INTRODUÇÃO
A arte tem sido proposta como instrumento fundamental de educação, ocupando historicamente papéis diversos desde Platão, que a considerava como base de toda a educação natural. O envolvimento com as artes e o aprendizado por meio das artes aumenta a exposição individual a múltiplas formas de experimentar o mundo e, ao fazê-lo, aumenta o potencial de desenvolvimento humano1,2 Os defensores da utilização das artes na educação citam estudos que mostram que as artes têm valor não só para o objetivo educacional maior de melhorar a aprendizagem dos alunos, mas também para o desenvolvimento cognitivo e neurológico1.
Considerando o argumento de que as artes podem melhorar as habilidades de pensamento geral do aluno e as disposições de aprendizagem – persistência na tarefa, atenção mais sustentada, habilidades mais nítidas em observação, ferramentas mais ricas para a expressão e melhor interação social –, muitos pesquisadores apoiam o uso das artes como ferramenta de ensino em domínios não artísticos1, como, por exemplo, na educação médica.
A introdução das artes no currículo médico tem despertado interesse crescente e tem sido objeto de vários estudos. O objetivo da inclusão das artes na educação médica tem variado muito, e as atividades envolvem tanto a visualização como a criação de artes3,4,5. Os possíveis resultados da utilização das artes na educação médica incluem uma visão enriquecida da aprendizagem e do desenvolvimento profissional, estimulando o desenvolvimento de várias competências6,7,8. Muitos autores descreveram como o treinamento em artes e humanidades podem promover profissionalismo, habilidades de escuta, sensibilidade cultural, ética, empatia ou um compromisso com o humanismo9. A arte solicita a visão, a escuta e os demais sentidos como portas de entrada para uma compreensão mais significativa da relação médico-paciente10.
A medicina é descrita como ciência e arte, sendo a ciência focada no conhecimento objetivo, técnico (competência ou cura), e os elementos artísticos focados no lado humano (empatia ou cuidado)11. Ambas as abordagens da realidade (arte e ciência) devem ser integradas de modo a melhorar o processo de educação médica. Isso pode ser implementado mediante uma análise de obras-primas artísticas universais (literatura, poesia, pintura, etc.) que lidam com tópicos humanísticos decisivos, que servem de fonte de inspiração (fator desencadeante) para a geração de ideias (hipótese) que podem esclarecer os fenômenos observados tanto nos níveis de saúde como nos níveis experimentais7,8,12.
A Arte apresenta uma ambiguidade com muitas camadas de significados incorporados e sua interpretação exige o envolvimento de sensibilidade, imaginação e reflexão. Promover essas habilidades é um grande objetivo de aprendizagem, porque são essenciais à competência clínica e ao desenvolvimento profissional5.
Neste contexto, a inserção da arte como ferramenta educacional para treinamento profissional, dada sua característica simbólica, é ideal para transmitir os aspectos da humanidade (medo da morte, poder terapêutico da empatia, etc.) bem como operar como um gatilho para o conhecimento do mundo em um nível inconsciente (intuição). Assim, a educação médica passa a incorporar o desafio de se adequar, para oferecer aos médicos produtos finais de seus currículos uma formação humanista e humanizadora13.
Diante do interesse crescente da inclusão das artes na educação médica, buscou-se analisar, por meio de uma revisão sistemática da literatura, a eficácia da utilização das artes no ensino médico.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de revisão sistemática, conduzido conforme recomendações da Cochrane Collaboration14.
Definições conceituais e critérios de elegibilidade
A pergunta deste estudo seguiu a estratégia Pico, que representa um acrônimo para População, Intervenção, Comparação e Desfecho15. Os principais termos usados nesta revisão foram definidos da seguinte forma: P = estudantes de Medicina; I = utilização das artes como estratégia educacional no currículo de Medicina; C = grupo intervenção e grupo controle ou antes e depois; O = eficácia da estratégia.
Estratégias de busca
Para identificar as publicações que compuseram este estudo, realizou-se busca online nas bases de dados eletrônicas Lilacs, Scielo, Pubmed e Eric. Os descritores utilizados para direcionar a pesquisa foram: (Art or visual arts or paintings or narrative or poetry or theatre or movies or cinema) AND (Medical education or medical students or medical curriculum) (Quadro 1). Buscas manuais foram feitas nas referências bibliográficas dos artigos encontrados.
Número da estratégia | Descritores |
---|---|
1 | Arts OR visual arts OR painting OR literature OR narrative OR poetry OR theatre OR movies OR films OR cinema |
2 | Medical education OR medical students OR medical curriculum |
1. Descritores relativos ao tipo de arte (I da estratégia Pico);
2. Descritores relativos à população (P da estratégia Pico).
Não foi delimitado o ano de publicação para inclusão no estudo. A consulta à base de dados foi realizada de abril de 2016 a setembro de 2017. Os idiomas de redação dos artigos aceitos foram inglês, português, francês e espanhol.
Seleção dos estudos e critérios de inclusão e exclusão
Como critérios de inclusão, foram utilizados somente os artigos cujo estudo foi realizado com estudantes de Medicina e cuja eficácia da intervenção foi avaliada por comparação entre grupos (estudos quantitativos) ou pela satisfação dos estudantes (estudos qualitativos). Foram excluídos os artigos que abordavam a utilização da arte em pacientes e profissionais de outras áreas da saúde, bem como os que descreviam a importância da arte ou aqueles que não descreviam a intervenção utilizada.
A avaliação dos títulos e resumos foi realizada por dois pesquisadores, de forma independente, obedecendo rigorosamente aos critérios de inclusão e exclusão definidos no protocolo de pesquisa. Em casos de discordância, os pesquisadores tentaram encontrar concordância em uma reunião de consenso.
Processo de coleta e extração de dados
Os dados foram extraídos de maneira padronizada e aplicada aos trabalhos pelos dois revisores, que trabalharam independentemente e levaram em consideração as seguintes variáveis: autor, nome do artigo, local, desenho do estudo, amostra, intervenção utilizada, análise dos dados, resultados e conclusão.
Os artigos incluíram duas categorias principais de resultados: quantitativa e qualitativa. Os resultados quantitativos foram avaliados por meio de dados descritivos (frequências, porcentagens, proporções), correlações e variância (t-tests, análise de variância, Anova e outros), e p < 0,05 foi considerado de significância. Os resultados qualitativos foram avaliados por meio de análise de conteúdo.
Qualidade dos estudos
A qualidade dos estudos foi avaliada conforme os seguintes critérios: descrição: (1) da população estudada, (2) da intervenção utilizada, (3) do processo de coleta de dados, (4) do método analítico, (5) dos resultados e (6) conclusão. A cada estudo foi atribuída uma pontuação que variou de 0 a 6. A qualidade de cada artigo foi classificada como baixa (1–2), média (3–4) ou alta (5–6). Foram considerados aptos a serem incluídos neste estudo os artigos que apresentaram classificação média e alta na análise de qualidade. Os dois revisores chegaram a um consenso sobre a classificação de todos os trabalhos.
Como se trata de uma pesquisa documental, o estudo não foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.
RESULTADOS
Seleção dos estudos
A seleção dos artigos para a revisão sistemática foi feita de acordo com o fluxograma apresentado na Figura 1. Foram encontrados 3.053 artigos ao se utilizarem os descritores arts and medical education. Houve a inclusão de cinco artigos identificados em referências de artigos e artigos de revisão, totalizando, então, 3.058. Destes, 2.568 artigos foram excluídos após o refinamento da busca utilizando-se os descritores (visual arts, painting, literature, narrative, poetry, theatre, films, cinema, movie AND medical education, medical curriculum, medical students). Foram eliminadas as duplicatas e os estudos realizados com pacientes ou profissionais de outras áreas da saúde. Foram selecionados, então, 490 artigos. Destes, 424 foram excluídos após análise dos resumos por se tratar de artigos de descrição e artigos de opinião. Restaram, então, 66 artigos, cujos textos foram lidos na íntegra. Destes, 38 foram excluídos porque não se encaixavam nos critérios de inclusão do estudo: estudos de relato de experiência (n = 20); estudos de revisão (n = 5); estudos sem descrição da intervenção realizada (n = 10); estudos sem avaliação final da eficácia da estratégia (n = 30). Assim, foram selecionados 28 artigos que compuseram a amostra. Os artigos selecionados estão descritos na Figura 1.
Características dos estudos
Os estudos identificados nesta revisão foram publicados entre 2001 e 2017. Os primeiros autores dos artigos eram de instituições situadas nos Estados Unidos (n = 16), Reino Unido (n = 3), Brasil (n = 2), Austrália (n = 1), Canadá (n = 1), Nepal (n = 1), Suécia (n = 1), Turquia (n = 1), Eslovênia (n = 1) e Cuba (n = 1).
A distribuição dos estudos segundo o tipo de arte utilizada na intervenção foi a seguinte: artes visuais (n = 16); narrativa (n = 4); teatro (n = 3); cinema (n = 3); narrativa/poema (n = 2). Dos 28 artigos selecionados, 13 (46%) foram estudos qualitativos, 10 (36%) foram quantitativos e qualitativos e 5 (18%) foram estudos quantitativos. A maioria dos estudos (23 – 82%) não utilizou grupo controle; 10 (36%) coletaram dados pré- e pós-teste; 18 (64%) coletaram dados somente após a intervenção; e 13 (46%) tiveram a colaboração de profissionais da arte. O número total de sujeitos abordados no estudo variou de 5 a 217. As intervenções realizadas estão descritas no Quadro 2.
Autor/Título | Tipo de arte | Tipo de estudo/Intervenção |
---|---|---|
Dolev et al 16. Use of fine Art to Enhance Visual Diagnostic skills / EUA | Artes visuais | Estudo experimental randomizado prospectivo com pré e pós-teste quantitativo com 176 estudantes 1º ano de medicina. Observação e descrição de pinturas e correlação com características diagnósticas visuais em fotografias de pacientes |
Pretorius et al 17Is it Impressionism or Is It Medicine?/ EUA | Artes visuais | Estudo experimental qualitativo com 140 estudantes de medicina. Palestra sobre elementos presentes em um quadro e sua correlação com a saúde e a condição socioeconômica do indivíduo retratado e posterior análise descritiva de outras obras pelo estudante |
Naghshineh et al 26Formal Art Observation Training Improves Medical Students’ Visual Diagnostic Skills/ EUA | Artes visuais | Estudo prospectivo parcialmente randomizado com pré e pós-teste e avaliação qualitativa com 58 estudantes do 1º e 2º ano de medicina e odontologia. Análise de obras de arte em museu seguido por descrição de características visuais necessárias para o diagnóstico. |
Jasani & Sacks18Utilizing Visual Art to enhance the Clinical Observation Skills of Medical Students /EUA | Artes visuais | Estudo experimental com pré e pós-teste quantitativo e qualitativo com 110 estudantes do 3º ano de medicina. Observação e descrição de pinturas e correlação com características diagnósticas visuais em fotografias de paciente |
Bell & Evans19Art, Anatomy and Medicine: Is There a Place for Art in Medical Education?/ Reino Unido | Artes visuais | Estudo experimental com pré e pós-teste. Quantitativo e qualitativo com 12 estudantes do 1ºano de medicina. Seminários sobre elementos visuais presentes em pinturas, seguidos por discussão da importância da arte e sessões de desenho e análise de obras de pintores. |
Bardes, et al 20Learning to look: developing clinical observational skills at an art museum / EUA | Artes visuais | Estudo experimental com pré e pós-teste Quantitativo e qualitativo, com 8 estudantes do 1º, 2º e 4º ano de medicina. Observação e descrição de pinturas e correlação com características diagnósticas visuais em fotografias de paciente. |
Friedlaender & Friedlaender22Art in Science: Enhancing Observational skills / EUA | Artes visuais | Estudo experimental randomizado com pré e pós-teste. Quantitativo com 90 estudantes de medicina. Análise de obras de arte em museu seguido por descrição de características visuais necessárias para o diagnóstico. |
Braverman28To see or not to see: How visual training can improve observational skills / EUA | Artes visuais | Estudo experimental qualitativo, 2 grupos de estudantes do 1º ano de medicina. Observação de pinturas e descrição dos elementos de maior e menor importância seguida de interpretação do quadro. |
Kidd et al 27Using visual art an collaborative reflection to explore medical attitudes toward vulnerable persons / Canadá | Artes visuais | Estudo experimental pré e pós-teste. Quantitativo e qualitativo com estudantes de medicina, pesquisadores e profissionais da saúde (n=20). Palestras relacionando artes visuais e diagnóstico físico seguido de descrição, realizada pelos estudantes, de casos clínicos apresentados. |
Gurwin et al 21A randomized controlled study of art observation training to improve medical student ophthalmology skills / EUA | Artes visuais | Estudo experimental randomizado com 36 estudantes do 1º ano de medicina. Análise de obras de arte em um museu seguido por descrição de características visuais necessárias para o diagnóstico |
Finn et al 30The impact of color and role on retention of knowledge. A body-painting study within undergraduate medicine / Reino Unido | Artes visuais | Estudo experimental randomizado com 117 estudantes do 1º ano de medicina. Pintura do corpo (utilizando cores e preto e branco). |
Tapajós 25HIV/AIDS in visual arts: applying discipline-based art education (DBAE) to medical humanities / Brasil | Artes visuais | Estudo experimental qualitativo com 50 estudantes de medicina do 2º ano ao 6 ano medicina. Curso em módulos: artes gráficas, artes plásticas, fotografia e memorial AIDS. |
Shankar 23Student feedback on the use of paintings in Sparshanam, the Medical Humanities Module at Kist Medical College. / Nepal | Artes visuais | Estudo experimental quantitativo e qualitativo com 100 estudantes do 1º ano de medicina. Análise de pinturas com reflexão e elaboração de narrativas, música, poema ou role play. |
Moore et al 31Developing observational skills and knowledge of anatomical relationship using plastinated specimens / EUA | Artes visuais | Estudo experimental qualitativo com 5 estudantes do 1º ano de medicina. Workshop dividido em 3 sessões: palestra sobre técnica básica de desenho de estruturas do corpo; perspectivas e proporções do rosto humano; importantes artistas anatomistas do Renascimento. |
Elder et al 48The Art of Observation: Impact of a Family Medicine and Art Museum Partnership on Student Education / EUA | Artes visuais | Estudo experimental qualitativo com 17 estudantes do 2º ano de medicina. Análise de obra de arte em um museu, seguido por descrição de características visuais necessárias para o diagnóstico. |
McMenamin 29Body Painting as a Tool in Clinical Anatomy Teaching / Austrália | Estudo experimental qualitativo e quantitativo com 217 estudantes de medicina. Pinturas de estruturas anatômicas sobre um modelo vivo (alunos foram encorajados a alternar entre pintura e atuação como modelo). | |
Arjmand 36The Use of Narrative in Medical Education / EUA | Narrativa | Estudo qualitativo com 5 estudantes do 4º ano de medicina. Curso para aprimorar habilidades narrativas sobre temas ligados à comunicação médico-paciente. |
Miller et al 34Sounding Narrative Medicine: Studying Students Professional Identity Development at Columbia University / EUA | Narrativa | Estudo qualitativo com 130 estudantes do 2º ano de medicina. Seminários sobre narrativa (textos relacionados com medicina intensiva) seguidos de discussão e transcrição de experiências. |
Easton 35How medical teachers use narratives in lectures: a quality study / Reino Unido | Narrativa | Estudo experimental qualitativo com estudantes do 1º ano de medicina. Narrativas baseadas na transcrição das gravações de áudio de palestras médicas. |
Van Winkler et al 37Use of poems Written by Physicians to Elicit Reflection by Students in a Medical Biochemistry Course / EUA | Poemas | Estudo experimental qualitativo com 196 estudantes do 1º ano de medicina. Associação entre elementos presentes em poemas e valores humanísticos e discussão sobre dissonâncias de opiniões em grupo. |
Shapiro et al 32Teaching Empaty to First year Medical Students: Evaluation of an Elective Literature and Medicine Course / EUA | Narrativas e poemas | Estudo experimental randomizado com pré e pós teste. Qualitativo e quantitativo com 16 estudantes do 1º ano de medicina. Seminários sobre narrativa seguidos de transcrição de experiências. |
Jacobson et al 33A literature and medicine special study module run by academics in general practice: two evaluation and the lessons learnt / Reino Unido | Narrativa | Estudo experimental qualitativo com 8 estudantes do 3º ano de medicina. Seminários sobre narrativa seguidos de discussão e transcrição. |
Reilly et al 36Using Theater to Increase Empathy Training in Medical Students / EUA | Teatro | Estudo experimental qualitativo com 167 estudantes do 1º ano de medicina. Workshop de teatro (uso de jogos de teatro, fotografia e escrita reflexiva) para construir empatia/autorreflexão. |
Ünalan et al 39Using theatre in education a traditional lecture oriented medical curriculum / Turquia | Teatro | Estudo experimental qualitativo e quantitativo com 49 estudantes de medicina. Curso preparatório de 2 semanas para escrever diferentes cenários dramatizados sobre tema de medicina, desempenho teatral seguido de discussão. |
Jacobsen et al 40Analysis of role-play in medical communication training using a theatrical device the fourth wall / Suécia | Teatro | Estudo experimental qualitativo com 30 estudantes do último ano de medicina. Workshop filmado com a utilização de role-play e técnica conhecida como a “quarta parede”, seguida da análise do material filmado. |
Klemenc-Ketis & Kersnik 43. Using movies to teach professionalism to medical students / Eslovênia | Cinema | Estudo experimental qualitativo com 11 estudantes do 4º ano de medicina. Curso de 4 meses sobre profissionalismo com exibição de filmes sobre temas escolhidos pelos estudantes, seguidos de discussão e apresentação escrita e oral. |
Landsberg 42Vendo o outro através da tela: cinema, humanização da educação / Brasil | Cinema | Estudo experimental qualitativo e quantitativo com 34 estudantes do 1º e 6º período de medicina. Projeção de filmes seguido de discussão multidisciplinar com presença de psicanalista e profissional do cinema. |
Figaredo & Garcia 41El cine como herramienta em la docencia de Psiquiatria / Cuba | Cinema | Estudo qualitativo com 43 estudantes do 5º ano de medicina. Projeção de filmes (1vez por semana) relacionado ao conteúdo do programa da disciplina de Psiquiatria, após palestra introdutória e antes do seminário correspondente. |
Competências educacionais sensíveis às artes visuais
A observação detalhada de pinturas, seguida de discussão e ou reflexão, foi capaz de desenvolver a capacidade de observação clínica dos estudantes, com possíveis consequências positivas na relação médico-paciente16-21. A experiência de análise visual de uma pintura e a narrativa que articula o que se vê pela primeira vez sem interpretação podem ser uma ferramenta importante no aprimoramento das habilidades de observação22. Shankar et al.23 discutem em seu estudo como a utilização de pinturas na educação médica pode libertar a imaginação, auxiliar os alunos a ver novas perspectivas e pensar de forma crítica e criativa sobre os problemas que podem encontrar em sua futura carreira. Elder et al.24e Tapajós25discutem como as artes visuais podem melhorar as habilidades de observação, descrição, interpretação e resposta dos estudantes de Medicina em relação aos aspectos subjetivos do cuidado médico. Naghshineh et al.26 e Kidd et al.27 relatam que relacionar as pinturas com o diagnóstico físico foi capaz de melhorar a acurácia diagnóstica dos estudantes.
As artes visuais desencadeiam sentimentos e transmitem consciência de valores e sentimentos pessoais16. Segundo Braverman28, a arte possibilita que o aluno aprenda a aceitar e a considerar interpretações alternativas, além de estimular o trabalho em equipe, que é essencial na prática profissional. As artes promovem habilidades específicas e psicomotoras úteis à profissão, como a visão espacial e a capacidade de pensar em três dimensões. Segundo Mcmenamin29, o uso da pintura corporal para auxiliar o aprendizado dos alunos sobre aspectos da anatomia clinicamente relevantes provou ser uma estratégia educacional positiva na aprendizagem da topografia humana. Finn et al.30 analisam o impacto das cores na pintura corporal e acreditam que exista uma associação entre retenção de conhecimentos e utilização de cores. Moore et al.31 discutem como uma oficina de arte e anatomia pode auxiliar os estudantes a melhorar a capacidade de detectar detalhes e levar os alunos a uma reflexão sobre os aspectos humanísticos da anatomia. Além disso, as artes visuais são divertidas e recreativas, na medida em que geram prazer e permitem um relaxamento do estresse diário29.
Competências educacionais sensíveis à utilização da literatura
Shapiro et al.32 discutem como o uso da literatura (leitura de poesia, paródias, notícias sobre o relacionamento médico-paciente) pode melhorar a empatia e interesse pela literatura dos alunos ao estimular um olhar mais amplo sobre a relação médico-paciente. Jacobson et al.33 sustentam que a literatura pode ser utilizada para auxiliar o aluno a lidar com a complexidade do adoecer, que envolve sentimentos (do paciente e do médico), atitudes e comportamentos. Miller et al.34 e Easton35 observam que a narrativa pode ser útil à aprendizagem na medicina, uma vez que, ao abordar capacidades complexas interiores, interpessoais, perceptivas e expressivas, pode ser particularmente relevante na promoção de aspectos humanísticos da medicina, incluindo a identidade profissional e empatia. Arjmand36 relata que o exercício de relacionar os textos literários com a prática clínica, no treinamento de habilidades, estimula o estudante a avaliar sua habilidade de compreender e interpretar a fala do paciente durante a prática clínica. Van Winkle et al.37 demonstram que a análise dos poemas estimulou a reflexão crítica dos estudantes sobre valores humanísticos e a prática profissional, bem como a lidar com a dissonância de opiniões, estimulando maior interação no trabalho em equipe.
Competências educacionais sensíveis à utilização do teatro
A empatia tem sido reconhecida como um elemento essencial na educação médica. Reilly et al.38 relatam que o teatro pode ser utilizado como uma ferramenta eficiente para o treinamento da habilidade de demonstrar empatia em estudantes de Medicina. Ünalan et al.39 reconhecem a utilização do teatro na educação médica como uma ferramenta para facilitar o ensino não só de habilidades de comunicação e narrativa de história, mas também de problemas clínicos comuns.
Jacobsen et al.40 discutem que o conceito teatral “a quarta parede” – onde todos interagem: atores, estudantes, moderadores e plateia – pode ser uma ferramenta útil para treinar habilidades de comunicação em cenário simulado.
Competências educacionais sensíveis à utilização de cinema e filmes
A constatação de que o cinema é, provavelmente, o tipo de arte com maior popularidade entre os alunos confirma o seu potencial como recurso didático humanizador. Neste contexto, Figaredo e Garcia41relatam a experiência positiva da utilização do cinema como ferramenta útil no ensino de Psiquiatria para estudantes de Medicina e Landsberg42 discute os aspectos positivos da correlação dos filmes com a prática médica. Klemenic-Ketis e Kersnik43 usam filmes para ensinar profissionalismo a estudantes de Medicina. Os autores relatam que por meio dos filmes os alunos podem explorar seus valores, crenças e atitudes em relação às características do profissionalismo sem sentir que sua integridade pessoal tenha sido ameaçada.
DISCUSSÃO
Esta revisão sugere que a utilização das artes no currículo médico pode ser uma ferramenta útil ao desenvolvimento dos aspectos mais subjetivos relacionados à prática clínica. De La Croix et al.44 relatam que os programas de ensino baseados em artes muitas vezes são incluídos nos currículos das escolas médicas sob o guarda-chuva de humanidades médicas. Nossa análise revelou que as intervenções baseadas em artes, dos estudos selecionados, além de abordarem aspectos humanísticos da medicina, versaram também sobre o desenvolvimento de observação diagnóstica, o aprendizado cognitivo, a habilidade de reflexão e argumentação, o profissionalismo e a capacidade de trabalhar em equipe. Estes resultados demonstram o amplo espectro de abordagem que é sensível à utilização da arte como estratégia educacional. Segundo Haidet et al.4, a natureza metafórica e representacional das artes, bem como sua subjetividade, qualidades ambíguas e complexas e universalidade são características que podem promover ricas experiências de aprendizagem. Estas características auxiliam a desafiar o pensamento concreto ou literal e também servem para legitimar as experiências e emoções pessoais dos alunos em lidar com uma variedade de tópicos. As artes, portanto, podem fornecer subsídios para repensar a educação médica e a prática médica.
Entretanto, nossa análise destacou alguns pontos relevantes nos estudos avaliados. Observamos que todos os artigos incluídos neste estudo relataram que suas intervenções foram eficazes em promover modificações positivas nos estudantes, mas somente 29% deles definiram como esse sucesso foi medido. Essa falta de clareza apareceu principalmente na descrição de como as intervenções baseadas em artes poderiam modificar habilidades e atitudes e de como elas efetivamente o fizeram.
Outro fato observado foi a falta de padronização do método de avaliação utilizado para medir a eficácia da intervenção. Observou-se que a grande maioria dos estudos utilizou questionários desenvolvidos pelos próprios pesquisadores para avaliar a percepção dos estudantes sobre a intervenção realizada, o que dificulta a comparação da intervenção com outros estudos. Somente alguns estudos relatam a utilização de perguntas baseadas no método de ensino denominado Estratégias de Pensamento Visual (Visual Thinging Strategies – VTS), desenvolvido por Housen45, que vem sendo utilizado com sucesso na educação médica, pois estimula a discussão de ideias em grupo e a habilidade da escuta atenta, com implicações na prática médica46. Este método foi desenvolvido para facilitar as discussões sobre obras de arte, promovendo habilidades de pensamento mais amplas e interações colaborativas entre pares. Ele se baseia em três perguntas sequenciais feitas por facilitadores: O que está acontecendo nesta imagem? O que você vê na imagem que leva você a dizer isto? O que mais você pode encontrar?45.
Vários estudos basearam o sucesso da intervenção na própria opinião dos estudantes sobre a mudança de suas atitudes. Isto deve ser considerado uma limitação do estudo, uma vez que mudança de atitude não se traduz necessariamente em mudança de comportamento.
Observou-se também que a avaliação da aprendizagem, nos estudos selecionados, utilizou, na maioria dos casos, processos de curto prazo (logo após a intervenção), tendo como objetivo avaliar o desenvolvimento de autoconsciência, abertura para outras perspectivas e maior habilidade para lidar com ambiguidades. Entretanto, nestes casos, deve-se levar em consideração que observações avaliadas imediatamente após a intervenção não permitem identificar o impacto de longo prazo da estratégia adotada. Naghshineh et al.26 relatam a importância de uma avaliação longitudinal na avaliação da eficácia da utilização das artes no currículo médico.
Nos estudos que utilizaram o processo de avaliação de longo prazo, o objetivo principal foi avaliar a opinião do estudante sobre a influência da intervenção na prática clínica, não havendo, portanto, uma avaliação efetiva da eficácia da intervenção na mudança de comportamento. Perry et al.7 encontraram resultados semelhantes e sugeriram a necessidade de estudos adicionais para avaliar intervenções baseadas em artes em termos de seus efeitos nas atitudes e no comportamento.
Outro fato que merece ser destacado nos estudos selecionados é a ausência de utilização de um grupo controle na grande maioria dos estudos (82%). A utilização de um só grupo de estudo pode levar a um viés de atitudes que podem dominar os membros do grupo7.
Também se observou que 46% dos estudos envolveram a colaboração de artistas ou educadores de artes, levantando questões sobre a importância da experiência necessária e da especialização nas artes para projetar e desenvolver tais intervenções. Osman et al.47 sugerem em seu estudo que a colaboração de artistas e educadores de artes no projeto de intervenções é vital para trazer clareza para o papel das intervenções. Segundo esses autores, artistas e educadores de artes podem identificar comportamentos ou habilidades específicas que as intervenções baseadas em artes podem oferecer à educação na área da saúde. Como o conhecimento é inevitavelmente moldado pela experiência disciplinar, a visão dos artistas pode auxiliar na identificação de pontos relevantes que podem não ser percebidos pelos educadores da saúde.
Como fatores limitantes da utilização das artes como estratégia educacional, deve-se destacar o desconforto e a ansiedade apresentados por alguns estudantes ao participarem de atividades baseadas em arte. Deve-se também levar em conta que alguns estudantes não veem a relevância da utilização da arte no currículo5.
Assim, os estudos sugerem que os estudantes, no geral, referem satisfação com as estratégias baseadas em arte no currículo médico. Entretanto, devido à natureza subjetiva da maioria dos estudos, baseados principalmente na opinião do estudante sobre as modificações ocorridas em suas atitudes, a eficácia das intervenções nem sempre foi efetivamente demonstrada. Mais estudos de metodologias mistas (qualitativos e quantitativos) e com características longitudinais são necessários para evidenciar o verdadeiro efeito das artes como estratégia educacional no currículo médico.
CONCLUSÃO
Com base nos resultados dos estudos, podemos concluir que o aprendizado por meio das artes pode fornecer aos estudantes de Medicina habilidades para fortalecer suas práticas, se comunicar de forma mais efetiva e melhorar sua confiança. Além disso, a arte pode ser uma experiência de desenvolvimento pessoal e profissional e representa uma fonte de percepção das experiências dos pacientes e do contexto social, cultural e histórico das práticas médicas.
Entretanto, devido à natureza subjetiva das artes e à ausência de instrumentos padronizados para avaliação das intervenções, sua efetividade como estratégia educacional ainda precisa ser provada.