Compreender a comunicação é também compreender a maneira como o sujeito, de corpo inteiro, nela participa (LE BRETON, 2009, p. 40).
Notas introdutórias sobre a dimensão corporal no cotidiano da Educação Infantil
Os estudos críticos vêm revelando o caráter regulador das pedagogias corretivas e a dimensão disciplinar que está associada à gênese da construção social da infância e das instituições escolares que se propõe a educá-la. Ao mesmo tempo em que o sentimento da infância revela a criança como diferente do mundo adulto, esse ideal moderno de criança civilizada nos aponta dimensões emancipatórias e ao mesmo tempo institui pedagogias reguladoras, operando como controladora dos corpos, dos sentimentos e da socialização de crianças (ARROYO, 2009).
A contribuição de Sarmento (2003) para essa questão é fundamental ao afirmar que a construção simbólica da infância na modernidade desenvolveu-se em torno de processos de disciplinamento inerentes a uma ordem social dominante com a imposição de modos paternalistas de organização social e de regulação dos cotidianos.
Nas palavras de Buss-Simão (2012b, p.262):
Por terem sua história atrelada a um ideário do Projeto Cultural da Modernidade, as instituições têm também como alicerce os pilares da regulação e da emancipação, os quais fazem-se presentes ao mesmo tempo nessas instituições. Todavia, na busca de legitimação de uma “ordem” acaba o pilar da regulação se sobressaindo, o qual, numa perspectiva praxiológica constitutiva da Pedagogia, encaminha para uma necessidade de aprender e discutir as estratégias institucionalizadas de regulação e controle das crianças envolvidas no processo educacional. Estas constituem a tradição pedagógica que se sustenta na lógica do enquadramento social, da hierarquia, da impessoalidade, da ordem, do controle, da norma, da sequenciação, do esquadrinhamento dos tempos e da previsibilidade das crianças. A centralidade do tempo e do espaço dos processos de educação da pequena infância perpassa a história da educação que, como instituição social, torna-se, na sociedade moderna, um instrumento fundamental para promover a ordem, a regulação, a hierarquia, o controle. Os espaços, sua própria disposição interna, contêm determinações normativas, regras de comportamento para se desenvolver e que indicam o que se deve e o que não se deve fazer neles, se há ou não possibilidade de movimentos.
Nessa perspectiva pedagógica de regulação e controle, a configuração do papel de aluno inclui o modo de se relacionar com a aprendizagem e o seu estereótipo, construído há anos, que continua afirmando que para aprender as crianças precisam estar concentradas, o que implica em imobilidade dos corpos, ou seja, precisam ficar imóveis em seu lugar e em silêncio. Enquanto aluno, a criança, precisa negar seu corpo, cuja dimensionalidade precisa ser controlada e ou esquecida para que as práticas escolares sejam efetivadas da “forma adequada”.
Nesse sentido, como afirma categoricamente Altieri (2005), no contexto escolar ainda não há lugar para a cultura corporal. A escola nega o corpo e ao mesmo tempo nega a multiplicidade de expressão das crianças. Não há espaço para brincadeiras, jogos; há espaço para a razão. Gaya (2006, p. 4) corrobora ao sinalizar que “o corpo não vai à escola. Talvez vá, mas permanece sentado, disciplinado no silêncio e passividade de uma estátua de mármore. Ou, quem sabe, tal como marionete”. Contraditoriamente, no contexto educativo se estabelece a cultura do silêncio corporal (FREIRE, 1981).
Gaya (2006) dá robustez ao debate ao assinalar que embora o discurso filosófico aponte para a superação da racionalidade iluminista, com propostas pedagógicas interdisciplinares e novas configurações curriculares, muitos conceitos constitutivos da modernidade, inspirador de uma educação intelectualista ainda orientam concepções e práticas escolares que concebem o corpo como simples extensão da mente.
Noutra vertente de argumentação, Fingerson (2009) sugere que para compreender a vida das crianças, devemos compreender suas vidas incorporadas, pois o corpo da criança é fonte de sua agência, da ação social com intenção, constituída pelas potencialidades das crianças em seus contextos de vida social. Desse modo, o corpo é componente imprescindível e afeta sua interação social.
Em sintonia com a autora supracitada, a construção de um currículo a partir da experiência infantil requer a superação da ideia de que as crianças são seres passivos no processo de socialização (JAMES; PROUT, 1990). Desse modo, as crianças são concebidas como sujeitos engajados na complexidade da dinâmica social e que possuem modos peculiares de produção de sentido sobre a realidade circundante, que, na atualidade, se convencionou conceber como culturas da infância ou cultura de pares (SARMENTO, 2005; CORSARO, 2009).
O currículo da Educação Infantil pensado em articulação com as ideias apresentadas, considera a relevância da experiência social dos indivíduos para a organização das práticas pedagógicas, possibilitando a recriação da vida cotidiana em termos de vivências que sejam potencialmente educativas. Assim, as ações da vida cotidiana envolvem o corpo, este considerado espaço de vida. Logo, instituições de Educação Infantil que impõem práticas pedagógicas centradas no disciplinamento dos corpos negam às crianças o direito de expressão de movimentos, linguagens corporais, apagando o direito de expressão de suas culturas de pares.
Coutinho (2012) amplia o debate, defendendo a ideia de que a experimentação por meio do corpo possibilita que as crianças se apropriem e elaborem saberes sociais de modo ativo o que em diversas ocasiões entra em choque com a lógica institucional que insiste em padronizar os comportamentos das crianças.
Sob a lógica do sociólogo David Le Breton, buscaremos travar um diálogo acerca das relações entre a participação das crianças e a dimensão corporal, compreendendo o corpo como meio de experienciar o mundo. As discussões aqui tecidas partem de um estudo em nível de doutorado sobre a análise da participação de crianças pequenas em contexto de Educação Infantil, mobilizada a partir das discussões sobre a participação das crianças e suas influências na prática pedagógica.
As contribuições teóricas produzidas no âmbito da Sociologia da Infância salientam a compreensão das crianças como sujeitos plenos de direitos, revelando a criança em sua positividade, como um ser ativo, sujeito participante na sociedade em que vive, portanto, “as crianças não são apenas os sujeitos passivos dos processos da estrutura social” (JAMES; PROUT, 1990, p. 8).
Deste modo, os debates acerca da participação infantil têm como principal pressuposto defender que as crianças têm seus próprios direitos e que têm a capacidade de participar das decisões e de todas as questões que lhes interessem (TOMÁS, 2006). Logo, a participação infantil implica que as opiniões das crianças exerçam uma ação influente e que nesse contexto elas possam expressar livremente seus pensamentos, expectativas, sentimentos, interesses e necessidades, e que seus pontos de vista possam ser considerados para a tomada de decisões nos assuntos que lhes afetam (AGOSTINHO, 2010). Isto posto, dentro do campo dos direitos, evidencia-se a participação das crianças quanto às decisões que afetam sua vida no contexto educativo.
Para situar o debate e a produção de dados da presente investigação, dialogamos com autores de estudos sociais da infância que têm se debruçado sobre a temática do corpo (GUIMARÃES, 2008; COUTINHO, 2010; BUSS-SIMÃO, 2012, 2021, por exemplo), buscando revelar o corpo em sua concretude pulsante da ação social, longe do reducionismo biológico (FERREIRA, 2013), reconhecido em interfaces entre natureza e cultura, como estrutura sociocultural necessária para a compreensão da indissociabilidade do cuidar e educar na Educação Infantil, sendo um eixo estruturante a ser considerado nas especificidades da docência nessa etapa educativa, “pois, o corpo expressa e carrega consigo marcas do que experienciamos e vivenciamos em relação social”, conforme nos explica Buss-Simão (2021, p. 1545).
Nessa trilha de proposições, a pesquisa que deu origem ao presente texto evidenciou o corpo como componente das formas de participação das crianças na Educação Infantil (AGOSTINHO, 2019) e, ao trazê-lo, tenciona os modos desta participação frente às formas de controle regulatório instituídas no contexto da instituição educativa.
Nesta discussão, pretendemos evidenciar o direito à participação das crianças no contexto educativo e suas relações com a dimensão corporal, buscando problematizar sobre as práticas de disciplinamento e controle das ações sociais das crianças por meio do silenciamento das experiências de seus corpos instituídas pela professora.
Cabe ressaltar que o objetivo profícuo deste estudo, embora redigido por duas adultas, busca evidenciar as falas, as ações, as experiências das crianças nos espaços de Educação Infantil, a partir de uma vertente interpretativa que considera o ponto de vista das meninas e dos meninos integrantes da pesquisa.
Percursos investigativos de geração dos dados
Deste modo, o presente estudo, recorte de uma investigação em nível de doutorado, é uma produção construída a partir da interlocução teórica de adultos (mediante tantos outros estudos que tomam a criança como sujeito da pesquisa) e da interlocução com as meninas e os meninos, gerada a partir do diálogo, da escuta atenta e sensível, fruto da participação das crianças.
Metodologicamente, buscamos tornar possível compreender como se configurava a participação das crianças no contexto da Educação Infantil e suas influências na prática pedagógica, por meio de um estudo qualitativo inspirado na abordagem etnográfica, indicada pelos autores da área como uma das metodologias úteis para o conhecimento da infância e das crianças (JAMES; PROUT, 1990).
Optamos por uma pesquisa participativa, de metodologia de caráter qualitativo, adotando uma perspectiva interpretativa e de orientação etnográfica, por considerar tais perspectivas epistemológicas proporcionadoras de maior participação das crianças na produção dos dados e geradoras de possibilidades de apreender com profundidade sobre os modos como os sujeitos interagem uns com os outros (GRAUE; WALSH, 2003).
A pesquisa etnográfica nos permite compreender o modo como as crianças vivem seu contexto, conferindo importância a experiência dos meninos e meninas, suas ações e significações dentro do contexto das relações sociais (ROCHA, 2008). Desse modo, contamos com a participação de dezessete crianças, com três a quatro anos de idade e sua professora, integrantes de uma instituição municipal de Educação Infantil. Os dados foram concebidos através de observação participante, registros escritos, fílmicos e fotográficos, produzidos durante as práticas educativas propostas pela professora, dentro da sala de referência do grupo, ao longo de cinco meses de empiria.
A análise dos dados baseou-se na combinação entre a leitura das transcrições dos vídeos e a apreciação das imagens produzidas à luz das teorias e estudos que tomamos como balizadores do presente estudo. Além das filmagens, buscamos analisar as notas de campo obtidas durante as observações. As gravações em vídeo foram vistas e revistas, organizadas e separadas por dia de observação e transcritas. Através da análise dos vídeos, fizemos o recorte de situações interativas, denominadas de episódios (PEDROSA; CARVALHO, 2005), realizando um relato minucioso dos acontecimentos (via transcrição) e a extração de fotografias sequenciadas dos vídeos. As fotos foram agrupadas em sequências interacionais que deram visibilidade aos momentos vividos pelas crianças.
Em atendimento às questões éticas deste estudo, ressaltamos que ele foi realizado mediante a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe (registrada através do Protocolo CAAE 83005618.4.0000.5546) e com consentimento da professora, das crianças integrantes da pesquisa e de seus respectivos responsáveis.
Em relação à identificação nominal das crianças, decidimos por manter seus nomes verdadeiros, compreendendo que este processo se constitui como uma ação que respeita a identidade da criança e fortalece o movimento de reconhecimento delas como informantes privilegiados da pesquisa, considerando que meninas e meninos têm o direito de terem suas identidades reveladas, sem constrangê-las ou expô-las de modo desrespeitoso. Esta decisão foi tomada conjuntamente com as crianças e seus responsáveis.
Ressaltamos que escolher metodologias de pesquisa com criança impõe ao pesquisador o desafio de adotar modos que a respeitem e a valorizem, reconhecendo-a como sujeito de direitos em todo o processo de investigação. Nesse sentido, o processo dialógico entre pesquisadora e sujeitos desta pesquisa foi sendo construído ao longo da empiria. E foi essa escuta que permitiu à pesquisadora ganhar a confiança das crianças e fazê-la se tornar um membro do grupo, favorecendo que o grupo de meninos e meninas integrantes do estudo também se constituísse como participantes e coautores da pesquisa.
Nesse sentido, mais do que um princípio metodológico, a busca pelo diálogo com as crianças, se constituiu em um princípio ético de escuta ativa e responsiva entre pesquisadora e sujeitos da investigação, buscando a assegurar que as vozes e as identidades desses sujeitos fossem respeitadas e evidenciadas na pesquisa.
Diante do exposto, ressaltamos que a pesquisa que deu origem a este texto apresentou um número expressivo de episódios e cenas do cotidiano registradas no diário de campo que expressavam o controle exercido pelos adultos sobre as crianças (12 longas situações interativas entre crianças e a professora), sinalizando relações verticais e hierarquizadas que marcam as interações entre a professora e as crianças, que apresentaremos e daremos continuidade ao debate em diálogo com os dados empíricos produzidos com as crianças.
Para dar visibilidade aos achados do estudo, no âmbito deste artigo, priorizaremos como fonte de contextualização dos debates o episódio “Sente”, extraído do conjunto de filmagens, por apresentar aspectos considerados relevantes para o alcance dos objetivos elencados para o presente trabalho. O episódio selecionado traz situações nas quais as sequências de ações das crianças são orientadas pela mediação da professora na execução de uma atividade planejada pelo adulto, conforme discutiremos a seguir.
O que as crianças nos revelam sobre a ordem institucional dominante que visa o controle e a regulação de seus corpos?
Os pressupostos teóricos da Sociologia da Infância inscritos no paradigma crítico apontam que a infância é simultaneamente, uma construção histórica, um grupo social oprimido e uma “condição social” que está subordinada a condições de exclusão e que sofre grande controle do grupo geracional dos adultos. De acordo com essa perspectiva, há uma distribuição desigual de poder entre as gerações adultas e as crianças e que a Sociologia da Infância só alcançará seus objetivos se contribuir para a emancipação social da infância (MAYALL, 2002; SARMENTO, 2006).
O modelo educacional moderno vigente ainda hoje legitima uma perspectiva ao mesmo tempo de emancipação e de regulação da infância. Entretanto, a busca pela ordem faz com que o pilar da regulação seja o mais perceptível e aquele que mais alicerça a pedagogia com suas práticas fundamentadas na regulação, na hierarquia e no controle das crianças.
Observando as práticas educativo-pedagógicas dirigidas às crianças do contexto educativo investigado, foi possível identificar ações que visavam um controle, um disciplinamento dos seus corpos, de suas ações, seus modos de ser, impondo regras e determinações, “institucionalizando um processo de socialização unidirecional, que civiliza o corpo infantil” (SIEBERT, 1998, p. 84), conforme abordaremos no episódio intitulado “Sente”.
O episódio abaixo carrega perspectivas importantes acerca de uma ordem institucional dominante que visa o controle e regulação dos corpos das crianças, como formas de assegurar práticas de disciplinamento e uniformização em nome de uma educação marcada por controle e racionalidade.
Episódio: “Sente!”
Data: 07/01/2019
Local: Sala de referência
Crianças envolvidas: Stefany (3 anos), Pedro (4 anos), Pietro (3 anos), Anny (4 anos), Sara (3 anos), Miguel (3 anos), Vitor Hugo (4 anos), Vitória (3 anos), Lucas (3 anos), Yanca (3 anos), Artur (3 anos)
DESCRIÇÃO: As crianças estão brincando livremente pela sala. A professora diz: Crianças, vamos guardar os brinquedos, eu quero conversar com vocês. Vamos para a roda.
A professora, segurando algumas figuras, pega uma cadeirinha e senta-se próximo ao espaço onde costuma fazer a roda. As crianças começam a guardar os brinquedos e em seguida vão para roda. Algumas crianças sentam-se no chão. Vitória, Rebeca, Yanca e Sara sentam-se sobre a mesa.
Anny vai até a professora e fala alguma coisa que a pesquisadora não consegue entender. A professora pede à menina para sentar. Anny não senta, fica em pé próximo à cartolina fixada na parede pela professora.
Em roda com as crianças, a professora inicia uma conversa sobre o projeto verão.
Professora: Veja que lindo o que eu trouxe... No verão... (mostrando uma figura) quem sabe o que é isso?
Pedro: Do verão!
Professora: E o que é? Copo de?
Crianças: suco!
Professora: Copo de suco... No verão a gente vai tomar suco (colando a figura na cartolina) a gente toma refrigerante, suco de frutas, limão... Olha o que eu trouxe mais aqui... suco verde, alguém já viu suco verde?
João Pedro: é da cor do Huck!
Professora: É... e o Huck gosta desse suco pra ficar forte. Limão, espinafre...
Nesse momento, Vitória levanta-se da mesa e fica ao lado de Anny, bem pertinho do cartaz que está sendo produzido. Miguel e Vitor Hugo estão brincando com carrinho. Vitor Hugo levanta o carrinho como se o brinquedo estivesse voando. A professora pega o carrinho da mão do menino e diz:
Professora: Não! Agora não!
Yanca de joelhos vai até a professora e diz:
Yanca: Minha mãe vai ficar magra com limão...
Professora: É, vai ficar magrinha. (E ignora a fala da criança).
Vitória e Anny estão olhando o cartaz, quando a professora olha para elas e diz:
Professora: Não, não, sente!
Vitória vai para a mesa. Anny permanece em pé ao lado do cartaz.
Professora: A moça tá tomando o quê? (mostrando uma figura)
As crianças respondem: Sorvete!
Anny vai até o outro lado da roda, ficando em pé ao lado da professora.
Professora: No verão é gostoso tomar coisa gelada?
Crianças: É...
Professora: Eu vou comprar uma caixa de sorvete gelado... Vou colar aqui... pra vocês... E vai ter panetone de chocolate... Olha a máquina de sorvete (mostrando a figura para as crianças).
Professora: Senta aqui, Anny. Pra você ver melhor com a sua coleguinha.
A professora pega Anny pelo braço e diz:
Professora: Senta aqui!
Anny resiste, esquivando o corpo, tentando escapar da professora.
Anny: Aí não dá, não!
Professora: É ali... ali dá!
A professora solta o braço de Anny e aponta com a mão o local onde ela deve sentar. A menina puxa uma cadeira para perto da roda e senta.
A professora prossegue: Olha a máquina... A gente coloca a fruta...
A professora olha para a pesquisadora e lhe diz: Pior que eu comprei essa máquina!
Olha para as crianças e diz: só que a fruta tem que colocar congelada e sai o sorvete.
A professora passa cola nas figuras, enquanto isso Yanca levanta-se.
A professora olha pra ela e diz: Senta, mulher! Ô, mulher, senta! (Faz uma gracinha com Yanca, que sorri e senta.
A professora continua passando cola nas figuras e vai colando no cartaz.
A atividade segue com a professora mostrando figuras e colando no cartaz.
À luz deste episódio, temos a roda de conversa, que embora considerada como uma estratégia pedagógica muito eficaz para favorecer a participação das crianças no cotidiano da Educação Infantil, no episódio em questão, não podemos interpretá-la como uma estratégia pedagógica/metodologia que toma a criança como sujeito das aprendizagens, sublinhando o seu papel ativo e a importância da sua participação total nos processos educativos.
No desenrolar do episódio, percebemos claramente como a ação de Anny em levantar-se, procurando ficar mais perto da atividade, não é bem aceita pela professora. Durante todo o episódio a professora busca ter a atenção das crianças para aquilo que ela está a desenvolver, como, por exemplo, na exposição das imagens e através de controle excessivo para que as crianças fiquem sentadas a observá-la. Isto pode ser comprovado quando a professora pede para as meninas Anny e Vitória se sentarem, quando recolhe o carrinho das mãos de Vitor Hugo, quando solicita que Yanca sente e quando segura o braço de Anny numa tentativa de controlar sua ação, fazendo-a se sentar para prestar a atenção na atividade direcionada por ela. Podemos inferir que, a partir da ação proposta pelas crianças, ao se levantarem, elas ficariam distraídas, dispersas e a professora poderia perder o “controle” da turma, “correndo o risco” de não concluir a sua atividade, pois, “é um corpo dócil que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2010, p. 118).
Outro ponto que podemos destacar aqui é o fato de a professora desenvolver toda a atividade sem envolver as crianças nas ações pedagógicas. Em nenhum momento ela solicitou o envolvimento das crianças através de ações, como por exemplo, a colagem e recorte de figuras de revistas e jornais, atividades que as crianças são completamente capazes de realizar. A narrativa nos convida a refletir sobre o objetivo principal da atividade proposta, o que nos parece ter a preocupação maior com a exposição das imagens, sendo o papel participativo das crianças no processo educativo reduzido ao prestar atenção em silêncio, de modo sentado, respondendo apenas algumas questões quando solicitadas pela docente.
O modo como a proposta é desenvolvida também sinaliza as estratégias verbais escolhidas pela professora para manter esses corpos responsivos ao que ela considera como adequado. Ao fazer perguntas fechadas, a professora deixa escapar a oportunidade de conhecer e explorar a expressão de pensamentos das crianças, de valorizar as suas narrativas e teorias. Por outro lado, as crianças respondem algo padronizado, que é aceito pelo adulto, o que acaba por reduzir o nível de participação na proposta e, por conseguinte, levadas por seus próprios interesses, buscam por outras situações que possam engajar-se, criando novas interações, diálogos e possibilidades, nem sempre apoiados pela professora.
As intervenções da professora com as crianças indicam explicitamente uma ordem institucional dominante que funciona nas práticas educativas seguindo as premissas de uma pedagogia tradicional, marcada pela separação entre corpo e mente, revelando um estilo de educar que desconsidera a criança em sua integralidade existencial. Nessa concepção,
O corpo das crianças é objeto de controle e regulação intensos por parte das instituições educativas que tendem a assegurar a conformidade das crianças às normas da ordem estabelecida com práticas de disciplinamento e uniformização, colocando limites e efetivando sanções na moldagem e construção de um corpo que corresponda a ideais e expectativas adultocêntricas (AGOSTINHO, 2019, p. 128).
Nessa perspectiva pedagógica de regulação e controle, a configuração do papel de aluno inclui o modo de se relacionar com a aprendizagem e o seu estereótipo, construído há anos, que continua afirmando que para aprender, as crianças precisam estar concentradas, o que implica em imobilidade dos corpos, ou seja, precisam ficar imóveis em seu lugar e em silêncio. Enquanto aluno, a criança precisa negar seu corpo, cuja dimensionalidade precisa ser controlada e ou esquecida para que as práticas escolares sejam efetivadas da “forma adequada”. Assim, a instituição de Educação Infantil, lugar onde a criança deve exercer seu "ofício", até mesmo na primeira infância, a partir de suas proposituras pedagógicas, tem imposto à criança um enquadramento, institucionalizando o seu “ofício de aluno”, cobrando um comportamento padronizado e centrado na aquisição do conhecimento, desrespeitando o lugar de criança enquanto ator social, sujeito ativo com direitos, coprodutor e não somente visto como sujeito passível à escolarização (MARCHI, 2010).
Como salientou Rech (2006, p. 78), a prática docente busca “[...] homogeneizar as atitudes, fruto de uma lógica educativa baseada no silêncio e na pouca interação das crianças [...]” e a disciplina como meio necessário à aprendizagem. No episódio, é notória a dificuldade da professora em lidar com a materialização das expressões das crianças durante a atividade e desconsidera que as crianças desejam se aproximar do cartaz, que querem levantar, brincar com o carrinho. Essa dificuldade pode ser interpretada pela regulação dos corpos, mediante o poder disciplinar exercido pela professora.
Considera-se que a temática do corpo seja imprescindível para se estudar a participação de crianças em contextos de Educação Infantil. Partindo do pressuposto que as crianças participam de diferentes formas, o corpo exerce um papel importante enquanto canal de comunicação, manifestando movimentos, expressões, sentimentos. Nesse sentido, as crianças utilizam o corpo para se comunicar, experimentar, interagir, se relacionar. Nesse sentindo, o corpo se constitui como elemento revelador dos modos de pensar, ser, agir e sentir das crianças. É importante reconhecer nas ações pedagógicas a dimensão corporal para que possamos pensar nas implicações que isso tem para a ação docente praticada com os meninos e meninas, visto que, conforme Ferreira (2004), as crianças são atores sociais de corpo inteiro.
Consideramos que as fotografias (Figuras 1, 2 e 3) abaixo nos ajudam a perceber como meninos e meninas insistem em viver e expressar seu corpo, demonstrando seus movimentos, suas opiniões, seus desejos, seus modos de ser, expressando a cultura da infância. Nesse contexto, corroboramos com Agostinho ao afirmar que corpo “é meio de comunicação potencialmente informante das formas de participação das crianças e que por meio dele elas expressam seus pontos de vista.” (AGOSTINHO, 2019, p. 124).
Retomando os acontecimentos do episódio “Sente”, destacamos aspectos importantes acerca da participação de crianças na Educação Infantil, seguindo a lógica dos meninos e meninas em contraposição à lógica da professora. Conforme descrevemos, as crianças estão interessadas nas atividades propostas pela docente: querem tocar, manusear objetos, querem explorar o espaço, desejam participar e trazer relatos de experiências cotidianas, com seus modos de ser, com o corpo inteiro, não imóveis, como a escola impõe. Isso nos leva a refletir que a lógica de participação das crianças baseia-se no envolvimento ativo, numa participação de corpo inteiro, que envolve suas diferentes expressões, suas múltiplas linguagens. Já a lógica de participação da escola (referenciada nas ações da professora), parece centrar-se numa perspectiva de participação minimizada, focada no envolvimento limitado das crianças, priorizando a dimensão da regulação proposta pelo modelo moderno de educação, conforme já discutimos.
As crianças pequenas apresentam formas próprias e legítimas de aprender. As expressões corporais delas são elementos que compõem essas particularidades. É preciso então reconhecer a criança em sua potência, em sua capacidade de agir, de pensar e de intercambiar saberes e experiências, mediadas a partir de suas ações e das dimensões do corpo. Nessa direção, disciplinar os corpos das crianças numa perspectiva de educar conforme as expectativas sociais, implica limitar suas manifestações, sua capacidade de expressão.
Nesse contexto, no episódio em questão, evidenciamos uma participação minimizada, controlada, reprimida, ou seja, a professora utiliza estratégias pedagógicas para inserir as crianças em suas propostas e mantê-las na proposta a partir de sua concepção de participação, contudo, percebemos uma participação que limita os corpos das crianças e consequentemente seus modos de expressão aos interesses do adulto docente.
Nesse processo, constatamos que, nesse recorte, os modos de participação instituídos no contexto educativo não seguem uma lógica que considera as crianças em suas práticas (VASCONCELOS, 2017). Em tal processo de participação que apaga as possibilidades expressivas dos meninos e meninas frente ao instituído pedagogicamente, os adultos precisariam ser capazes de ouvir e possibilitar formas de participação das crianças nos cotidianos infantis que sejam significativos para eles/as. Estamos falando sobre a participação das crianças implicada na consideração de suas múltiplas linguagens, reconhecidas como ferramentas legítimas, o que implica um esforço adulto em considerar e valorizar as diversas formas das crianças se expressarem, falarem, executarem e serem (TOMÁS; FERNANDES, 2013).
Com relação às práticas pedagógicas, impõe-se o desafio de organizar tempos, espaços e materialidades que convidem ao experimento e à movimentação, de modo a proporcionar uma participação mais ativa das crianças nos seus processos de desenvolvimento e aprendizagem. Estamos falando de um trabalho educativo que considere e valorize o movimento, as diferentes linguagens da criança e que envolve: (i) uma variedade de experiências de movimento em diferentes contextos da escola, proporcionando a autonomia da criança na exploração do ambiente e do próprio corpo; (ii) o planejamento de situações que favoreçam a utilização do movimento como uma linguagem da criança, capaz de possibilitar a expressão, a interação entre pares e adultos; (iii) a seleção de propostas que favoreçam à criança a exploração e a descoberta, considerando seus interesses e que valorizem seus conhecimentos prévios (GARANHANI, 2004), suas opiniões, seus modos de ser e se relacionar com os eventos sociais que lhes dizem respeito.
Considerações finais
Nas relações entre corpo e educação das crianças participantes do presente estudo recaem marcas identitárias de uma ação educativa circunscrita no caráter regulador das pedagogias corretivas e na dimensão disciplinar que está associada à gênese da construção social da infância e das instituições escolares que se propõe a educá-la.
No ambiente escolar analisado, percebemos, como nos dizia Foucault (2010), a arte do adestramento, produzindo corpos dóceis e ajustados, acompanhada de estímulos positivos. Comumente, nas ações pedagógicas instituídas pelas rotinas do grupo infantil, o corpo permanece passivo e disciplinado, a partir de práticas que buscam refrear, domar, enrijecer e paralisar as crianças. Esse tipo de educação buscava a conformação dos corpos, delineando uma ação educativa de estrutura rígida, com a finalidade de controlar as crianças, conforme apresentamos.
Os dados produzidos se alinham aos diversos estudos que evidenciam os desastres que essas pedagogias reguladoras têm produzido em nome de uma educação civilizatória.
As crianças participantes da pesquisa evidenciam que as suas diferentes formas de participação indicam a necessidade que elas tinham de viver e expressar seu corpo. A multiplicidade de expressões das meninas e meninos revela que no corpo da criança reside um conjunto de componentes que desejam conhecer, explorar, experimentar, se aventurar. Elas desejam participar das práticas pedagógicas que lhes são dirigidas, contudo, desejam participar com seus modos peculiares de ser, com o corpo inteiro, não imóveis, como a escola impõe.
Nesse contexto, o processo de investigação atestou que as crianças possuem uma lógica de participação diferente da lógica de participação da escola, realçando os resultados de estudos sobre o tema. As crianças, portanto, revelam uma participação minimizada, controlada, na qual professora utiliza estratégias pedagógicas para inseri-las em suas propostas, a partir de uma lógica de participação diferente da lógica do grupo infantil: uma participação que limitou seus corpos e consequentemente seus modos de expressão.
Nessa trilha de proposições, as meninas e os meninos do presente estudo nos avisam sobre o descompasso entre o direito que eles/as conquistaram à participação, sobretudo nas práticas propostas pela professora e convidam, também, a ação docente para refletir e repensar sobre os modos controladores e limitantes que se impõem nos contextos educativos sobre a dimensão corporal que lhes são vias de expressão e ação social, incorporando ao cotidiano estratégias ativas que respeitem o tempo e o lugar das crianças na construção do seu desenvolvimento e de suas aprendizagens.