E é assim que os anarquistas, hoje e no futuro, poderão demonstrar com fatos que o anarquismo é a única força que defende, protege, ampara e respeita a causa da justiça, em busca do ideal de amor, de paz e de felicidade, que se realizará na Terra, transformando-a num paraíso, em que sem fronteiras para separar as nações umas das outras e sem exército para garantir as suas linhas divisórias, sem escravos nem amos, sem déspotas nem governos, nem autoridade nem chefes, o homem será livre sobre a terra livre.
João Penteado: Ainda a propósito das Escolas Modernas (AJP/CME).
Introdução
Este texto se inicia com as palavras de um professor, voltadas para a mudança e para o futuro. João Penteado foi um educador, escritor e anarquista brasileiro, que viveu entre 1877 e 1965, em São Paulo; seu percurso de vida somado à prática social repercutiu num valioso conjunto documental que expressa momentos lacunares da história da escola e da educação, em São Paulo. Em vida, João Penteado se conduziu por um caminho permanentemente relacionado ao exercício da escrita espontânea, vivendo contextos tais como a escola, a imprensa operária, anticlerical, anarco-sindicalista, espírita, e o movimento anarquista como ambiente social comprometido com a própria memória, diante das ações ordinárias de apagamento histórico. Após seu falecimento, os documentos relacionados à longa vida de João Penteado ficaram guardados pela família, que seguiu provendo o funcionamento do então Colégio Saldanha Marinho até 2002. Mas, a primeira escola que João Penteado seguiu a frente, na figura de diretor, foi a Escola Moderna n.º1, existente entre 1912 e 1919; uma escola anarquista e racionalista adepta do projeto da Escola Moderna de Francisco Ferrer y Guardia, o educador catalão que teve seu projeto educacional interrompido e que foi assassinado pelo Estado espanhol, em 13 de outubro de 1909. Entre 1912 e 2002 transcorreu-se um extenso caminho que garantiu a conservação espontânea de um conjunto documental extremamente relevante, alocado nos prédios escolares que transferiram entre si uma história de 90 anos. Foi em 2005 que a massa documental situada no Colégio Saldanha Marinho começou a ser transferida como doação para o Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, mediante um detalhado processo de visitas e recolhimentos, a partir do contato da hoje professora doutora Tatiana da Silva Calsavara com os familiares de João Penteado, por ocasião de sua pesquisa de mestrado, com a orientação da professora Carmen Sylvia Vidigal Moraes, coordenadora do Centro de Memória da Educação. Com a localização deste acervo no ambiente da escola e a realização do processo de recolha e armazenamento na Universidade de São Paulo, foi criado o grupo de pesquisas Educação e Culturas Anarquistas1, que trabalhou, concomitante ao tratamento arquivístico, o aporte teórico relacionado às pesquisas de docentes, graduandos e pós-graduandos em torno desse acervo. O grupo, bem como parte das pesquisas de graduação e pós-graduação, foram coordenados e orientados pelas professoras doutoras Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Cecília Hanna Mate e Doris Accioly e Silva; o respaldo arquivístico foi efetuado pela pesquisadora Iomar Barbosa Zaia. Mas o acervo gerou, por meio do processo de organização, o desenvolvimento de diversas pesquisas relacionadas também a outras universidades, e, no decorrer dos anos, segue com procura de pesquisadores, gerando muitos trabalhos. Do trabalho deste grupo, foi publicado, em 2013, o livro e inventário de fontes Educação Libertária no Brasil - Acervo João Penteado: Inventário de Fontes, editado pela Editora da Universidade de São Paulo e Editora da Universidade Federal de São Paulo, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Pode-se sugerir que a trajetória pessoal constante, reta e transgressora de João Penteado é possível de ser acompanhada, inicialmente, por alguns caminhos de pesquisa: a imprensa da época, com a qual contribuiu constantemente nos meios sociais por onde circulou, não sendo, portanto, qualquer imprensa, como já foi destacado; arquivos de outros militantes com os quais se relacionou, como Edgar Leuenroth; a memória de instituições, espaços e iniciativas colaborativas, como a Nossa Chácara, o Centro de Cultura Social; e por meio dos documentos que compõem seus arquivos. Uma parte destes documentos concretizam uma coleção centralizada na figura de João Penteado, que está sob custódia da UEIM/CECH - Unidade Especial de Informação e Memória da Universidade Federal de São Carlos, configurando importantes documentos pessoais e parte significativa da biblioteca de João Penteado. Outra parte da documentação foi destinada à guarda da Universidade de São Paulo, pelo Centro de Memória da Educação. A diversidade de documentos que estão alocados entre uma instituição e outra compõe ricos conjuntos de fontes primárias, organizadas conforme as características do lugar. O Centro de Memória é um centro de documentação que agrega tipos documentais variados, do escrito às peças museológicas, o que é muito interessante para a abordagem das fontes geradas por uma escola. É possível trabalhar com a pesquisa histórica por meio das fontes textuais, mas também dos objetos e das representações que se constituem do passado. O Arquivo João Penteado gerou um rico conjunto de peças museológicas para o estudo da escola, por exemplo. E nesse caminho, o avanço das pesquisas nos últimos anos, a disponibilidade destas documentações organizadas em espaços de consulta, assim como os caminhos que têm sido percorridos por pesquisadores em arquivos e outras instituições de permanência documental, têm favorecido à articulação de novos olhares para o passado da escola, relacionados às trajetórias envolvidas em projetos de escolas antagônicos à forma escolar dominante. Com isso, movimentos, espaços públicos e indivíduos relacionados pela vivência da cultura e da educação, convergiram, neste meio social, suas próprias condições de construção da memória.
Os arquivos pessoais, expressões de vidas fragmentadas em diversos documentos, podem permitir, assim, a revisita contínua ao passado pelo olhar pesquisador do presente. Quando um centro de documentação e memória recebe um acúmulo documental ainda não investigado, como foi o caso da documentação transferida do Colégio Saldanha Marinho para a Universidade de São Paulo, é possível que a organização do arquivo reflita a natureza do contexto social e a conjuntura histórica que gerou esses documentos, na leitura que se faz do conjunto. Assim, há arquivos institucionais, por exemplo, que são representados pela imagem social de um indivíduo, e, quando instituição e indivíduo se misturam em torno de uma vida, pode ser marcante a representação do indivíduo na totalidade do arquivo. É dessa forma que o chamado Arquivo João Penteado, organizado no Centro de Memória da Educação, representa seu arquivo pessoal e, ao mesmo tempo, o arquivo institucional das escolas as quais dirigiu o educador João Penteado ao longo de sua vida, envolto ao movimento anarquista e educacional brasileiro.
O caminho de João Penteado expresso em seu arquivo pessoal
João Penteado nasceu no interior de São Paulo, em uma cidade chamada Jaú, em quatro de agosto de 1877; teve dois irmãos, Jonathas e Joaquim e a irmã Sebastiana. Na infância, cursou o ensino primário na Primeira Escola Masculina de Jaú, onde foi aluno de Caetano Lourenço de Camargo, como recorda, em sua obra Pioneiros do Magistério Primário. Este livro é parte do arquivo pessoal de João Penteado, e tem um papel importante, pois, ao mesmo tempo em que aponta traços históricos do professorado de Jaú, explicita suas as memórias e percepções sobre a educação e a escola, como se nota a seguir, na referência ao seu professor:
Foi dele que recebemos, com o ensinamento das primeiras letras, o primeiro impulso para ingressar nas ínvias sendas da vida. Foi o nosso primeiro e único mestre. (...) E, embora sem estarmos autorizados, queremos relembrar neste nosso modesto trabalho alguns episódios da nossa vida de alunos da escola de nosso velho e amigo professor Caetano Lourenço de Camargo e, fazendo-o, parece estarmos vendo-o, perfeitamente, diante de nós, a olhar-nos, ao pé da mesa de trabalho, sentado em sua cadeira, na sala de aula, onde nós e nossos colegas de bancos escolares costumávamos fazer esforços inauditos afim de estudarmos bem as nossas lições e nos livrarmos de alguma remessa de bolos ou de outros castigos (PENTEADO, 1944, p. 45).
A Primeira Escola Masculina de Jaú funcionou, por um longo período, sob a direção de Caetano Lourenço de Camargo, “numa das salas do casarão em que naquele tempo se achava instalada a Câmara Municipal” (idem, ibidem). São destacadas pelo autor, em sua obra, algumas nuances da educação escolar, tão naturais naquela época, como a metodologia baseada no ensino disciplinar e autoritário, com os matizes da guerra cristã em torno da instrumentalização da escola. Em momentos seguintes, o Brasil se dirige para a conjuntura republicana, na qual a escola passa a evocar, servir e moldar tipos modernos de civilidade e inovadores de educação; o final do século XIX e início do XX explora um crescente plano de criação de diretrizes da educação nacional, a partir do qual seriam implementadas reformas por uma elite política, econômica e intelectual, como Caetano de Campos, Gabriel Prestes, Rangel Pestana e Bernardino de Campos, que providenciaram a implantação de Grupos Escolares, Escolas Normais, Jardins de Infância, em conformidade às mais atuais metodologias renovadas da européias e estadunidenses, padrão que se fortalecia com a consequente organização do Movimento Escola Nova, no Brasil, por intelectuais pragmáticos como Fernando de Azevedo, Francisco Campos, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Gustavo Capanema. Cabe destacar as particularidades políticas de cada um dos renovadores, que transitam entre campos complexos de orientações progressistas e tradicionais, como se nota no longo grau de distinção entre Anísio Teixeira e Francisco Campos, por exemplo. João Penteado fez em sua obra, ainda que remetendo a meados e finais do Império, generalizações sobre o funcionamento da escola que, mesmo com cinquenta anos subsequentes envoltos a um grande movimento escolanovista, seguiu fazendo sentido ao intangível universo da institucionalização do saber por meio da escola:
aprender a ler, naquele tempo, não era brinquedo, não era empreendimento de fácil solução, porque os castigos nos apavoravam e nos enchiam de excitação e de receios, dando-nos motivo de dissabores tais que às vezes nos desencorajavam e faziam perder a boa vontade e o ânimo ante o rigor férreo da disciplina, que afinal de contas era regra naquele tempo, a exemplo das celebres Escolas do “Caraça”, no Estado de Minas Gerais e da do “Barão de Macaubas”, no Estado da Baía, e outros (PENTEADO, 1944, p.48).
Como prosseguir na instituição escolar era destino restrito pelo meio social, no século XIX, João Penteado terminou o ensino primário e ingressou diretamente no mundo do trabalho, dedicando-se ao estudo autodidático. Léo Vaz, autor do prefácio de “Pioneiros do Magistério Primário”, se refere a ele caracterizando-o como “exímio tipógrafo”, “emérito autodidata”, “professor e educador” (idem, p.8). Jacob Penteado, na obra “Belenzinho 1910: retrato de uma época”, também reitera que João Penteado foi autodidata, ensinou as primeiras letras e atuou na imprensa da sua cidade natal e da capital paulista (PENTEADO, 1962: p.285). Destaca que João Penteado iniciou-se profissionalmente como carteiro particular, a serviço de seu pai, Joaquim de Camargo Penteado, agente de Correio de Jaú. Cabe destacar que, embora Jacob registre a presença de João Penteado em sua obra, não há localização na documentação, por esta pesquisa, de evidências de que se conheciam ou faziam parte do mesmo círculo. Posteriormente, como já afirmou Léo Vaz, trabalhou como tipógrafo. Os passos iniciais como educador estão descritos em um documento presente em seu Arquivo Pessoal, intitulado “resumo profissional”, o qual destaca as seguintes informações:
Carreira: Iniciada em Jaú, como professor, Municipal, em concurso, tendo lecionado na mesma cidade e no respectivo Município, em Itapuí. Depois, também, no “Grambery”, em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais. Ultimamente, onde reside, na Capital do Estado de São Paulo, desde 13 de maio de 1912 (AJP-CMEFEUSP).
O pesquisador Carlo Romani faz referência a uma passagem que relaciona a importância do anarquista italiano Oreste Ristori na propagação do anarquismo no Brasil e na identificação de João Penteado com os fundamentos pedagógicos utilizados pelos educadores ácratas. Ristori, em uma conferência proferida em 1907, em Jaú, impressionou João Penteado que publicou a seguinte nota no jornal La Battaglia:
A presente correspondência, que é a primeira por mim dirigida a essa folha, tem o fim exclusivo de nestas poucas linhas, dar notícias da estada o companheiro Oreste Ristori nesta cidade, onde, galhardamente, recebido por parte de seus admiradores e companheiros, foi instigado a realizar uma conferência pública, de propaganda sociológica, logrando com isso trazer muito proveito para a causa da reforma social. O tema versou sobre o cristianismo perante a história e a sociologia, tendo o companheiro Ristori, no decorrer de seu caloroso discurso, merecido sinceros aplausos, principalmente quando se referido aos dogmas absurdos das religiões e as sutilezas do clero e de seus representantes (ROMANI, 2002, p.184).
Imbuído desta perspectiva pedagógica, João Penteado migrou para São Paulo, atuando em uma escola chamada Escola Livre, como eram denominadas as escolas de caráter libertário ou racionalista, antes de trabalhar na Escola Moderna N.º1. Como pedagogo, João Penteado deu início em São Paulo a uma longa trajetória voltada à educação:
Sob esta denominação (Escola Livre), vem a ser fundada nesta capital uma escola dirigida pelo nosso bom companheiro João Penteado. A escola livre e seu professor que tem prática no magistério, se esforçará por proporcionar aos seus alunos um ensino livre de todos os preconceitos sociais, obedecendo aos princípios do ensino racionalista, que será complementado na proporção que seus recursos o permitirem. Escola Livre, rua Cotegipe, n. 26 (Recorte de jornal. Caderno de anotações. Coleção João Penteado - UEIM/CECH/UFSCAR).
Esta mesma nota reitera que João teve a ajuda de sua irmã, Sebastiana, na direção da escola. Tal fato concorda com a menção feita em uma entrevista por seus familiares, Sr. Álvaro e Sra. Marli, referente à criação de uma escola, sob a responsabilidade de João Penteado e sua irmã, em 1908:
nós sabemos que teve alguma coisa, em 1908, quando ele criou uma escola maternal para a irmã tomar conta - há um livro com um carimbo: 1908 - Escola Nova ou Escola Livre. Tem um histórico [escrito por João Penteado] conosco que diz que em 1908 ele criou essa escola. Então ele cita: Em 1908 teve a ideia de criar um curso maternal que seria administrado pela sua irmã Sebastiana Penteado, supervisionado por ele. Depois, em 1912, nós temos a data da escola primária, a Escola Moderna. Nós descobrimos através dos documentos, processos, conta 1912, 1918, 1919, a intervenção da polícia e do ministério, mandaram fechar a escola porque era considerada anarquista (...) (SANTOS, 2009, p. 86).
Jacob Penteado, ao se referir às escolas do Belenzinho, nas primeiras décadas do século XX, lembra que “a mais importante foi a Escola Moderna, do prof. João Penteado” e que ela foi fundada com o “auxílio dos sindicatos dos vidreiros e dos banqueiros”. Entretanto, a Escola Moderna n.º1 teve maior visibilidade, justamente por ser vinculada a um projeto piloto de instalação de escolas libertárias em São Paulo, veiculado pelo jornal A Lanterna. O estopim para a abertura dessas escolas em partes diferentes do mundo onde chegou o anarquismo foi o assassinato de Francisco Ferrer y Guardia, mediante um sinuoso processo promovido pelo Estado espanhol e perseguição à escola e ao educador, que foi selado com sua morte pública pelas mãos da guarda espanhola no castelo de Montjuich, em Barcelona, em 13 de outubro de 1909. Este estopim deu força a abertura de muitas escolas racionalistas inspiradas em Ferrer e seu projeto, também resultado de um amplo conjunto de ações de anarquistas, socialistas libertários, trabalhadores, livre-pensadores preocupados com, entre muitas outras coisas, a educação. A implementação dessa escola teria como objetivo o atendimento de trabalhadores, crianças sem acesso à escola, e grupos interessados e excluídos da educação regida pela ordem cristã e/ou cívica hegemônica. João Penteado, cujo pensamento aparenta não só o ideário anarquista, mas também alguns referenciais progressistas da época, como a maçonaria, frentes abolicionistas, espíritas, o vegetarianismo, foi convidado para participar da gestão da Escola Moderna n.º1. E até 19 de novembro de 1919, quando a Escola Moderna nº1 e as demais escolas racionalistas foram fechadas por ordem do governo estadual de São Paulo, foi o seu diretor, com exceção do ano de 1917. Neste ano, ausentou-se da cidade, tendo sido substituído pelo anarquista Florentino de Carvalho, diretor da Escola Moderna n.2, do Brás, na época. Alguns documentos de seu arquivo, como o livro intitulado Bento de Siqueira, expressam que Penteado, ainda residente na cidade de Jaú, associou-se ao Centro Socialista Brasileiro, como divulgado pelo seu colega, Bento de Siqueira, em 1905, na imprensa operária jauense. Bento de Siqueira comenta a importância da organização da classe operária, revelando a fundamental influência do socialismo tolstoiano, profundamente defendido por João Penteado. Concluiu seu artigo dizendo: “secundemos os nossos esforços ao Centro Socialista do Brasil, unamos os nossos sentimentos em torno do nosso templo - o Socialismo Tolstoiano - e veremos em breve os nossos esforços coroados dos mais lisonjeiros êxitos”2. Revela-se, nesse contexto, traços da organização socialista de Jaú, da qual João Penteado participou ativamente, e que refletiu um movimento maior, ordenado pela relação entre diversas cidades menores adjacentes e grandes capitais. O Centro Operário de Jaú, em 20 de outubro de 1909, organizou um evento em protesto à morte de Francisco Ferrer, no qual João Penteado fez uma conferência:
Às seis horas da tarde, no largo do teatro, o comício era numeroso. Parecia que todos ansiavam para ouvir os protestos que se iam levantar contra o tremendo delito de lesa liberdade. A essa hora, então, da porta do teatro, falou o professor João Penteado, que deu organização para o fim pelo qual se organizava o comício e censurou fortemente o ato de barbárie praticado por Afonso VIII, fazendo ligeira dissertação sobre o móvel dos conflitos de Barcelona e incriminando o clericalismo e a política espanhola (Recorte Comício Popular - Caderno de anotações de João Penteado, UEIM - UFSCAR).
João Penteado contribuiu também com o jornal anticlerical A Lanterna. Uma série de reportagens, presentes em um caderno de anotações de João Penteado (UEIM/UFSCAR), indica que ele percorreu diversas regiões difundindo as ideias libertárias por meio da propaganda deste jornal. As reportagens são impressões de viagens feitas pelo interior paulista e por Minas Gerais, entre 1912 e 1913, com o propósito de fazer propaganda, conferências e buscar assinaturas para o jornal A Lanterna. As breves notícias mostram também que João Penteado localizava nas cidades visitadas a ocorrência de conferências anticlericais e revolucionárias e a presença de centros ou ligas de propaganda socialista ou anticlerical. A coluna do jornal é apresentada com a chamada: “Em prol do ideal: impressões de viagem. Notas de um peregrino em propaganda pelo interior do estado”. As cidades visitadas, explícitas nos documentos, são Mococa, São José do Rio Pardo, São João da Boa Vista, Poços de Caldas, Espírito Santo do Pinhal, Vila Bonfim, São Simão, Bento Quirino, São Sebastião do Paraíso, Franca, Batatais, Mogi-Mirin, Serra Negra. Em um dos textos, em visita a Ribeirão Preto, Penteado descreveu:
Fui pela cidade a cavar arame para a aquisição do azeite para A Lanterna. Andei como nunca! Aqui recebia uma assinatura, ali ouvia uma desculpa, além de uma conversa fiada. Mas também, de vez em quando, dava com alguns entusiastas, decididos companheiros, cuja palestra demonstrava sua verdadeira simpatia pelo nosso ideal e pela Lanterna (Caderno de anotações de João Penteado. UEIM - UFSCAR).
Ao descrever sua experiência em cada cidade, João Penteado ora fazia observações positivas e elogiosas, ora críticas, relatando sempre as condições da organização operária da cidade. Além da Lanterna, João Penteado escreveu em diversos jornais libertários, como A Terra Livre, A Vida, A Rebelião, Guerra Social, A Plebe, desenvolvendo temas, geralmente, relativos à educação libertária. Outros temas versaram acerca de pontos constantes de denúncia e crítica anarquista à sociedade capitalista, ao dogmatismo, ao militarismo, à guerra, à lei, aos deportados, ao trabalho infantil, à igreja coercitiva, ao clero, entre outros. Mas, a grande referência temática, responsável pela sua identificação no meio libertário, foi, certamente, a educação libertária, racionalista, antidogmática.
Cabe ressaltar que João Penteado defendeu uma educação espiritual tolstoiana, em primeiro lugar, e a prática espiritual orientada à autonomia e ao reconhecimento de outras concepções, cristãs ou não, de mundo místico e religioso. A grande presença de obras de Krishnamurti em sua biblioteca pessoal e o depoimento de pessoas que tiveram contato com João Penteado indicam sua grande admiração pelo filósofo indiano. Antigos professores da escola, ainda vivos e entrevistados mencionam que João Penteado indicava e doava exemplares dos livros de Krishnamurti. Sr. Nelson, antigo professor da escola na década de 1950, amigo de João Penteado, lembra que sempre teve grande liberdade para utilizar sua biblioteca pessoal, mas o único livro que ganhou dele foi o de Krishnamurti.
O arquivo pessoal João Penteado revela em seus detalhes a presença da Escola Moderna n.º1 como prática de um intenso e importante projeto de sua vida, mas que é acompanhado de transformações de maior alcance, na estrutura social, como vislumbra o projeto anarquista. Percebe-se, em excertos de artigos de antigos jornais compilados em seu caderno de anotações, que João Penteado teve precauções com a circulação da autoria de seus textos, chegando a utilizar pseudônimos. Seus textos são assinados por, além das formas autorais João Penteado, João de Camargo, Camargo, pseudônimos diversos, tais como: João Pinto, João Pacheco, João Campos, João Pettinato, Joca Penteado (SANTOS, 2009, p.150). A perseguição, a intervenção no projeto libertário e o fechamento da Escola Moderna n.º 1 e da nº. 2, em 1919, não representou o encerramento da ação de pessoas como João Penteado e da permanência de suas relações com Adelino de Pinho, por exemplo. O Arquivo pessoal de João Penteado apresenta documentos muito importantes, como o pedido de habeas corpus apresentado à justiça. A perseguição às escolas libertárias é, sem dúvida, marcante na trajetória anarquista de João Penteado. Representa tanto a sua exposição pública, perante a acusação e a sociedade, como anarquista, quanto a posterior discrição em suas ações, como provável forma de sobreviver em liberdade, em posse da prática de seu ofício. Foi neste momento, no qual afirmou princípios e os defendeu, que João Penteado demonstrou muitas das suas concepções sobre o anarquismo, bem como sobre certos princípios das correntes anarquistas com as quais mais se identificou, o comunismo libertário, representado em seu discurso sobretudo por Kropotkin e Elisée Reclus, e o anarquismo cristão, figurado por Tolstoi. João Penteado expôs, mediante a violência sofrida com a ordem de fechamento das Escolas Modernas pela Secretaria Geral da Instrução Pública, que seus princípios de mundo e sociedade seriam sempre os mesmos. O pedido de habeas corpus, expedido por seu advogado Luis Quirino dos Santos ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, logo após a ordem de fechamento de 19 de novembro de 1919, revelou o quanto compreenderam como absurda e violenta a ação movida pelo governo paulista contra as Escolas Modernas. João Penteado recebeu do então diretor da instrução pública do Estado de São Paulo, Oscar Thompson, a seguinte ordem, reproduzida no pedido de habeas corpus:
São Paulo, 19 de novembro de 1919. J. A. n. 3239 Sr. João Penteado, Diretor das Escolas Modernas - avenida Celso Garcia, 262, capital.
Tendo sido verificado, pela Secretaria de Justiça da Segurança Pública, que as Escolas Modernas, de que sois diretor, “visando a propagação de ideias anárquicas e a implantação do regime comunista, ferem de modo iniludível a organização política e social do país”, conforme se evidencia, pelos numerosos documentos enviados por aquela repartição a esta Diretoria Geral, hei por bem não só cassar a autorização de funcionamento concedida a vossa escola, a avenida Celso Garcia, 262, a qual, de hoje em diante, sob as penas da lei, está proibida de funcionar, bem como intimar-vos a fechar, do mesmo modo, imediatamente, desde hoje, em caráter definitivo, a Escola Moderna n.º2, que instalastes e fizestes funcionar sob a regência de Adelino de Pinho, a rua Maria Joaquina, n.º13, sem autorização desta Diretoria Geral, e em flagrante violação do artigo 30 da Lei n.º1579, de 19n de dezembro de 1917.
Saudações Oscar Thompson. (Protocolado a página 98 do livro competente)3.
Seu advogado toma esta passagem como manifestação de “processos de pura autocracia, do mais ditatorial absolutismo”, imposto subitamente a João Penteado num momento em que já haviam sido coligidos documentos pela 8ª Delegacia de Polícia que sustentava a acusação. A ação movida contra João Penteado e as Escolas Modernas teve como fundamento e justificativa uma série de documentos coligidos pela 8ª Delegacia de Polícia de São Paulo, por ocasião, principalmente, da explosão de uma bomba ocorrida no Brás, em outubro de 1919, que envolveu o diretor da Escola Moderna de São Caetano e do depoimento de Beneditto Castrucci, pai de um aluno matriculado na escola, que justificou a retirada de seu filho da mesma devido ao suposto comprometimento pedagógico com o anarquismo e com o comunismo. O inquérito em questão remeteu a pontos diversos que poderiam, de alguma forma, justificar o interrompimento do funcionamento das Escolas Modernas. Mas, segundo textos de João Penteado, esses documentos, juridicamente, em nada comprovavam que a escola teria qualquer comprometimento político e ideológico, marcado por um teor revolucionário, na formação dos alunos, como infere a acusação de Castrucci. Em argumento de sua defesa, João Penteado retomou em seu habeas corpus os pontos levantados demonstrando suas inconsistências. A primeira destas diz respeito à forma como foi conduzida a investigação movida contra João Penteado e as Escolas Modernas. Ele não teve qualquer conhecimento, enquanto réu e acusado, de que moviam um inquérito contra sua pessoa e que ele havia sido apurado e sentenciado quando veio a tomar ciência da situação. Deste ponto de partida, João Penteado retomou a acusação de Castrucci fragilizando sua validade por ser ele o único pai de aluno que se manifestou contra a escola e por ter ele indisposições pessoais com João Penteado, como ele mesmo explicita:
Considerando que nos referidos autos apenas consta a declaração de um dos pais dos alunos, que é da do Sr. Castrucci, e essa mesma sem nenhum valor jurídico, por partir de pessoa despeitada comigo e levada a depor o que absolutamente não é real, tendo em mira a manifesta intenção de prejudicar-me, como posso dar sobejas provas, não só na parte em que se refere ao motivo da retirada de seu filho, como também quando fala com referência ao ensino ministrado ao mesmo na escola ao meu cargo, a qual deixou de frequentar, não pela razão alegada, mas por ter brigado com seu colega, fora da aula (como antes já lhe acontecera, como aluno do Grupo Escolar do Belenzinho) e eu não lhe haver manifestado preferência, que talvez esperasse, em favor de seu filho, prometendo a eliminação do aluno com que ele brigara; Considerando que, com as acusações do Dr. Castrucci, que me eram desfavoráveis, deviam também ser tomadas por termo, igualmente, as que me fossem favoráveis, como as do Sr. João Ribeiro, pai de dois de meus alunos, estabelecido na vizinhança e pessoa de todo o conceito social, que, chamado à 8ª Delegacia, depôs que seus filhos, na minha escola, leram sempre nos mesmos livros das escolas oficiais e que jamais lhe havia constado que lhe fossem ensinadas doutrinas anarquistas ou comunistas (Arquivo Pessoal - Arquivo João Penteado. CME /FEUSP)4.
João Penteado coloca em questão a acusação de Castrucci sobre as Escolas Modernas propagarem ideias anárquicas e promoverem a implantação do regime comunista, na Petição do habeas corpus. Ele supõe que a acusação de a escola objetivar a implantação de um regime comunista por meio de ideias anárquicas seria uma contradição, estabelecendo uma reflexão sobre os conceitos de anarquismo e comunismo conforme seus ideais e revolucionários. Dessa forma, aponta o desconhecimento do acusador com relação ao que seria de fato anarquismo e comunismo, sendo ela, portanto, infundada. João Penteado retomou essa discussão em um texto dirigido ao ministro Miguel José de Brito Bastos, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, intitulado A Escola Moderna: um caso curioso, pertencente ao seu Arquivo Pessoal, no qual explicita a “ingênua” ou “inocente” acusação. Neste texto, Penteado relata que participou de uma sessão extraordinária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que se pronunciaram sobre o encerramento da Escola Moderna n. 1. O texto teve o objetivo de reparar e retificar algumas afirmações sobre a Escola Moderna, conforme escreve Penteado: “asserções tais que, embora inconsideradas, não deixam todavia, de precisar de sérios reparos, porque ferem de modo profundo, a minha suscetibilidade, o meu brio e a minha dignidade de homem emancipado e livre”. Resumidamente, conforme o texto “A Escola Moderna: um Caso Curioso”, ele então destacou três asserções que precisavam de reparo: que a Escola Moderna ensinava a prática do roubo, fazia propaganda anarquista e ensinava o relaxamento dos costumes e a prostituição. Coube a Penteado esclarecer, novamente por meio da palavra, que os anarquistas eram contrários ao roubo, que possuíam um estudo profundo de suas defesas filosóficas e sociais e que refletiam significativamente sobre os costumes e as composições familiares praticadas na sociedade. Assim, ele buscou expor um reparo teórico sobre o anarquismo, com o cuidado desmistificador, que atentasse às suas proximidades com o comunismo:
O comunismo e o anarquismo são duas doutrinas que não se repelem, mas que têm grande afinidade entre si, apenas diferenciando do anarquismo, às vezes, devido à tendência religiosa ou legalitária de seus adeptos, que podem pertencer a esta ou aquela escola filosófica.
Mas negar-se que o anarquismo é comunista é coisa tão impossível quanto tapar o sol com a peneira.
O anarquismo é a mais alta, a mais sublime e dignificante expressão do ideal comunista concebido e divulgado pelos seus grandes apóstolos tais como Tolstoi, Kropotkin, Eliseu Reclus, A. Hamon, Jean Grave, Sebastian Faure e tantos outros, cuja obras científicas e literárias constituem atestado de superioridade moral dos ideais anarquistas sobre todos os outros princípios filosóficos, políticos e sociais até hoje pregados entre os homens (Arquivo Pessoal - CME/FEUSP)5.
Penteado reforçou nesta oportunidade, de maneira enfática, suas referências de anarquismo, referências estas extremamente difusas nos meios pedagógicos racionalistas e libertários, e dialogadas com a ideia de comunismo que está pregando, que é o comunismo libertário. Cabe destacar aqui que o debate acerca da inconciliabilidade de anarquismo e comunismo se concentrava mais nas percepções sobre o Estado e os meios revolucionários, do que a centralidade do partido como meio de organização. Mas é fundamental reconhecer que Penteado destaca o desconhecimento da acusação acerca de alguma discussão básica sobre anarquismo. O que também cabe à sua percepção de família, apurada nos ideais do anarquismo:
Nós, os anarquistas, queremos a família, mas não a da maneira mantida, como vemos hoje nesta sociedade, onde, para a prova da degeneração desta instituição, para o escárnio das dores de milhares de corações que prematuramente se fecham a todas as ilusões da vida deixando morrer o fruto dos seus amores e a mais sorridente esperança de felicidade, abrem-se, de par em par, as portas dos estabelecimentos de “rendevous” e a roda dos enjeitados que, como aqui nesta opulenta capital, de tempo em tempo precisam de ser aumentadas para poderem abrigar o número de inocentes vítimas que dia a dia se avoluma e crescem, reclamando a atenção dos senhores legisladores que, com a panacéia da lei, jamais poderão combater o mal-estar que nos aflige neste século.
O ideal de família, na Escola Moderna, merece, como sempre, a mais elevada consideração e respeito. E dizendo isto, acrescento mais que a minha existência, desde a infância, é o exemplo vivo desse amor que reputa o mais sagrado, o mais nobre, o mais dignificante, apesar das dificuldades que tenho precisado vencer para o cumprimento desse dever, que assumi para comigo mesmo, desde a idade de 14 anos, quando órfão de pai tomei a direção de meu lar que se compunha e mãe e quatro irmão menores.
E a minha condição de celibatário até hoje, com 42 anos de idade, deve-se a esse mesmo amor de família pela qual sacrifiquei os prazeres da juventude e parte das ilusões dessa ridente quadra da vida.
Isso demonstra que se trata de visões sobre família, Estado, sociedade e escola muito discrepantes, mais que antagônicas, estão distantes em relação às próprias interações éticas, científicas, filosóficas com a sociedade. Além da acusação de Castrucci, o inquérito questionou uma correspondência escrita em 1917 por João Penteado para um companheiro, não explicitado por ele no habeas corpus, na qual são usadas expressões relacionadas à escola como, por exemplo, “nossa obra de propaganda”. João Penteado alega que se referia ao ensino racionalista, que interessava tanto aos anarquistas quanto aos livres pensadores. Semelhante questionamento foi feito com relação ao Boletim da Escola Moderna, presente no inquérito, que, além da questão da propaganda, foram postas em causa as festas realizadas no saguão da escola. João Penteado informou que o Boletim da Escola Moderna, ainda que não fizesse, relativamente, propaganda anarquista, não era, de forma alguma, escrito por alunos e que as festas eram realizadas de portas abertas, a todos que quisessem comparecer e acompanhar. Mas, um assunto de maior peso presente no inquérito dizia respeito à relação da Escola Moderna n. 1, dirigida por João Penteado, e a Escola Moderna de São Caetano, fundada em dezembro de 1918, pelo Sindicato de Resistência dos Laminadores de São Caetano e dirigida por José Alves. Em outubro de 1919, momento em que anarquistas estavam participando da mobilização junto aos operários para as greves, uma ocorrência grave envolveu diretamente José Alves e mais três anarquistas, Joaquim dos Santos Silva, Belarmino Fernandes e José Prol, mortos com a explosão de uma bomba em uma casa na Rua João Boemer, 305, no bairro do Brás, em São Paulo. Esse fato foi determinante na ação movida contra João Penteado e as Escolas Modernas. Essa ocorrência proporcionou à Diretoria Geral da Instrução Pública a justificativa despótica para o encerramento dessas escolas. João Penteado, no habeas corpus, procurou se defender argumentando que sua escola não mantinha correlação com outras, que a Escola de São Caetano não era filial da Escola Moderna n.º1, nem João Alves colaborador da mesma. Assegurou ainda que não havia motivos para ser tomado como cúmplice da tragédia simplesmente por ter contribuído com a instituição da Escola Moderna de São Caetano, emprestando móveis escolares e interessando-se pela colocação de José Alves na direção da mesma. Este teria sido eleito para a direção da escola, como afirma João Penteado, por demonstrar capacidade uma vez que era um operário estudioso, além de aluno de engenharia da Escola Internacional. Mas as tentativas de João Penteado foram negadas e as escolas encerradas. Em um texto presente em seu caderno de anotações, intitulado “Ainda à propósito das Escolas Modernas: Aniversário de 1º ano de seu encerramento”6, João Penteado manifestou discordância sobre a acusação de a escola ensinar que “os ricos são ladrões que vivem a explorar o suor dos trabalhadores”, uma vez que existia, constitucionalmente, um direito chamado liberdade de ensino. Esclareceu que a escola funcionou sob aprovação da Diretoria Geral da Instrução Pública e que foi absolvido por um dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas, o habeas corpus foi negado pelo Tribunal de Justiça do Estado e foi relegado ao Supremo Tribunal Federal, que, por fim, optou pelo fechamento das escolas. Dois ministros se distinguiram positivamente na defesa do caso alegando liberdade de ensino: Pedro Miebelli, e Lins de Albuquerque; estes reiteram a constitucionalidade da liberdade de imprensa, de palavra e de pensamento. Todavia, a justificativa do Supremo Tribunal Federal era de que as escolas eram subversivas, o ensino era tendencioso e representava um perigo para o Estado. Como educador comprometido com o anarquismo e com a proposta educacional libertária desde a sua fundação na cidade de São Paulo, João Penteado não encontrou meios de fazer sobreviverem as Escolas Modernas, mas nunca abandonou a educação e sua forma de agir e pensar, de acordo com suas concepções pedagógicas e humanas. A documentação evidencia a constante posição política e filosófica João Penteado, como se nota em seus escritos: “a Escola Moderna apenas poderá ter, de fato, um grave defeito para merecer a perseguição que se lhe move: é ser, como já disse, um estabelecimento racionalista, livre pensado e ser dirigido por um anarquista” (A Escola Moderna: um caso curioso). Esta ocasião referendou a posição de João Penteado e a ênfase na questão da liberdade de ensino:
Haja vista essa cidade, que é a capital do mais importante estado da federação brasileira. Temos falta para a educação do povo, e no entretanto, fecharam sem mais nem menos, as nossas Escolas Modernas. E o motivo? A razão desse fato reprovável e arbitrário? Querem sabê-lo? O governo as fechou porque nelas não se ensinavam as mentiras convencionais dessa sociedade degenerescente, que está prestes a dar os últimos suspiros no esgotamento franco e progressivo de suas energias. (...) O governo tem medo e o medo é mau conselheiro. Foi o medo que o fez agir(...). O fato de o professor em questão ser um anarquista não constitui motivo para que sua escola seja fechada, pela violência do governo paulista, visto a constituição brasileira garantir a liberdade de ensino (As Escolas Modernas: um caso curioso. Arquivo João Penteado. CME/ FEUSP).
O educador não se calou completamente diante da ação repressiva do Estado após o fechamento da escola; o que se nota, em 1920, é que ele retomou suas atividades escolares em um novo espaço, uma escola que recebeu o nome de Escola Nova. As pistas do modelo escolar proposto pela Escola Moderna estão nos documentos gerados pelo funcionamento desta nova escola e das demais, de forma que há muitas informações importantes a se analisar. Por exemplo, algumas práticas foram discretamente modificadas, como a produção do Boletim da Escola Moderna, publicação comprometida com a difusão do ensino racionalista e que foi sucedida da publicação de alguns números do Boletim da Academia de Comércio Saldanha Marinho, mas ocorre a interrupção das comemorações de datas como a Comuna de Paris e a morte de Ferrer. Manteve a produção do jornal O Início e muitas práticas do ensino racionalista, como passeios e saídas de estudo, métodos intuitivos e práticos, associados às percepções progressistas das ciências e da educação, como a prática da coeducação sexual e social, da comemoração de aniversário da escola com a mesma data de nascimento da Escola Moderna, em 13 de maio de 1912. Além disso, há que se destacar a figura central de João Penteado, como diretor, que, provavelmente, em suas ações cotidianas correspondia aos princípios anarquistas que são certamente intransponíveis. Após esse fato, tornou-se mais discreta a publicação de textos de sua autoria na imprensa política anarquista, mas manteve-se frequente a propaganda no jornal A Lanterna referente ao funcionamento da Escola Nova, entre 1920 e 1921. No jornal A Plebe, de quinze de outubro de 1921, há uma reportagem em homenagem à morte de Francisco Ferrer, chamada “Treze de Outubro”. O mesmo jornal, em 30 de julho de 1921, também traz uma reportagem de Adelino de Pinho, diretor da Escola Moderna n.º2, com um pseudônimo que usava frequentemente, Pinho de Riga, com o título “União e Instrução: exórdio de uma palestra”. Jacob Penteado (PENTEADO, 1965, 285) falou sobre João Penteado, após o caso do fechamento da Escola Moderna, em suas memórias sobre o Belenzinho:
Quando eclodia um movimento grevista qualquer, a primeira pessoa a ser presa era, inevitavelmente, o professor Penteado, que, na maior parte das vezes, ignorava completamente o fato. Suas ideias provêm do amor que dedica à humanidade, a quem deseja ver livre e feliz, sem amos nem opressores. Espírito boníssimo, incansável trabalhador, criou esse belo monumento educacional, instalado no antigo palacete do capitalista Guedes, que mandou construí-lo sob o modelo de um que vira na Europa, numa de suas viagens ao velho continente. Da pequenina Escola Moderna, o professor Penteado passou à Academia de Comércio Saldanha Marinho, e Ginásio, na rua de mesmo nome, e daí, para o atual e magnífico prédio, já era pequeno para o enorme número de alunos que o procuram.
Com a criação da Academia de Comércio Saldanha Marinho, que substituiu a Escola Nova em 1923, João Penteado prosseguiu suas atividades como educador, criando reconhecimento no bairro Belenzinho, sendo sua escola cada vez mais conceituada devido à crescente valorização, na época, dos cursos de comércio. Por outro lado, a militância anarquista adquiriu tonalidades e resistências. João Penteado prosseguiu com uma escola de comércio que se tornou tradicional no bairro do Belenzinho; um diretor anarquista. Interessante particularidade. Com projeto educacional explicitamente comprometido com a transformação social, como propunha Ferrer, a escola de comércio atendia uma parcela da população em condições sociais diversas e oferecia oportunidades aos menos favorecidos. Se na primeira ocasião ele trabalhou pela propagação do ideal de sociedade, coligado a uma rede de anarquistas e livres pensadores, nesta segunda ele trabalhou, cotidiana e silenciosa, propagando da mesma forma seus ideais e relacionado da mesma forma com os muitos meios de sempre. Os anarquistas velhos amigos com quem mantém correspondências a vida toda, como se nota em seu Arquivo Pessoal; os meios religiosos espíritas, escrevendo nos jornais espíritas Nova Revelação e O Natalício de Jesus; atuou como diretor da Associação Promotora de Instrução e Trabalho para Cegos por vinte anos; também travou muitos laços de amizade com a Sra. Marina Cintra, chefe da Inspetoria Seccional do Ensino Secundário em São Paulo e fundadora da Instituição Cultural Colméia, em São Paulo, em 1942, com filial em Jaú, cidade natal de Marina Cintra.
A Saldanha Marinho, como era chamada a escola, passou a ser palco de tradicionais comemorações de datas cívicas, como o Sete de Setembro e 15 de Novembro, mas manteve a comemoração do Primeiro de Maio e o Treze de Maio. A partir de 1944, a escola passou a oferecer formação militar, de acordo com a lei que instituiu o ensino pré-militar nos cursos ginasial e comercial básico. As aulas eram oferecidas aos sábados e a formatura dos alunos era comemorada com solenidades, como a ocorrida em 1946 em comunhão com a homenagem a Tiradentes7. Ainda em 1944, um documento comprova uma doação de livros efetuada por João Penteado à biblioteca do Centro de Instrução Militar do Quartel da Força Policial de Barro Branco, dentre os quais se encontrava uma obra de Tolstoi. Outro fator interessante foi a prática de um cine-educativo, ocorrida na escola durante a década de 1930 e 1940, a qual se exibiam filmes educativos, aos sábados, com entrada gratuita, para alunos da escola e para a comunidade. O Arquivo João Penteado, em sua parte institucional conserva rolos de filmes utilizados em exibições didáticas na escola, mas há também filmagens de eventos, com situações caseiras da escola. A produção do jornal O Início foi mantida até 1958, seguindo, a princípio, o mesmo formato e proposta: propaganda da escola, dos eventos ocorridos, relato de passeios e saídas de estudo e publicação de textos escritos pelos alunos. O jornal também noticiava as exibições do cine educativo, informava sobre o funcionamento da biblioteca e relatava a circulação de professores admitidos na escola e a constante presença dos inspetores. Até 1935, foi mantida também a publicação de um Boletim da Academia de Comércio Saldanha Marinho8, no qual se veiculava a propaganda da escola, em pequenos textos apoiados em sua tradição (escola oficializada e legalizada e no oferecimento de oportunidades variadas de seguimento profissional) como indica:
Há muitos alunos que já terminaram o curso de grupo escolar e pretendem prosseguir em seus estudos, a fim de melhor poderem triunfar na vida. Nesse caso estarão também algum de vossos filhos e vós, com certeza, desejareis melhorar-lhes o futuro, fornecendo-lhes uma profissão ou um título que os habilite para a conquista do bem estar e felicidade de que são dignos9.
Supõe-se que essas práticas foram mantidas no currículo e no cotidiano escolar mediante a direção de João Penteado. Sua postura, retratada por familiares, uma ex-aluna e dois ex-professores10, condiz à suposição de que João Penteado fora anarquista em sua vida e atitudes, tornando-se a escola um espaço no qual praticava princípios e os difundia de forma generalizada, mas não os definia. Esses princípios seriam fundamentalmente a solidariedade, a cooperação, o amor pela humanidade, acompanhado da defesa do internacionalismo e da educação. Entre 1959 e 1962, o Sr. João da Academia, como ficou conhecido, tinha pouco contato tinha com os alunos, não só pela idade avançada, mas também pela completa surdez. O Sr. João morava em uma casa anexa, cuja entrada era comum ao colégio. O fato de morar e viver no colégio reforça a construção de uma história arraigada às mudanças sociais e às situações coletivas que as instituições que criou foram palco. João Penteado não passou por essas escolas, ele as criou e morreu nelas, concebendo e enterrando um projeto perseguido e supostamente encerrado, somente com o final da sua vida. De 1965 a 2002 a escola ainda seguiu em funcionamento no Belenzinho, tamanha era sua adesão e importância na região, mas o arquivo institucional da escola neste período demonstra indícios de que a instituição perdeu um grande, mas não eterno homem. Não eterno porque a escola seguiu funcionando pelas mãos de pessoas que conheciam muito João Penteado, pela afeição familiar, mas que não praticavam a sua orientação política. Em São Paulo, as iniciativas para a preservação do anarquismo se deram com base na mesma rede de relações da qual fez parte João Penteado, que promoveu a instalação das Escolas Modernas, subsidiou a publicação dos diversos periódicos libertários paulistanos e alavancou a Greve Geral de 1917. Muitos de seus companheiros que figuram em suas correspondências de João Penteado remetem a alguns integrantes dessa rede de relações, um grupo de anarquistas, que persistiu em comunicação ao longo dos anos como Adelino de Pinho, Edgar Leuenroth, Pedro Catalo, Pedro Matera, João Valente, Rodolfo Felipe, Zeferino Oliva, João Oiticica, e outros. Em 1933, foi fundado o Centro de Cultura Social (CCS), constituindo importante um núcleo de fortalecimento do movimento libertário na capital paulista. Esse espaço proporcionava a periódica promoção de calorosos debates, além de conferências, cursos, festivais, atos comemorativos e de protesto, mediante a iniciativa de diversos ativistas anarquistas. Este espaço foi mantido em funcionamento juntamente com o jornal A Plebe, em um sobrado localizado na Rua Quintinho Bocaiúva, n.º 80, no Brás. Na década de 1930, também funcionou no mesmo espaço A Federação Operária de São Paulo (Fosp), de caráter anarco-sindicalista, o que determinou, nessa primeira fase, o contato mais direto com trabalhadores e com o sindicalismo. Essa característica foi alterada mediante a perseguição política aos anarquistas e ao movimento operário, o que repercutiu na interrupção da Fosp, da Plebe e do CCS. Com o fim do Estado Novo e a forte repressão voltada à Fosp (que teve de mudar de sede) retomou-se as atividades do CCS (reaberto por Jaime Cubero) e do jornal A Plebe, em 1945, mantendo a promoção de práticas educativas, culturais e promovendo o contato entre libertários, profissionais e famílias interessadas. João Penteado e Adelino de Pinho, que contribuíram com a fundação e manutenção do CCS, são lembrados por Jaime Cubero, anarquista histórico e secretário geral do CCS
Conheci João Penteado e Adelino de Pinho quando o Centro de Cultura Social retomava suas atividades em 1945, após a queda da ditadura getulista. Eu, com dezoito anos, e os dois com idade avançada, participando de reuniões, palestras, excursões e festas. Eles falavam abordando temas de educação, área na qual desenvolveram o melhor de seus esforços nos longos anos de militância libertária. Ambos desempenharam papel destacado no desenvolvimento e na implantação das Escolas Modernas e racionalistas que o movimento anarco sindicalista, e libertário em geral, incentivou em todo o Brasil. A escola Moderna nº1 servia de paradigma para as outras11.
João Penteado, em diversas correspondências que compõem seu Arquivo Pessoal, mencionou atividades ocorridas no Centro de Cultura Social, caracterizando-o como um espaço comum desse antigo grupo de anarquistas, no qual se reuniam com frequência: “O nosso Centro Cultural Social vai indo regularmente. De vez em quando há aqui alguma festa em que a gente se encontra” (AJP/CME). Outro local instituído pelo grupo de libertários foi a Nossa Chácara, em São Paulo, em 1944, com a intenção de se reunirem em um espaço de fácil acesso, que fosse, porém, mais afastado. Edgar Rodrigues identifica a Nossa Chácara como um local onde funcionava clandestinamente o movimento anarquista brasileiro nessa época. João Penteado, em uma correspondência remetida a Adelino de Pinho, na época, vinte de maio de 1958, residente em Portugal, faz menção à Nossa Chácara:
Os companheiros aqui [São Paulo] realizam, de vez em quando, algum festival de propaganda que dá motivo para a gente estar em contato com os camaradas, além de divertir-se com o interessante espetáculo. O dia 1º de maio passou quase em branca nuvem. Pouca coisa se fez, apenas uma comemoração na nossa sede do Instituto de Cultura Social e na Nossa Chácara.
A Nossa Chácara surgiu da necessidade de criação de um espaço, no qual se realizassem as festas e encontros libertários. Fundada em um terreno doado por um anarquista, na região do Itaim, a Nossa Chácara representou um importante espaço de autogestão e organização anarquista, voltado ao objetivo comum de se promover vivências libertárias. Edgar Leuenroth explicitou alguns objetivos:
De fato, Nossa Chácara foi criada com o objetivo de ser um prolongamento do lar de cada militante libertário, de simpatizantes da causa ácrata e de amigos de militantes que desejam a sua convivência, constituindo-se, assim, um ambiente familiar mais amplo, para o exercício de um convívio mais racional, mais humanístico - como aspiram e pelo qual lutam os anarquistas. Com a criação desse agradável recanto campestre, os seus participantes podem ali passar, com sossego e despreocupação, conjuntamente com suas famílias, fins de semana, períodos de férias, bem como participar de refeições coletivas e de festivais. Reunindo-se o útil ao agradável, consegue-se, por esse meio, um proveitoso resultado educacional, com aquele convívio amigável, determinando trabalhos em comum, com a execução de iniciativas espontaneamente tomadas por participantes, incluindo jovens e crianças, e constituindo, ainda, ambiente propício para criar novas e reforçar antigas amizades. (...) Já ficou dito que essa iniciativa foi ideada e está sendo mantida como instrumento de uma experiência da prática de convivência anárquica, baseada nas normas do livre acordo e do apoio mútuo. Experiência, atente-se bem, de vida libertária praticada dentro do mundo de compressão da sociedade burguesa e com material humano formado no ambiente do regime capitalista, em luta permanente para conseguir libertar-se das corrosões do meio vicioso e preparar-se para um mundo novo (LEUENROTH, 1963, p. 142).
Assim, com base em um projeto educacional fortalecedor do movimento libertário, o espaço representou também um local onde os anarquistas exerceriam suas práticas de convivência, em comunhão, protegendo-se da perseguição política, ainda constante em plena queda do Estado Novo getulista e entrada do governo Dutra em 1945. A proximidade entre eles é notada no Arquivo Pessoal de João Penteado também por meio das correspondências, muitas delas trocadas entre ele e o diretor da Escola Moderna n. 2 Adelino de Pinho, mas também de outros companheiros como Zeferino Oliva, Rodolfo Felipe, Pedro Catalo, entre outros. Nesta seguinte reprodução, Pinho se remete a João Penteado com um certo pesar diante do tempo e suas mudanças:
Caríssimo Penteado: A sua saúde e a dos seus manos D. Sebastiana e Sr. Joaquim é o meu mais instante e profundo desejo; eu estou gordo e quem me vê pensa que sou cavalo de mil libras, mas ai de mim! É só a casca, o cerne deteriorou-se, enferrujou, pulverizou-se. A caduquice aproxima-se a todo vapor: as pernas vergam, à vista míngua, o coração enfraquece, a memória sumiu-se há muito dos meus domínios onde só existe confusão, modorra, esquecimento; e a inteligência coitadinha, que sempre foi fraca, raquítica, apoucada, agora então está decidida a entregar os pontos, a render-se desarmada como se acha dos aprestos necessários ao seu natural funcionamento. Sei que esta carta não o vai satisfazer, mas quando é que isso já aconteceu? A escola agora não é risonha e franca como me aparecia quando eu era menino e desejava transpor todos os cumes, galgar todas as serranias, palmilhar todas as estradas, subir todas as árvores, comer de todos os frutos, viajar por todos os países a procura de panoramas, de lições, de experiências que me ajudassem a compreender o mundo e a vida, para poder desempenhar o meu papel na existência em meio à humanidade. Mas as lições que colhi e que me esforcei até ao esgotamento por espalhar, propagar e difundir, ninguém as quis ouvir, raças de ouvidos moucos, surdos de nascença a todos os chamamentos de libertação e de combate - só vive em função de três necessidades orgânicas: comer, digerir e sexo. O resto não lhe interessa. Pois que seja: sua alma sua palma (AJP/CME).
Adelino de Pinho viveu por muito tempo em Poços de Caldas, como relata Antônio Cândido12, que conviveu com ele durante as décadas de 1940 e 1950. Conhecido na região como “o professor”, manteve lá uma escolinha por muitos anos. Zeferino Oliva, em 1950, era proprietário de uma farmácia. Rodolfo Felipe, administrador do jornal A Plebe, na década de 1920, encontrava-se estabelecido em Cambuí, na década de 1950. De 1920 até 1958, João Penteado seguiu na direção da Academia de Comércio Saldanha Marinho. Entre 1958 e 1965 continuou, como foi dito, residindo numa casa dentro do próprio prédio da escola, podendo participar, assim, de toda a rotina escolar; respondendo ainda, enquanto pode, como diretor geral. O local onde passava a maior parte de seu tempo, nessa época, era a sua biblioteca pessoal, na qual guardava além de seus livros, seu passado de luta pela educação e por seus ideais políticos e humanos. Faleceu em 31 de dezembro de 1965.
Brasileiro, professor e anarquista! João Penteado militou em São Paulo onde viveu e faleceu. Sua atividade esteve praticamente voltada para a educação e o ensino anarquista. Não “compreendia” uma sociedade nova sem uma nova educação e uma instrução que despertasse e revelasse nas crianças e nos jovens todas as suas potencialidades intelectuais, artísticas e a solidariedade humana. Quer na imprensa onde colaborou, como “A Plebe”, “A Lanterna”, “Boletim da Escola Moderna”, São Paulo do qual foi fundador e diretor e outros, quer na “Escola Moderna nº 1” que fundou numa modesta sala, na Rua Saldanha Marinho, no Bairro Belém, lá pelos idos de 1912 e fechada por ordem judicial em 1919, dando lugar mais tarde a Escola de Comércio Saldanha Marinho de que foi diretor, João Penteado colocava sempre antes da revolução social a premência de uma Educação Nova! (...) João Penteado escrevia como falava e falava como escrevia. Coerente, sempre, não faltava às reuniões e aos congressos dos anarquistas realizados em 1948 e nos anos subsequentes em “Nossa Chácara”. Tampouco descuidava de sua contribuição monetária para ajudar na manutenção do Centro de Cultura Social e nas despesas com a publicação dos jornais anarquistas. (...) Noticiando o seu falecimento o anarquista e diretor de “Dealbar”, Pedro Catalo escreveu: “Pouca gente sabe que aquele imponente edifício que enche de orgulho o bairro Belém, teve seu começo numa modesta sala da Rua Saldanha Marinho, lá pelo ano de 1912, como Escola Moderna nº. 1 ‘Francisco Ferrer”. Ostentava esse nome em homenagem ao fundador da Escola Racionalista. Francisco Ferrer y Guardia, fuzilado na Espanha a mando do Clero dominante naquele país, no ano de 1909. Ainda devem existir nesse Colégio, como perpétua recordação da obra de Francisco Ferrer, dois armários com a seguinte inscrição “Escola Moderna nº1” (RODRIGUES, 1998).
Considerações finais
Os armários da Escola Moderna nº1 e Escola Moderna nº2 ainda existem e fazem parte do conjunto de peças doadas pela família de João Penteado ao Centro de Memória da Educação, da FEUSP, estando expostos para visitação. Compartilham com outros móveis e objetos escolares o ambiente de um pequeno museu escolar, composto por importantes peças museológicas de acervos escolares que fazem parte do Centro de Memória da Educação. Assim, é possível compreender um lugar como este como espaço de guarda documental, mas também de experiências de conhecimento e pesquisa. O Arquivo intitulado João Penteado carrega a extensão de sua história, projeto e realização, o que torna coexistente a memória pessoal e a História da educação anarquista em São Paulo. São muitos documentos que expressam uma longa vida escolar e uma longa vida para a escola. Trata-se, assim, de um valioso universo documental que referenda a prática anarquista preocupada com a memória do próprio movimento. Se era importante ampliar a mudança social pela palavra, de igual importância seria a resistência dessa história diante das lacunas do tempo. Daí o destaque para esses armários escolares de madeira, nos quais estão entalhados os nomes das escolas, que resistem como monumentos. E considerando os caminhos que percorreram estes armários, nota-se que vieram do movimento anarquista para a Universidade, vinculando espaços e esferas sociais. Partindo da imagem desses objetos, há que se destacar, nos dias de hoje, dois contextos que estudam sistematicamente a educação anarquista e se interseccionam em muitos momentos, a academia e o movimento anarquista. A organização de um acervo, tal como este que se analisa neste texto, agrega um conjunto de pesquisas, como consequência da sua atividade. Os trabalhos acadêmicos sobre educação e anarquismo são férteis nos últimos 40 anos. Vale lembrar o ineditismo do texto publicado em 1978 por Maurício Tragtenberg, Francisco Ferrer e a Pedagogia Libertária, na Revista Educação e Sociedade, Campinas. O movimento anarquista hoje tem o importante papel de fazer um trabalho em torno da conservação documental, em centros de cultura, federações, associações e bibliotecas anarquistas regionais e internacionalistas, que efetuam trabalhos amplos de divulgação da memória anarquista e de suas práticas coetâneas. Cabe mencionar, em São Paulo, o Centro de Cultura Social, ainda existente, cuja história contribui para a difusão e estudo do anarquismo no Brasil, o trabalho editorial de grupos como a Editora Imaginário, a Editora Achiamé, a Biblioteca Terra Livre, entre outras iniciativas. Pode-se sugerir que estudos sobre anarquismo e educação libertária, teoria, prática e história seguiram em estudo no meio anarquista de maneira perene, cabe mencionar o exemplo da permanente pesquisa de Edgar Rodrigues, que é lembrado neste texto pela obra Os Companheiros.
Nesse sentido, a história das Escolas Modernas no Brasil, e mesmo em São Paulo, é um terreno de grande fertilidade, e a guarda documental efetuada por Universidades, mas também pelos meios sociais que conservam seus documentos, como os contextos familiares ou o movimento anarquista, sustenta importantes possibilidades de conservação e incursão em seus detalhes históricos e pedagógicos. Cabe supor também que quanto mais a academia produz pesquisas inéditas neste contexto discursivo, mais a história destas escolas poderá percorrer os manuais de História da Educação ou de Didática, as Metodologias e os Fundamentos Pedagógicos nos cursos de formação de professores. O estudo das práticas pedagógicas acerca do novo e da mudança metodológica e teleológica é constante na história da Pedagogia. A ideia de renovação inspira o processo de desconstrução e reconstrução de práticas escolares que caracterizam e movimentam a história da educação e da pedagogia, desde que a escola se movimenta dentre as transformações da sociedade, o que aparenta ser permanente. Após o século XIX, a forma escolar está ancorada em teorias, discursos e práticas sociais impregnados do ideal de modernidade. Poder-se supor que este processo representa um movimento pendular na história da educação, em seu constante exercício de rever o novo. Cabe aqui lembrar que as mudanças educacionais se alimentam da (re)forma de matrizes ideológicas, epistemológicas, filosóficas e políticas, que alicerçam os discursos e práticas pedagógicas. Mas que novo este período concebe e que antigo ele (re)nova? Busca-se assim questionar o olhar regular, linear e progressivo sobre a ideia de passado e educação, considerando certo percurso aberto por este arquivo e suas possíveis representações na história.