente, vamos destacar a importância da agenda internacional de educação nos aspectos em que ela assinala a influência do global e internacional nas políticas nacionais de educação. Esta agenda é também o resultado do trabalho conjunto das organizações internacionais influentes no setor da educação. Em seguida, examinaremos as principais diretrizes internacionais decorrentes desta agenda. Vamos destacar a onipresença de uma concepção neoliberal da educação, embora o componente humanista não tenha desaparecido completamente. Isso resulta em uma agenda, na qual um consenso superficial prevalece sobre a análise lúcida. Na terceira parte do artigo, concentrar-nos-emos no conceito de educação para a cidadania global que surge como uma orientação inovadora. Na última parte do artigo, buscaremos analisar de que maneira esta agenda pode ser traduzida no contexto educacional brasileiro. Esta agenda pode acelerar a criação de um sistema educativo em várias velocidades (plusieures vitesses) com base em testes padronizados. Pode também, caso ocorra uma mobilização dos educadores progressistas e as reformas estruturais sejam realizadas, representar a possibilidade de uma educação de base libertadora e de qualidade para todos. Evidentemente, o papel dos professores será uma das chaves de leitura das implicações da Agenda 2030 no Brasil e ao redor do mundo.

Palavras-chave: Globalização e Educação 2030; Qualidade; Cidadania mundial; Interna-cionalização; Educação publica

Abstract

In this article, we focus on the issues of the international agenda for education in 2030. Initially, we highlight the importance of the international agenda which points out the influence of global and international trends in national education policies. This agenda is also the result of joint work of influential international organizations in the education sector. Then, we examine the main orientations resulting from this agenda. We will highlight the omnipresence of neoliberal conception of education although the humanistic component has not completely disappeared. This results in an agenda where a soft consensus prevails over the a lucid analysis. In the third part of the article, we analyze how this agenda can be translated in the Brazilian educational context. This agenda can accelerate the consolidation of a two-tied educational system based on standardized tests. But, if there is a mobilization of progressive educators and structural reforms are carried out, this agenda represents the possibility of improving education quality for all. The role of teachers is one of the keys elements of the implications of Agenda 2030 in Brazil and around the world. In the last part of the article, we focus on the concept of education for global citizenship that emerges as an innovative orientation.

Keywords: Globalization and education 2030; Quality; World citizenship; Internationalization; Public education

Resumen

En este artículo nos centramos en los temas de la agenda internacional para la educación en 2030. Inicialmente, se destaca la importancia de la agenda internacional de la educación en los aspectos en los que señala la influencia del global e internacional en las políticas nacionales de educación. Esta agenda es también el resultado del trabajo conjunto de las organizaciones internacionales influyentes en el sector de la educación. A continuación, vamos a examinar las principales directrices internacionales resultantes de esta agenda. Destacaremos la omnipresencia de la concepción neoliberal de la educación, aunque el componente humanista no ha desaparecido por completo. Esto resulta en una agenda, en el que un consenso superficial prevalece sobre el análisis lúcido. En la tercera parte del artículo, intentaremos analizar de qué manera esta agenda puede ser traducida para el contexto de la educación brasileña. Esta agenda puede acelerar la criazón de un sistema educativo en varias velocidades con base en las pruebas estandarizadas. También puede, si hay una movilización de los educadores progresistas y reformas estructurales se llevan a cabo, representar la posibilidad de la base liberadora y la educación de calidad para todos. Por supuesto, el papel de los maestros es una de las claves de interpretación de las implicaciones de la Agenda 2030 en Brasil y en todo el mundo.

Palabras clave: Globalización y Educación 2030; Calidad; Ciudadanía mundial; Internacionalización; La educación pública

Introdução

As políticas nacionais de educação, durante longo tempo foram responsabilidade exclusiva dos Estados Nações. As orientações privilegiadas eram decorrentes essencialmente da dinâmica interna nas fronteiras nacionais, mesmo que fossem possíveis alguns financiamentos e inovações educacionais externos. Há trinta anos, a educação dentro das fronteiras nacionais é objeto de crescentes influências internacionais (AKKARI, 2011).

Várias razões explicam esta mudança radical. A globalização econômica coloca os sistemas educacionais em concorrência para atrair investimento direto e de empresas multinacionais. Os agrupamentos econômicos regionais, como a União Europeia, o Mercosul2 ou a ASEAN3 encorajam seus Estados membros a harmonizar as suas políticas de educação. A migração internacional e a mundialização dos fluxos de informação permitem as inovações e pesquisas educacionais para circular melhor em todo o mundo.

Enfim, as organizações internacionais contribuem para a formulação de políticas nacionais de educação. Neste artigo, concentrar- -nos-emos na influência das organizações internacionais sobre a educação através da análise das implicações da agenda de 2030. Em primeiro lugar, destacaremos a importância relativa da Agenda 2030 para as políticas educacionais. Em seguida, apresentaremos as principais orientações da agenda e situaremos a sua filiação ideológica e suas implicações incertas para os sistemas educativos. Na terceira parte do artigo, buscaremos ilustrar as questões educacionais brasileiras à luz desta nova agenda internacional. Na última parte, focaremos na educação para a cidadania global que constitui uma grande inovação na Agenda 2030.

A importância de uma agenda internacional para a educação

Podemos, em um primeiro momento, questionar se as declarações internacionais referentes à educação são úteis. Observamos, na verdade, que os objetivos ambiciosos de Jomtien4 (1990) foram levados para Dakar em 2000 e que a maioria dos objetivos da Educação para Todos5 (EPT) não foram alcançados em 2015.

Na realidade, devemos enfatizar a característica às vezes utópica, como também mobilizadora dessas orientações. O interesse das declarações internacionais reside tanto na mobilização de recursos e de energias em favor da educação. É notável que esta mobilização será traduzida de um modo específico em diferentes países e regiões do mundo. De modo geral, para todos os países, uma agenda internacional apoiada pela Organização das Nações Unidas tem um forte valor simbólico.

Além disso, é importante enfatizar que o que foi tentado e realizado em Incheon, em maio de 2015, era criar uma agenda internacional comum entre os países do Norte e Sul. Na verdade, as agendas 1990-2000 e 2000-2015 estavam centradas principalmente nos países do Sul e, especialmente, na educação básica. O mundo se encontra pela primeira vez sobre uma mesma agenda internacional de educação. O valor simbólico de uma agenda comum é importante para todas as partes interessadas na educação, incluindo os pesquisadores. Uma agenda comum abre as portas para mais parcerias e diferentes pontos de vista sobre a educação e a formação.

A agenda internacional para a educação 2030 ilustra a crescente influência das organizações internacionais. Todavia, não podemos nos deixar enganar ou sermos ingênuos. Ao analisar a influência das organizações internacionais sobre a política de educação, vemos claramente que a UNESCO - que se trata de uma organização internacional especializada em educação - não é tão influente nas reformas educacionais, como foi anteriormente, por exemplo, na publicação dos relatórios Faure (1972) ou Delors (1996). Embora a UNESCO mantenha um prestígio histórico principalmente nos países do Sul, ela foi suplantada pela UNICEF e, especialmente, pelo Banco Mundial e pela OCDE (Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica), não só em termos de financiamento da educação, mas, sobretudo, no que diz respeito ao limite mais preocupante na conceituação e orientação de prioridades da educação. O Banco Mundial é o ator atual dominante das políticas internacionais para a educação e desenvolvimento nos países do Sul (MUNDY; VERGER, 2015). Nos países do Norte e em alguns países emergentes, a OCDE, que é promotora do famoso estudo internacional PISA, tem sido a agência mais influente nas políticas educacionais.

Deste modo, as organizações internacionais não são entidades autônomas e independentes dos Estados que desempenham no seio das organizações internacionais que promovem a agenda em 2030 um concurso influente entre os diferentes estados e blocos. Além disso, as organizações internacionais são financiadas pelos Estados que não hesitam em usar este poder para exercer sua influência ou para legitimar sua agenda doméstica no setor da educação. Quando observamos ao nível das organizações internacionais, os Estados que pressionam por uma maior padronização da prestação de contas, da privatização no setor da educação, existem os Estados cujos governos têm implementado as Charters Schools6, Vouchers7 ou baixas taxas de escolas privadas.

Em última análise, vale a pena perguntar se os Estados- -Membros das Nações Unidas constituem uma agenda internacional. A resposta a esta questão depende do poder dos Estados e seu lugar na geopolítica mundial. Para os estados mais poderosos, a agenda tem uma influência relativamente limitada sobre as suas políticas de educação. Mas, para os estados mais frágeis, a conformidade com as diretrizes da agenda pode abrir as portas do financiamento internacional, necessárias para o desenvolvimento ou simplesmente para a manutenção de seus sistemas educacionais.

As futuras orientações globais da educação

Nesta parte do artigo, retomaremos de forma sintética as orientações da agenda da educação internacional, consignadas na declaração de Incheon de maio 2015 e no quadro de ação para 2030 (UNESCO, UNICEF, BM, UNFPA, PNUD, ONU Femme, HCR, 2015)8. Neste intento, seis direções principais podem ser observadas.

A primeira orientação estipula a necessidade de uma educação inclusiva e justa. Indispensável para garantir o acesso de todos a uma educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida. Através de metas de universalização, esta primeira orientação permitiria completar o “negócio inacabado” da agenda EPT e dos Objetivos do Milênio para o desenvolvimento relacionado à educação. Esta orientação está inspirada por uma visão humanista da educação e de desenvolvimento com base nos direitos humanos e na dignidade, na justiça social, inclusão, proteção, diversidade cultural, linguística e étnica, bem como na responsabilidade e prestação de contas partilhadas por todos os interessados.

A Declaração de Incheon (2015) e o quadro de ação para 2030 reafirmam que a educação é um bem público, um direito humano fundamental e uma condição prévia para o exercício de outros direitos. A educação é essencial para a paz, tolerância e desenvolvimento individual, acesso ao emprego, à erradicação da pobreza e ao desenvolvimento sustentável. A inclusão e a equidade são a pedra angular da agenda de 2030. Se estes dois conceitos são fundamentais para esta primeira orientação, se faz necessário lutar contra todas as formas de exclusão e marginalização, bem como contra as disparidades e desigualdades no acesso, na participação e nos resultados da aprendizagem. Devemos, portanto, promover as mudanças necessárias nas políticas educacionais e concentrar esforços nos grupos mais desfavorecidos, especialmente as mulheres e pessoas com deficiência. Políticas específicas e ambientes de aprendizagem sensíveis às relações de gênero são necessárias (UNESCO, 2015).

Em suma, esta primeira orientação é baseada em grande parte em uma sensibilidade social e uma abordagem humanística de educação. Constitui o legado histórico da filosofia da educação da UNESCO e considera as dificuldades identificadas nas agendas anteriores (Jomtien, Dakar) no que se refere às desigualdades e exclusão.

A segunda orientação da Agenda 2030 é a extensão da duração da escolaridade. Além da criação de pelo menos um ano de educação infantil de qualidade, gratuita e obrigatória. A Agenda prevê 12 anos de educação básica (ensino fundamental e médio) de qualidade, gratuita e equitativa, com financiamento público, com pelo menos 9 anos obrigatório, baseado em resultados de aprendizagem

Comparando com as agendas internacionais de educação anteriores, houve uma extensão em ambas as extremidades da educação escolar (infantil e secundária) e acréscimo da exigência de resultados de aprendizagem, três observações merecem ser formuladas sobre esta orientação:

Em primeiro lugar, esta extensão parece demais para assumida por muitos países do Sul como, por exemplo, para a África Ocidental, que ainda está lutando para garantir que todas as crianças tenham uma educação fundamental de qualidade. Além disso, a noção de resultado de aprendizagem exige uma reflexão sobre as formas de medir e de consenso para determinar a natureza do que seja resultado de aprendizagem.

A segunda orientação constitui, do nosso ponto de vista, uma injunção paradoxal: “prolongar a duração da escolaridade e melhorar os resultados de aprendizagem”. Paradoxal no sentido de que as pesquisas têm evidenciado que a extensão não significa automaticamente melhoria da aprendizagem. Além disso, a extensão do ensino médio e mesmo ao ensino superior, defendida pela Agenda 2030, ignora as dificuldades de inserção dos jovens graduados no mundo. Desenvolver maior acesso à escolarização sem se preocupar com a deficiência de postos de trabalho não parece uma proposta realista. Em muitos lugares do mundo, há necessidade de mais postos de trabalho e não necessariamente mais escolaridade. Como magistralmente formulado por Bourdieu e Champagne (1992) para o caso da França, a escola permanece excludente, mas mantém os excluídos em seu interior.

A terceira orientação se trata do imperativo de uma educação de qualidade. Esta orientação parece transversal, pois percebemos que está implícita na orientação relativa à “extensão da duração da escolaridade.” A agenda milita em favor de uma educação de qualidade e de melhores resultados de aprendizagem. Isso requer o fortalecimento dos recursos, dos processos e da avaliação dos resultados, bem como da implantação de mecanismos para medir o progresso. Professores e educadores precisam ter autonomia para agir, ser recrutado adequadamente, receber formação e qualificações profissionais satisfatórias. Os sistemas de educação precisam ser geridos de forma eficaz e eficiente, e dotados de recursos suficientes. Uma educação de qualidade promove a criatividade e conhecimentos, assegura a aquisição de competências básicas em leitura, escrita e cálculo, assim como habilidades analíticas e de resolução de problemas, e outras habilidades cognitivas, interpessoais e sociais de alto nível.

A concepção de qualidade subjacente à terceira orientação marca o triunfo de uma cultura global de testes e prestação de contas (accountability) em nível internacional com a crença de que os testes são sinônimos de responsabilização, que garante a qualidade do produto educação (SMITH, 2016).

Embora a definição da qualidade do ensino adotada por alguns parágrafos da Agenda 2030 pareça ir além dos resultados de aprendizagem em leitura, escrita, cálculo; estes parecem ser o fundamento básico do conceito de qualidade da Agenda. Além disso, a agenda não aborda tópicos que explicam o baixo desempenho dos alunos, em particular a ausência de educação bilíngue ou em língua nativa para muitas crianças.

A quarta orientação identificada na Agenda 2030 abrange a Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) e da Educação para a Cidadania Mundial (ECM). A EDS e ECM desenvolvem as competências, os valores e as atitudes que permitem aos cidadãos levar uma vida saudável e gratificante, para tomar decisões conscientes e enfrentar os desafios locais e globais, através da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) e para a Educação para a Cidadania Mundial (ECM). Se EDS não é uma proposta nova da agenda internacional, a ECM é uma ruptura que merece atenção. Falar de cidadania mundial significa questionar as tradicionais identidades nacionais. Ou seja, resta operacionalizar a cidadania mundial e efetivá-la nos sistemas de ensino.

A quinta orientação contida na agenda se refere à aprendizagem ao longo da vida, consiste em promover oportunidades de aprendizagem ao longo da de vida para todos, em todos os contextos e em todos os níveis de ensino, o que implica o acesso equitativo e expandido à educação e à formação técnica e profissional, assim como ao ensino superior e à pesquisa, com especial atenção para a garantia da qualidade. Novamente verificamos ênfase no conceito de qualidade.

A sexta orientação, “educação nas zonas de conflito”, indica o reconhecimento pela comunidade internacional da urgência e da sustentabilidade das crises humanitárias. Uma parte importante da população não escolarizada em todo o mundo vive em áreas afetadas por conflitos. As crises, a violência e os ataques contra as instituições de ensino, bem como os desastres naturais e pandemias, continuam a perturbar a educação e desenvolvimento em todo o mundo.

A agenda apela para o desenvolvimento de sistemas educativos mais inclusivos, ágeis e flexíveis para atender às necessidades de crianças, jovens e adultos que são confrontados com estas situações, incluindo pessoas internamente deslocadas dentro de seus próprios países e refugiados.

Ao tentar classificar as seis orientações que vimos detalhadamente, percebemos que algumas são antigas e outras novas, constatamos que elas podem ser divididas em três colunas (QUADRO 1).

Quadro 1 Agenda 2030: um consenso “suave” articulando paradigmas contraditórios 

Paradigma Humanista UNESCO Paradigma intermediário UNESCO, OCDE, Banco Mundial Paradigma instrumental/neoliberal OCDE, Banco Mundial
Orientação 1: Educação inclusiva e equitativa
Orientação 2: Extensão da duração da escolarização
Orientação 6: Educação nas zonas de conflitos
Orientação 4: Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) e Educação para a Cidadania Mundial (ECM)
Orientação 5: Aprendizagem ao longo da vida
Orientação 3: Educação de qualidade

Fonte: Organizado pelo autor.

As orientações 1, 2 e 6 são claramente herdeiras do paradigma humanista da educação, intimamente ligadas aos direitos humanos. Estão apoiadas pela UNESCO. Por um lado, o acesso à educação é um dos direitos humanos fundamentais, e, por outro, reiteramos que o conhecimento adquirido através da educação permite a efetivação de outros direitos.

A orientação 3 trata-se claramente de uma concepção neoliberal da educação, considerando a educação como produtora de recursos humanos em favor da economia e para atender às demandas de consumo dos países. Esta abordagem enfatiza a necessidade de passar da educação para todos à aprendizagem para todos, mensurando os resultados através de testes padronizados (THE WORLD BANK, 2011; NIELSON, 2006; BRUNS; LUQUE, 2014).

No entanto, muitos pesquisadores têm destacado as consequências negativas de reformas baseadas no uso generalizado de testes padronizados (HURSH, 2013; CONNELL, 2013). É provável que a orientação 3 não siga na mesma direção da orientação 1, que busca uma transformação na concepção de justiça social (LINGARD; SELLAR; SAVAGE, 2014).

As orientações 4 e 5 são novas e podem ser recuperadas tanto pelo paradigma humanista como pelo neoliberal. Isso vai depender da conotação que daremos a eles. Por exemplo, a aprendizagem ao longo da vida pode significar: “o direito de cada indivíduo a aprender ao longo de sua vida e da responsabilidade do Estado para fornecer os meios para fazê- -lo” ou “a possibilidade das empresas terem uma força de trabalho flexível e a exigência de que os funcionários sejam treinados perpetuamente”.

É importante notar que a tabela 1, esquematiza a filiação das diferentes orientações. Isto não impede que organizações internacionais se aventurem em outras direções. Ou seja, a UNESCO pode falar de algumas publicações de qualidade na educação (UNESCO, 2004) e o Banco Mundial, adotar nova retórica que reconheça o direito à educação básica (KLEES, 2002). Na verdade, pode ser constatada certa convergência das agendas entre as organizações internacionais (AKKARI; LAUWERIER, 2015).

A presença de diferentes orientações na mesma Agenda 2030 constitui um consenso frágil ou um denominador comum em que os países e as organizações internacionais podem construir suas estratégias e políticas educacionais. Por exemplo, quando a Agenda afirma que a educação é um bem público e recorda a responsabilidade do Estado. Ao mesmo tempo, ela não faz comentários sobre o financiamento público do setor privado ou sobre o controle e a regulação necessária do último.

Cada país, de acordo com as relações de poder entre diferentes grupos sociais vai aproveitar de uma forma particular esta agenda. Uma agenda internacional para a educação constitui o acordo de nível mais alto com o qual todos os países possam viver. É, portanto, um acordo pouco explícito, baseado em conceitos difusos, que evitam conflitos. No próximo tópico, aprofundaremos esta discussão, destacando o caso brasileiro.

Operacionalizar a Educação para a Cidadania Mundial

Uma das orientações mais inovadoras na nova Agenda 2030 é a Educação para a Cidadania Mundial. Este é um grande desafio para a educação e para os pesquisadores da área da educação. Para simplificar, diferentes interpretações deste novo conceito e das dificuldades conceituais para operacionalizar são inegáveis. Alguns países consideram que o desenvolvimento da educação para a cidadania mundial consiste em promover a mobilidade, a flexibilidade, a familiaridade dos jovens através das redes sociais e do domínio dos desafios globais da economia. Outros países interpretam o conceito considerando que a escola precisa promover aos jovens, as competências interculturais, a compreensão das questões de migração global e a capacidade de viver juntos em sociedades multiculturais.

Apesar da potencialidade do conceito de educação para a cidadania mundial, ele nos induz a algumas questões fundamentais. Em primeiro lugar, historicamente a cidadania está inscrita em um espaço nacional, entretanto, o acesso à cidadania para algumas minorias continua a ser virtual. Qual o sentido de cidadania para um jovem morador da favela brasileira “pacificada”, que deve ter cuidado para não ser vítima de uma bala perdida por parte da polícia ou por grupos criminosos? Que parte da cidadania está disponível para uma comunidade indígena cujas terras ancestrais foram inundadas para permitir o fornecimento de eletricidade aos moradores das grandes cidades? A transição para uma cidadania mundial supõe um mundo baseado mais na solidariedade e na igualdade de direitos. Será que é realmente o caso? Qual significado da cidadania global aos migrantes africanos naufragados no Mediterrâneo ou para os migrantes ilegais ou moradores de favelas ou áreas de ilegalidade e conflito armado?

Enfim, quem vai desenvolver este conceito e promovê-lo nas escolas? Apontamos novamente uma contradição na agenda de 2030, que defende uma abordagem de qualidade à educação, essencialmente baseada em testes padronizados ao convocar o estabelecimento de educação para a cidadania mundial. Este último, também seria avaliado através dos testes padronizados.

Além disso, o conceito de educação para a cidadania mundial é bem atraente para esconder que vivemos em um mundo de desigualdades, conflitos, competições, a tensões tanto a nível nacional como internacional. Finalmente, o progresso na conceituação da educação para a cidadania mundial deve ser uma oportunidade para colaboração entre pesquisadores em todo o mundo e não limitados a certos países do Norte ou organizações internacionais.

Perspectivas e debates no sistema educacional brasileiro

Como essas diretrizes podem ser ilustradas no caso brasileiro? Como elas podem estruturar o debate sobre a educação no país? Vimos que a declaração de Incheon, como todas as outras declarações internacionais, extrai conceitos, tanto perspectiva humanista como também neoliberal. Como as políticas públicas e as pesquisas podem se beneficiar destas orientações internacionais relativamente vagas para a efetivação?

O Brasil constitui um estudo de caso para analisar a tradução concreta da agenda internacional para a educação. Primeiramente, por sua dimensão continental, sua diversidade cultural e suas desigualdades estruturais, o país é um mundo em miniatura em que se pode observar os desafios educacionais mundiais. Além disso, desde o fim da ditadura militar, o Brasil está inserido na globalização econômica e se abriu a empréstimos e influências externas, incluindo seu sistema de ensino.

A orientação “educação inclusiva e equitativa” pode ser uma oportunidade para o Brasil renovar o discurso sobre a necessidade de políticas públicas em favor da educação básica pública, particularmente em termos de financiamento. O debate também pode resultar em um discurso sedutor ou retórica sobre o necessário reforço da educação pública brasileira. Acreditamos que os fundos públicos como FUNDEB ou FUNDEF ou a Bolsa Família tiveram um impacto positivo sobre a educação brasileira, especialmente em termos de acesso e permanência das crianças na escola. Assim como a ideia de alocar uma parte das receitas do petróleo para a educação. Ao nosso entender, todas essas ações estão na direção certa. No entanto, observamos que as políticas públicas no Brasil não têm promovido de forma realmente duradoura um sistema educacional inclusivo e equitativo. Formulamos este paradoxo da seguinte forma: “Podemos realmente falar de educação inclusiva e equitativa num contexto em que duas redes de ensino paralelas (privadas e públicas) coexistem no país, pelo menos ao nível de educação básica?”

Uma rede privada e uma rede pública com a primeira se distanciando da segunda em termos de qualidade e de confiança dos pais consumidores, que notavelmente pertencem às classes média e alta (AKKARI, 2001). Além disso, temos assistido nos últimos anos a uma indefinição de fronteiras entre o público e o privado, tornando a equidade ainda mais inacessível (AKKARI et al., 2011). Realizamos uma pesquisa sobre a qualidade do sistema de ensino privado do Brasil, baseada no fato de que grande parte dos professores particulares também trabalha no ensino público, com salários mais altos e estabilidade no segundo setor. Ficou evidenciado que no ensino público, alguns professores se acomodam com esforço mínimo, enquanto que no ensino privado, as exigências (cobrança) dos gestores são mais elevadas e professores estão sob constante pressão. Em outras palavras, a qualidade do ensino privado no Brasil é parcialmente financiada pelo público (AKKARI; POMPEU DA SILVA, 2010). Concentrar o debate sobre o financiamento público da educação e sua insuficiência, nos parece uma opção passível de tornar a educação mais equitativa e inclusiva no Brasil.

A perspectiva de uma educação brasileira mais inclusiva e justa para os próximos 15 anos não parece realista. Basta considerar as oportunidades educacionais para as crianças pobres ou de minorias étnicas para se convencer dessa possibilidade em curto prazo (QUEIROZ RIBEIRO et al., 2016; GOMES NEY; SOUZA; PONCIANO, 2015).

O próximo desafio educacional será fazer as reformas estruturais necessárias para melhorar a qualidade do ensino na rede pública. Sem um retorno significativo dos filhos da classe média, dos professores, dos políticos eleitos, não haverá melhoria da qualidade apesar de todos os esforços de financiamento público. A reforma estrutural se refere às estruturas reais dispensadas à educação (infraestrutura, formação, gestão...), mas também às estruturas mentais e representações sociais: como a educação pública é pensada pela opinião pública? Como a educação pública é pensada pelos governantes? Duas crianças, um pobre e um rico, têm uma chance de se encontrarem na mesma aula com o mesmo professor durante sua trajetória escolar?

Examinaremos agora a ênfase na Agenda 2030 sobre a qualidade da educação no contexto brasileiro. Por várias razões, o risco que uma definição estreita da qualidade da educação estritamente limitada a testes padronizados ser estabelecida no Brasil é bastante elevado. Na verdade, a retórica da educação de qualidade tem aumentado nos últimos anos no país. SAEB, ENEM, PISA são siglas que orientam e influenciam as políticas educacionais da Federação, dos Estados e municípios. Não esquecendo o Vestibular (exame de entrada à universidade). No entanto, basear a qualidade da educação em testes padronizados ou em exames pontuais é uma definição estreita da qualidade da educação. Os testes padronizados, bem desenhados, podem ser usados na educação. Mas, não podemos basear a qualidade de todo um sistema de ensino apenas em testes padronizados ou em números. Além disso, uma vez que o setor privado desempenha um papel importante na disseminação da cultura de testes padronizados, não pode ocultar o seu impacto financeiro. Os testes padronizados são um mercado que enriquece algumas empresas redes de ensino privado.

Embora seja útil refletir sobre as baixas classificações do Brasil em testes padronizados internacionais como o PISA. Parece igualmente importante analisar a desigualdade de resultados dos alunos no interior do Brasil, entre os estados e entre municípios, com base em testes nacionais como SAEB e ENEM. Estes mesmos testes não deveriam monopolizar o conceito de qualidade no sistema educacional brasileiro, deveriam alertar os pesquisadores e líderes políticos sobre as desigualdades estruturais no país, entre regiões e grupos sociais (CARNOY et al., 2014; GAMBOA; WALTENBERG, 2015).

Em resumo, a ênfase na qualidade da educação na agenda internacional pode levar a duas opções radicalmente diferentes no Brasil. A primeira opção, infelizmente, a mais provável, consiste em acentuar a definição restrita de qualidade no sentido de reforçar e generalizar o ensino padronizado (apostilado) no país. Tanto os estudantes quanto suas famílias não têm outras prioridades além de obter boas notas em testes nacionais e internacionais para passar no vestibular, o que pode ser considerado o auge de uma educação bancária, para citar o famoso conceito de Paulo Freire. O Vestibular aparece como o momento da verdade, em que é lançado o destino escolar de um jovem, ou seja, um teste que determina o resultado de 12 a 13 anos de uma vida escolar. Esta cultura de testes, enraizada nas representações sociais da escola no Brasil, tende a convencer o estudante desde a tenra idade que não existe a igualdade, nem a solidariedade, nem o respeito à diferença, mas a concorrência e o mérito individual. Cada um é responsável por si mesmo, ninguém é responsável pelos outros e não há lugar na escola para todos.

Conforme destaca Petrella (2000) convocada para ficar sozinha na era da promoção social, a escola está gradualmente desacreditada e subordinada aos anseios do mercado de trabalho. Na “sociedade do conhecimento” onde a promoção de novas tecnologias torna oficial o pensamento de que a educação é apenas o instrumento para legitimar uma divisão social desigual. Esta visão simplista esquece que a escola é principalmente o lugar onde o laço social é construído, onde deve ser elaborada a “vida democrática”.

A segunda opção, mais frutífera do nosso ponto de vista, mas pouco provável, consistiria em abrir um debate sobre uma definição ampla da qualidade do ensino que engloba o desempenho dos alunos em temas centrais como português, matemática, ciências, como também suas habilidades em criatividade, em música, em educação física, educação para a cidadania. Habilidades na vida cotidiana, pensamento crítico, interculturalismo, respeito à igualdade de gênero, capacidade de tomar decisões sobre suas vidas e comunidades também são elementos a serem considerados na gama de conhecimentos e habilidades. Trata-se também de uma oportunidade para refletir sobre as orientações curriculares possíveis de conduzir às aprendizagens significativas para os alunos e professores. Finalmente, esta opção irá provocará uma reflexão sobre a forma de orientar e promover os alunos ao ensino médio e à universidade. Além da universidade, há uma revisão radical a ser considerada a nível dos concursos e funções públicas.

O terceiro ponto que queremos contextualizar, no caso brasileiro é o status e o papel dos professores no sistema de ensino. A agenda de 2030 enfatiza os professores como profissionais bem formados, remunerados e apoiados na sua função de educação e de formação. Apesar de alguma melhoria salarial dos professores e da formação universitária no Brasil durante os últimos 20 anos, o ensino continua a ser uma profissão de falta de opção e o professor está sujeito a pressão dos gestores, dos pais e da classe política.

Evidentemente, o avanço do ensino padronizado baseado em testes atende um ensino técnico, responsável pela implementação dos sistemas de ensino despolitizados, idealizado e concebido por outros e realizado com o suporte das novas tecnologias de comunicação. Isso acentua a ilusão de que estamos em uma sociedade do conhecimento, entretanto uma questão de múltipla escolha pode muito bem ser combinada com ignorância. Se os professores aproveitarem a nova agenda internacional como instrumento para se fazer respeitados como profissionais, autônomos e críticos, esta realidade poderia ser mudada. Um dos caminhos a ser explorado seria a implementação de uma aliança sustentável entre professores mobilizados na escola pública, do interesse de pais de todas as origens sociais em matricular seus filhos na escola pública, do apoio de pesquisadores da educação concentrados na construção de escolas comprometidas com aprendizagem significativa e a consciência de políticos sobre sua responsabilidade em proporcionar educação de qualidade para todas as crianças.

Consideramos que um debate sobre a Agenda 2030 poderia ser benéfica para o Brasil. Seria uma oportunidade para os atores da educação do país discutirem e se apropriarem das orientações mais adequadas para o contexto do país.

Considerações Finais

Neste artigo, tentamos discutir os desafios da nova agenda da educação 2030. Sem negar a importância simbólica desta agenda, é indubitável que foi o resultado de um consenso entre a tradição humanista e abordagem neoliberal para a educação. Esta última, porém parece mais forte pela onipresença do tema relativo aos resultados de aprendizagem mensuráveis através de testes padronizados. Uma espécie de capitalismo cognitivo está surgindo em todo o mundo (MORGAN, 2016).

A maneira como esta agenda será traduzida e debatida está aberta, mesmo que tudo leve a crer que a mesma servirá para consolidar o status quo ou as desigualdades nos sistemas de ensino. Como importante inovação na agenda internacional em 2030, a educação para a cidadania mundial abre novas perspectivas que merecem ser efetivadas. Em última análise, a Agenda 2030 aparece como a constituição para qualquer democracia incipiente. Mas não seria as constituições generosas que fazem as melhores democracias. Em outras palavras, compete aos atores da educação determinar as possibilidades desta agenda através da implementação das orientações mais promissoras.

Referências

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1Agradecimentos a Mylene Santiago por a tradução de texto do francês e a Peri Mesquida por suas sugestões.

2 Mercosul (Mercado Comum do Sul) é uma comunidade econômica que reúne vários países da América do Sul.

3 Associação da Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) é uma organização política, econômica e cultural que reúne dez países asiáticos.

4 UNICEF. Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Conferência de Jomtien - 1990).

5 UNESCO, 2004.

6 Ascharter schools são escolas de gestão privada, que beneficiam de uma autonomia considerável na educação e nos programas escolares, com financiamento público.

7 Os vouchers são um modo de financiamento de matrícula. Estes vouchers podem ser usados pelos pais na escola de sua escolha.

8 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF, Banque Mondiale - BM, Fonds des Nations Unies pour la population - UNFPA; Programme des Nations Unies pour le développement - PNUD; ONU Femmes et Haut-Commissariat des Nations Unies pour les réfugiés - HCR.

Recebido: 15 de Agosto de 2016; Aceito: 10 de Setembro de 2016

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AA : Doutor em Ciências da Educação, e-mail : djalil98@gmail.com

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