O olhar e a voz dos antepassados asseguram a existência, pois sua lembrança garante a produção da própria memória. Assim, enquanto os ancestrais de nós se lembrarem, nós ainda seremos (MARTINS, 2021, p.213).
Introdução
A pesquisa sobre a trajetória de escolarização e de atuação no magistério público de Severina Félix1 foi materialmente alimentada pela titular do acervo, constituído ao longo de sua vida. O acervo pessoal materializa a intenção de memória sobre a própria trajetória e também testemunha e valoriza as trajetórias de familiares. A ancestralidade alinhava o estudo, pois Severina escreveu e desenhou um caderno denominado “História do Clã de Dona Vita”, que consiste numa árvore genealógica e escolar da família a partir de sua mãe, Vitalina Pereira de Araújo. Assim, analisaremos os significados da árvore genealógica e escolar e a agência matriarcal que Severina conferiu à história da família. Buscamos afirmar o aspecto autoral de documento/monumento do acervo pessoal, que foi preservado pelos familiares após a morte de Severina em 2018.
Severina é a caçula e a primeira dos oito filhos de Vitalina a percorrer a escolarização até os estudos de pós-graduação. Nasceu em 1937, mesmo ano de fundação do Grupo Escolar Monsenhor Sales, em Fagundes, na Paraíba, onde curso o ensino primário público. Na década de 1950 seguiu os estudos secundários na Escola Normal de Pernambuco e cursou o ensino superior na década de 1970 em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Nessa mesma região do estado do Rio de Janeiro foi professora de história e secretária escolar, tendo ingressado em três redes públicas de ensino.
A necessidade de migrações, mudanças de bairros, cidades e estados deu contornos às oportunidades educativas e profissionais. A partir da trajetória de Severina descortinamos aspectos da história da oferta da escola pública e da profissão docente no Brasil no século XX. Nessa perspectiva, para além de apresentar uma trajetória escolar e profissional a partir do acervo pessoal, nos mobiliza cotejar a documentação com a historiografia da educação para analisar como sujeito, estrutura e contexto se espreitam no processo histórico.
A intenção de investigar e apresentar uma “trajetória” de escolarização e atuação no magistério a partir de uma história de vida deve ser problematizada, posto que ao longo do séc. XX as ciências humanas e sociais já se colocaram bastante céticas e alertas sobre a “ilusão biográfica”. O século XX foi atravessado por tendências historiográficas críticas ao gênero da biografia como recurso para compreensão da história. As principais críticas alertam para o aspecto de ficção em tomar o sujeito como o fio da construção, tomando-o como o mesmo em cada circunstância. Bourdieu (1996) nos chama a atenção de que toda biografia é baseada na ilusão de que é possível delimitar uma vida, atribuir sentido, “explicar”. É pertinente não considerar o biógrafo como alguém que sabe a verdade sobre o biografado, como se fizesse isso desembaraçado de suas próprias convicções e empatia ou repulsa pelo biografado (HEINRICH, 2018, p. 405).
Para se contrapor a isso, deve-se partir de outros pressupostos, como, metodologicamente, inserir novamente o indivíduo na sociedade e ser observado em suas relações sociais (HEINRICH, 2018, p. 405). O “dar sentido” não é um ato autônomo do indivíduo, mas resultado de um processo de comunicação - a compreensão desse sentido depende da “análise precisa das condições desse processo de comunicação” (HEINRICH, 2018, p. 405).
Assim, assumimos a posição teórico-metodológica de que não pretendemos encadernar uma vida. É preciso fugir da ideia de que o curso da vida seja uma noção de causa e efeito entre o que o sujeito recebe de seu contexto e como ele reage/interage naquelas condições. Desse modo, é pertinente interrogar o que foi possível para Severina que não foi possível para os outros filhos de Vitalina.
Na narrativa resultante da análise documental, para escapar do sentido teleológico do decorrer dos acontecimentos, “é necessário determinar as contingências e rupturas, que se devem tanto às condições exteriores quanto às diversas opções de ação possíveis” (HEINRICH, 2018, p. 415).
Além da análise do acervo pessoal, recorremos a depoimentos orais de familiares e ao cotejamento da documentação com o levantamento bibliográfico sobre a história da educação na Paraíba, Pernambuco e Baixada Fluminense. Para cotejar a trajetória de Severina da terra de poucas águas (Paraíba), ao mangue (Recife) até suas andanças pelas terras de muitas águas da Baixada Fluminense, foi necessário estudar diferentes bibliografias de história local.
O levantamento bibliográfico sobre a historiografia da educação da Paraíba descortina uma vigorosa produção que permite refletir a história do Clã de Dona Vita dentro da ausência ou oferta de políticas de acesso a escolarização e de fato situam a trajetória da Severina. Localizamos trabalhos acadêmicos sobre a história da importância econômica e política de Campina Grande e de seu centro urbano. Contudo, por se tratar da história escolar de uma família de agricultores situada em distritos e áreas rurais de Campina Grande, a história de Severina atesta outras posições de análise necessárias aos estudos de história local, assim como a consideração da diversidade da agência individual e das estratégias das famílias. Ainda que Campina Grande fosse economicamente muito importante, a continuidade dos estudos vai ocorrer em Pernambuco, numa sucessão de levas migratórias da família, por diferentes motivos. Assim, no cotejamento entre historiografia e educação, respostas são encontradas e outras perguntas permitem fecundar a historiografia e a metodologia de estudos em história local. Esperamos que a história vitalina dessa tropeira da instrução, que tantos deslocamentos fez para receber e dar instrução pública, fecunde as perspectivas teórico metodológicas sobre os estudos de história local da educação, que, geralmente, recortam apenas um território como cenário do estudo.
O caderno das histórias vitalinas: “O Clã de Dona Vita”
“Mas por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços” (ROSA, 2019, p.308).
Nas pastas suspensas de dois arquivos de gavetas de metal repousaram muitos papéis, cadernos e fotografias. Os diferentes tipos de documentos foram guardados de modo organizado, e possuem anotações que os identificam, como quem procurou deixar tudo explicado, para que um dia alguém tomasse a cargo compreender aqueles guardados. Cartões de natal, agendas, extratos, orçamentos, tudo minuciosamente contextualizado. Deste acervo vamos nos deter nos documentos que permitem examinar a trajetória de escolarização e de atuação profissional: envelope com carteiras de identificação (registro no MEC, carteira estudantil da universidade, etc.); Uma pasta etiquetada “Certificado e Diplomas”; um bloco de anotações, de capa vermelha: “Informações profissionais de Severina Felix de Araújo”.; Álbum de fotografia da formatura do curso normal e outras fotografias dos tempos de ginásio e de diversos momentos da atuação no magistério. Em geral, no verso das muitas fotografias há legendas informativas.
Inferimos que a atuação como professora de história e secretária escolar tenha sustentado o interesse de Severina em preservar e organizar documentos, registrar memórias e produzir relatos. É preciso estar atento que é pela intencional e seletiva ação de preservar da professora Severina que vamos examinar sua trajetória de escolarização e atuação profissional. Também há o próprio debruçar investigativo de Severina sobre seus guardados. Ela produziu um caderno, encapado com papel cor de ouro e etiquetado como “História do Clã da Família Dª Vita”. Ali ela registrou a árvore genealógica a partir de sua mãe.
O que há de singular na trajetória de Severina ganha sentido no cotejamento com a história de seus familiares e dos territórios por onde ela viveu. Assim, para contar uma história de Severina e fazer dela uma “história vitalina” para o campo da história da educação, entendemos que é oportuno comparar com aspectos da história familiar e alargar a periodização, metodologicamente, para além da data de nascimento de Severina e seguir com ela o marco temporal que ela instituiu, a partir da sua condição de integrante do “Clã” de Vitalina. A palavra clã designa um conjunto de pessoas unidas por parentesco e linhagem e que é definido pela descendência de um ancestral comum. O caderno apresenta a descendência da sua mãe, a Vitalina Pereira, no intervalo de um século. Ela encerra as anotações em 2001 e faz alguns adendos até 2010. Na pasta onde era guardado o caderno encontramos rascunhos, esboços e anotações que indicam uma intenção de continuar a atualizar o caderno.
O caderno é inaugurado com a imagem a seguir, onde Vitalina é o tronco de onde os filhos brotam como galhos. Severina e o irmão João de Deus não eram filhos do primeiro casamento. Então, vigora na narrativa a mãe como elo de parentesco. Na página seguinte do caderno há uma cópia da certidão de casamento de Vitalina Pereira Araújo com José Félix Barbosa, ocorrido em 1915, onde consta que Vitalina nasceu em 1900.
Os casamentos dos filhos de D.ª Vita são informados num desenho de milharal: “O milharal de D. Vita começa a penduar, donde virão os frutos”. Cabe registrar o simbolismo da escolha do milho para representar a fertilidade tendo em perspectiva a importância deste alimento na subsistência das famílias agricultoras nordestinas.
Em seguida, novas árvores desenhadas registram em ordem cronológica as datas dos casamentos, com o registro de: “Todos os filhos saíram de casa casados; veja em ordem cronológica”. A partir daí, cada casamento é representado em árvores com frutos, e são registrados os nascimentos dos netos e bisnetos de Vita. Ao final do caderno, uma tabela contabiliza os “Descendentes de D.ª Vita” pelos números de filhos (08), netos (40), bisnetos (85) e trinetos (08), com a informação ao pé de página de que: “Este levantamento foi fechado em 30/12/2001.” E, depois, a data lançada de 30 de abril de 2008 parece indicar uma atualização.
Após os registros dos nascidos até 2001, o “História do Clã da Família D.ª Vita” arrola os “Nomes, nível de Instrução, cursos e ocupação dos descendentes de Dª Vita”. A importância que Severina conferia à instrução é apreendida pelo seguinte texto introdutório:
Os sonhos de Dª Vitalina se realizam a cada dia, parece um milagre, a família cresce em quantidade, mas também em qualidade. Todos buscam o desenvolvimento e melhorar através do trabalho e dos estudos, fato que pode ser comprovado na descrição que seguirá a partir daqui, dando nomes, níveis de instrução e profissões desenvolvidas por cada um (História do Clã da Família D.ª Vita, Arquivo Pessoal).
O exame dos quadros organizados por famílias de filhos e netos de Vitalina comprova que houve uma ascendência geracional nos níveis de instrução alcançados até 2001. Um quadro final chamado “Resumo Geral” informa quem tinha o curso superior concluído em dezembro de 2001 (10 pessoas, entre elas Severina e 9 netos de Vitalina) e quem estava cursando o ensino superior (10 pessoas entre netos e bisnetos, sendo 5 homens e 5 mulheres). Em 2010 Severina fez uma nova atualização na contagem dos membros do Clã: 8 filhos, 40 netos, 89 bisnetos. E relacionou nomes e profissão de 23 pessoas com curso superior completo: 14 homens e 9 mulheres, sendo ela, Severina, a primeira da lista. Assim, no universo de 141 pessoas em 2001, 16,3% da família tinha ensino superior.
E foi Severina, a caçula entre os oito filhos de Vitalina, a única daquela geração que obteve o ensino superior completo. Assim, é dessa condição de professora formada que podemos compreender porque, no livro da “História do Clã”, a escolarização e as profissões são indicadas como índices do crescimento em “qualidade”. Uma árvore genealógica escolar é produzida na “História do Clã da Família D.ª Vita”.
Severina buscou instrução e levou instrução, pois se formou professora. E assim somos levados a examinar o bloco de anotações em que deixou manuscrito “Informações profissionais de Severina Felix de Araújo”. Depois das informações cadastrais, mencionou os cursos que fez e anotou as escolas em que trabalhou, séries em que lecionou, enquadramentos profissionais e datas de aposentaria. É partir dessas anotações que investigamos a trajetória de escolarização e de atuação profissional de Severina. As informações se confirmam nos certificados, diplomas, carteiras de registro profissional, cópias de Diário Oficial e fotografias do mesmo acervo pesssoal.
Interrogamos porque a filha caçula de Vitalina foi a primeira a concluir os estudos. De fato, entre as mulheres, foi a única. O que a historiografia sobre a educação na Paraíba permite constatar é que nas primeiras décadas republicanas as ofertas educativas eram insuficientes na região, ainda mais em áreas rurais e para famílias pobres, como a de Vitalina. Severina usufruiu de oportunidades escolares erigidas pelo Estado que não foram possíveis para os membros mais velhos da família. É à luz da historiografia que compreendemos as diferentes histórias vitalinas do Clã. Entre Severina e a filha mais velha, Antônia, haviam 21 anos de diferença de idade. As oportunidades educativas que as infâncias de Antônia, Maria e Amália tiveram na década de vinte foram diferentes da infância experimentada por Severina em finais da década de 1940.
O tempo dos Grupos Escolares na Paraíba e a política educacional do Estado Novo
O Certificado de conclusão do curso primário no Grupo Escolar Monsenhor Sales data de 1950. Trata-se de um grupo escolar criado em Galante, então distrito de Campina Grande, que teve obra concluída em 1937 (PINHEIRO, 2001, p.248), ano de nascimento de Severina.
O Grupo Escolar construído no “povoado de Galante” (SILVA, 2011) era parte de um conjunto de construções e adaptações de prédios para dotar o estado da Paraíba desse modelo de escola primária, constituindo a política educacional do governo estadual em conformidade com os ideais do governo de Getúlio Vargas. Entre 1930-1949 foram criados 70 novos grupos escolares no Estado (PINHEIRO, 2001, p.163-164).
Em 1936 a Diretoria de Viação e Obras Públicas previa a conclusão das obras de onze prédios, em conformidade com o programa do governo de dotar as sedes dos munícipios e dos principais distritos com edifícios destinados a grupos escolares (RODRIGUES, 2019, p.61). É nesse sentido que em Campina Grande os distritos de Galante e Queimadas foram contemplados, mas, como observa Taynnã Rodrigues (2019, p.62), foram os únicos comtemplados com duas salas, enquanto os outros grupos comportavam de quatro a seis salas de aula.
Maria Raquel Silva (2011) situa a criação de grupos escolares em Campina Grande, na década de 1930, no contexto da reforma educacional que foi iniciada em 1935 no estado da Paraíba e, também, no bojo das ações de modernização da cidade conduzidas pelo prefeito Vergneaud Vanderley, nomeado em 1935.
Em Campina Grande, os três grupos escolares inaugurados em 1937 integravam um conjunto de melhoramentos e equipamentos urbanos que buscavam instituir e representar o desenvolvimento econômico do município. Naquela década o município usufruía importância na atividade de exportação de algodão, tornando-se um empório comercial do Estado (SILVA, 2011, p.23). Sua localização era importante elo entre o sertão e a capital João Pessoa, além de facilitar contatos com os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte.
A análise da imprensa e de relatos de memorialistas sobre a história de Campina Grande nas décadas de 1930 e 1940, período da infância de Severina, demonstra os esforços em promover a importância econômica da cidade devido a exportação de algodão. Reformas urbanas eram preconizadas como veículos e espelhos do progresso almejado pelo desenvolvimento econômico. Contudo, Maria Raquel (2011), na análise da imprensa local, apreende as contradições do processo, as desigualdades no alcance das reformas e dos serviços prometidos para a população, como a instalação de luz elétrica e o fornecimento de água encanada.
Fabio Sousa (2003) também alerta sobre as contradições e os limites da reforma urbana que caracteriza a história de Campina Grande nas décadas de 1930 e 1940. Por convite do governo estadual, o arquiteto e urbanista Nestor de Figueredo visitou a cidade em 1933. Por exercer uma destacada atuação em reformas urbanas em cidades do Nordeste, sua presença causou expectativas de transformações urbanísticas que dotassem a cidade de feições modernas, nos moldes das prescrições burguesas que inspiravam as reformas urbanas no regime republicano (SOUSA, 2003, p.62): “Mudar as condições sanitárias de uma cidade ou aformoseá-la significava também, e deliberadamente, interferir e erradicar os maus hábitos e costumes dos seus moradores, dar-lhe uma nova fisionomia e plasticidade e criar usos condizentes com os padrões da civilidade burguesa” (SOUSA, 2003, p.65)
A reforma urbana realizada tinha como objetivo transformar a cidade em ambiente moderno e civilizado (SOUSA, 2003, p.66). Ao longo da década de 1930, decretos municipais normatizavam as construções das ruas principais da cidade, a partir do entendimento que o embelezamento da cidade deveria impressionar os visitantes e espelhar o progresso local (SOUSA, 2003, p.67). Mas foi na administração municipal de Vergneaud Vanderley que uma reforma mais vultuosa foi empreendida. Filho de tradicionais famílias proprietárias de terras, o campinense eleito tinha formação jurídica e havia participado do governo estadual no começo da década de 1930 (SOUSA, 2003, p.68).
É bastante volumosa e densa a historiografia sobre as reformas urbanísticas ocorridas na administração do prefeito Vergneaud Vanderley. Contudo, na historiografia, o que é priorizado como “Campina Grande”, palco de intensa reforma urbana com ambições modernas e capitalistas, não conta a história da população que vivia nos distritos rurais, como o caso de Queimadas, Fagundes, Galante. Severina e os seus irmãos nasceram no Muquem, cresceram em volta das atividades de agricultura que, sob a batuta de Vitalina, sustentavam a família.
Temos uma historiografia que vai apontar como os ideais e as políticas sobre educação foram pujantes em Campina Grande e na política estadual de educação. Mas devemos compreender que, ao ser moradora de Muquem, Massapê e Galante, Severina estava num distrito que pouco se serve dessa historiografia. Mas, ainda assim, ali foi criado o Grupo Escolar e tomamos como hipótese que isso foi sim um grande diferencial.
Prover uma localidade com um grupo escolar significava instalar um projeto moderno de escola primária e pública. A construção do Grupo Escolar Monsenhor Sales, batizado com o nome do vigário da catedral de Campina Grande, que ali viveu entre 1885 e 1927 (SILVA, 2011, p.63), seguiu “rigorosamente os padrões arquitetônicos e higienisticos” que caracterizavam o projeto, mas era “mais simples”, dotado de apenas duas salas de aula (SILVA, 2011, p.73). Em São José, um bairro mais populoso e próximo da cidade, o Grupo Escolar Clementino Procópio ostentava quatro salas de aula, salas para a direção e para os professores, gabinete médico, ambiente para “secções sanitárias”, pavilhão para recreio ((SILVA, 2011, p.73). Em Queimadas, região que havia iniciado a ocupação em 1889 (SILVA, 2011, p.65), foi construído o Grupo Escolar José Tavares, nome de comerciante de importante família local.
Ao analisar as profissões dos pais e responsáveis dos alunos do Grupo Escolar José Tavares, em 1944, (Queimadas), Maria Raquel constatou que as crianças, que tinham idade de 6 e 14 anos, “eram filhos de agricultores, comerciantes e criadores de animais” (SILVA, 2011, p.58). Maria Raquel considera “agricultor” uma “classificação genérica”, pois agricultor poderia estar relacionada ao pequeno lavrador, ou ao médio e grande proprietário de terras. Há 85 menções para “agricultor”, 41 para “comerciantes”, 30 para “criadores de animais”, 18 para “domésticas”, 10 para “funcionários públicos”, 01 para “eclesiástico” e 15 ofícios classificados como “outros” (SILVA, 2011, p.59). A ocupação mais citada, portanto, era a de agricultor.
De fato, era esse o caso de Severina e João de Deus, os caçulas dentre os oito filhos de Vitalina, que era agricultora em Galante, localidade vizinha. Temos como hipótese que a existência de política estadual de oferta de escola pública fez diferença para os filhos caçulas de dona Vitalina. Essa hipótese é uma convicção nos relatos orais.
As três primeiras filhas, Antônia, Maria e Amália, nascidas em 1916, 1918, 1919, não cursaram escola regular. As distâncias e dificuldades de deslocamento devem ser considerados como obstáculos de acesso a escolarização. Somamos a isso a condição de serem mulheres e dos destinos sociais imaginados para filhas de agricultores no período. Antônia e Maria não tiveram ofício reconhecido, sendo indicadas como “Do lar” nas anotações de Severina. Amália, “semi-alfabetizada”, foi costureira.
João de Deus, o filho homem mais novo, teve acesso ao Grupo Escolar Monsenhor Sales. Em depoimento oral, uma das netas de Vitalina relata que Severina e João de Deus percorriam longas distâncias a pé até a escola, pois moravam no Massapê. Vitalina comprou terra em Serra da Laranjeira, mas o negócio foi desfeito a contragosto dela. Por isso foram para o Massapê. Foi em 1948 que a família de Vitalina e de sua filha Antônia, já casada, se mudaram para Galante, passando a residir próximo do Grupo Escolar. Assim, como caçulas da família, Severina e João de Deus encontraram mais condições de acesso a escolarização do que os outros filhos de Vitalina.
No primeiro ano de funcionamento, o G.E. Monsenhor Salles ganhou espaço na imprensa local por sua participação nas comemorações do Dia da Pátria (SILVA, 2011, p.79). As professoras Carmen Eloy Dantas e Maria de Lourdes organizaram junto aos alunos recitativos e demonstrações de ginásticas. A proposta de difusão de um ideário nacionalista pautou o projeto da instrução escolar na Paraíba, como acontecia também, no país, a partir do projeto político do Governo Vargas. Um amplo calendário cívico estimulava a encenação dos códigos de comportamento, civilidade e civismo que se buscava capilarizar na população. E a presença dos escolares nas praças públicas, nessas ocasiões e nos desfiles, eram instrumentos dessas operações de hegemonia.
Em estudo sobre a política educacional do governo paraibano no pós-1930, Antonio Pinheiro (2001), examinando mensagens presidenciais, relatórios de diretores da Instrução, legislações, etc. demonstra a conformidade com parte de bandeiras escolanovistas e com o projeto educacional varguista. O combate ao analfabetismo por meio da disseminação da instrução primária, a adoção de métodos modernos, a necessidade de formação dos professores em novos métodos e a promulgação de prescrições a partir de um aparato normativo caracterizaram as iniciativas governamentais. Um decreto promulgado em 1938 (Decreto nº 961, de 11 de fevereiro de 1938) complementava a reforma educacional iniciada em 1935, e tinha por finalidade alinhar os estudantes com a mentalidade do Estado Novo (PINHEIRO, 2001, p. 184). Podemos imaginar assim, que foi nos marcos do culto a Pátria e ao Chefe da Nação, por meio de práticas disciplinares de atividades físicas, canto orfeônico, preleções morais e sob um intenso calendário de atividades cívicas, que Severina foi aluna do Grupo Escolar Monsenhor Sales.
O certificado emitido pelo Grupo Escolar em novembro de 1950 atesta que Severina cursou também o ensino primário complementar. Pela legislação vigente desde a Lei Orgânica do Ensino Primário, o ensino primário era oferecido por meio de dois cursos sucessivos: o elementar (de 4 anos) e o complementar (1 ano). Assim sendo, aos 13 anos Severina havia cursado 5 anos de escolarização no curso primário. “Carmem Elói de Almeida” assina o certificado como diretora e responsável pela classe.
Assim como a historiografia de Campina Grande sobre as décadas de 1940 e 1950 se debruça sobre as pretensões ufanistas e as contradições, resistências e limites das reformas urbanas buscadas pelas elites comerciais, também a historiografia sobre a educação paraibana atesta os limites de resultados do “entusiasmo da educação”.
No final da década de 1940, a aposta da disseminação de grupos escolares como promotores da escolarização da população paraibana havia se atenuado: “os gestores da educação pública na Paraíba já não consideravam os grupos escolares instituições capazes de aniquilar os altos índices de analfabetismo” (PINHEIRO, 2001, p.194). Em 1947, para uma população de 200 mil crianças em idade escolar, apenas cerca de 69 mil estavam matriculadas, o que revelava a insuficiência de escolas e vagas (PINHEIRO, 2001, p.194).
Ademais, as discussões sobre aproveitamento e evasão escolar também continuavam a ocupar os relatórios da instrução pública primária (PINHEIRO, 2001, p.194). Nossa Severina, porém, havia experimentado os bancos da escola, fazendo o curso primário completo no Grupo Escolar de Galante. Para isso a família saiu das terras do Massapê e foi se estabelecer na área urbana de Galante, perto do Grupo Escolar. Me refiro ao povoado nas margens da rodovia, onde estava o grupo escolar, alguns aparelhamentos urbanos e residências. Em 1948 estavam na casa construída pelos filhos de Vitalina em terreno por ela comprado. Então, nos anos finais do Grupo Escolar, Severina gozou da facilidade de morar próximo da escola.
A formação para o magistério: do Mangue pernambucano à Baixada Fluminense
Contudo, a continuidade dos estudos exigiu a mudança de estado, pois em 1952 Severina estava cursando o ginasial na antiga Escola Normal de Pernambuco, que havia sido nomeada, em 1946, de Instituto de Educação de Pernambuco.
Ora, se a sede do distrito de Campina Grande estava sob forte desenvolvimento econômico, sacudido por intensas reformas, porque não foi esse o destino de nossa tropeira para a continuidade dos estudos? Se Campina Grande era destino para a escolarização de filhos de cidades vizinhas, porque essa não foi a sorte de Severina? Isso será respondido pela história familiar.
Vivia de Melo Silva (2014, p.57) ao relacionar as instituições de ensino secundário existentes na Paraíba entre os séculos XIX e início do XX, aponta a inauguração de uma escola pública de ensino secundário em Campina Grande em 1953 (Colégio Estadual de Campina Grande). As outras instituições de ensino médio existentes eram particulares.
O início da construção ocorreu em 1949 e era justificado pela densidade populacional de Campina Grande. A reinvindicação da elite local também é uma hipótese levantada pela autora. Além das famílias tradicionais e de grandes comerciantes que viviam na região, Campina Grande era destino de famílias do campo e de cidades próximas que buscavam instruir seus filhos (SILVA, 2014, p.80). A iniciativa da construção foi muito comemorada como símbolo da modernidade.
A expansão do ensino primário em Campina Grande, mesmo que insuficiente, também pode ter contribuído para a criação da instituição. Em 1949 Campina Grande tinha 165 escolas de ensino primário municipais, com matrícula de 9.754 estudantes (SILVA, 2014, p.81). Em 1950 haviam 273 escolas de ensino primário com 17.861 estudantes, o que significava 51% das crianças em idade escolar. (SILVA, 2014, p.83).
Contudo, conflitos eleitorais e partidários envolvendo governo estadual e municipalidade, por ocasião das eleições de 1947 e 1950 retardaram a conclusão da fundação do Colégio (SILVA, 2014, p.87).
A criação da instituição pública de ensino secundário em Campina Grande foi muito comemorada. Mas Severina não estudou em Campina Grande. Ela cursou o ginasial no Instituto de Educação de Pernambuco, em Recife, e a documentação disponível confirma a conclusão do curso em 1955. E, segundo relatos de familiares, tanto ela quanto o irmão João de Deus foram para Recife “para estudar”. Ainda que ela tenha ido para Recife antes da existência de um ginásio público em Campina Grande, pois, como vimos, o Colégio Estadual de Campina Grande seria inaugurado em 1953, é importante compreender por que a família foi para Recife.
E, principalmente, compreender por que Campina Grande não foi o destino de “uma vida melhor”.
A continuidade dos estudos de Severina e João de Deus em Recife continuou a depender da oferta da instrução pública e do amparo familiar. Ao que tudo indica, as oportunidades de trabalho do marido de Amália, irmã de Severina, a fizeram migrar com a família para Recife. Antônio, filho de Vitalina, também conseguiu trabalho em Recife, e voltou a Paraíba para buscar os irmãos caçulas “para estudar”.
Em Recife, Severina morou primeiro na casa do irmão Antônio, e morou na casa da irmã Amália. Contudo, o critério de gênero, fez João de Deus seguir os estudos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e no Ginásio Pernambucano, depois ingressando na carreira militar, enquanto Severina foi para a Escola Normal.
O Instituto de Educação de Pernambuco recebeu essa denominação por conta da Lei Orgânica do Ensino Normal, publicada em 1946. Pelo Decreto-Lei 1448, de 03 de setembro de 1946, emitido pelo interventor federal no Estado, Dermeval Peixoto, mudava a denominação da Escola Normal Oficial de Pernambuco (fundada em 1895) para Instituto de Educação de Pernambuco (FIGUEIRÔA, 2017).
A instituição tinha por objetivo formar professores para as escolas primárias, “desenvolver e propagar conhecimentos e técnicas relativos à educação da infância” (1946, Art.1º), habilitar administradores escolares e “ministrar o ensino secundário nos dois ciclos nos moldes da legislação federal” (FIGUEIRÔA, 2017).
O ingresso na instituição ocorria pelos exames de admissão que eram obrigatórios e bastante seletivos (SIMÕES; FIGUEIRÔA 2018, p.222). Para obter aprovação era necessário média 5 e idade mínima de 15 anos: “A certeza de que este era um nível de ensino reservado para uma ‘elite’ pode ser encontrada na seletividade que, na época, equivalia ao dos vestibulares a partir da década de 70” (SIMÕES; FIGUEIRÔA, 2018, p.222).
Dos tempos de ginásio no Instituto de Educação de Pernambuco, Severina conservou algumas fotografias.
Fonte: Acervo Pessoal. Na segunda fila de baixo para cima, Severina é a quarta da direita para esquerda.
Formada no Instituto de Educação de Pernambuco em 1955, o registro seguinte da trajetória de formação escolar de Severina é a Escola Normal Professor Alfredo Filgueiras, em Nilópolis, município do estado do Rio de Janeiro, onde começou a cursar o 2º ciclo do curso normal em 1967.
As informações sobre esse interstício de doze anos na sua formação de magistério dependem dos relatos dos familiares e de poucos registros. No acervo pessoal, consta uma carteira de identificação do ano de 1957, em que informa a profissão de doméstica, solteira e residente no bairro de Água Fria. No livro do Clã, Severina informa seu casamento com Severino em 1959. Trata-se provavelmente do casamento religioso, pois a união civil foi regulamentada no Rio de Janeiro em junho de 1977.
Os relatos informais de familiares confluem em afirmar que Severina migrou com o marido para o Rio de Janeiro na década de 1960. Morou primeiro com o irmão José, que havia se estabelecido com a família na cidade de Nilópolis, região periférica da capital fluminense. A migração de nordestinos para a Baixada Fluminense é uma marca da história da ocupação desse território ao longo do século XX, assim como a estratégia dos primeiros familiares migrados darem amparo de moradia e redes de sociabilidade e trabalho aos demais que migram em seguida.
Em 1966 Severina estava empregada no Laboratório La Roche quando sua irmã Amália esteve no Rio de Janeiro por ocasião da formatura de um dos filhos, que seguiu carreira militar. E nesse encontro, Amália questionou se a irmã não daria continuidade aos estudos. Inferimos que por ser viúva de um empregado do Serviço Nacional da Peste, falecido aos 41 anos por doença motivada pelo ofício, devido lidar com venenos e dedetizações, Amália demonstrou aversão ao trabalho da irmã, empregada na indústria farmacêutica. O que os documentos atestam é que já no ano seguinte, Severina dava continuidade aos estudos, matriculada no segundo ciclo do ensino normal na Escola Normal Professor Alfredo Filgueiras. A migração para Recife e para o Rio de Janeiro amparada por familiares e o episódio da conversa entre irmãs sobre a continuidade dos estudos, são indicativos das agências individuais e coletivas que incidem nas trajetórias. Ainda que seja impossível separar as pessoas das condições nas quais elas atuam, deve-se considerar que
nem suas ações nem seus pensamentos são completamente determinados pelas circunstâncias; algumas coisas se tornam possíveis, outras não; algumas ações são impulsionadas, outras só podem ser realizadas com a superação de grandes obstáculos. Mas as condições que tornam possíveis nosso pensar e agir não são estáticas. Elas se alteram devido às ações humanas, sendo que novas possibilidades de ação surgem e possibilidades já existentes se alteram. Uma pessoa não é simplesmente uma unidade constante, que primeiro recebe influências e depois produz ações (HEINRICH, 2018, p.34).
Itinerâncias no magistério
Foi, portanto, no estado do Rio de Janeiro, aos 30 anos, que Severina ingressou na escola particular mais prestigiada da cidade de Nilópolis para terminar o ensino médio. O Instituto Filgueiras foi fundado em 1942 pelo professor Josué Filgueiras, e, em 1950, parte do colégio foi vendido aos professores Emanoel do Espírito Santo Lopes, João Batista de Paula e José Maria Neves, que se instalaram numa nova sede, às margens da ferrovia, com o nome de Colégio Filgueiras (NOGUEIRA, 2009, p.203). A partir de 1962, a instituição foi renomeada para Colégio Professor Alfredo Filgueiras. Assim, é comum entre os moradores da cidade as menções ao “Filgueiras Novo”, devido a mudança da localização do Colégio (NOGUEIRA, 2009, p.203).
O álbum da formatura ocorrida em 1969 é constituinte do valor e da solenidade conferida a formação de professores na década de 1960, período também marcado pela expansão da iniciativa privada no ensino médio e superior. Entre os muitos registros do álbum, consta a presença de Vitalina na solenidade de formatura da filha Severina.
Antes mesmo de concluir o curso normal, em 1968, Severina foi aprovada em concurso de magistério para a prefeitura de Nova Iguaçu, cidade vizinha a Nilópolis, onde lecionou até a aposentadoria em 1993. Em 1970 foi aprovada por concurso para a rede estadual de ensino, onde fez jus a aposentadoria em 1996. Ingressou no quadro do magistério em Nilópolis em 1975, tendo aposentado em 2007. Ou seja, ingressou no magistério em 1968 com 31 anos, e a última aposentadoria ocorreu em 2007, aos 70 anos, somando então 39 anos consecutivos de serviço público. Ao longo de dezoito anos, entre 1975 e 1993, atuou nas 03 matrículas.
Essas informações estão documentadas em cópias de diário oficial, carteiras de trabalho e outros documentos do acervo pessoal. Mas Severina, além do ato de instituir um acervo, também registrou minuciosas informações do seu percurso profissional num caderno de anotações, em um outro exercício de “escrita de si”. Intitulado “Informações profissionais de Severina Felix de Araújo” o caderno manuscrito tem 15 páginas preenchidas. As anotações são de dados pessoais, números dos documentos, cursos realizados desde o primário, as datas de registros profissional dos cursos normal, adicional e superior, assim como a listagem de onze cursos de aperfeiçoamento. E nas seções “Eu na Pref. Nova Iguaçu”, “Eu no Estado” e “Eu em Nilópolis” ela indica datas dos concursos, admissão, ocorrência de licenças e aposentadorias. Enquadramentos, vantagens, mudanças de níveis. Há um meticuloso registro, que talvez tenha sido realizado pela prática adquirida na função exercida de secretária escolar. A cada matrícula, um item “Séries que lecionei” arrola anos, escolas, disciplinas e séries lecionadas.
No item “Eu na Pref. Nova Iguaçu”, Severina informa a data do concurso, classificação e data de admissão. Ela relaciona datas de entrada e saída em oito escolas em Nova Iguaçu, ao longo de sua carreira, sendo que, passou duas vezes por uma mesma escola, pois lecionou por um ano no supletivo da Escola Professor Paris, onde havia iniciado a carreira em 1968.
As escolas eram localizadas nos atuais municípios de Belford Roxo e Mesquita, e as escolas menos afastadas do centro da cidade de Nova Iguaçu estavam situadas nos bairros Califórnia e Alvorada. Entre 1968 e 1984 transitou em seis escolas, e, sendo lotada na escola Ruy B. Mattos (bairro Alvorada, Nova Iguaçu) em maio de 1968, permaneceu lotada até em 1991, quando, foi lotada na escola Roberto Silveira (Edson Passos, Mesquita) onde ficou até a aposentadoria, publicada em 1993. Em Nilópolis exerceu 11 anos de regência, 2 anos de licença sem vencimentos e 18 anos de secretaria escolar.
Essa itinerância entre escolas é um aspecto comum em trajetórias do magistério, mesmo no caso de professores admitidos por concurso.
A matrícula no Estado também foi exercida em escolas de Nilópolis e Mesquita. E Severina anotou as séries em que lecionou.
Quando comparamos por ano e matrícula as séries e disciplinas lecionadas, percebemos que tanto o Adicional obtido em 1977 (que habilitava para o ensino nas séries posteriores ao curso primário) quanto a graduação em Ciências Sociais concluída em 1980 repercutiram na lotação da docente em turmas de ensino de história do curso ginasial (5ª a 8ª série), não voltando a lecionar no curso primário. Nesse sentido, essa “escrita de si” experimentada nesse bloco de anotações de um acervo pessoal, remete o pesquisador a uma microescala de observação que serve para observar como a continuidade dos estudos de magistério tinha repercussão sobre a carreira docente nas décadas de 1960 e 1970.
O Diploma de Licenciada em Estudos Sociais, expedido pela Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC) em setembro de 1981, informa que Severina concluiu o curso de Estudos Sociais naquele município da Baixada Fluminense em junho de 1980. Além do diploma, há no Acervo Pessoal uma carteirinha de estudante do curso de Estudos Sociais em 1978. Uma fotografia registrou Severina no 6º período da Faculdade em 1979.
A FEUDUC foi uma instituição fundada em 1968, no contexto de expansão do ensino superior privado impulsionado pelos governos do período da Ditadura Militar. Após a recusa pelo Conselho Federal de Educação da instalação de uma faculdade de Medicina em 1969, foi aprovado o funcionamento de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, destinada a formar magistério em ensino superior, em 1971. As aulas dos cursos de Licenciatura em Estudos Sociais e Letras começaram em 1973, como cursos de curta duração de 2 anos (BRAZ, 2013).
No final de 1974 a FEUDUC passou a funcionar na sede construída no bairro São Bento, 2º distrito, em terreno cedido pelo INCRA. Os cursos de Letras e Estudos Sociais foram habilitados como cursos de Licenciatura Plena (BRAZ, 2013):
O seu reconhecimento definitivo se deu com as publicações dos Decretos Federais nº 75384 e 79837 no Diário Oficial da União, respectivamente, nos anos de 1975 e 1977. A partir de então, a FEUDUC aprofundou e acelerou sua trajetória de formação dos quadros que atuaram e atuam no Magistério em Duque de Caxias e na Baixada Fluminense (BRAZ, 2013).
Interessante esse destaque para a função da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na formação de professores em ensino superior na Baixada, posto que Severina morava num município próximo, e porque vemos a repercussão da formação em ensino superior na sua atuação no magistério na Baixada Fluminense.
A trajetória de formação no magistério e de atuação profissional de Severina na Baixada Fluminense dá a ver como as histórias de vida devem ser confrontadas com a história dos territórios, as oportunidades ou impeditivos conforme as políticas públicas das regiões. Em contrapartida, os acervos particulares também são veredas, fontes de documentação sobre a história da educação local.
Considerações finais: Passados reinscritos no presente
Estala relho marvado
Recordar hoje é meu tema
Quero é rever os antigos tropeiros da Borborema
Assim caminhavam as tropas cansadas
E os bravos tropeiros buscando pousada
Nos ranchos e aguados dos tempos de outrora
Saindo mais cedo que a barra da aurora
Riqueza da terra que tanto se expande
E se hoje se chama de Campina Grande
Foi grande por eles que foram os primeiros
Ó tropas de burros, ó velhos tropeiros
(Tropeiros da Borborema)
Raimundo Asfora / Rosil Cavalcante
A canção “Tropeiros da Borborema” faz menção a importância histórica dos tropeiros que transportavam as mercadorias que animavam as trocas comerciais em Campina Grande, no começo do século XX. A sina dos tropeiros - condutores de animais e mercadorias - é o movimento, a estrada, as idas e vindas. Apresentamos Severina como uma tropeira da instrução, posto que sua trajetória escolar e de atuação profissional foi marcada por trânsitos entre bairros, cidades, estados. Desde a infância o alcance das oportunidades educativas foi pautado por migrações. Das áreas rurais do distrito de Fagundes para a rua urbanizada de Galante, onde estava sediado o Grupo Escolar. De Galante, embarcou na estrada de ferro que conduziu para o exame de admissão na Escola Normal de Pernambuco. Dali para a Baixada Fluminense, região periférica do Estado do Rio de Janeiro, na década de 1960. E mesmo enraizada na Baixada, nunca deixou de se deslocar entre três municípios da região, fosse para lecionar nas três redes de ensino público que ingressou, fosse para continuar os estudos no ensino superior, onde se graduou professora de Estudos Sociais. Esses percursos foram possíveis de conhecer pela intenção da professora Severina em reunir documentos ao longo da vida. O modo como os documentos foram preservados e legendados testemunham a intenção de dar a ver sua trajetória, sua intenção de memória e o valor positivo conferido a própria vida de professora. Em parte, fomos cúmplices dessa intenção ao trazer as informações desse acervo e dessa trajetória. Mas é necessário insistir que o efeito da perspectiva causado pelo encadeamento da narrativa de escolarização não era um projeto de vida, um destino: “No centro da análise deveria estar o espectro das diferentes opções possíveis e, sobretudo, as rupturas no decorrer da vida” (HEINRICH, 2018, p.406).
E a professora-historiadora foi além, ao produzir uma árvore genealógica e escolar dos familiares. Antes de si e depois de si, Severina procurou saber datas de nascimento, casamento, níveis de instrução dos filhos, netos e bisnetos de sua mãe, Vitalina Pereira de Araújo. Assim, procuramos, à luz da historiografia, compreender por que a Severina foi a primeira filha de Vitalina a ter uma trajetória escolar completa e se tornar docente: “É necessário considerar as respectivas condições de vida em um sentido amplo (tanto os fatores que restringem quanto os que possibilitam), a fim de se ter uma noção de como as experiências sociais e cognitivas puderam ser assimiladas” (HEINRICH, 2018, p.409).
O acervo é um manancial para os estudos de história da educação, pela riqueza da documentação, mas, principalmente, pelas questões que a análise documental, no cotejamento com a bibliografia, lança ao campo dos estudos de história da educação.
Em primeiro lugar, a importância dos gestos de memória inscritos nas “escritas de si” que constituem os acervos pessoais e registros autobiográficos, como o caderno “História do Clã de D.ª Vita”. Assumir como unidade de análise a trajetória de vida escolar e profissional de um sujeito permite descortinar diferentes temporalidades da história da oferta da instrução no Brasil. Para a família de Dona Vitalina, a fundação de um grupo escolar púbico em Galante abriu veredas para os filhos mais novos que não foram possíveis para os filhos mais velhos. No caso em tela, os trânsitos por diferentes territórios conduzem o pesquisador a enfrentar distintas bibliografias sobre história local e sobre as especificidades das ofertas ou interdições de experiências educativas conforme o distrito, a cidade, o estado, a região. Dialeticamente, o estudo de uma trajetória individual a partir do acervo pessoal é um convite para uma nova seara metodológica nos estudos de história local, posto que é preciso confrontar a história de distintos territórios com histórias de vida.
Por fim, e muito importante, no exercício de observar “Passados reinscritos no presente” além da intenção explícita dos autores dos acervos pessoais em serem lembrados, fica nosso aceno para que as histórias de famílias sejam posição de análise para estudos comparados em história da educação. Nessa perspectiva, o acervo pessoal nos possibilitou compreender que a história de escolarização da Severina é, também, uma história de ancestralidade. Histórias vitalinas dos esforços de uma família, em diferentes gerações e em diferentes territórios, de acesso ou interdição a experiências de educação escolar. O zelo de Severina em produzir um acervo é compreendido na sua consciência de ter alcançado algo que outros não puderam. O zelo em mapear a continuidade dos estudos das gerações seguintes é um apelo em que a vereda seja continuamente aberta. Não se trata de uma perspectiva linear. Mas, sim, espiralar. Ao trazer, sob a análise da história da educação, a trajetória de Severina, esbarramos nela narrando a trajetória da família. Severina cuidou em organizar, anotar, legendar, preservar, produzir informações. Cuidamos agora em contar sua trajetória. Num movimento espiralar, tropeiro, tecemos passados reinscritos no presente.
O tempo ancestral não se contém nos limites de uma linearidade progressiva, em direção a um fim e a um páthos inexauríveis, e nem se modula em círculos centrípetos fechados de repetições do mesmo. Em suas espirais tudo vai e tudo volta, não como uma similaridade especular, uma prevalência do mesmo, mas como instalação de um conhecimento, de uma sophya, que não é inerte ou paralisante, mas que cineticamente se refaz e acumula no Mar-oceano indeterminado do tempo ancestral, o tempo Kalunga, o tempo de Nzambia e de Olorum, um em si mesmo íntegro e pleno, cuia recheada por instâncias de presente, de passado e de futuro, sem elisão, sem forclusão, sem sobressaltos, sem fim dos tempos. Um tempo espiralar. (MARTINS, 2021, p. 206).
E assim podendo ser, é com um registro de infância que pausamos o espiralado ancestral que tem nutrido essa história vitalina de uma tropeira da instrução.