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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.75 Curitiba out./dez 2022  Epub 26-Dez-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.075.ds01 

Dossiê

Arquivos pessoais e História da Educação: guardar o passado para intervir no presente

Personal archives and History of Education: keeping the past to intervene in the present

Arquivos personales e História de la Educación: guardar el passado para intervenir en el presente

aCentro de Investigação em Educação e Formação, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal, Portugal, e Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal, e-mail:


Resumo

O texto apresenta uma reflexão sobre dois arquivos pessoais de duas pedagogistas portuguesas, Maria Lúcia Namorado (1909-2000) e Lucinda Atalaya (1929-2009), e a sua utilização na área da educação infantil e da educação não-formal. Pretende-se analisar de que forma diferentes tipos de documentos pessoais, guardados ao longo de anos pelas suas proprietárias, podem ser usados como fontes em investigação em educação. De uma primeira parte, na qual se contextualiza o tema dos arquivos pessoais do ponto de vista teórico, passa-se a uma descrição dos arquivos em análise, sublinhando os obstáculos e desafios que se colocam. Numa última parte, reflete-se sobre os constrangimentos e possibilidades de utilização dos arquivos pessoais em História da Educação.

Palavras-chave: Arquivos pessoais; História da Educação; Fontes primárias; Educação infantil; Educação não-formal; Mulheres pedagogas.

Abstract

The text presents a reflection of two personal archives from two Portuguese pedagogists, Maria Lúcia Namorado (1909-2000) and Lucinda Atalaya (1929-2009) and their use in child education and non-formal education. It is expected to analyse how different types of personal documents, saved over the years by the owners, can be used as research sources in History of Education. After a first part in which personal archives are seen form a theory point of view a description of both archives is presented, underlying obstacles and challenges. In a final part, a reflection about constraints and possibilities of using personal archives in History of Education.

Keywords: Personal archives; History of Education; Primary sources; Child education; Non-formal education; Women Pedagogues.

Resumen

El texto presenta una reflexión sobre dos archivos personales de dos pedagogas portuguesas, Maria Lúcia Namorado (1909-2000) y Lucinda Atalaya (1929-2009) y su uso en el ámbito de la educación infantil y la educación no formal. El objetivo es analizar cómo diferentes tipos de documentos personales, conservados a lo largo de los años por sus propietarios, pueden ser utilizados como fuentes en la investigación educativa. De una primera parte, en la que se contextualiza el tema de los archivos personales desde un punto de vista teórico, se pasa a la descripción de los archivos analizados, destacando los obstáculos y retos a los que se enfrentan. En una última parte, se reflexiona sobre las limitaciones y posibilidades del uso de los archivos personales en la Historia de la Educación.

Palabras clave: Archivos personales; Historia de la educación; Fuentes primarias; Educación infantil; La educación no formal; Mujeres pedagogas

Contexto

Neste texto reflete-se sobre duas experiências distintas com os arquivos pessoais das pedagogistas portuguesas Maria Lúcia Namorado (1909-2000) e Lucinda Atalaya (1929-2009). Ao colocar em causa a forma e o modelo escolar herdados do séc. XIX (NÓVOA, 2022) e ao agir nesse sentido, no quotidiano, ambas tentaram, cada uma a seu modo, intervir em educação.

Embora diferenciadas e com possibilidades de intervenção concreta diversa, devem ser vistas como parte de uma tradição pedagógica progressista, de oposição ao Estado Novo (1933-1974). A primeira, entre muitas outras iniciativas, fundou uma revista - Os Nossos Filhos (1942-1958) - na qual defendia um programa de educação para as mães e as crianças alternativo ao que era imposto através da política educativa do regime repressivo então vigente (PESSOA, 2016. p. 98). Apesar de nunca ter conseguir concretizar o sonho de ser professora de Matemática, vai dedicar a vida toda à defesa da educação não formal das mulheres, quer na imprensa, na televisão, na rádio, quer como escritora e no ensino formal quando, já depois do 25 de abril de 1974, se torna professora de literatura infantil. Em um meio pequeno e fechado como era o da educação no período em que ambas intervieram na vida pública, não admira que se tenham cruzado em diversas etapas dos respetivos percursos de vida. Lucinda Atalaya fez o curso de educadora de Infância (que termina em 1950) porque, sendo assinante da revista Os Nossos Filhos, foi ali que soube da sua existência, por meio de um anúncio. Entre 1951 e 19541 vai ser colaboradora da revista, escrevendo sempre sobre educação infantil e sobre coeducação. É como representante da revista que acompanha Helen Keller na visita que esta faz a Lisboa. No início da carreira, será professora na Escola de formação João de Deus (Lisboa). Ao longo da sua extensa vida publicou ainda inúmeros artigos, livros, participou em encontros e fundou e geriu uma cooperativa de formação de professores - Centro de Formação Educacional Permanente - CEFEPE. Para colocar na prática os princípios que sempre defendeu, cria uma escola privada inovadora, em Lisboa, ainda hoje em funcionamento: o Jardim Infantil Pestalozzi que será, até aos últimos dias de vida, a sua maior e mais consistente obra educativa. Entre os anos 1975 e 1977 estará vivamente empenhada na construção de propostas de reformulação das políticas educativas então em revisão total.

Ambas oriundas de famílias da classe média, vão ter posicionamentos moderados em relação à possível intervenção política concreta ao mesmo tempo que defendem, no que à área da educação respeita, formas inovadoras de atuação.

Sobre a atividade educativa desenvolvida por cada uma delas ao longo das suas longas vidas pessoais e profissionais, ainda não são muitos os estudos disponíveis. Os que existem têm sido realizados sobretudo com vista à obtenção de graus académicos como o de mestrado de Ana Maria Borges (2003) especificamente sobre a Revista Os Nossos Filhos e o doutoramento de Ana Maria Pessoa (2005) sobre a vida e obra educativa de Maria Lúcia Namorado que, pela primeira vez, pôde usar o arquivo da pedagogista como fonte primordial daquele trabalho de investigação. A partir do arquivo de Lucinda Atalaya foi possível a produção de alguns artigos, identificados nas referências finais deste texto.

Após esta brevíssima identificação das duas pedagogistas cujos arquivos aqui se dão a conhecer, é urgente passar à contextualização teórica do tema arquivos pessoais.

Arquivos pessoais

A existência, tratamento e utilização de arquivos pessoais insere-se em um contexto teórico mais geral de políticas nacionais regionais e locais de tratamento e preservação de arquivos, sobretudo públicos. A relação entre arquivos, historiadores e investigadores de várias áreas do saber nem sempre é linear. Basta ler as introduções de muitos trabalhos de investigação que necessitam de dados existentes em arquivos e é ver os lamentos, as referências à indisponibilidade temporal, às dificuldades no acesso, à não existência de tratamento adequado e a uma barreira entre quem os organiza e quem os consulta. No que a arquivos privados diz respeito, as questões enunciadas tomam contornos mais débeis uma vez que, a juntar a todos estes entraves, pode acrescentar-se o da possibilidade de pura destruição, venda, desmantelamento pelos familiares aquando da morte da/o titular. Também a utilização de arquivos masculinos, nas áreas da política, artística e outras é bem mais frequente do que a de arquivos femininos sobretudo em áreas como a educação, a ciência, a imprensa, a criança e outras áreas consideradas mais ligadas a papéis femininos...

Em relação aos arquivos na área da educação foi, por iniciativa de António Nóvoa, apresentada a primeira proposta coerente de criação de uma política de preservação de arquivos nesta área, em 1998. O Instituto de História de Educação fixava, como finalidade principal, a reunião de toda a documentação dispersa em diversas áreas como a da educação não-formal, estabelecer parcerias privilegiadas com arquivos públicos, semipúblicos (como arquivos de sindicatos de professores) e mesmo arquivos privados como espólios pessoais (NÓVOA, 1998, p. 31). Era objetivo recolher não só “(...) os pertencentes aos grandes vultos da arena educativa mas, fundamentalmente, os que retratam o quotidiano escolar e estão na posse do cidadão comum: cadernos, cadernetas escolares, pontos, exames, fotografias, fardas” (NÓVOA, 1998. p.125).

Esse percurso, interrompido lamentavelmente quase logo depois de iniciado2, vai cruzar-se com o panorama que, sobretudo para os arquivos e espólios pessoais, ainda hoje existe: um interesse maior para arquivos pertencentes a figuras conceituadas, como Maria Lamas, Mário Soares, Humberto Delgado, Fernando Pessoa, entregues à guarda das câmaras municipais das localidades onde nasceram, em casas-museu, em bibliotecas nacionais, em arquivos de coletividades ou outro tipo de instituições. Os arquivos pessoais são aqui entendidos como

(...) acervo documental complexo, constituindo uma unidade orgânica, decorrente da atividade literária (...) de intervenção cívica e cultural de determinada pessoa e composta pela respetiva obra manuscrita ou equiparada(...) e pelos conjuntos de documentos que a essa pessoa foram enviados ou por ela recolhidos (...)” (OLIVEIRA, 1992. p. 108).

Muitas vezes, esses arquivos públicos não falam das mulheres. É naqueles que elas produziram - privados e pessoais - que se encontram algumas informações “sobre o quotidiano, formas de ver o mundo através de factos comuns da experiência humana, hábitos, costumes. Contêm pequeninas coisas com grande poder de lembrança: escritos insólitos, imagens de pessoas próximas, objetos de devoção (...) (MIGNOT, 2002, p. 124).

Desde finais do século passado que alguns arquivos femininos têm vindo a ser objeto de interesse por parte de algumas instituições, mas de forma casuística e dispersa. Como exemplo, vejam-se os de Ana de Castro Osório e de Maria Lamas, doados à Biblioteca Nacional de Portugal, o de Maria Olga de Morais Sarmento da Silveira na Câmara Municipal de Setúbal, o de Cristina Torres dos Santos no Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz, o de Elina Guimarães repartido entre a Biblioteca Nacional de Portugal e a Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres, entre muitos outros que aqui poderiam ser enumerados.

Um outro problema se soma aos anteriores: durante as fases de sedimentação secundária (entrada num arquivo com possibilidade de separação, destruição) e de sedimentação final, ou seja, com o arquivo já ordenado, organizado, classificado e indexado, é necessário ter sempre presente uma interrogação: como passar de uma lógica de organização pessoal para uma lógica arquivística e desta para uma disponibilização pública à investigação?

Quando se depara com um arquivo deste tipo, muitas são as interrogações que imediatamente se colocam: de que tipo de arquivo se trata? Por que razão foi criado? Deixá-lo a quem ou por que finalidade? Onde foi conservado? Que interesse pode ter? Haverá outros que, por terem sido organizados por figuras mais comuns a eles, não se tenha acesso? Que temporalidades, ou seja, no caso de arquivos pessoais, por que reúne documentos, textos, livros, anotações entre muitos outros tipos possíveis de documentos? Esses documentos são datáveis ou atemporais? Que critérios presidiram à sua arrumação? Por que razão, muitas vezes no final da vida, essas pessoas dedicam cada vez mais o tempo e a energia, que já não vão tendo, à rearrumação, anotando com caligrafia trémula? Por que razão e com que critérios são, por vezes, eliminados documentos e guardados outros de forma tão meticulosa? Quem, além de quem o cria, tem conhecimento destes arquivos pessoais (PESSOA, 2005. P. 41)?

Na sua organização muitos são os dilemas a ultrapassar como sejam: deve respeitar-se uma arrumação mais biográfica e profissional ou criar e reagrupar a documentação sob a orientação de um quadro classificativo específico, mais respeitador de critérios arquivísticos que permitam simplificar a futura consulta pública (investigadores, jornalistas, profissionais de educação entre muitos outros) deste tipo de documentação? Como fazer, uma vez que normalmente dele não dispõem, o inventário ou Guia Preliminar para “(...) organizar, classificar e descrever a totalidade da documentação do acervo (...)” ou como se “(...)identificam e hierarquizam os conjuntos de documentos similares segundo quatro princípios fundamentais: o da autoria, o do género, o do tipo e o do suporte (...)” (LOPES, 2000. p. 45). Seguir e respeitar a organização e a arrumação que lhe foi dada por quem o criou?

No caso presente são apresentados dois arquivos pessoais, de duas mulheres, ambas empenhadas na área da educação sobretudo infantil e educação das mães. Como é comum, estes arquivos não estão ainda completamente organizados, foram apenas usados por elas, em casa, na maior parte das vezes longe dos olhares de familiares e amigos. Tiveram a ideia de ir guardando vestígios, mas sem tempo disponível para o registo de seu trabalho ou para refletirem sobre este, nem competências de organização arquivística. Foi de forma puramente artesanal que organizaram suas memórias e selecionaram o que quiseram deixar como legado de uma vida inteira.

Caracterização dos arquivos pessoais

Como se referiu, neste texto pretende-se analisar dois arquivos pessoais, de duas pedagogistas de que tivemos conhecimento por razões e em épocas diversas. Se bem que, em ambos os casos, tenha sido a sua utilização para fins académicos (para uma tese de doutoramento e para um projeto de investigação) que a eles nos conduziu, é importante apresentar agora uma faceta desse uso que até agora nunca fizemos ou seja, proceder à descrição dos itinerários trilhados para encontrar estes arquivos, das dificuldades de toda a ordem que se enfrentaram e os percursos de organização, a inventariação dos conteúdos e o seu uso em projetos de investigação na área da educação. A uma caracterização separada, em subcapítulo específico, de cada um desses arquivos pessoais, segue-se uma reflexão única sobre as possibilidades de utilização deste tipo de arquivos em história da educação.

Arquivo de Maria Lucia Namorado

Fonte: (ca. 1942).

Figura 1 Maria Lúcia Namorado 

De forma que se compreenda o contexto a partir do qual tivemos acesso ao arquivo pessoal de Maria Lúcia Namorado3 referimos que, na tese de doutoramento em História da Educação, sob a orientação do prof. Rogério Fernandes, pretendíamos usar, como fonte principal para a caracterização das propostas de educação para as mulheres e as crianças, a imprensa pedagógica publicada durante o Estado Novo (1933-1974). Mesmo ainda não sabendo se havia alguma revista que obedecesse a estes parâmetros, havíamos decidido não analisar qualquer publicação periódica afeta ao regime. Em conversa informal com Graça Fernandes, ao partilhar esta opção, foi-nos revelado que existira uma revista que deveria preencher estes requisitos, a saber, Os Nossos Filhos. Tal publicação, num total de 205 números, fazia parte de um conjunto mais vasto de um enorme arquivo pessoal cujo conteúdo era, na sua maior parte, desconhecido. Logo nesse mesmo dia pudemos ver a referida revista, no seu todo, uma vez que um dos filhos da pedagogista era...o vizinho do lado do nosso orientador.

A primeira vez entrámos em contacto com o conteúdo do Espólio de Maria Lúcia Namorado, apenas pretendíamos, como mencionado, usar a revista como fonte para a nossa investigação. Depois da assinatura do Protocolo de Doação e Constituição do Espólio de Maria Lúcia Vassalo Namorado, realizado entre os herdeiros (três filhos) e a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (jan. 2001), foi possível ter o primeiro contacto com a publicação e os materiais com ela relacionados e, em 2002, acedemos então ao arquivo total, à época depositado na Sala 403, ou seja, no varandim interior da biblioteca da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Lisboa), arrumado em 85 caixas arquivadoras e seis caixotes em cartão, sem qualquer tratamento documental. Apenso a esse documento está também um texto de quatro páginas datilografadas em que é identificado, de forma muito sucinta, o conteúdo de cada Caixa e dos temas das obras que formavam o acervo bibliográfico do arquivo. Sobre a pedagogista, sabíamos apenas o que nos fora possível conhecer da leitura de um currículo de quatro páginas datilografado, datado de 18 janeiro de 1998, que nos fora facultado pela família (PESSOA, 2005) e que é omisso em relação a inúmeras das muitas atividades a que se dedicara Maria Lúcia Namorado ao longo da vida.

Simultaneamente, à medida que se fora delimitando o objeto de estudo, haviam-se identificado outros objetivos a atingir pois sabíamos que a documentação disponível também poderia trazer outros dados fundamentais à área da história da educação. Decidimos então alargar o âmbito da pesquisa e elaborar uma biografia da pedagogista, analisar a proposta educativa contida em Os Nossos Filhos e na correspondência que a pedagogista mantivera, durante anos, com as colaboradoras e leitoras da revista.

Porém, só depois do projeto aprovado soubemos que o arquivo não tinha ainda sido objeto de qualquer inventariação ou outro tipo de tratamento documental. À época não se sabia ainda, em pormenor, o que o referido arquivo continha; porém, supunha-se já que aquele núcleo documental deveria ser um espelho das condições pessoais, sociais, culturais, económicas e políticas em que decorrera a vida da pedagogista.

Soubemos também que, durante muitos anos, o Espólio de Maria Lúcia Namorado fora um conjunto de papéis diversos que ela fizera passar de casa em casa: de Torres Novas, onde nasceu e iniciou a sua formação escolar, para Lisboa, onde finalizara os seus estudos liceais e daqui para a província em Penacova, onde passou os primeiros anos de casada; novamente em Lisboa, das diversas redações da revista Os Nosso Filhos para a sua última casa, sempre nesta cidade. O arquivo fora sendo arrumado ao longo de vários anos, de forma muito consciente e sistemática, mas sem qualquer supervisão organizativa. Quando passou para aquela última casa e, dado que era mais pequena do que as que anteriormente ocupara, viu-se forçada a alugar, na Rua Carvalho Araújo, uma arrecadação em um vão de escada, para alí proteger o Espólio.

Já nos últimos anos de vida ela fizera questão de, a exemplo do que sempre fora seu desejo e vira fazer para os papéis deixados por sua prima direita Maria Lamas (figura destacada da oposição ao Estado Novo), dar uma arrumação mais cuidada aos documentos4, preciosamente guardados ao longo de quase um século de existência.

Ao manusear a documentação ali disponível, entre um universo temporal de 1921 a 2004, viram-se anotações colocadas em papéis que reúnem algumas cartas provenientes de um(a) mesmo(a) emissor(a). Porém, Maria Lúcia Namorado não teve tempo para que essa arrumação prévia fosse mais cuidada limitando-se, na maior parte das vezes, a juntar no mesmo saco, sem qualquer ordem, algumas cartas ou documentos próprios diversos...Todos os documentos estavam soltos ou em sacos de plástico, muitos agrupados com o auxílio de “clipes”, dobrados, rasgados, alguns a começar em um dos sacos e a terem a sua parte final em um outro, dezenas de caixas mais adiante, as fotografias separadas dos textos a que diziam respeito, enfim... (PESSOA, 2005).

No caso de papéis vários, os herdeiros pegaram nos sacos de plástico e distribuíram-nos por pastas arquivadoras A4; os livros, brochuras e revistas foram colocados em caixas em papelão. Também fizeram uma lista inventário5 do conteúdo dessas pastas, tendo atribuído um ou mais temas a cada uma delas. Neste conjunto, tinham sido já organizados alguns dossiês temáticos com recortes de imprensa, na maior parte guardando linguados originais de colaboração de Maria Lúcia Namorado.

Nas pastas, encontram-se coleções de recortes sobre a própria, amigos e familiares e também sobre a revista, relatórios, correspondências várias, manuscritos autógrafos, diversas notas biográficas, documentos de terceiros não publicados, material de propaganda política, material administrativo sobre a revista como faturas de pagamento de colaboradores e muitos outros documentos que seriam devidamente identificados aquando da descrição morfológica da revista, feita por nós (PESSOA, 2005).

Foi então que, sem estar previsto no projeto inicial, porque não dispúnhamos de alguém que nos pudesse apoiar, juntando à tarefa de investigadora a formação como bibliotecária-arquivista, decidimos que um dos nossos objetivos nesta investigação teria de ser o do tratamento arquivístico e documental do arquivo.

Dado que apenas existia esta lista sumária, cedo constatámos que não seria possível, sem um guia preliminar, consultar a documentação necessária que sabíamos estar disponível naquele vasto conjunto de arquivos. Procurámos mais fontes teóricas (OLIVEIRA, 1992; LOPES, 2000; PEIXOTO, 2002) e elaborámos uma primeira grelha classificativa que nos guiaria na elaboração do referido inventário do arquivo. Este foi feito, com todo o pormenor necessário, para todas as Caixas desde a n.º 1 a 16 e, também, para as Caixas 32, 35, 40, 44 e 75 do arquivo, com exceção da n.º 10 (inexistente). Depois da sua realização, pensávamos escolher os documentos que contribuíssem para dar resposta à questões que já explicitámos anteriormente e que nos orientaram na pesquisa inicial desta investigação.

Em março de 2003, estando quase a passar um ano sobre a data de início da nossa bolsa de dispensa para realização desta investigação, vimo-nos perante uma alternativa profundamente angustiante: ou continuávamos a organização técnico-arquivística do arquivo e, paralelamente, recolhíamos os dados de que necessitávamos para a realização do nosso trabalho final e corríamos o risco de não finalizar nenhuma das atividades no prazo previsto para a apresentação dos resultados da investigação ou abandonávamos o tratamento arquivístico exaustivo do arquivo e apenas continuávamos o tratamento da Correspondência, Documentos anexos e Manuscritos contidos nas 85 Caixas do Espólio e que, já então, definiríamos como base fundamental de recolha de dados para o nosso trabalho. Com muita relutância, mas com o pragmatismo que se impunha, optámos pela segunda solução.

Para além do abandono daquela primeira intenção e, sob o ponto de vista dos programas informáticos, vimo-nos forçada reorganizar também a forma como até então trabalháramos na pesquisa. Um enorme volume de informação a compulsar, uma enorme inexperiência informática, um excesso de voluntarismo e um limitado período de tempo conjugaram-se nessa altura, dificultando-nos ainda mais a etapa de recolha de dados para a investigação. A título de exemplo das contrariedades que acabamos de descrever, referiremos apenas que o Guia Preliminar das Caixas do arquivo acima indicadas fora iniciado no programa Word e que este se veio a revelar insuficiente para a gestão de todos os dados nele inseridos. Em novembro de 2003 fomos assim forçada a proceder à conversão dos dados da base da Correspondência, Documentos anexos e Manuscritos contidos nas 85 Caixas do espólio daquele programa para Access. Paralelamente estudáramos também a hipótese de realizar a análise do conteúdo das Cartas, Documentos anexos e Manuscritos selecionados com o Programa6 de Análise de Conteúdo AQUAD 5. Porém, essa utilização implicava que a introdução dos dados já tivesse sido feita de acordo com procedimentos que não tínhamos definido aquando do carregamento dos dados na base. Foi por esta razão que a análise documental foi o procedimento adotado na leitura daquela documentação.

Começámos depois por analisar os 205 fascículos da revista (publicados mensalmente entre 1 de junho de 1942 e 1 de dezembro de 1958 e, anuais, entre 1959 e 1964). A esses materiais juntou-se a leitura e registro de conteúdo de cada uma de um total de 11.237 documentos das 85 Caixas7 arquivadoras. Destas foram analisadas 8864 cartas, 623 documentos anexos e 13 manuscritos. Também foi utilizado o núcleo documental impresso do arquivo, composto por cerca de 622 livros e 346 brochuras. As 1700 fotografias que ou faziam parte da revista ou se encontravam soltas nas caixas arquivadoras, assim como as bobines de gravação dos programas de rádio e todos os recortes de jornais com a colaboração de Maria Lúcia Namorado em diversas publicações ao longo da sua vida, foram outra da documentação deste arquivo usada como fonte para a investigação.

Quando tivemos acesso ao arquivo de Maria Lúcia Namorado, ele já tinha sido disperso em lotes diferentes: um primeiro, que foi consultado também, com designação de Espólio de António Florentino Namorado, que fora doado pelo filho mais novo à Universidade de Évora e que era composto pelos documentos que, no arquivo, tinham pertencido ao pai da pedagogista; uma segunda parte, depositado na Biblioteca Municipal de Torres Novas, terra natal de Maria Lúcia Namorado; uma terceira, que ficara com cada um dos três filhos; e a quarta parte, aquela que ficou na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa e que foi objeto da investigação que acabamos de descrever. Neste momento continua naquela instituição de ensino superior, já depois de tratamento documental das espécies nela contidas.

Arquivo de Lucinda Atalaya

Fonte: 1949.

Figura 2 Lucinda de Atalaya 

Em 1999, durante a investigação sobre a História do Movimento da Escola Moderna Portuguesa: MEM (1966-1996), realizada com vista à obtenção do grau de mestre em História da Educação, sob a orientação de António Nóvoa, encontrámos pela primeira vez a pedagogista Lucinda Atalaya, como sempre no seu local de trabalho, no Jardim Infantil Pestalozzi, que fundara em meados dos anos 50 do século passado.

Por sugestão de Sérgio Niza (que havia com ela trabalhado no início do MEM), realizámos uma entrevista com a qual se pretendiam identificar os motivos que tinham estado na base de um afastamento recíproco, devido a um desentendimento na forma de implementar, em Portugal, a pedagogia Freinet. Falámos, de novo, dias depois e obtivemos os dados de que necessitávamos (PESSOA, 1999).

Apenas soubemos da existência de um conjunto de papéis pessoais, quando, em 11 junho 2002, por escrito, nos respondeu a outra entrevista, desta vez precisamente sobre a amiga Maria Lúcia Namorado, sobre quem estávamos a realizar a investigação que acabámos de referenciar no ponto anterior.

Muitos anos depois, por causa de outra investigação em curso - desde 2016, a participação no projeto INOVAR/Roteiros de inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no séc. XX - na qual ficara a nosso cargo a história do Jardim Infantil Pestalozzi (JIP), voltámos a ter de procurar fontes de suporte, mas, dado que Lucinda Atalaya falecera anos antes, apenas nos foi possível estabelecer contacto com a Fundação Lucinda Atalaya, criada pela pedagogista (1 janeiro 2012) e única detentora do arquivo por ela deixado, no entanto com o qual a referida Fundação apenas teve contacto após a morte da sua criadora.

De uma primeira entrevista realizada a Paula Lobo, membro da direção do JIP (9 jun. 2017), foi possível saber que o referido arquivo, que fora tirado da morada pessoal de Lucinda Atalaya e depositado, onde ainda está, à guarda da Empresa de Arquivo de Documentação (EAD), especializada na conservação de arquivos, sediada em Palmela, era composto por 183 contentores/caixas de documentos sem qualquer organização. Como no caso anterior, também deste não havia inventário algum que nos permitisse encontrar as fontes de que necessitávamos. A desarrumação (aparente e real) era a regra: muitos dos textos que publicou - manuscritos, datilografados ou editados - estão dispersos em diversos contentores (15, 122…), há 22 contentores só com documentação relativa à CEFEPE8 (59 a 81), mas também há mais documentação sobre o mesmo assunto9 dispersa nos contentores 15 e mesmo no 126, às vezes em duplicado e triplicado, assim como há centenas de fotografias em diversos tipos de pastas, sem identificação alguma, em diversos contentores. Também os materiais sobre os 50 anos da instituição estão dispersos nos contentores 21 e 160, entre muitos outros exemplos que poderíamos mencionar.

Soubemos também que a distribuição dos documentos pelos contentores e a identificação muito sumária do conteúdo de cada um deles fora realizada pelas pessoas da Fundação que, antes da passagem do arquivo para a empresa, ali tinham estado a separar os documentos e a elaborar uma listagem em Excel (único inventário de que se dispunha até 2017).

Fomos informados ainda de que a consulta do arquivo era possível, mas apenas mediante pagamento à hora à empresa, o que não seria possível dada o fraco suporte de que se dispunha no Projeto INOVAR.

Por outro lado, pretendendo-se fazer a história de uma escola, sabendo que havia extensa documentação naquele arquivo e que sendo o arquivo posse da sua única proprietária e quase só organizado por ela, havia a certeza de que nele estariam guardados materiais que por certo “(…) retratam o quotidiano escolar e estão na posse do cidadão comum: cadernos, cadernetas escolares, pontos, exames, fotografias, fardas (...)” (NÓVOA, 1998. p.125), além de atividades, relatórios, cartas, atas, imprensa escolar, fotografias, documentos audiovisuais, etc.

Como compromisso tendente a ultrapassar este constrangimento e, uma vez que se verificou ser de todo impossível fazer a história desta instituição educativa sem recorrer ao referido arquivo, foi possível estabelecer uma parceria entre a Fundação Lucinda Atalaya, o JIP e o projeto INOVAR: foi decidido que a Fundação pagaria o transporte dos contentores cuja documentação neles contida se julgasse imprescindível para a investigação e, do lado do Projeto, dada nossa formação na área de bibliotecária-arquivista, comprometíamo-nos a fazer o inventário de cada um dos contentores que usássemos na investigação. Foi possível, desta forma, ter acesso10 a 40 dos 183 contentores que foram analisados em nossa casa, onde estiveram enquanto eram consultados, depois levados para a empresa e, de novo, substituídos por outros que havíamos selecionado. Todos os materiais neles preservados foram perlustrados, um a um, durante mais de 350 horas e, de cada um, foi feito o inventário exaustivo e a leitura aprofundada, selecionados os materiais a usar no texto do projeto sobre a história do JIP, assim como foram feitas as fotografias que se consideraram necessárias para a investigação. Do capítulo incluído no livro que resultou desta investigação sobre escolas inovadoras do séc. XX, foi dada autorização para que fosse disponibilizado em reuniões de pais e encarregados de educação do JIP.

Considerações finais: arquivos pessoais e investigação em educação

Desde meados do século passado os arquivos pessoais foram sendo aceitos, mas, até então (e talvez ainda hoje), eram objeto de alguma desconfiança por muitos historiadores, uma vez que não os viam como fontes credíveis para a história positivista que se pretendia ser a das grandes figuras. Mesmo os arquivos tinham relutância na incorporação deste tipo de documentação nos seus fundos documentais. Ainda hoje, entre muitas outras reflexões, a designação arquivos pessoais não é consensual uma vez que pode haver confusão entre este tipo de arquivos e os privados, institucionais e outros. O ideal seria a utilização do termo “arquivos de pessoas” (CAMARGO, 2009. p. 28). No campo da educação ainda há alguns investigadores que, escudando-se na difícil acessibilidade e falta de tratamento documental, passam ao lado deste tipo de arquivo como fontes de pesquisa.

Na área da educação e da arquivística é necessário que se divulgue a existência destes arquivos, “a sua composição, a caracterização dos seus proprietários, a sua localização física e as questões relacionadas com a sua conservação e defesa enquanto património cultural (...)” (PEIXOTO, 2002, p. 83).

Os arquivos pessoais por muito que nos digam não falam a não ser que sejam interrogados. Como qualquer fonte, eles dão um contributo para que se possa responder às perguntas que lhes são colocadas sobre o passado para entender o presente. Todos eles, se conhecidos e disponíveis, são usados para fins bem diversos daqueles que foram previstos por quem os criou. Essas pessoas, oriundas de áreas culturais muito diversas, são sempre representantes de uma burguesia que quer preservar um percurso pessoal, reunindo as provas da materialidade de uma vida de uma maneira mais abrangente (guardando tudo) ou seletiva (mantendo apenas o que se afigura como testemunho de atividade profissional, cultural e omitindo tudo o que tem de mais privado e pessoal).

Este tipo de arquivo pode responder, em simultâneo, a questões provenientes de diversos investigadores, de diferentes áreas. No caso dos dois arquivos em estudo, sabemos que Maria Lúcia Namorado sempre pensou que o seu mostraria ao futuro as suas qualidades de escritora e de diretora da revista Os Nossos Filhos. Com Lucinda Atalaya não há, até agora, informação alguma sobre o que pensava poder ser a utilidade do seu arquivo. Em qualquer um dos casos e, como propunha António Nóvoa (1998), antes que os arquivos pessoais possam contribuir para a investigação, em qualquer área, há que saber que eles existem e onde, com que regras e entraves ao acesso, têm de ser organizados no respeito pelos princípios arquivísticos. Em simultâneo com a organização, é urgente que seja divulgada, a possíveis interessados, a sua existência e a identificação de áreas científicas que deles possam beneficiar. No caso dos dois arquivos em presença, o de Maria Lúcia Namorado pode e deve ser divulgado junto de investigadores/as da área da História Contemporânea e da oposição ao Estado Novo (nele estão documentos que têm a ver com a censura, com a organização das mulheres), com a área de feminismos (com a biografia de mulheres) entre muitas outras. Mas é na área da história da educação contemporânea que este arquivo é precioso. Enunciar as áreas para as quais, só neste campo, é fundamental a consulta deste arquivo seria um outro artigo: toda a correspondência e os textos nele guardados são imprescindíveis para quem estuda a educação republicana, a educação infantil, a educação - formal e não formal - das mulheres, a história das escolas privadas, a educação cívica e sexual, a coeducação, a história das profissões femininas, sobretudo a enfermagem e a educação de infância, a história dos surdos, a história da literatura infantil, para apenas enunciar algumas áreas. Uma primeira abordagem a este manancial de possibilidades de uso do arquivo de Maria Lúcia Namorado na área da educação foi já feita numa tese de doutoramento (PESSOA, 2005) que teve como único ponto de partida o referido espólio.

No caso do segundo arquivo, estamos perante uma fonte incontornável na área da educação porque nele está, por exemplo, todo o arquivo da CEFEPE (1971-2001): constituição, sócios, encontros, publicações, listagem de todas as ações de formação, temas, participantes e conteúdos, experiência pedagógica da escola que esta associação criou e manteve - o Centro Experimental de Ação Educativa (1983-1987), uma iniciativa que pretendia contribuir para o estudo do insucesso escolar e que criou uma escola só para crianças de meios desfavorecidos. Nele estão, como já foi mencionado, todos os documentos que permitem a investigação na área da história do Jardim Infantil Pestalozzi: o arquivo da escola está dentro deste arquivo e nele estão contratos de professoras, milhares de imagens dos espaços, das crianças, de convidados, todo o processo e testemunhos da agitação laboral posterior ao 25 de abril de 1974, planos pedagógicos, todos os jornais escolares, iniciativas culturais como o cinema. Nesta área, a mais importante iniciativa documentada no arquivo foi o programa Cinema para crianças, integrado no Ciclo Cultura Viva que, entre 1990-1996, se desenrolou com o apoio da CEFEPE e da Cinemateca Portuguesa. Mais uma vez, nesta iniciativa juntavam-se crianças do JIP com crianças de meios desfavorecidos. Todos os documentos (lista de crianças, escolas, filmes visionados, relatórios, etc.) estão aqui disponíveis e são desconhecidos de todos os investigadores que abordam a história do cinema.

Este arquivo dá ainda conta, na área política, da atividade de uma certa oposição ao Estado Novo pois, como a própria refere: “era realmente um público muito especial. É um público de uma camada intelectual. Era um público que estava contra a situação” (ATALAYA, 1998). Nos jornais escolares estão publicados inúmeros textos sobre a guerra colonial, os presos de Peniche e outros. Apenas a título de exemplo deste último tema, vejam-se A minha ida a Peniche, de Maria da Luz Sequeira Varela, filha de Varela Gomes (5 novembro 1966), assim como os textos de Pedro Alves Martins Rodrigues, intitulados O dia mais feliz da minha vida (26 janeiro 1967) e O meu dia de anos (4 de maio de1967), ambas as crianças filhas de presos políticos e que, em textos publicados em jornais escolares, abordam outros pontos de vista sobre essas situações. Nele se guardam todos os materiais que permitem trabalhar sobre o contexto histórico e as circunstâncias específicas da criação e da instalação da escola, da vida escolar, dos edifícios, da origem social e destino futuro dos alunos (muitos deles procuram a escola ao longo de gerações), das lutas e situação dos professores, da forma de organização dos saberes (disciplinas e métodos), das normas e regulamentos disciplinares assim como de inúmeros eventos (comemorações, visitas de estudo e exposições).

A extensa correspondência com autores/as e o cruzamento com artigos e o arquivo da revista Os Nossos Filhos são, mesmo sem elas e eles terem conhecimento de que a sua epistolografia ficaria para sempre com Maria Lúcia Namorado, um legado imprescindível para quem trabalha na área da educação feminina pois, a par de angústias, ambições, medos e dúvidas, falam do contexto histórico da época. Dele saem segredos (condições de vida e dificuldades), revelações (como as de Mário Castrim, Alice Vieira, Maria da Luz Albuquerque), justificação de tomadas de posição (política, moral...), ilustrações (como as de Júlio Pomar, Eduardo Gageiro), mas também relatos da vida quotidiana de professoras primárias, de médicos escolares, de inúmeras iniciativas na área da formação de mães e de crianças. A guarda de mais de 200 cartas de Maria Lamas, as de Adriana Rodrigues (a segunda autora com mais textos na revista), as de Isabel Anjo (já então militante do PCP) e de muitas outras/os são fonte importante de muitas investigações possíveis em história da educação.

Estes dois arquivos têm, nesta área da correspondência, uma imensa fonte de dados para a identificação de redes de relações pessoais (existem cartas entre ambas no arquivo de Maria Lúcia Namorado) e de esclarecimento de situações (razões que justificam as divergências entre diversas educadoras e pedagogas), assim como de propostas pedagógicas específicas (vejam-se irene Lisboa, Ilse Losa, Isabel César Anjo, Mitza, etc.). É também na correspondência que se encontram referências às educação artística em múltiplas vertentes. A título de exemplo menciona-se, entre outras ali referenciadas, a iniciativa Lisboa vista pelas suas crianças, para a qual esteve programado um intercâmbio com o Brasil (Rio de janeiro e São Paulo), em 1956/1957 (PESSOA, 2005. p. 761-762).

Ainda no âmbito da educação feminina e literária e o intercâmbio entre Portugal e Brasil, insere-se a correspondência por meio da qual se prepara e dá conta da Exposição Livros escriosa por mulheres, realizada no Rio de Janeiro em 1949 e que, em quase tudo replica a que, dois anos antes, levara ao afastamento de Maria Lamas da revista Modas & Bordados, quando a exposição foi fechada compulsivamente pelo governador civil de Lisboa. Ali estão os catálogos, as cartas trocadas, as hesitações, as opções e as decisões de uma iniciativa que ainda hoje não foi objeto de investigação (PESSOA, 2005. p. 836-837).

Nestes arquivos pessoais encontram-se, além de dados sobre as respetivas sociabilidades, também para a área da educação, dados preciosos sobre a biografia de cada uma das suas organizadoras, sobre os percursos académicos, sobre as aspirações profissionais, as interações. Como é costume, nem todos os acontecimentos das suas vidas ali ficam registados, mesmo aqueles que, em dado momento, as modificaram por completo. Na maioria das vezes, essas omissões revelam o

“(...) O esquecimento tecido a partir do silêncio em torno dos acontecimentos não-resolvidos e dolorosos do passado promoveu a ruptura com os episódios que poderiam abalar ou despedaçar o auto-retrato que queria perpetuar(...)” (DELGADO, 2000. CITADO SCHMIDT, 2000, p. 159).

Ambas as pedagogistas têm episódios omissos, na área educativa, que só por meio da consulta dos arquivos é possível identificar, nas entrelinhas ou nos textos que ali depositaram sem pensar a que perguntas poderiam um dia responder. No caso de Maria Lúcia Namorado, a família retirou toda a documentação que lhe pareceu mais pessoal ainda ali ficou muita informação que nos permite hoje traçar o seu percurso escolar (feito em época atribulada, num liceu público feminino, com o fim do sonho de ser professora de Matemática), profissional (por que razões funda a revista Os Nossos Filhos, uma Editorial com a mesma designação, escreve e traduz livros) e pessoal (casamento, filhos, divórcio, militâncias cívicas e políticas).

No caso de Lucinda Atalaya, o arquivo nunca fora, como já foi referido, manuseado por ninguém até a morte da pedagogista. Confunde-se por essa razão a vida pessoal (misturando desde faturas diversas, espólio do marido e da anterior família dele com inclusão de álbuns de fotografias, cartas, correspondência amorosa dela, entre muitos outros) com a vida profissional. No entanto, se não fossem alguns desses outros documentos, nunca teria sido possível entender como teve tantos problemas causados por tomadas de posição impróprias à época para uma mulher, de criar a sua própria escola (PESSOA, 2019), como se organizou, como evoluiu e como, no período posterior ao desaparecimento, foi possível continuar a obra educativa ainda hoje em funcionamento.

O uso dos arquivos pessoais na área da educação pode ser feito apenas por meio de uma única pesquisa sobre um assunto específico ou pode ser usado de forma recorrente, por um só investigador ou por diversos, da mesma área científica ou áreas completamente distintas. Nos casos em presença, as primeiras tarefas a cargo de cada uma das instituições que os tem à sua guarda, porque naquela área se situam, é a divulgação destes arquivos e da sua organização arquivística. Quanto à investigação, na área da educação, há que incentivar investigadores/as a diversificar as fontes de pesquisa e aliá-las à divulgação de trabalhos de investigação que partem destes dois arquivos. Como exemplo desta última, citam-se a participação, em 2003, no Encontro Infâncias no Feminino, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém; entradas Os Nossos Filhos e Maria Lúcia Namorado11 (2003); a comunicação Arquivos, espólios e História da Educação (2004); a tese de doutoramento A Educação das mulheres e das crianças no Estado Novo: a proposta de Maria Lúcia Vassalo Namorado (2005); a Exposição Mulheres, educação e cidadania: Maria Lúcia Namorado Silva Rosa (2008); artigo Uma viagem pela Europa em 1949: o diário e a correspondência de Fernanda Taso de Figueiredo (2010); conferência Preservar a memória histórica dos feminismos: a importância dos arquivos: o arquivo de Maria Lúcia Namorado (2013); artigo Revista "Os Nossos Filhos": resistência e oposição ao Estado Novo: um olhar sobre as ligações sociais e profissionais da sua autora (2016); "Uma escola para a independência e para a responsabilidade: o Jardim Infantil Pestalozzi" (2017); comunicação A Educação infantil na revista Os Nossos Filhos (2018) e capítulo de livro Jardim-Infantil Pestalozzi - 1955-2015: "Uma escola para a independência e a responsabilidade" (2019).

A dissertação de mestrado de Ana Maria Borges (2003), na área de Estudos sobre as Mulheres, usou como fonte para a sua investigação a revista Os Nossos Filhos, sobretudo os números publicados depois da 2ª Guerra Mundial. Teve a possibilidade de entrevistar a pedagogista, mas não a de consultar o arquivo que ainda tinha à sua guarda.

Sabemos hoje que Maria Lúcia Namorado tinha consciência da possível futura utilidade do seu arquivo12 e da inevitabilidade de ele vir a ser alienado pela família, pelo menos no que à parte profissional respeitava. Lucinda Atalaya nunca dele falou às enteadas e viu na criação da Fundação com o seu nome, além de outros desígnios, a única possibilidade de o guardar. A primeira (que não conheci) e a segunda (a quem entrevistei por duas vezes e com quem me cruzei inúmeras outras em eventos ligados à educação) estariam longe de imaginar que a investigação na área da educação pudesse aceder, tão rapidamente, aos arquivos que tão minuciosamente guardaram e que são, certamente, uma fonte inestimável para a história da educação em uma época em que se assiste a uma “revalorização dos acervos documentais, arquivísticos e museológicos das instituições educativas e a uma organização das memórias e representações (…)” (MAGALHÃES, 2004, p. 141).

1Arquivo Lucinda Atalaya. Curriculum vitae. Contentor 160. Saco plástico. 5 páginas datilografas. Embora neste documento Lucinda Atalaya refira a colaboração na revista naquelas datas, da consulta de Os Nossos Filhos deduz-se que a colaboração vai até ao nº 178, março de 1957 (PESSOA, 2006).

2Foi extinto em 2002, aquando da tomada de posse do 1º ministro Durão Barroso que viria ser, mais tarde, Presidente da Comissão Europeia.

3Muitas foram as formas por ela usadas quer para o nome próprio (antes e depois do divórcio) quer para pseudónimos. Neste contexto usa-se apenas Maria Lúcia Namorado (PESSOA, 2005).

4Sempre que ia a casa dos filhos, em fim de semana, fazia-se acompanhar de uns quantos sacos plásticos, com documentos que ia buscar ao acervo, para os ir “(...) escolhendo, arrumando, eliminando(...)” (Entrevista a Rui Rosa, 17 Jun. 2005).

5Nessa lista, apensa ao Protocolo de Doação e Constituição do Espólio de Maria Lúcia Vassalo Namorado, Jan. 2001, existe um grupo de 4 p. dactilografadas em que é identificado, de forma muitíssimo sucinta, o conteúdo de cada Caixa e dos temas das obras que formam o acervo bibliográfico do arquivo.

6Cf. Bibliografia deste trabalho.

7Falta a Caixa n.º 10, que desde o início não foi encontrada no acervo doado; corresponderia, de acordo com a listagem que acompanha o Protocolo de Doação e Constituição do Espólio de Maria Lúcia Vassalo Namorado, Jan. 2001. 9 p., a documentos relativos a rendas e Escola de Noivas e Donas de Casa.

8Os Estatutos (1971) definem-na como uma cooperativa. Teve uma primeira sede próximo de Lisboa, em Venda do Pinheiro. Posteriormente e, até ser extinta, foi instalada no Campo Pequeno, nº 50 1º Esq. Pretendia-se com ela promover o estudo e experimentação de métodos de aprendizagem, a formação de centros de documentação e informação, a edição de publicações, livros e material didático, a realização de seminários e cursos, a organização de encontros culturais e científicos. A formação de grupos de trabalho para o estudo e aprofundamento de temas de índole pedagógica e centros de aplicação metodológica eram outras duas das iniciativas a realizar.

9Arquivo Lucinda Atalaya.. Estatutos [da CEFEPE]. Contentor 126. Pasta castanha. [8 p. Incompleto]. Um resumo deste texto encontra-se no contentor 15. Pasta amarela. Dossiê plástico amarelo. [2 p.]

10Acesso aos contentores: 1, 15, 16, 21, 22 a 26, 28, 31 a 36, 48, 49, 55, 56, 59 a 61, 67, 68, 70, 71, 73 a 75, 78, 81, 121 a 127, 149, 151 e 160.

11No Dicionário de Educadores Portugueses (NÓVOA, 2003).

12A amiga de origem goesa, Belmira da Piedade Almeida diz-lhe: “(...)Não descuide. O Ministério da Cultura é capaz de ajudá-la a organizar os seus papéis e escritos (...)” (Carta de Belmira da Piedade Almeida. Lisboa. Caixa 77. Maço 4)

Fontes:

Arquivo Lucinda Atalaya. EAD.

Arquivo Maria Lúcia Namorado. Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

Entrevista a Paula Lobo, membro da direção do JIP, realizada por Ana Maria Pessoa (9 junho 2017).

Entrevista a Rui Rosa, filho mais novo de Maria Lúcia Namorado (17 Jun. 2005).

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Recebido: 23 de Agosto de 2022; Aceito: 26 de Outubro de 2022

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