Introdução
Muitos debates têm ocorrido em torno do termo paradigma, sobretudo a partir da década de 1960, com a publicação do emblemático livro de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. No campo da pesquisa, em áreas diversas, o vocábulo tem sido usado para designar mudança de perspectiva e/ou concepção de ciência; para indicar métodos e técnicas investigativas antes pouco usuais; e ainda para justificar práticas inovadoras. Não raro, identificamos certo modismo no emprego hodierno da noção de paradigma (SILVA NETO, 2011, p. 345). Considerando tal pluralidade, preocupa-nos seu uso indiscriminado para nomear praticamente tudo que for novo ou aparentemente inédito, sem a devida compreensão e precisão semânticas - fato que já mereceu aprofundamento de estudos1. A procura por uma nomeação pertinente nos inquieta, sinalizando a necessidade de refletir, criteriosamente, sobre essa questão e suas implicações.
A busca por compreensão do termo paradigma, suas conotações e aplicabilidade, se mostra ainda mais contundente se tomarmos o termo epistemologia como contraponto para, partindo do significado de cada um, empreendermos uma escolha pela forma mais compatível para caracterizar o conceito de complexidade. Tal verbete origina-se do grego, justapondo episteme (conhecimento) e logia (estudo), denotando o estudo do conhecimento ou, em termos abrangentes, a filosofia da ciência. Podemos depreender que, em linhas gerais, epistemologia, tomada como teorização da construção do saber, corresponde a uma das áreas da Filosofia que explora o conhecimento e sua formação, bem como comporta uma distinção entre ciência e senso comum, tratando de quesitos que remetem à validade do saber científico. Epistemologia, lato sensu, examina como o ser humano ou a própria ciência constroem conhecimentos e os justificam, simbolizando o estudo que visa a encontrar condições imprescindíveis e suficientes para embasar o resultado de uma afirmação específica, pontual.
Discutir a pertinência de um desses dois termos, quando a questão envolve a noção de complexidade, é a motivação que legitima este artigo. Nele, estabelecendo um diálogo entre Thomas Kuhn e Edgar Morin, especialmente, entrelaçamos reflexões a respeito das conotações atribuídas, para elaborar nosso ponto de vista, considerando nosso contexto e lugar de fala como docentes e pesquisadoras em Educação e Linguística Aplicada, compartilhando nossa leitura e compreensão sobre uma realidade múltipla e complexa que tem marcado nossos estudos nas últimas décadas.
Com tal propósito, estruturamos nossa argumentação a partir de uma reflexão sobre a noção de paradigma e suas implicações, e exploramos os matizes do que se nomeia evolução paradigmática, para chegar à concepção de epistemologia e delinear suas contribuições à compreensão da complexidade sob o enfoque moriniano. Ao fim, encaminhamos nossas considerações para os subsídios educacionais dessa discussão e para a formação de professores. Procuramos aqui promover um exercício de compreensão do próprio processo de conhecimento à luz do pensamento complexo, com base em Edgar Morin, em direção ao metaponto de vista, como contribuição às ciências da Educação e Linguística Aplicada, entre outras.
Paradigma: nossa busca conceitual
Iniciamos nossas reflexões com considerações de Jaeger (s/d) que, na Paidéia, apresenta o termo a partir da compreensão atribuída na Grécia antiga: derivação de paradeigma, significando modelo de perfeição, algo inatingível e de concretização impossível. Para Jaeger (1979, p. 783),
Todo o paradigma é algo de absolutamente perfeito que admiramos, quer se possa tornar realidade quer se não possa. O próprio conceito de paradigma tem já implícita a impossibilidade de sua plena realização, a não ser, quando muito, de forma aproximativa. Reconhecer isto não significa tachar o ideal, como tal, de imperfeição.
Embora compartilhemos da inspiração do autor, sobretudo no que tange à admiração e à impossibilidade de sua realização plena na ciência e na vida, causa-nos estranheza considerar um modelo, assumir um padrão, ainda que dialógico, de perfeição e imperfeição, para assuntos da complexidade, pois ela aborda um postulado fortemente calcado no princípio da incerteza, tal como formulado por Heisenberg, em 1927.
No ensaio A estrutura das revoluções científicas, responsável pela popularização do termo, especialmente nas Ciências Humanas e Sociais, Kuhn (1990, p. 3) declara, no prefácio da edição de 1962, a sua concepção, conceituando paradigmas como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” No posfácio da edição de 1969, contudo, explicita e complementa sua compreensão a partir de dois sentidos diferentes que, em alguma medida, nos permitem distinguir uma correlação intrincada entre todo e parte:
De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal.
Ainda em busca de uma definição, Kuhn (1990, p. 219) parece associar produto e produtor ao afirmar que um paradigma corresponde àquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, que uma comunidade científica é constituída por membros que compartilham um paradigma. Embora reconheça que nem toda circularidade seja assim, viciada, o autor aponta que essa apresenta dificuldades reais, de acordo com suas filiações comunitárias específicas a cada especialidade, pois cada uma é “produtora e legitimadora do conhecimento científico” (p. 222). As comunidades são determinadas, portanto, pelo comportamento individual e coletivo de pesquisadores, em suas respectivas áreas do conhecimento, e pelas práticas comuns de investigação científica que os distinguem como membros de um grupo.
Para o autor (KUHN, 1990, p. 32), uma mudança de paradigma representa, per se, uma revolução científica decorrente de uma crise de inteligibilidade na ciência. Nesse caso, a transição sucessiva de um paradigma a outro, via revolução, torna-se “o padrão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida,” o qual não ocorria antes dos trabalhos de Newton. Um novo paradigma se estabelece, então, como uma invenção, uma importante descoberta, como a emergência de novos fenômenos a serem observados e novas teorias para a resolução de problemas. Kuhn (1990, p. 94) ressalta que é “pelas alterações de paradigma que se verificaram em revoluções como a copernicana, a newtoniana, a química e a einsteiniana”.
Morin (2011a), por sua vez, ressalta carências e imprecisões na noção de paradigma desenvolvida por Kuhn2, não só em decorrência de insuficiências nas suas ideias, mas também pela própria condição de nebulosidade semântica do termo que “não sabemos nem realmente isolar, nem conectar verdadeiramente com a linguagem, com a lógica, com o espírito humano, com a cultura” (p. 260). A tendência observável é de que as pessoas pensem e ajam de acordo com um paradigma, tal qual um imprinting cultural que marca sua existência, além de organizar, comandar os sistemas de ideias e legitimar normas, regras e padrões de forma contundente, tanto individual quanto coletivamente.
Morin (2011a) reconhece, contudo, a originalidade da explicação desenvolvida por Kuhn, ao “detectar, sob os pressupostos ou postulados, um fundo coletivo de evidências escondidas e imperativas” (p. 259), além de considerar que as revoluções paradigmáticas emergiram de importantes descobertas e transformações. Morin (2011a, p. 261) assegura que a definição de paradigma compreende um triplo sentido, generativo e organizacional, identificado por traços, simultaneamente, semânticos, lógicos e ideo-lógicos, ao afirmar que,
Semanticamente, o paradigma determina a inteligibilidade e dá sentido. Logicamente, determina as operações lógicas centrais. Ideo-logicamente, é o princípio primeiro de associação, eliminação, seleção, que determina as condições de organização das ideias. É em virtude desse triplo sentido generativo e organizacional que o paradigma orienta, governa, controla a organização dos raciocínios individuais e dos sistemas de ideias que lhe obedecem.
Aprofundando a reflexão sobre a concepção moriniana de paradigma, a partir das asserções do autor, podemos argumentar que, se “o paradigma tem valor radical de orientação metodológica, de esquemas fundamentais de pensamento, de pressupostos ou de crenças desempenhando um papel central, detendo assim um poder dominador sobre as teorias” (MORIN, 2011a, p. 259), é ele também que articula e relaciona o sistema de ideias com o mundo, pois “desempenha um papel subterrâneo/soberano em toda teoria, doutrina ou ideologia,” permanecendo na superfície enquanto constitui os alicerces mais profundos, e produz “as relações primordiais que constituem os axiomas, determinam os conceitos, comandam os discursos e/ou teorias” (MORIN, 2011a, p. 264). Isso comprova que, como sinaliza, um paradigma “organiza a organização e gera a sua geração ou regeneração.”
Morin ainda avança na discussão ao se valer de uma concepção aparentada de episteme, de Michel Foucault, que transcende a ideia de paradigma de Kuhn com o que identifica como condições de possibilidade de um conhecimento. Segundo Morin (2011a, p. 260), a episteme, para Foucault, tem sentido mais radical e amplo, pois se localiza quase no fundamento do saber e “abarca o campo cognitivo de uma cultura.” Contudo, embora Morin concorde com Foucault na prevalência do sentido do termo, dele discorda no que se refere à sua concepção da relação entre cultura e episteme, julgando-a simplificadora e arbitrária, pois não se trata de apenas uma episteme para determinada cultura, tampouco de um recorte espaço-temporal fixo.
Partindo da argumentação até aqui construída, passamos a tecer comentários mais pontuais na busca de esclarecimento, de compreensão conceitual para o termo paradigma e de identificação do papel do que se nomeia evolução científica, na sua caracterização.
Morin (2008, p. 22), comentando a percepção kuhniana, explica que, para o autor, o contínuo evolutivo das ciências sofre transformações revolucionárias, causando a queda de um paradigma, ou seja, de um princípio maior que controla as visões de mundo, para dar lugar ao outro. Com tal afirmação, continua Morin, Kuhn revelaria que “no interior e acima das teorias, inconscientes e invisíveis, existem alguns princípios fundamentais que controlam e comandam, de forma oculta, a organização do conhecimento científico e a própria utilização da lógica” (p. 22).
Partindo de uma postura diferente, Morin (2008) sublinha que a evolução do conhecimento científico não ocorre, somente, pelo crescimento e extensão do saber, mas, similarmente, por transformações, rupturas, passagem de uma teoria a outra. Com base nas ponderações do autor, “as teorias científicas são mortais e são mortais por serem científicas” (MORIN, 2008, p. 22). Logo, se de certa forma, as teorias têm vigência ou validade, identificáveis por uma via histórica longitudinal, suas rupturas e passagens são definidas por transformações internas (i.e., cognitivas, ideológicas, relativas à re/elaboração de conhecimentos), e externas (i.e., sociais, contextuais, ambientais). A permanência, substituição ou supressão de uma teoria depende da vigência e validade de conceitos, normas, diretrizes, construtos, crenças, interpretações, técnicas e valores que, a partir de um determinado momento, podem não se mostrar mais eficientes e suficientes para responder às inquietações de uma época. Nesse ensejo, outros conceitos, normas, diretrizes, construtos, crenças, interpretações, técnicas e valores se tornam necessários, demandando novo referencial de ideias, posturas, experiências, ações e opções que, não somente indica o início de outro período, como também define padrões/modelos inéditos. Emerge, assim, um paradigma inovador, simultaneamente produtor e produto de uma transformação do conhecimento, de um desenvolvimento científico. Com base nessa percepção, concordamos com Morin (2008, p. 22) quando afirma que o conhecimento progride, no domínio empírico, pelo acréscimo de verdades e, no domínio teórico, pela eliminação de erros. Como afirma o autor, “o jogo da ciência não é o da posse e do alargamento da verdade, mas aquele em que o combate pela verdade se confunde com a luta contra o erro” (idem, p. 23).
Morin (2008, p. 46) esclarece que um paradigma não resulta de observações, pois representa o que está no princípio da construção das teorias, o núcleo obscuro que orienta os discursos teóricos neste ou naquele sentido, nesta ou naquela direção. Por isso, o autor (MORIN, 2008, p. 27) questiona o que Kuhn denomina revolução científica a qual, quando exemplar e fundamental, acarreta uma mudança de paradigmas, i.e., uma mudança dos princípios de associação/exclusão fundamentais que comandam qualquer pensamento e toda teoria, e dessa forma, uma mudança na própria visão do mundo.
A discussão apresentada nesta seção inicial do artigo nos permite assegurar que a relação entre paradigma e evolução científica é intrínseca e indissolúvel, indicando que, se tentarmos desvendar a precedência de uma em relação à outra, iremos nos deparar com um nó górdio, pois compreendemos que progresso científico, ou seja, a contínua construção de conhecimentos, alimenta a constituição de um paradigma, assim como, ao mesmo tempo, a constituição, efetivação e ruptura de um paradigma repercute no desenvolvimento de saberes, na evolução das ciências. Acreditamos que a pertinência e centralidade de nossa reflexão não reside em desvendar que conceito antecede ou sucede o outro, porém em compreender a intrincada tessitura de ligações e relações que os origina e, indiscutivelmente, os associa, fornecendo subsídios para a percepção, de um lado, sobre como se constrói conhecimento e, de outro, sobre que conjunto de saberes, crenças, interpretações, técnicas e valores coexistem e persistem em um dado momento, mas se tornam irrelevantes e inconsistentes em um período socio-histórico subsequente.
De paradigma à transição paradigmática
Considerando os diferentes posicionamentos teóricos de Thomas Kuhn e Edgar Morin, discutimos, na seção anterior, as noções de paradigma e evolução científica, defendendo o enfoque moriniano sobre a existência de um elo indissociável entre esses termos, e sustentando a existência de períodos paradigmaticamente marcados ao longo da história.
Em sua obra Um discurso sobre as ciências, Santos (2003, p. 9) discorre sobre a questão paradigmática, defendendo que “todo o conhecimento científico é socialmente construído, que seu rigor tem limites inultrapassáveis e que sua objetividade não implica sua neutralidade.” O autor partilha sua compreensão sobre a crise do paradigma dominante, sinalizando a antecipação de um paradigma emergente, que atribui uma nova centralidade às ciências sociais anti-positivistas. Santos (2003, p. 17) explicita sua opinião, ponderando que não somos mais o que um dia fomos, pois “estamos de novo perplexos, perdemos a confiança epistemológica, instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder.” Tal sensação se justifica pelo fato de estarmos próximos do fechamento de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica.
Estamos vivenciando, de fato, um tempo de mudanças promovidas pela crise das certezas do conhecimento e desfecho de um ciclo científico hegemônico que nos coloca entre a lucidez e a ininteligibilidade sobre os aspectos positivos e negativos da ciência. No entanto, Santos (2003, p. 17) compreende que a atual perda da confiança epistemológica que nos deixa perplexos, não elimina nosso protagonismo e os “testemunhos vivos das transformações” sociais e técnicas que nos têm beneficiado, desde o século XVI, com as descobertas de Copérnico, Galileu e Newton. Entretanto, foi na modernidade do século XVIII, a partir da teoria da relatividade, que Einstein revolucionou imperiosamente o paradigma científico.
Santos (2003, p. 40-41) insiste na tese de que enfrentamos, com intensidade, uma crise no modelo de racionalidade científica, destacando três aspectos que a caracterizam:
[...] primeiro, que essa crise é não só profunda como irreversível; segundo, que estamos a viver um período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará; terceiro, que os sinais nos permitem tão-só especular acerca do paradigma que emergirá deste período revolucionário, mas que, desde já, se pode afirmar com segurança que colapsarão as distinções básicas em que assenta o paradigma dominante.
Como se pode inferir pela citação, os traços singulares, distintivos da crise do paradigma dominante estão relacionados à interação de uma pluralidade de condições, entre as quais o autor destaca as sociais e as teóricas, pois a passagem do tempo demonstra que a ciência não é salvadora, nem carrasca; e o conhecimento não é absoluto, nem eterno. Para Santos (2003), a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou; porém, seu aprofundamento possibilita perceber a fragilidade dos pilares em que se funda.
Entre os avanços do conhecimento, nos tempos atuais, Santos destaca a teoria das estruturas dissipativas, de Ilya Prigogine, com sua lógica de auto-organização e nova compreensão de natureza e matéria, muito diferente da concepção da física clássica. Para Santos (2003, p. 48), trata-se de uma nova lógica que privilegia,
Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.
Como observamos na citação, a nova lógica coloca por terra as certezas do passado e reconhece os erros, indeterminações, aproximações, insuficiências e ilusões que todo conhecimento contempla, seja no campo da Física, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Sociais. As evoluções e transições científicas nos ensinam que não há mais espaço para um pensamento dual, disjuntor e dicotômico, que separe sujeito e objeto, razão e emoção, objetividade e subjetividade, teoria e prática, no processo de construção do conhecimento. Fazer ciência, hoje, é circular na dialogia de um pensamento plural, abrangente, multidimensional, multirreferencial e transdisciplinar, com suas inerentes incertezas, na perspectiva da emergência de acasos e entendimento sobre a manutenção do conflito de várias contradições que não se resolvem, posto que são insuperáveis.
Há uma vocação transdisciplinar nesse movimento científico da história, bem como nas inovações teóricas que têm provocado uma grande reflexão epistemológica. Trata-se de um movimento convergente de cientistas, teóricos, pesquisadores das diversas áreas que, segundo Santos (2003, p. 48-49),
[...] Jantsch designa por paradigma da auto-organização e que tem aflorações, entre outras, na teoria de Prigogine, na sinergética de Haken, no conceito de hiperciclo e na teoria da origem da vida de Eigen, no conceito de autopoiesis de Maturana e Varela, na teoria das catástrofes de Thom, na teoria da evolução de Jantsch, na teoria da “ordem implicada” de David Bohm ou na teoria da matriz-S de Geoffrey Chew e na filosofia do “bootstrap” que lhe subjaz3 (itálico nosso, demais grifos do autor).
Interpretamos haver consenso entre cientistas e pesquisadores quanto à existência de uma nova ordem social, econômica, política, presente nas sociedades e civilizações, cada vez mais complexa, cujos encaminhamentos e respostas não são mais cabíveis na lógica excludente do paradigma dominante, em que apenas a razão impera, a despeito de outras dimensões do ser humano e do conhecimento. Novas visões de mundo se impõem, com suas explicações para novos fenômenos e para as diversas realidades e contextos. O reducionismo, a segmentação e a linearidade de ideias e práticas já não têm lugar seguro nas sociedades contemporâneas.
Testemunhamos a emergência de sistemas de interpretação da ciência, alguns convergentes, sobretudo os que contemplam e vão na direção dos movimentos de religação, subjetividade e interconexões, considerando a complexidade da vida moderna. Utilizamos o termo moderno como caracterizador do que pertence ao tempo atual, embora muitos pudessem denominá-lo modernidade, considerando-a referente a um marco histórico ainda presente. Quanto à complexidade, lançamos mão do termo utilizado por Morin, em sua epistemologia, ressaltando o sentido latino de complexus, i.e., o que é tecido junto, interdependente, inacabado, em constante construção e evolução.
Nesse contexto, muitas teorias surgem e outras tantas são contestadas e ignoradas, por se revelarem ultrapassadas e ineficazes. Ao mencionar teoria, aludimos a um sistema de interpretação que se alimenta de práticas, tradições, culturas, circunstâncias, saberes validados e transformações, local e temporalmente situados. Somos produtos e produtores de teorias, sociedades e culturas que, a partir de nossas escolhas, valores e subjetividade, distinguem uma cosmovisão. Entendemos que um paradigma, como modelo ou exemplo de inteligibilidade, alimenta teorias e métodos, enquanto, recursiva e retroativamente, forja e influencia pessoas, comunidades, objetos de estudo e fenômenos que, por sua vez, são forjados e influenciados pelo padrão, pelo paradigma vigente.
Entretanto, uma constelação de ideias e teorias, mais usuais nas Ciências Humanas e Sociais4, surgidas sobretudo a partir da segunda metade do século passado, sinaliza novas direções e, dessa forma, o reconhecimento de novos referenciais, de um novo paradigma: o paradigma emergente (cf. MORAES, 1997; SANTOS, 2003). Ao ilustrá-lo, Santos (2003, p. 59-60), elabora a seguinte síntese:
Ilya Prigogine, por exemplo, fala da “nova aliança” e da metamorfose da ciência, Fritjof Capra fala da “nova física” e do Taoismo da física, Eugene Wigner de “mudanças do segundo tipo”, Erich Jantsch do paradigma da auto-organização, Daniel Bell da sociedade pós-industrial, Habermas da sociedade comunicativa. Eu falarei por agora, do paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente5 (grifos do autor).
Assim argumentando, Santos (2003, p. 60) ressalta que a natureza da revolução científica que vivemos é estruturalmente diferente da acontecida no século XVI pois, sendo científica, ocorre em uma sociedade revolucionada pela ciência. Isso posto, é possível reconhecer que o paradigma emergente não pode ser apenas um paradigma científico (i.e., do conhecimento prudente); tem que ser também um paradigma social (i.e., o de uma vida decente).
Refletindo sobre emergências, retomamos Kuhn (1990, p. 95) e seu alerta para o fato de que o surgimento de teorias é geralmente precedido de um período de "insegurança profissional pronunciada”, exigindo a destruição de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Novos paradigmas demandam teorias inovadoras com seus métodos próprios, objetivos, concepções e técnicas de solucionar problemas. Essa constatação mostra-se bastante evidente nos tempos atuais.
Para Morin (2011a, p. 260), paradigma também pode ser compreendido como episteme ou paisagem mental (mindscape) que “controla não apenas as teorias e os raciocínios, mas também, o campo cognitivo, intelectual e cultural em que nascem teorias e raciocínios. Controla, além disso, a epistemologia, que controla a teoria e a prática decorrente da teoria.” Essa afirmação demonstra que um paradigma comanda a vida, é resistente, não permite contradições, sejam teóricas, políticas, ideológicas. Um paradigma, portanto, tem o efeito de cegar as pessoas e de não favorecer o diálogo entre diferenças. Em virtude dessa influência praticamente determinante, Morin recomenda atenção e vigilância para que um paradigma não se transforme em imprinting cultural, impossível de ser revertido, ou para que a transgressão da ordem não seja convertida em desordem e auto-eco-organização próprias dos sistemas vivos.
Embora crítico sobre a questão conceitual, Morin (2011a, p. 260) preserva o termo paradigma, “não apenas apesar de sua obscuridade, mas também por causa dela,” pois se trata de uma emergência corrente e arraigada no inconsciente humano, além de transportar a raízes “linguísticas, lógicas, ideológicas, cérebro-psíquicas e socioculturais.” Assim como Foucault fez com episteme, Morin (2011a, p. 261), utiliza o termo paradigma não apenas para o saber científico, mas também para todo conhecimento, pensamento e sistema noológico. Partindo dessa justificativa, o autor, em sua obra, usa a noção de paradigma para designar os sistemas de ideias.
Considerando a discussão apresentada, observamos que a divergência terminológica persiste, ecoando, consideravelmente, na caracterização paradigmática ou epistemológica do que se compreende por complexidade, alinhando argumentos e defensores de um ou outro enfoque. É nesse sentido que nos posicionamos, definindo nossa compreensão sobre o tema e, sobretudo, caminhando para uma opção terminológica.
Paradigma ou epistemologia?
Paradigma e epistemologia são conceitos recorrentemente citados por estudiosos e pesquisadores que debatem a via da complexidade, divergindo sobre que concepção melhor se relaciona e mais adequadamente reflete a noção complexa em sua caraterização mais essencial. Após tecermos considerações que ilustram o quanto os termos em debate se aproximam e distanciam, ora se contrapondo, ora se complementando, voltamos à questão-título para equacioná-la em relação à complexidade e encaminhar a reflexão para as contribuições dessa discussão ao processo educacional e à formação docente.
A noção de paradigma, a despeito de tratada sob uma perspectiva teórica, ainda conserva, em sua significação, uma conotação pertinente ao senso comum, exprimindo a acepção de padrão, modelo responsivo às demandas e especificidades de um período. Historicamente estabelecida, não se mantém inalterada indefinidamente, nem sustenta contínua estabilidade conceitual pois, como esclarece Assmann (1998, apudBEHRENS; OLIARI, 2007, p. 54), paradigmas são mutáveis, relativos e naturalmente seletivos: quando pressupostos, conceitos, teorias, crenças e valores se transformam, um paradigma se altera, pois novos problemas passam a reivindicar análise e soluções originais, buscadas pela comunidade científica por trilhas também inovadoras. Assim, a noção de paradigma comporta um vínculo social, evidenciando os princípios que uma coletividade compartilha, conforme sua percepção de mundo e visão de realidade. Retomando Morin (2011a, p. 264), ao afirmar que um paradigma “organiza a organização e gera a sua geração ou regeneração,” podemos similarmente afiançar que promove sua degeneração, concluindo um ciclo científico predominante que passa a se mostrar inoperante e ineficaz tanto na identificação de problemas como na promoção de soluções para questões emergentes. Marcado por contemporização, o estabelecimento e o reconhecimento de um paradigma é temporalmente situado, revelando seu papel orientador na “organização da sociedade, em especial da comunidade científica quando propõe continuamente novos modelos para entender a realidade” (BEHRENS; OLIARI, 2007, p. 54).
Tomando como exemplo o paradigma newtoniano-cartesiano (mecanicista ou tradicional), à luz das afirmações anteriores, Beherens e Oliari (2007, p. 59) constatam que provocou fragmentação do conhecimento e supervalorização da visão racional, impondo a primazia da razão sobre a emoção, para atender a uma coerência lógica nas teorias e eliminação da imprecisão, ambiguidade e contradição dos discursos científicos. Aprofundando a percepção sobre essa visão paradigmática, as autoras, citando Vasconcelos (2002), também afirmam que
[...] o paradigma tradicional, conservador e reducionista focaliza as crenças que podem ser subdividas em três âmbitos: da simplicidade, da estabilidade e da objetividade. A crença na simplicidade propõe a separação da menor parte para ser analisada e classificada a fim de se entender o todo complexo e buscar a relação causa e efeito. Têm-se, assim, relações causais e lineares. A crença na estabilidade propõe que o mundo é invariável, determinado e reversível. Assim, se pode conhecer, prever e controlar os fenômenos. Busca-se explicação por meio de experimentação e/ou verificação empírica com resultados quantificáveis. A crença na objetividade busca atingir a versão única do conhecimento (universo) e propõe o conhecimento objetivo do fenômeno tal como ele se apresenta na realidade. Restringe a produção do conhecimento a partir da comprovação, gerando conceitos aceitos como verdadeiros e absolutos. Para tanto, o cientista deve observar os fenômenos de maneira isenta, com uma visão abrangente e objetiva, não se envolvendo com sua subjetividade ou com suas próprias opiniões.
A caraterização paradigmática delineada nos remete à consideração de que um paradigma comporta o sistema de ideias dominantes em e por certo período socio-histórico, ao mesmo tempo em que é por ele constituído, representando o núcleo obscuro que orienta para uma determinada direção. Um paradigma tem base conceitual com poder recursivo e retroalimentador que faz o sentido sair do termo para a ele retornar, pelo menos pelo período em que seus pressupostos forem eficientes para lidar com as questões que afetam e preocupam a sociedade em um dado momento.
Interpretando o paradigma tradicional longitudinalmente, Guimarães (2020, p. 143-144) comenta:
A Ciência contemporânea foi estimulada a reavaliar as premissas da visão mecanicista clássica, superando-a. Em seu lugar, as reflexões e implicações advindas das descobertas de diversas área do saber começam a elaborar um novo modelo paradigmático que possui traços eminentemente sistêmicos, formando agora uma tela dinâmica da realidade, uma percepção de mundo como uma rede de trocas e permutas de materiais e informações que superam a visão mecanicista tradicional. Contudo, o impacto e alcance desse novo paradigma em formação ainda não abalou a totalidade do tradicional edifício acadêmico e institucional e de suas instituições burocráticas, ainda imersas no modelo cartesiano-newtoniano.
Essa reflexão destaca o fato de que o paradigma ainda dominante vem, já há algum tempo, demonstrando sinais evidentes de certa impotência e inoperância diante de várias inquietações correntes que têm procurado, em outras bases, explicações, respostas e soluções. Constatamos que o modelo paradigmático vigente coexiste, de alguma forma, com conceitos, pressupostos e valores que, à medida que se revelam, indicam um conflito de inteligibilidade e mudança de diretrizes e orientação. Nesse sentido, torna-se prematuro e precipitado interpretar tal tendência como reveladora e representativa do que poderia ser um paradigma inédito, com inerente poder controlador de teorias e práticas. Faz sentido, porém, concebê-la como reveladora de emergências, prenúncio de constituição de um paradigma emergente, nos termos de Moraes (1997) e Santos (2003), não delineado e escrutinado em sua totalidade perceptível, mas divergente de rumos e rotas habituais, traçados pela concepção mecanicista. Diante dessa simultaneidade, o momento presente pode ser qualificado como de certa ruptura paradigmática, indício do surgimento e constituição de uma forma inédita de observar e investigar a realidade vigente e seus questionamentos.
Entre as emergências visíveis, temos a noção de complexidade cujos pressupostos não promovem ruptura drástica e radical da visão paradigmática vigente, mas com ela estabelece uma ambígua e controversa vinculação de independência-dependência ou aproximação-distanciamento, fundamental para sua compreensão e distinção.
Sintetizando sua concepção sobre a complexidade moriniana, e identificando-a como pensamento complexo, Guimarães (2020, p. 209) ressalta que
[...] este [o pensamento complexo], em última análise, é, ao mesmo tempo, uma epistemologia do saber, uma abordagem transdisciplinar integrativa e uma crítica coerente do paradigma dominante na modernidade em seu aspecto fragmentador, reducionista, mecanicista (grifos do autor).
Considerando tal caracterização, três termos instigam à discussão, pois não circunscrevem o pensamento complexo em uma ótica paradigmática concludente e restritiva. Concordamos com Guimarães quando se refere à complexidade como forma de teorização (epistemologia), discussão (abordagem) e apreciação (crítica) do saber, livrando-a das amarras limitantes e limitadoras do paradigma mecanicista e próprias de uma visão não reducionista e não simplificadora que modifica a rota evolutiva do saber, evidenciando um caminho alternativo e uma possibilidade de percorrê-lo. Para sustentar nossa afirmação, Morin (2011a, p. 266-272) nos oferece uma exposição minuciosa das implicações de uma mudança de paradigma:
Compreender a mudança paradigmática implica novamente a tentativa de definição mais detalhada da natureza de um paradigma a partir de características centrais: 1. Ele é promotor/seletor das categorias-mestras da inteligibilidade; 2. Determinador das operações lógicas mestras, de modo que o paradigma fundamenta axiomas e exprime-se como axioma, sendo infralógico, pré-lógico (anterior a sua aplicação), supralógico (superior a ela) e operando pelo controle programático da lógica que, por sua vez, controla suas possibilidades de expressão; 3. É não-falsificável, ou seja, está fora de alcance da refutação empírica, apesar de suas teorias poderem ser refutadas; 4. Dispõe de um princípio de exclusão; 5. Cega, pois torna inexistente o que exclui; 6. É invisível na organização consciente que controla, sendo virtual e se atualizando apenas nas manifestações que o exemplificam; 7. Cria evidência ao se ocultar, de modo que os que estão sob ele afirmam seguir os fatos ou a lógica em vez de princípios paradigmáticos; 8. É cogerador do sentimento de realidade, o que está de acordo com um paradigma aparece como mais real (a matéria para materialistas, as estruturas para estruturalistas ou as leis necessárias da natureza para deterministas); 9. É invulnerável em sua invisibilidade protetora; 10. Torna incompreensível o que obedece a outro paradigma; 11. Está recursivamente ligado aos discursos e sistemas que gera, sustenta o que o sustenta; 12. Determina por teorias e ideologias uma dada visão de mundo, de modo que uma revolução paradigmática implica uma transformação de nossos mundos; 13. Não pode ser atacado diretamente em sua invisibilidade e invulnerabilidade, necessitando ser corroído e criticado por frestas, fissuras e erosões que minam a estrutura aos poucos.
Considerando tais condições, concebemos que a coexistência paradigmática anteriormente defendida é, por si só, indicadora de que não podemos justificar o colapso definitivo da visão mecanicista e sua substituição por uma nova tendência, reconhecendo-a como novo paradigma. Além disso, nos termos elencados, a noção de complexidade ainda não comportaria o status de paradigma, com estabilidade conceitual e amplo acordo de várias comunidades, especialmente a científica.
Procurando equacionar a questão, encontramos apoio em Serva, Dias e Alperstedt (2010, p. 278), para nomear complexidade como epistemologia, visto que, sem apresentar “sentido rigoroso e único,” esse conceito “se propõe a definir tanto uma teoria geral do conhecimento como um estudo mais limitado acerca da gênese e estrutura das ciências.” Os autores, recorrendo a Japiassu (1991, p. 16-17), apontam três tipos de epistemologia: global ou geral (saber globalmente considerado, especulativo ou científico); particular (campo exclusivo do conhecimento); e específica (estudo detalhado e técnico da organização, funcionamento e possíveis relações entre disciplinas, i.e., unidades de saber científico). Partindo dessa tipologia, compreendemos a complexidade como uma epistemologia simultânea e intrincadamente situada entre o global e o específico, pois abrange a des/re/construção de saberes gerais e pontuais, globais e locais, realçando o processo de articulação entre conhecimentos e seus meios de produção, sem apregoar generalizações nem oposições extremadas a modelos prévios ou formas precedentes de lidar com o conhecimento, pois é a partir delas que se constitui epistemologicamente.
A discussão até aqui articulada também coloca a questão inicialmente apresentada como bipartida (paradigma ou epistemologia), frente a alternativas de dimensionamento, potentes para explicitar outras compreensões cabíveis. Assim é que Borges (2007, p. 64-65), ao sugerir a organização de diferentes sistemas de ideias, destaca uma demanda por compreensão de visões de mundo divergentes entre indivíduos e culturas. A autora clama por uma transparadigmatologia que contemple a estruturação de tipos de pensamento, colocando a comunicação e diálogo entre visões de mundo sob a perspectiva de uma compreensão mútua.
Se concordamos que a noção de paradigma implica controle de teorias, métodos, vidas e cosmovisões, as quais não dialogam entre si e não permitem conscientização sobre sua própria noção, devido à simplificação e redução do pensamento que promovem, temos que uma certa ruptura e uma nítida transição paradigmática ocorrem. Morin (2011a), com base em Maruyama, entende a pertinência de uma transparadigmatologia, pois o que deve comunicar são estruturas de pensamento e não apenas informações, para que se compreenda a estruturação de outros tipos de pensamento, na mesma cultura ou em culturas distintas. Entretanto, para isso, torna-se necessário um pensamento dialógico, multidimensional, recursivo. Como reforça Morin (2011a, p. 290),
O acesso à consciência do paradigma significa, portanto, a emergência de um modo de pensamento complexo; mas este não se encontra ainda enraizado como paradigma na cultura. Estamos, portanto, entre duas coisas. Trata-se de avançar sem que já exista o caminho, ‘caminante, no hay caminho... se hace el caminho al andar...’ (grifo do autor).
Concordamos com Morin (2011a, p.292), quando nos convoca à ação para a metamorfose, afirmando que “estamos no momento preliminar da constituição de um paradigma da complexidade, ele próprio necessário à constituição de uma paradigmatologia” que “não se trata da tarefa individual de um pensador, mas da obra histórica de uma convergência de pensamentos.” Vale, contudo, ressaltar que toda transformação civilizacional teve início com a constatação de uma necessidade histórica, que se realizou com iniciativas individuais e locais que, a seu tempo, foram se difundindo e se tornaram convergentes. Compreendemos que o momento preliminar mencionado por Morin se evidencia, ainda, sob a forma de epistemologia que, com o tempo, a seu tempo, poderá se consolidar como tal, ou assumir uma conotação rígida e se configurar como um conjunto paradigmático, regulador de normas e diretrizes consistentes.
Pensamento complexo, educação e formação docente
Partindo das considerações até aqui entretecidas, reiteramos nossa percepção de complexidade como epistemologia da qual deriva a visão de pensamento complexo: um movimento cognitivo que, devido ao seu inacabamento, ao mesmo tempo, implica e se constrói em um diálogo ininterrupto entre realidade e conhecimento, envolvendo riscos, acasos, incertezas, ambiguidades, contradições, imprevisibilidades. Trata-se de um pensamento que liga/religa saberes historicamente marcados por fragmentação e esfacelamentos, vestígios de um paradigma ainda vigente e da ciência clássica, assinalados por uma inteligibilidade reducionista e disjuntora que visa à ordem e a uma lógica indutivo-dedutivo-identitária.
Um pensamento complexo pode contemplar a organização de saberes, a partir da seleção e tratamento de grande quantidade de fatos e informações disponíveis, e da rapidez de sua divulgação e recepção. A condensação espaço-tempo, gerada pela velocidade de circulação de discursos e imagens em tempo real, pela TV e Internet, por exemplo, produzem, segundo Fabrício (2006, p. 47), “uma megaestimulação visual e cognitiva que acelera a atenção, concentração e percepção, tornando-as instantâneas, multifocais e fragmentárias, fabricando novos espaços de visualidade, experimentação e construção de sentido, como os simuladores virtuais e holográficos.” Em decorrência, cria-se, para a autora, “uma mestiçagem de discursos e práticas tradicionalmente pertinentes a domínios discretos, presente nos processos de hibridação de público e privado, mercado e educação/saúde, política e marketing, mídia e vida, tecnologia e corpo, entre outros.”
Se acúmulo de referências, rapidez na exposição e facilidade de acesso alteram estímulos cognitivo-visuais e práticas discursivas, tais variáveis não são determinantes, per se, para a transformação de dados e notícias em conhecimento, uma vez que esse apenas será efetivamente pertinente se integrado e contextualizado. Essas qualidades distintivas só podem ser atingidas com a articulação entre a especificidade das partes e a generalidade do todo - vínculo crucial, enfatizado por Morin em sua obra, ao rememorar a máxima de Pascal (1623-1662): “é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes” (MORIN, 2008, p. 30). Essa perspectiva, interligando todo e partes, se contrapõe à disjunção anunciada pelo paradigma mecanicista que segmenta o todo, priorizando as partes. O conhecimento, sob tal abordagem fragmentadora, torna-se linear, autocentrado e, como adverte Morin (2000a, p. 19), resistente às ameaças do erro e da ilusão.
O conhecimento pertinente, integrado e contextualizado, é multidimensional, multicultural, transversal e transdisciplinar. Sua organização ocorre com a análise dos fenômenos observados, com profundidade compatível com especialização e síntese, com a abrangência do conhecimento generalista. Contudo, sua construção se realiza por meio do arranjo das informações, considerando as habilidades criativas de religação e de contextualização do aprendiz, enquanto busca sentido. Para Morin (2001, p. 18), referindo-se a Montaigne (1533-1592), “mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia”. Ao corroborar tal afirmação, Morin prioriza uma aptidão para identificar e tratar de problemas, e detalha princípios organizadores que permitam ligar/religar saberes e lhes dar sentido. Fazendo isso, revela que a qualidade dos conhecimentos articulados é mais potente que a quantidade de saberes eventualmente armazenada ou acumulada. Essa quantidade não interconectada indica, em termos do que proclama o paradigma tradicional, a premente necessidade de uma reforma do pensamento (MORIN, 2000, p. 35):
Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma é paradigmática, e não programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento.
Para Morin (2008, p. 270), há urgência de uma reforma paradigmática e epistemológica, pois “a articulação entre conhecimento da organização e organização do conhecimento requer uma reorganização do conhecimento, pela introdução de um segundo grau reflexivo, ou seja, de um conhecimento do conhecimento.”
Essa afirmação sinaliza que a reforma do pensamento e suas noções subjacentes (pensamento complexo, conhecimento pertinente, conhecimento do conhecimento) são contribuições consideráveis da epistemologia da complexidade para o processo ensino-aprendizagem e formação de professores, e por isso, devem ser pontualmente incluídas, respectivamente, em programas escolares e em cursos de desenvolvimento docente. Em uma fase de transição paradigmática, a complexidade se opõe à concepção tradicional ainda vigente em muitos contextos escolares: de um lado, notamos a priorização de quantidades de conteúdos, organizados em dificuldade gradativa, descontextualizados da realidade dos aprendizes, visando a uma linearidade causal; e, de outro, observamos certa negligência à formação profissional, julgada ou como desnecessária ou de responsabilidade unicamente do docente. Conteúdos dissociados da realidade e professores desatualizados, certamente, não promovem um processo educacional engajado, de qualidade, nem proporcionam a construção de conhecimento pertinente.
Refletindo sobre as contribuições apontadas, fica evidente que a reforma do pensamento almejada pela epistemologia da complexidade deve estar articulada a outras reformas, principalmente a uma reforma da educação, fundamentada no espírito de religação, totalmente diferente do existente, como argumenta Morin (2011, p. 170-171):
Esse novo sistema permitiria favorecer as capacidades da mente e pensar os problemas globais e fundamentais da pessoa e da sociedade na complexidade que possuem. Teria como alicerce a educação para a compreensão entre pessoas, povos e etnias, Um tal sistema de educação poderia e deveria desempenhar um grande papel civilizador. Reforma da educação e reforma do pensamento estimular-se-iam num círculo virtuoso. A reforma do espírito é um componente absolutamente necessário para todas as outras reformas. Leva a um modo de pensamento que permite compreender os problemas planetários e tomar consciência das necessidades políticas, sociais e éticas; isso é ainda mais importante na medida em que o papel da consciência humana é agora primordial para a salvação do planeta (grifos nossos).
Como já discutido, a epistemologia da complexidade compreende um sistema de interpretação da realidade e, como tal, é simultaneamente mais e menos que os fenômenos investigados e, por isso, todo o conhecimento carece de análises, sínteses e leituras plurais. A complexidade proporciona perspectivas múltiplas de um fenômeno complexo, metapontos de vista e sugere a discussão de metatemas6 que se justificam pela compreensão do inacabamento do todo.
Na epistemologia complexa, sujeito, objeto e ambiente constituem uma tríade inseparável. O pesquisador interfere e modifica a realidade, ao mesmo tempo em que ela nele interfere e o transforma. A realidade não apenas enfrenta, mas também supera o pensamento binário, as dualidades (natureza-cultura, sujeito-objeto, teoria-prática, real-imaginário, subjetividade-objetividade, ciências-humanidades), para a construção de um conhecimento polissêmico, multidimensional e multirreferencial, pressupondo o exercício da ética em uma tríplice perspectiva: individual, social, antropológica, como sugere Morin (2011b).
Método, ou caminho, portanto, precisa ser compreendido como conjunto de estratégias, e não programa de estudos. Adota a metodologia transdisciplinar que vai além da inter, pluri ou multidisciplinaridade na docência e na pesquisa, quem quer que a práxis educacional emerja das brechas e nas bifurcações do caminho, quem integra atitudes e métodos complexos para o estabelecimento de ações concretas de transformação, e considera a transdisciplinaridade como a via para a reforma do pensamento e a reforma como rumo para a transdisciplinaridade. Só uma transformação radical no modo de compreender a vida, do linear ao complexo, é capaz de operar a reforma. Esse processo de reforma, entendido como metamorfose, para ser efetivo, deve acontecer, ao mesmo tempo, no pensamento e, portanto, nas pessoas e, a partir delas, nas instituições.
Reflexões finais
Ao concluirmos este artigo e compartilharmos nossas últimas reflexões, torna-se relevante destacar que, embora Morin se apresente, por vezes, pouco insistente na percepção de complexidade como epistemologia, chegando a afirmar, que preserva o termo paradigma “não apenas apesar de sua obscuridade, mas também por causa dela” (MORIN, 2011a, p. 260), preferimos adotar sua minuciosa explanação sobre os quesitos que identificam um paradigma (MORIN, 2011a, p. 266-272) para, contrariamente, afirmar que compreendemos complexidade como uma epistemologia emergente em um período de transição paradigmática.
De forma pontual, compartilhamos da concepção de que complexidade não constitui um paradigma, pois seus princípios fundantes ainda não impregnaram a cultura contemporânea e, especialmente, a comunidade científica. Como destaca Morin (2011a, p. 262), ainda “falta um paradigma complexo dialógico de implicação/distinção/ conjunção,” capaz de conceber a unidualidade do ser humano, com suas múltiplas dimensões e seu pertencimento dialógico com a natureza. A complexidade corresponde a uma perspectiva epistemológica diuturnamente em gestação que implica e influencia, simultaneamente, as dimensões ontológicas e metodológicas da realidade.
Como aqui argumentamos, a complexidade não é, nem pretende ser, uma epistemologia dominante, controladora ou concluída. Ela se revela desprovida de fundamentos de certeza; tornando-se uma teoria do conhecimento inacabada porque se metamorfoseia como tudo o que é, está sendo e há de ser, reafirmando a percepção sensível de Morin (2002, p. 22), quando afirma que “o que não se regenera, se degenera.”
Cremos que não seja uma questão fundamental a nomeação que selecione e atribua às práticas, teorias, modelos, exemplos, visões de mundo, pois o acaso e as indeterminações nos acompanham e o conhecimento não é absoluto, eterno ou suficiente, tampouco uno, redutor ou definitivo. A vida é um ensaio com diversos olhares, múltiplas dimensões e perspectivas sistêmicas que se complementam hologramática, recursiva e dialogicamente. Precisamos da humildade necessária à multiplicidade de ideias e pontos de vista que se nutrem e amplificam para a produção de metapontos de vista, no exercício constante do pensamento complexo e transdisciplinar.
Entendemos que há ainda um longo caminho a percorrer e pretendemos fazê-lo por meio da Educação e das Linguagens, com suas várias tecnologias, nas brechas e bifurcações que podemos antever e promover. Diante do caminho que se apresenta, torna-se necessário inaugurar iniciativas pequenas, marginais, e compartilhá-las solidária e fraternalmente com os nossos pares que também começam a adquirir consciência do processo de transformação já iniciado, com o modo de pensar complexo, na lógica da pesquisa científica, nas relações pessoais ecologizadas, na vida cotidiana poética e prosaica. Assim, com ação e esperança poderemos conceber uma transparadigmatologia em nosso universo sociopolítico-cultural e educacional.