Introdução
Discutir a formação de professores no Brasil implica pensar as dimensões continentais do nosso país e o modo pelo qual os problemas assumem proporções distintas nas diferentes regiões, configurando intensas desigualdades sociais, econômicas e educacionais. Kramer (2001) compreende que a distribuição da cultura é condição para a democracia, sendo essencial que os professores se constituam leitores para poderem viabilizar a entrada dos estudantes na rede da leitura. Por essa lógica, a formação dos professores, seu acesso ao mundo da cultura, suas vivências e experiências, seu letramento literário são condições para as mediações de leitura que irão produzir.
Ouvindo professores e professoras e retomando seus processos formativos entre os anos 1920, 1930 e 1940, Sônia Kramer identificou forte presença da literatura, a partir de três dimensões constitutivas das práticas escolares - a narrativa, a leitura e a escrita. E, pela rememoração das vivências e experiências, a autora constatou o quanto, neste período, o ler e o escrever se constituíram uma prática inerente à docência. Para estes sujeitos, “não era possível ser professor sem ler e escrever” (KRAMER, 2001, p. 165). Para docentes formados nas décadas de 1940, 1950 e 1960, a leitura também é contemplada, sendo essencial o papel exercido pela escola de formação - pela oportunidade da leitura literária e da presença de poetas, romancistas e contistas como seus professores (KRAMER, 2001).
Estudos de Batista (1998) e Britto (1998), que analisaram práticas leitoras de professores na década de 1990, indicam um cenário que, de certa forma, contrapõe-se aos achados de Kramer (2001). Para estes autores, os professores não podem ser pensados como não leitores, dado que ler se constitua exigência de sua atividade profissional. No entanto, a formação docente “(...) não foi suficiente para criar uma relação não escolar com a leitura, não foi suficiente para promover o domínio das formas prestigiadas de apropriação da cultura legítima” (BATISTA, 1998, p. 57).
O professor é um “leitor escolar” (BATISTA, 1998, p. 31), é um “leitor interditado” (BRITTO, 1998, p. 78) - o que implica dizer que, enquanto produto de uma sociedade letrada, acessa a escrita e lê diferentes tipos de textos, mas não apresenta as características comuns aos leitores plenos.
O fato é que, para boa parte dos professores, a prática de leitura limita-se a um nível mínimo pragmático, dentro do próprio universo estabelecido pela cultura escolar e pela indústria do livro didático. Sua leitura de textos “literários” é a dos livros infantis e juvenis ou textos selecionados e reproduzidos pelos autores dos didáticos; sua leitura informativa é dos paradidáticos; seu conhecimento técnico reduz-se às definições do próprio livro didático; seu universo de conteúdos necessários coincide sempre com o do livro (BRITTO, 1998).
Considerando Batista (1998) e Britto (1998), podemos afirmar que os professores apresentam limitações para ler textos literários, exercer mediações de leitura e contribuir para a formação de alunos leitores.
Albergaria (2000) entende que a formação escolar implica a necessidade do letramento literário, dado que o leitor de literatura seja mais completo e mais apto a se tornar um cidadão pleno. O texto literário abre espaço para a negociação de sentidos, provoca reflexão e estranhamento, contém um desafio maior do que outros textos, podendo conduzir a outros conhecimentos e conteúdos (ALBERGARIA, 2000).
Lajolo (2001) entende ser necessário discutir a formação de leitores na interlocução entre estudantes, professores e livros literários, uma vez que há um desencontro entre a literatura e os jovens. E este desencontro explode na escola como sintoma de um desencontro maior - as dificuldades de leitura e escrita dos professores investidos da função de ensinar (LAJOLO, 2001).
Compreender o modo pelo qual o professor se encontra investido da responsabilidade de formar leitores implica, portanto, recuperar interfaces e relações entre leitura, literatura e escola. No Brasil, estas relações não diferem muito dos processos instaurados em instituições europeias, em que o texto literário foi apropriado pela escola para atender às finalidades educativas. Em nosso país, esta apropriação se efetivou em período histórico distinto, dado que a organização dos sistemas de ensino tenha ocorrido tardiamente. Como afirma Faria Filho (1998), até o início do século XIX, a escola era uma instituição ausente da vida de quase toda a população brasileira, sendo que sua afirmação, a partir daquele momento, teve significados diferentes para os diversos grupos sociais. Mas, ao longo deste século, a escola, lentamente, foi constituindo o seu espaço enquanto instituição responsável pela educação das novas gerações.
Os projetos de escolarização da população guardam a marca de conflitos que persistem ainda hoje - a manutenção de uma estrutura elitista de ensino, que se contrapõe aos movimentos e à pressão constante por parte de grupos desfavorecidos, que reivindicaram a transformação do sistema (ZILBERMAN, 1991).
Estudos têm demonstrado que, nas primeiras décadas do século XX, se a batalha [por escola e escolarização da população] ainda não estava terminada, havia já uma tendência cristalizada, mesmo entre as populações pobres e trabalhadoras, no sentido de considerar a alfabetização e os atributos do alfabetismo como sendo a forma de acesso de uma cultura superior àquela das camadas populares e de seu usufruto (FARIA FILHO, 1998, p. 147).
Sobretudo, na década de 1920, muitos escritores - como Olavo Bilac, Coelho Neto e Monteiro Lobato - envolvem-se em campanhas por alfabetização e formação de leitores. Na década de 1930, a escola no Brasil passa por um movimento de revisão de finalidades e processos educativos. Para Nunes, a renovação didática deveria ser experimentada, sobretudo, no campo da leitura - “uma nova prática cujos desdobramentos deveriam contribuir para formar não apenas o leitor, mas o decifrador de uma cultura urbana em constante transformação” (NUNES, 2000, p. 389).
Com este movimento de renovação, o ensino da literatura passa a ser associado a novos interesses e necessidades, em que o prazer de ler é tomado como eixo da formação do leitor. Nessa época - décadas de 1920 e 1930 - a produção literária assumiu contornos diferenciados para se adequar às concepções educativas e ao conceito de infância que se constituíam com o desenvolvimento da ciência.
Nas últimas décadas do século XX, novas reformas educacionais foram implementadas, mas permanece o discurso do prazer de ler, da leitura fruitiva e da imersão do leitor no universo da literatura. Nessa perspectiva, defende-se a leitura como experiência estética, para encontro de si e do outro por meio do livro, para desenvolvimento da sensibilidade e humanidade que há em cada sujeito. É a literatura dirigida para o compromisso de instaurar a dimensão expressiva e humanizadora da linguagem.
Do ponto de vista da sua constituição em disciplina escolar, a literatura apresenta dificuldade para a definição de seu estatuto. Comumente, a sua inserção na Educação Infantil e no Ensino Fundamental não tem se processado como disciplina - reservada ao Ensino Médio e à licenciatura em Letras. No entanto, mesmo não ocupando o topo da hierarquia das disciplinas, a literatura tem espaço garantido no currículo escolar, sendo sua inserção legitimada pelas finalidades às quais se associa. Variam-se os objetivos e os modos adotados para sua didatização, mas sua presença ecoa entre professores e reformadores da educação.
No momento contemporâneo - imerso na cultura digital, com forte presença dos ícones da informática, da internet e dos signos visuais - novos desafios têm sido colocados para a relação entre escola e literatura. Conforme Albergaria (2000), se, tradicionalmente, o texto literário era o único valorizado para leitura, hoje, a literatura disputa lugar com diferentes gêneros escritos e orais, dentre os quais exposição, debate, gravação de rádio, discurso publicitário, charge, fotografia, histórias em quadrinho e suas diferentes textualidades. Para o autor, destituída de sua prioridade, a literatura se tornou vítima de um mal-entendido - uma vez que o texto literário é mais difícil de ser abordado e os adolescentes se interessam pouco por ele, há quem sugira deixá-lo de lado.
Por discussão semelhante, Cosson (2019) afirma ter ocorrido um estreitamento do espaço da literatura na escola. O primeiro indício são os livros didáticos, hoje constituídos por textos dos mais diversos gêneros, modalidades, contextos culturais e temas que passam ao largo da literatura. Um segundo indício é a recusa dos alunos em realizar a leitura de obras clássicas, por suas dificuldades com vocabulário, sintaxe, temas e padrões narrativos complexos ou distantes dos interesses imediatos. Por fim, o terceiro índice é a compreensão de que a literatura é apenas mais uma manifestação cultural, dentre outras, como vídeos, filmes, shows, programas televisivos.
Corsino (2010) também discute a presença da literatura infantil em meio aos diversos outros objetos e produções culturais direcionados à criança.
A literatura, por sua vez, é um dos fios das produções culturais dirigidas ao público infantil. O cinema, a música, o teatro, os programas de TV, os brinquedos e jogos compõem a ponta da trança das produções culturais que hoje ganham a mídia e se integram ao consumo de uma sociedade globalizada (CORSINO, 2010, p. 187).
Neste contexto, em que a leitura literária se apresenta como objeto de discussão, realizamos pesquisa junto a 94 professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental atuantes em escolas públicas de Montes Claros, Minas Gerais, que participaram da disciplina Literatura Infantil, integrante da matriz curricular do Curso Normal Superior, ofertado pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Com o estudo procuramos construir respostas para o seguinte problema: As experiências vividas pelas professoras possibilitaram condições para a sua constituição leitora, como sujeitos que compreendem a linguagem literária em sua dimensão expressiva e humanizadora?
O artigo tem por objetivo mapear práticas de leitura de professoras, retomando experiências e vivências que as constituíram leitoras e orientam sua ação pedagógica. Como participantes do estudo, as professoras se constituíram parceiras, rememoraram experiências de leitura literária vivenciadas na sua infância e adolescência, que nos permitiram compreender os investimentos afetivos e cognitivos que orientam suas práticas de leitura junto às crianças.
A pesquisa se inspirou em Kramer (2001, p. 155), que reconstituiu vivências de professores e professoras pela perspectiva memorialística, por entender que: “Pela rememoração, na linguagem e na narrativa, resgata-se o poder de ser no presente, no passado e no futuro, tecendo a história, não mais como cronologia, mas como processo de recriação do significado”.
Para a coleta de dados, foi aplicado instrumento composto por questões abertas, privilegiando a livre manifestação das vozes e experiências das professoras. Para a análise, compreendemos, com Le Goff (2003), que as experiências vividas são atravessadas pela afetividade e desejo, pela inibição e censura, que se constituem em elementos que, de forma consciente ou inconsciente, exercem manipulações sobre a memória individual, tanto no esquecimento como na recordação.
Visando apresentar as vivências construídas nas trajetórias das professoras, este artigo1 está organizado em 3 seções. Na primeira, discutimos vivências de leitura, partindo dos primeiros contatos das professoras com as histórias, em seu (des)encontro com a literatura na infância e adolescência. Na segunda seção, problematizamos o prazer da leitura inscrito na memória das professoras e, por fim, na terceira, abordamos as memórias de leitura das professoras, nas quais se inscrevem suas preferências por autores e obras, também apontando elementos que limitaram suas práticas na infância.
As vivências das professoras na construção de práticas de leitura
Para Le Goff (2003), a retomada das memórias constitui rica possibilidade para se compreender o passado. Ao reconstituir as vivências de leitura das professoras, tomamos a memória como capacidade de evocar informações e fatos armazenados no cérebro - nosso repositório da memória biológica, influenciado pelo tempo e pelas relações subjetivas de afeto e investimento dos sujeitos. Neste processo, temos a possibilidade de conectar fragmentos de informação e experiências capazes de gerar novas ideias, ressignificar conteúdos e tomar decisões. Ao tomar a memória como ferramenta para compreender as práticas de leitura vivenciadas pelas professoras, captamos lembranças e histórias, sentimentos, sentidos e representações.
Partimos da premissa de que, produzidas e inscritas no decurso das trajetórias, as memórias das professoras nos permitiriam captar experiências vivenciadas no contexto escolar e familiar, em um conjunto diverso de significados. Tais sentidos promoveram adesão ou afastamento da literatura e conduziram à construção de representações que associam ao livro ou às práticas de leitura uma imagem positiva ou negativa, consoante às experiências leitoras. Estas experiências orientaram os investimentos afetivos das professoras e encontram-se atreladas à sua formação profissional, produzindo uma cognição, um corpo de conhecimentos acerca da leitura, da literatura e do letramento literário. Estas duas dimensões - afetos e cognição - encontram-se imbricadas na produção de conceitos, valores e atitudes frente à literatura, conduzindo os processos de mediação e a formação de leitores.
Ao retomarem suas memórias, as vivências das professoras se dividem em três grupos. No primeiro, há aquelas que tiveram acesso ao livro e às histórias e puderam usufruir da literatura, mantendo, ainda hoje, estreita relação com a leitura - grupo no qual se encontram 17 (18,08%) das 94 participantes. Estas professoras afirmam grande aproximação com a literatura na infância, sendo que, dentre elas, 8 (8,51%) não eram leitoras convencionais - acessaram as histórias pela audição, em processos mediados por adultos leitores.
Contrapondo-se a este grupo, encontram-se 11 professoras (11,70%) que afirmam nenhum acesso à leitura literária na infância, foram expropriadas do direito ao livro como bem cultural e das histórias como produto da cultura. Para estas professoras, o elemento que se destaca é a escassez de livros e de eventos de leitura:
Parte da minha infância estudei na zona rural, não recordo de nenhum livro, acho que não tinha (P03. Questionário).
Não tenho muitas experiências positivas de leitura da minha infância e juventude; não consigo lembrar de nenhuma. Acho que só depois de adulta e trabalhando é que comecei a ler. Por isto até hoje não tenho costume de ler, leio pouco. Já faz algum tempo que estou refletindo sobre isto e vou passar a ler mais, assim que tiver um tempinho a mais (P12. Questionário).
Em nosso estudo, o terceiro grupo identificado representa a maioria - 66 dentre as 94 professoras (70,21%). São sujeitos que, na infância e adolescência, tiveram um acesso limitado ao universo da cultura escrita. Quando acessaram a literatura, a experiência se construiu em atividade compulsória e restrita ao repertório de textos lidos na escola. Estas professoras viveram uma relação de pouca intimidade com a literatura.
Excetuando as professoras que tiveram amplo acesso à leitura ou à audição de histórias (18,08%), o quadro é revelador das restrições, em que as práticas se limitam à escola. Essa limitação da leitura ao ambiente escolar, em si, não se constitui um problema, dado que a escola seja a instituição responsável por ensinar a leitura e formar leitores. O problema é que, na escola em que essas professoras viveram sua escolarização, o processo se constituiu pelo desencontro com os livros literários, marcado pelas condições precárias para imersão no universo da cultura escrita, em que os materiais de leitura são subsumidos aos livros didáticos.
Mesmo com a ampliação e a renovação da produção literária que ocorre no Brasil, sobretudo a partir da década de 1980, para estas professoras, o acesso ao texto literário é mediado pelos livros didáticos - um tipo de obra que se define por um formato e objetivos específicos de ensino-aprendizagem. Segundo Zilberman (1996), como recursos para o ensino, os livros didáticos passaram por processos de renovação, mas foram preservadas duas concepções básicas: 1) a noção de que a leitura forma a base do ensino; e 2) a noção de que os textos lidos se constituem em passagem para outro estágio superior, aquele em que o leitor descobre o prazer da leitura. Os livros didáticos tendem a se apropriar de textos consagrados pela crítica, visando ensinar conteúdos previstos nos currículos escolares.
Principal e quase exclusivo instrumento mediador da interlocução leitor-texto, o livro didático estabeleceu-se na escola e integra a cultura escolar. Em nosso estudo, as memórias das professoras nos permitiram perceber que, na 1.ª etapa de sua escolarização, o acesso às histórias se processou, via de regra, pela mediação das cartilhas e outros livros didáticos.
Na minha infância quase não tive contato com livros, estudei em uma escola rural, na mesma o que era oferecido constantemente eram as cartilhas (P63. Questionário).
O que foi positivo para mim no ato da leitura foi a história dos Três porquinhos, o livro O caso da borboleta Atíria (P68. Questionário).
Gostava bastante de um livro: “As mais belas histórias”. É bom recordar, lembrar de algumas como: A branca de neve, A gata borralheira, Os Três porquinhos, etc. e imaginar os cenários, os personagens, ver as ilustrações, era muito bom!... Ainda é... (P52. Questionário).
Vale lembrar que “As mais belas histórias” é uma coleção didática de autoria de Lúcia Monteiro Casasanta (1908-1989), composta por quatro volumes, sendo que o primeiro era o pré-livro “Os três porquinhos”. Essa coleção permitiu às professoras o acesso a diversas histórias. Mas, para além dos livros didáticos, nas memórias das professoras também se fizeram presentes as práticas de leitura em que o professor lia textos literários em sala de aula:
Na minha infância não tive contato com livros, somente aos 8 anos eu comecei a ouvir histórias contadas na escola e usar livros adotados por ela que apresentavam leituras sem significados (P34. Questionário).
Só me vêm à lembrança os momentos em que a professora contava e lia histórias, o que acontecia sempre às sextas-feiras (P32. Questionário).
Apesar de potencialmente promissoras, essas leituras compartilhadas não foram suficientes para instaurar práticas e formar leitores. Na trajetória e na memória das professoras, a presença de livros e leitura é constituída por imagens quase sempre negativas, associadas às condições de mediação e às propostas desenvolvidas na escola:
[A experiência] Foi péssima, pois não tinha nenhum acesso a livros, e tive professoras péssimas, que rotulavam o tempo todo os alunos, a gente via a leitura como um bicho papão (P69. Questionário).
Uma lembrança que mais me marcou foi quando a professora trabalhava a literatura, tinha medo ao ser mencionado um livro para ser lido (P35. Questionário).
São muitos os depoimentos em que as cobranças e imposições de atividades são retomadas pelas professoras como prática que produziu o seu afastamento do livro, que eliminou o prazer e o desejo, que promoveu a desconstrução de algo tão caro às escolas, que é o encontro da criança com a leitura. Para as professoras:
As lembranças marcantes são negativas. Nunca li um livro por prazer, somente para preencher fichas de leitura, onde os professores nos obrigavam a apresentá-lo (P54. Questionário).
Um livro que me marcou muito foi O caso da borboleta Atíria porque a professora cobrou tantas atividades que acabei perdendo o prazer de ler a história, li apenas para fazer as atividades propostas pela professora (P45. Questionário).
Já de 5ª a 8ª éramos obrigados a ler uma quantidade de livros por mês, apresentá-los em forma de fichas ou questionários sem fim (P16. Questionário).
As professoras apontam a escolarização e as mediações pedagógicas como aspecto negativo da sua relação com a literatura, que produziu sofrimento em seus primeiros contatos com os textos, gerou afastamento ao invés de adesão aos livros. Esse desencontro com a leitura e a literatura é explicado pelas professoras a partir de duas abordagens. O prazer de ler foi minado, de um lado, pelas atividades obrigatórias e, por outro, pelos entraves com o método de alfabetização, as dificuldades para a apropriação do sistema de escrita e o processamento do texto:
Sinceramente, pouco me lembro das minhas experiências na infância, o que vagamente me lembro é que sofria muito por não conseguir juntar as sílabas para ler a palavra, pois a professora trabalhava com o método silábico. Primeiro, tínhamos que decorar todas as letras do alfabeto, para depois juntar e formar palavras e isso era muito difícil para mim (P57. Questionário).
A recusa pelo livro e a desconstrução do prazer estão associadas à alfabetização, em que se concebe o ato de leitura como processo distinto de seu aprendizado, sendo priorizada a decifração e postergada a produção de sentidos para a linguagem escrita. Na fala das professoras, a recusa pelo livro não é negação da literatura, mas do ato de ler, quando este se apresenta com um nível de complexidade para o qual não se sentem capazes:
Com sete anos de idade, na 2ª série, fui premiada em um concurso, na escola em que estudava, com um livro de literatura de Monteiro Lobato, constituído de mais ou menos 200 páginas. Minhas irmãs, já professoras, me obrigaram a lê-lo. Fiz toda a leitura, que para mim não teve nenhum significado, pois não o compreendia muito bem. A partir daí, nunca mais tive o interesse em sequer folhear o livro desse autor (P84. Questionário).
Na minha infância li poucos livros, conhecia as histórias através de contos ou leituras feitas pelas minhas professoras, ou parentes (contos de fadas). Lembro que não gostava do processo fônico. Adorava ler livros de histórias (As mais belas histórias). O lado negativo da minha infância em relação à leitura foi pelo fato de não ler fluentemente e repetir a 1ª série. Como não gostava do processo fônico tive que aguentá-lo dois anos e esta palavra - fluentemente - ficou marcada na minha mente como ponto negativo (P87. Questionário).
Os depoimentos revelam o sentimento das professoras que, quando crianças, se viram diante da leitura imposta e, também, das dificuldades enfrentadas para aprender a ler. As memórias revelam a limitação dos métodos de alfabetização e das práticas de leitura. Em outras palavras, a constituição de professoras leitoras encontrou obstáculos associados às condições materiais de acesso aos livros e à apropriação da tecnologia da leitura.
Estes posicionamentos das professoras, em certo sentido, encontram-se com as proposições de Lajolo e Zilberman (1984), segundo as quais a literatura encontrou espaço na escola, que é responsável por ensinar a ler.
Os laços entre a literatura e a escola começam desde este ponto: a habilitação da criança para o consumo de obras impressas. Isto aciona um circuito que coloca a literatura, de um lado, como intermediária entre a criança e a sociedade de consumo que se impõe aos poucos, e de outro, como caudatária da ação da escola, a quem cabe promover e estimular como condição de viabilizar sua própria circulação (LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 18).
Em outras palavras, as práticas de leitura se apresentam atreladas à capacidade de leitura das crianças e, por depender da escolarização, a literatura coloca-se como subsidiária em relação à educação (LAJOLO; ZILBERMAN, 1984).
Em nosso estudo, percebemos que, nas referências ao aprender a ler, os métodos de alfabetização e os livros didáticos são colocados em discussão. As professoras rememoram sentimentos interligados a três métodos tradicionais: os métodos fônico e silábico - aos quais se ligam o desencanto por ler -, e o método global de contos, o pré-livro “Os três porquinhos” e a coleção “As mais belas histórias”, aos quais se encontra associado o prazer de ler.
A visibilidade dos livros nas memórias das professoras remete-nos às discussões propostas por Frade (2003). Por uma perspectiva histórica, a autora afirma que, inicialmente, quando não existia livro didático específico para alfabetização, não se percebia uma ligação explícita entre os métodos e o material didático para alfabetizar. No entanto, “quando essa vinculação começa a ser feita cria-se uma cultura pedagógica que dá visibilidade ao método, através do livro didático” (2003, p. 19-20).
Em nossas análises, ao buscar possíveis chaves explicativas para as referências das professoras aos métodos sintéticos silábico e fônico e ao método analítico global de contos, lembramos que, na história da alfabetização, estas abordagens foram pauta de discussão em diferentes temporalidades. A exemplo, nos últimos anos do século XIX e primeiras décadas do século XX, foram travados intensos debates na busca pelo melhor método, momento em que foram feitas críticas às abordagens sintéticas e defesa de propostas analíticas de alfabetização.
Conforme Frade (2007), métodos sintéticos e analíticos visam à alfabetização, mas diferem em pelo menos dois aspectos. O primeiro é relativo ao procedimento mental ou ponto de partida do ensino, que se processa das partes para o todo nos métodos sintéticos - fonemas no método fônico, letras no alfabético, sílabas no silábico -; e se organiza do todo para as partes nos métodos analíticos - texto no global de contos, frases no método da sentenciação e palavras na palavração. O segundo aspecto é relativo ao conteúdo da alfabetização. Os métodos sintéticos privilegiam a audição na relação com as letras, apoiando-se na transformação da fala em sinais gráficos, sendo comuns os exercícios de leitura em voz alta e o ditado. Por outro lado, os métodos analíticos procuram romper com o princípio da decifração, buscando atuar na compreensão dos textos, defendendo a inteireza da língua e dos processos de percepção infantil (FRADE, 2007).
Intensas disputas por métodos de alfabetização também se fizeram presentes no contexto mineiro. Destacamos as décadas de 1970 e 1980 - período em que, provavelmente, as professoras participantes da pesquisa foram alfabetizadas. Segundo Paixão (1987) e Medina (1998), no ano de 1976, a Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais propôs o Projeto Alfa visando enfrentar os altos índices de evasão e repetência nas séries iniciais e produzir a integração das camadas populares no espaço escolar. Dentre as medidas pedagógicas, constava o método fônico e a cartilha “Miloca, Teleco e Popoca” para alfabetizar, o uso de testes para avaliar os alunos, o preenchimento de fichas de acompanhamento, além de cortes nos conteúdos curriculares. Conforme Veloso e Cordeiro (2020), em Montes Claros, o Projeto Alfa encontrou resistência no Grupo Escolar Gonçalves Chaves - instituição educativa inscrita no imaginário local pela qualidade de seus processos formativos. A diretora do grupo, Lourdes Lopes Braga, se posicionou radicalmente contra o fônico, por considerar que o método global de contos era melhor, pela efetiva formação de leitores e não meros decifradores do texto escrito (VELOSO; CORDEIRO, 2020).
Em síntese, essas disputas movimentaram as práticas e concepções docentes, sendo que, na cidade de Montes Claros, as alfabetizadoras se dividiram entre um e outro método - divisão que demarcou um momento histórico e ecoou nas memórias das professoras participantes de nosso estudo. As professoras rememoraram as dificuldades de leitura pela via do método fônico, também referindo-se aos momentos de encantamento com as aventuras de “Os três porquinhos” e outras narrativas da coleção “As mais belas histórias”.
No momento contemporâneo, o Ministério da Educação retoma a proposição do método fônico como panaceia, remédio milagroso para alfabetizar indicado pela Política Nacional de Alfabetização.
O prazer da leitura inscrito na memória das professoras
Ao tomar a memória como ferramenta para compreender as práticas de leitura, foi possível captar reminiscências e fragmentos de experiências vividas pelas professoras, em que a escola esteve presente como mediadora de leituras. Contrapondo-se ao grupo de professoras que viveu uma relação tensa com a leitura, encontram-se depoimentos de intensas vivências, em que a escola e o ambiente familiar foram espaço para imaginação e fantasia, para experiências com o texto literário.
Como explicitado na seção anterior deste texto, um número reduzido de professoras (17 ou 18,08%) preservam agradáveis memórias de leitura, sendo que, destas, 8 (8,51%) vivenciaram práticas em que as histórias eram lidas ou contadas, em casa ou na sala de aula. O movimento era carregado de afeto e de encontro, uma atividade estimuladora, propulsora da formação leitora.
Quando eu era pequena, adorava ouvir histórias contadas por meu tio. Lembro-me que meus irmãos e eu fazíamos rodinha para ouvirmos as histórias com muito entusiasmo (P70. Questionário).
Na minha infância o que mais marcou foram os contos de fadas e as histórias de Monteiro Lobato. Mas naquela época a escola não tinha livros de literatura. As histórias eram contadas pelo professor ou, às vezes, vinham no próprio livro básico (P05. Questionário).
Quando eu estava na 4ª série, a minha professora leu para a turma o livro A ilha perdida. Foram momentos mágicos, pois sentia-me como se estivesse fazendo parte daquela aventura (P80. Questionário).
Em suas memórias, estas professoras lançam um olhar de aprovação e saudade para as histórias compartilhadas. As rodas de contação/leitura de histórias são retomadas como momentos para usufruir prazer e encantamento pelas narrativas. Estas memórias se encontram com diferentes autores, que defendem as práticas compartilhadas de leitura. Brandão e Rosa (2010, p. 40) consideram importante que os adultos se constituam mediadores e leiam histórias para as crianças. “Ao ouvir as histórias, as crianças descobrem, portanto, que podem entrar no mundo da ficção, preenchendo uma necessidade vital, humana” - de imaginar, de fantasiar, de pensar e de ser livre para viver emoções diversas por meio das narrativas.
Como defende Neitzel (2007), a contação de histórias para crianças se constitui processo que vai além do conhecimento da linguagem.
Ao contar histórias estamos aproximando o público da literatura e, se esta ação se respalda em uma concepção de literatura enquanto arte, podemos pensar numa educação para a apreciação, para o refinamento do gosto, e não apenas para o conhecimento de textos literários, para explorarmos as formas de percepção do texto (NEITZEL, 2007, p. 34).
Britto (2007) também defende a leitura compartilhada. Para o autor, essa prática se constitui forma de “ler com os ouvidos”, de estudar um texto escrito enunciado em voz alta. Ao “ler com os ouvidos”, para além de experimentar a interlocução com o discurso escrito, a criança vai compreendendo as modulações de voz que se anunciam, experimenta a cultura escrita, insere-se na interlocução com o discurso escrito, organizado por uma sintaxe, um léxico e uma prosódia diferentes.
Machado (2009) também destaca a relevância das práticas mediadas na promoção do letramento literário. Ao ler para as crianças, o adulto leitor mediador lhes oportuniza condições diversas de aprendizagem. A autora considera que a autonomia do leitor é uma conquista contínua, que não se separa das mediações e, por mais experientes que sejam, ao participarem de processos mediados de leitura, as crianças produzem novas condições para enfrentarem os desafios que os textos literários lhes apresentam (MACHADO, 2009).
Na escola, os processos de leitura compartilhada possibilitam o acesso ao mundo da cultura, facultando aos alunos condições para superar dificuldades, desenvolver novas habilidades e ampliar referências culturais. Para Rildo Cosson:
Em primeiro lugar, precisamos ter claro que as dificuldades de leitura decorrem mais do capital cultural do leitor, da sua competência de leitura, das estratégias que ele usa para ler o texto do que o suposto hermetismo dos textos. Com isso, não estou dizendo que não há textos complexos ou de difícil compreensão, mas sim que devemos, enquanto professores de literatura, mudar o foco tradicional do ensino centrado no texto para o ensino centrado no leitor, na formação do leitor literário (COSSON, 2014, p. 150).
Em nosso estudo, ao experimentarem práticas compartilhadas de leitura, as professoras vivenciaram importantes situações de aprendizagem e formação leitora. Tais práticas possibilitaram estratégias para ler e aprender a ler, desenvolver habilidades e produzir significados para os textos. Cosson (2014) considera que, na escola:
[...] nega-se aos alunos o ensino da leitura literária, deixando-os sem orientação em relação aos protocolos e mecanismos da literatura, o que pode levar ao abandono da leitura literária por ser considerada como uma atividade de elite ou inacessível, ou seja, justamente o oposto do que se pretendia obter com a proposta inicial. Dessa maneira, em lugar de uma suposta leitura deleite que o apenas ler subscreve, tem-se é um leitor sem competência para ler porque simplesmente não lhe foi dada a oportunidade de aprender a ler literariamente os textos que lhe são apresentados (COSSON, 2014, p. 147).
Cosson (2014) afirma a necessidade de ensinar a ler literatura na escola, sendo esta uma condição para usufruir deste bem cultural e formar leitores.
Ao abordar os usos do livro didático, Cosson (2014) considera que de “muleta” estes recursos pedagógicos passaram a ser um empecilho para um ensino de qualidade na área da literatura ou língua portuguesa. No momento contemporâneo, as possibilidades de acesso a uma miríade de textos da internet e as muitas formas de expressão do conhecimento tornaram o livro didático um objeto obsoleto, cuja permanência na sala de aula ainda é garantida por conta da inércia do sistema e dos interesses envolvidos nas compras vultosas do governo.
No contraponto destas críticas, é importante lembrar que os livros didáticos desempenharam papel essencial na escola. Quanto às professoras participantes do nosso estudo, provavelmente, elas se alfabetizaram nas décadas de 1970 e 1980 - momento em que os livros didáticos ocupavam um status diferenciado como material didático e objeto escolar. E, nas memórias das professoras, suas trajetórias e experiências de leitura se encontram associadas ao livro didático, que se constituiu como ponte entre a literatura e as leitoras em formação.
Para Cosson (2014), “a ideia de um livro que funcionasse como uma antologia textual, guia curricular e caderno de atividades pertence ao passado”. E, retomando este passado, a leitura de histórias no âmbito dos livros didáticos foi reiterada, discutida, rememorada pelas professoras. Nessas mediações, nem sempre as memórias são negativas. A coleção “As mais belas histórias” e o pré-livro “Os três porquinhos” se inscrevem entre as boas memórias.
Eu me alfabetizei com o livro As mais belas histórias. Adorava o livro (P16. Questionário).
O livro que mais gostava de ler na infância era A bicharada. Este livro me despertava bastante atenção, pois tinha bastante animais na floresta em que desenrolava toda a história. Outro livro do qual me recordo é As mais belas histórias. Estudei com este livro e até decorava suas várias partes, com os mesmos personagens, porém com histórias diferentes (P04. Questionário).
Eu fui alfabetizada pelo processo Global de Contos, através da cartilha As mais belas histórias, que trabalhava o texto dos Três porquinhos. Isso marcou-me demais e recordo com perfeição das ilustrações, do tipo de letra. Gostei muito da forma como a professora trabalhava o texto, portanto, os Três porquinhos passou a ser a obra literária infantil que mais gostei na infância. Na minha juventude me envolvi com o Veleiro de cristal e os livros da Coleção Vagalume (P91. Questionário).
Na época de infância o livro que mais li foi As mais belas histórias, das quais tenho as melhores lembranças. E ainda hoje tenho uma certa preferência por livros literários (P86. Questionário).
Para além dos processos de alfabetização e leituras na infância, as professoras retomam lembranças das práticas leitoras na juventude. Nesta etapa da vida, parte significativa das memórias também se encontra associada à escola e ao letramento escolar. Mas o acesso aos textos e histórias também ocorre no ambiente familiar, em processos mediados por outros leitores. Tais vivências extraescolares ficaram inscritas nas lembranças das professoras como momentos agradáveis e sempre bem-vindos:
As minhas lembranças são muito boas pois, desde muito cedo, tive um contato enorme com a leitura. Lembro-me de quando ainda não sabia ler e minha vizinha, aos finais de semana, ia para minha casa (morávamos em fazenda). Eu a colocava para ler várias histórias para mim. Eu nunca cansava de ouvi-la lendo. Às vezes ela ficava irritada e falava: - Eu nunca mais vou vir aqui. Eu implorava e ela acabava cedendo e lendo tudo que eu queria. Também fui alfabetizada por um livro que se chamava Os três cabritinhos, no método global. Minha professora tinha um jogo de cintura tão bom que eu ia embora esperando chegar o outro dia para ver o que havia acontecido com os personagens do capítulo anterior. Eu ficava fascinada a cada capítulo apresentado (P17. Questionário).
Nas representações docentes, a prática de audição de histórias é um caminho para a formação do leitor, é o primeiro passo para o encontro com o livro. Participar destas atividades gerou o desejo de aprender a ler para, de forma autônoma, acessar o mundo da literatura. Há uma relação direta entre gostar de ouvir histórias e gostar de ler livros:
Me lembro das histórias de contos que meu pai contava, e quando aprendi a ler o meu objetivo era ler livros que tivessem estes contos, e consegui. Foi um dos pontos positivos e um dos motivos que me fizeram apaixonar pela literatura. Um dos pontos negativos foi ter que ler para fazer avaliação no colégio onde estudava (P48. Questionário).
Tais práticas extraescolares mediadas são positivas e podem ser explicadas por dois movimentos. De um lado, as práticas são livres de cobranças; de outro lado, não são influenciadas pelas dificuldades para decifrar os textos. Estas são práticas de letramento não cerceadoras da liberdade, da fantasia e da vivência lúdica.
Experiências, mediações e preferências de leitura das professoras
Pensar as experiências de leitura a partir de preferências e interesses por livros é fundamental para se compreender as mediações de leitura que as professoras desenvolvem no tempo presente. Kramer (2008) defende que, na proposição e realização de práticas mediadas de leitura, para além da cognição, deve-se considerar as dimensões estética e ética. Isso implica dizer que é preciso pensar a literatura não só como possibilidade de fruição e entretenimento, mas, também, de desenvolvimento da sensibilidade e humanidade da criança, considerar que os livros, como produtos da cultura, são capazes de falar direto aos afetos das crianças. Apoiar-se somente na dimensão cognitiva significa secundarizar o processo humano mais amplo (KRAMER, 2008). Ainda conforme a autora, não basta o acesso ao objeto livro, as mediações de leitura devem possibilitar que o ato de ler se constitua em experiência e acesso à cultura.
Para pensar o acesso ao mundo da cultura, é importante considerar que certas obras literárias, por suas características ético-estéticas, tornam-se canônicas, perpetuam-se como padrão de qualidade artística. Em uma sociedade grafocêntrica, ter lido estes clássicos da literatura confere status e distinção, ao passo que não lê-los pode significar uma subalternização do leitor.
Nas representações das professoras, identificamos mecanismos e critérios de escolha de livros em que a referência aos cânones da literatura nacional constituiu-se em estratégia de legitimação de práticas. E, assim, as professoras referem-se às obras clássicas como aquelas que mais despertaram seu interesse e gosto:
Aprecio os diversos livros [de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Ziraldo], tive contato com eles a partir do momento em que pude frequentar com mais calma a biblioteca (P26. Questionário).
Na adolescência li quase todos os livros da Coleção Vagalume dentre outros como os clássicos da literatura brasileira como Machado de Assis, José Alencar e Érico Veríssimo (P72. Questionário).
Na 5ª série é que foi bem trabalhada a leitura, li vários livros interessantes como: Memórias de um burrinho brasileiro, Vidas Secas, Sagarana, a Coleção Vagalume quase toda, Pollyana Moça, Pollyana, Meu pé de laranja lima (P08. Questionário).
Na lógica das professoras, tais leituras conferem distinção. Em alguns discursos, se percebe um amálgama de obras e coleções, uma certa confusão entre autores e obras, o que pode revelar um desejo de aproximação e familiaridade nem sempre consolidado.
Lembranças marcantes e positivas: li alguns livros de Érico Veríssimo, como Olhai os lírios do campo, etc. Li também A vingança do Judeu (É um livro espírita, não me recordo o autor). Feliz ano velho (Marcelo Paiva Neto), A Moreninha de Machado de Assis, O feijão e o sonho, etc. As leituras que lia na minha adolescência e que não me agradaram foram as fotonovelas. Eram muito sem conteúdo e utópicas. Por isto, parei de ler logo, logo (P74. Questionário).
Ao rememorar há um destaque para obras e autores clássicos. É possível perceber, ainda, a referência desqualificadora às fotonovelas, que não agradaram por serem “utópicas” e “sem conteúdo”, em uma clara distinção entre os textos legitimados e os que se configuram como perda de tempo, como leitura pouco edificante e culturalmente irrelevante. Nesta discussão é importante considerar que a escola é uma instituição que, ao disseminar determinados textos, estabelece distinção, confere valor e legitima sua presença. Nas leituras realizadas na infância e adolescência, é reiterada a presença de determinados títulos, que se constituem cânones legitimados pela escola:
Sempre gostei de histórias ou livros informativos que me trouxessem alguma mensagem ou me ajudassem a ser uma pessoa melhor, entre eles estavam Pollyana, Pollyana Moça, O Quinze, etc (P13. Questionário).
Li também Pollyana Menina e Pollyana Moça, O meu pé de laranja lima, Menino de engenho, Capitães de areia, Gabriela, Dona Flor e seus dois maridos, etc (P67. Questionário).
Contos de fada, O Menino Preso na Gaiola, O meu pé de laranja lima, Polyana, Laços de ternura. E outros, dos quais não me recordo agora, mas que fizeram parte do meu mundo de fantasias e que também me ensinaram, com as histórias, suas virtudes, a face do bem e do mal (P09. Questionário).
Dentre os livros mais citados pelas professoras encontram-se “Pollyana” (13 menções), “O meu pé de laranja lima” (09), “A ilha perdida” (07), “Escaravelho do diabo” (05), ainda sendo feita referência à “Coleção Vagalume” (13 vezes). Há, ainda, 34 referências aos contos de fadas - clássicos da literatura infantil, obras que se constituíram em cânones literários.
Na minha infância sempre gostava de ouvir histórias de Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Cachinhos de Ouro. Lembro-me que, nas sextas-feiras, a professora da 2ª série, no final do horário, lia histórias pra gente. Na minha juventude, os livros que li, sempre eram para fazer provas. Lembro-me que lia os livros da Coleção Vagalume (P07. Questionário).
Sempre gostei muito de Contos de Fadas, são os meus preferidos, Branca de Neve, Chapeuzinho vermelho, Cinderela. Tanto que são os que mais gosto de contar e trabalhar com os meus alunos (P24. Questionário).
Também li todos os clássicos: A Bela Adormecida no bosque, Chapeuzinho vermelho, A Bela e a Fera, Branca de Neve e os sete anões, Ali Babá e os quarenta ladrões, várias histórias (P67. Questionário).
Os contos de fadas são textos originados da tradição oral, que se perpetuaram como literatura destinada ao público infantil, atravessando tempos e espaços. Para Abramovich (1995), desde o século IV se tem registros de que a história da “Cinderela” era contada na China, sendo que a perpetuação dos contos de fadas em diferentes gerações está ligada ao fato de que estas narrativas lidam com o mundo do imaginário e da fantasia, com elementos da sabedoria popular, conteúdos essenciais da condição humana.
Segundo Conde (1996), os contos partem de uma estrutura fixa, em que pelo menos três elementos se fazem presentes. O primeiro é o enredo, construído em torno de uma situação em que o herói ou a heroína, visando ao amadurecimento e à realização pessoal, enfrentam grandes obstáculos antes de triunfar contra o mal. O segundo é a presença de magia, metamorfose, encantamento, animais falantes, bruxas, anões, gigantes, duendes ou fadas. Por fim, o terceiro elemento são tempos e espaços distantes, que se apresentam como cenários a revelar dramas humanos aos quais as crianças de hoje, em qualquer lugar do mundo, podem estar sujeitas. Por suas características, sobretudo por trabalhar problemas humanos - inveja, traição, perda, fome, morte, avareza, entre outros -, os contos de fadas têm se constituído como objeto de análise por especialistas do campo da pedagogia, sociologia, linguística, psicologia, em especial da psicanálise. Toda essa produção considera as influências que o conteúdo das histórias pode provocar no leitor, em especial as crianças (CONDE, 1996).
Jesualdo (1993) considera que os contos de fadas são narrativas essenciais à formação das crianças, mas há pessoas que se opõem à sua leitura.
Os homens graves e, mais que graves dotados de um espírito que não vacilamos em qualificar de falsamente racionalista ou científico são contrários a que se narre contos de fadas às crianças. Dizem eles que essas bobagens somente contribuem para falsear o espírito, gerar nas crianças o gosto pelo maravilhoso, incliná-las à credulidade e a afogar nelas o germe de todo sentido crítico (JESUALDO, 1993, p.136-137).
Bettelheim (1980) também defende a presença dos contos de fadas na vida das crianças. O autor considera que, ao trabalhar com a dualidade entre o bem e o mal, os contos de fadas possibilitam à criança condições para fazerem escolhas. Nos contos, o mal pode simbolizar poder e até ser atraente, com frequência chega a ser temporariamente vitorioso. Mas o mal sempre é desmascarado, e a convicção de que o crime não compensa é um meio de intimidação efetivo, razão pela qual a pessoa má sempre perde e é castigada (BETTELHEIM, 1980). E, por estas argumentações, a escola, em diferentes temporalidades, tem destinado tempo e espaço para os contos de fadas.
Em nosso estudo, para além das narrativas maravilhosas, Monteiro Lobato também se fez presente na vida das professoras - presença que encantou e embalou os sonhos de criança. Porém nem sempre o livro fez parte destas aventuras no mundo construído por Lobato. São muitas reminiscências que resgatam o Sítio do Picapau Amarelo, obra de Monteiro Lobato em sua versão adaptada para a televisão - veiculada nas décadas de 1970 e 1980 - via pela qual as professoras puderam conhecer a obra. No discurso das professoras é possível captar a compreensão de que as adaptações de textos infantis para os seriados da TV constituíram forma de acesso à literatura:
Conheci Monteiro Lobato foi na minha infância assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo, que era lindo aquele mundo do faz-de-conta (P59. Questionário).
Eu sempre gostei das histórias de Monteiro Lobato, principalmente porque na época da minha infância passava o Sítio do Pica-pau Amarelo. Eram histórias interessantíssimas, eu me envolvia totalmente com essas histórias, com os personagens. Até hoje, ao ler as histórias do Sítio, me vêm na memória os meus tempos de infância (P10. Questionário).
E, assim, a TV se materializou como mediadora entre as crianças e os livros, sendo que este elemento das representações das professoras encaminha o nosso olhar para a ideia de busca da literatura e fuga da leitura.
A retomada dessas memórias e dos processos socio-históricos e cognitivos engendrados na produção dos conhecimentos que fundamentam as práticas foi essencial para compreender a constituição das professoras leitoras. As práticas vivenciadas revelam as relações com a escola e com o propósito de ensinar conhecimentos, valores, normas e atitudes. As memórias se encontram amalgamadas a estas intencionalidades e, raramente, constituíram a leitura da literatura como prática desinteressada ou voltada para a sensibilidade, para a formação humana e os valores estéticos.
Considerações finais
O estudo indica que as condições efetivas de acesso aos livros e à leitura literária na infância e adolescência não são idênticas para todas as professoras. Quanto ao grau de intensidade, encontramos professoras literalmente excluídas do direito ao livro, que não participaram de práticas de leitura e não puderam usufruir do universo construído pela literatura. No lado oposto, leitoras contumazes para quem a literatura integrou momentos de encantamento. Entre estes dois polos encontramos a grande maioria das professoras, com acesso limitado à literatura, que acessaram textos literários mediados pela escola. Quanto às condições materiais, o acesso mediado pela escola se inscreveu em meio à escassez de livros literários, em que as alunas-leitoras, durante a infância, participaram de atividades de audição de histórias ou leitura de textos nas cartilhas e materiais didáticos. Em suas práticas de leitura na 2.ª fase do Ensino Fundamental, as atividades tinham por objetivo central o preenchimento de fichas e a realização de atividades.
Ao retomarem a memória das leituras e dos autores preferidos na infância e juventude, as professoras assumem posição idealizada, que se constitui mecanismo de preservação de identidade e do sentimento de pertencimento aos grupos sociais legitimados. Assim, retomam autores e obras considerados cânones literários, que garantem a legitimidade de suas práticas de leitura.
Nas memórias das professoras, a emergência das dificuldades em ler os textos roubou o prazer de ler e a tomada do livro como arte e objeto cultural. A fruição estética ficou relegada ao segundo plano, posto que as dificuldades objetivas se sobrepuseram às possibilidades para se apropriar da literatura como cultura e arte.
Em síntese, os modos e condições de apropriação da literatura revelaram um quadro nem sempre favorável à constituição das professoras leitoras. Na infância e adolescência, foram cerceadas pela pequena disponibilidade de livros, pelas dificuldades em ler os textos e pelas cobranças feitas pela escola. No tempo presente, estes determinantes podem se constituir chaves explicativas para uma pouca familiaridade das professoras com a leitura literária.