INTRODUÇÃO
A formação médica, resguardadas as devidas proporções e acompanhando a evolução da sociedade brasileira, passou por importantes transformações, iniciadas no século XX e ainda em curso nestas primeiras décadas do novo século. A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, ocorrida em 1978, em Alma-Ata, no Cazaquistão, foi a mais importante força propulsora de mudanças no campo da saúde, uma vez que posicionou a lupa do sistema de saúde sobre a atenção primária, alicerce de sustentação e principal porta de entrada do novo processo de trabalho em saúde1 .
Em terras tupiniquins , na década de 1970, a população experimentava os anos mais cinzentos de sua história: a ditadura militar. Foi nesse período que dois movimentos surgiram e passaram a caminhar lado a lado contra a repressão e a ausência de direitos civis. O primeiro foi o processo de luta contra o poder instituído via golpe militar; já o segundo buscava a saúde como direito social – a chamada reforma sanitária2 . Os resultados foram o fim da ditadura militar, o restabelecimento da democracia, a promulgação da Constituição cidadã de 1988 e a garantia da saúde como um direito de todos e dever do Estado, dando origem ao Sistema Único de Saúde (SUS), alicerçado nos princípios filosóficos da universidade, integralidade e equidade. Anos depois, nasceu o Programa de Saúde da Família – atual Estratégia Saúde da Família –, buscando efetivar a atenção primária como o alicerce do SUS3 .
Em virtude dessas intensas mudanças, o modelo de formação médica vigente à época não mais conseguiria ofertar profissionais capazes de lidar com as novas demandas sociais e sanitárias. O profissional médico assume um novo papel social, o que exige modificação do processo formativo, uma vez que esse novo perfil se assenta na necessidade de transformar a realidade sociossanitária local.
[ E o passado é uma roupa que não nos serve mais] .
Sabia-se que era necessário mudar o processo formativo, mas como? Que ações as escolas médicas deveriam adotar para formar esses novos profissionais? Que metodologias de ensino utilizar? Que competências, habilidades e atitudes deveriam ser valorizadas? Em busca de respostas, muitas experiências foram realizadas nos últimos anos, culminando num conjunto de diretrizes e guias amplamente utilizado nos cursos de Medicina. As dimensões geográficas do País e, portanto, sua heterogeneidade social, política, econômica e cultural demandaram e demandam processos formativos que estejam em sintonia com a realidade local.
Esses antecedentes serviram de base para a nossa experiência no jovem curso de Medicina da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), campus Arapiraca, criado em 2015 por meio do processo de interiorização de ações da Ufal e da expansão dos cursos de Medicina no Brasil. Assim, nossa escola médica buscou construir um percurso formativo em três grandes eixos: Eixo Tutorial, Habilidades Médicas e Integração Ensino-Saúde-Comunidade (Iesc).
EIXO DE INTEGRAÇÃO ENSINO-SAÚDE-COMUNIDADE (IESC)
O Iesc tem como missão “promover a aproximação do acadêmico com a realidade sociossanitária local a fim de garantir uma formação médica capaz de oferecer uma assistência integral, respeitosa, ética, crítica e humanística, considerando o sujeito e o contexto no qual está inserido, sua cultura, sua crença, seus hábitos e seus costumes”. A opção pelo termo “saúde” na denominação do eixo – e não “serviço”, como geralmente adotado em outros cursos – deve-se a nossa compreensão de que o serviço é uma dimensão do processo saúde-doença. Advogamos que adotar o termo “serviço” seria um reducionismo, tendo em vista que “saúde” e “doença” são resultados dos processos de inserção dos sujeitos no contexto social e, portanto, um produto do meio, suas dinâmicas e tessituras.
Em 2017, para cumprir sua missão, o eixo reestruturou o currículo do curso de modo que a formação ocorra no ciclo básico (primeiro e segundo anos), passando pelo ciclo intermediário (terceiro e quarto anos) e alcançando o internato (quinto e sexto anos) ( Figura 1 ). A arquitetura lógica adotada tem como base as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina (Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014)4 e o currículo de competências da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)5 , respeitando-se o perfil sanitário loco-regional. A equipe docente é composta por profissionais de diferentes áreas do conhecimento, objetivando um trabalho interprofissional: quatro médicos de família e comunidade, dois psicólogos (um sanitarista e um clínico), um fisioterapeuta (epidemiologista), uma enfermeira, um filósofo, além de docentes substitutos. Novos concursos estão sendo realizados com a intenção de ampliar a equipe.
AÇÕES DE APROXIMAÇÃO COM A COMUNIDADE E APRENDIZADO ORIENTADO POR RESULTADOS
As ações desenvolvidas nos últimos dois anos de trabalho mostram o empenho da equipe docente em promover a aproximação entre o acadêmico de Medicina e a realidade sociossanitária do município, enfatizando a participação ativa do discente na construção do conhecimento e no desenvolvimento de habilidades, atitudes, valores e competências que possam transformar a realidade local. Em cada período/semestre são definidos produtos finais, denominados “produtos de consolidação do saber”, conforme exemplificado no Quadro 1 .
Período | Produto de consolidação do saber |
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1º | Diagnóstico comunitário Exposição fotográfica sobre o diagnóstico comunitário |
2º | Boletim epidemiológico e pesquisa científica |
3º | Vídeos educativos para salas de espera |
4º | Formação sobre instrumento de diagnóstico familiar |
5º | Curso de vigilância para agentes comunitários de saúde |
6º | Construção de planos de regionalização |
7º | Evento científico |
8º | Cartilhas educativas com temas relacionados à saúde do trabalhador |
Nossa experiência tem mostrado que o aprendizado significativo deve nascer da prática, isto é, do processo de experimentações da realidade. É perceptível o maior envolvimento dos nossos estudantes quando incluímos atividades com finalidades práticas bem definidas. São exemplos: (a) no ensino de bioestatística, os acadêmicos coletam dados e analisam a qualidade de vida dos próprios estudantes do curso, de modo que todas as aulas são práticas e orientadas por um resultado, posteriormente apresentado em evento; (b) no módulo de gestão, as atividades são orientadas para a compreensão do plano de regionalização do estado e a construção simulada de planos regionais integrados; (c) em territorialização, além do diagnóstico comunitário construído com o apoio da unidade básica de saúde, os resultados são apresentados por meio de exposição fotográfica, posteriormente transformada em produção científica. Por meio desse processo de trabalho, nossos acadêmicos têm conquistado prêmios em eventos científicos, tanto regionais quanto nacionais, e publicações em revistas especializadas.
Além dos produtos definidos e do ensino orientado por resultados, há de se destacar o processo de curricularização de extensão, incluído no projeto pedagógico do curso. Esse foi um compromisso assumido pelo curso para fortalecer as ações “extramuros”, auxiliando os serviços de saúde locais a reduzir os vazios assistenciais, além de democratizar o conhecimento produzido no âmbito do curso. Essas ações envolvem os três eixos do curso de Medicina.
PLANEJAMENTO E AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO
Nossa sistemática de trabalho envolve: (a) reuniões mensais, quando são discutidos os principais problemas e elaboradas estratégias de condução do eixo; (b) padronização de cadernos de curso e estratégias avaliativas; (c) processo de formação continuada dos docentes, como parte do plano bianual de qualificação; (d) inclusão de avaliação por parte dos acadêmicos, com o semestre em curso (três avaliações – no final do primeiro mês de aula, no meio e no final do semestre). Esse último componente foi recentemente incluído com a finalidade de monitorar o semestre letivo em curso. Nelas, é possível identificar problemas em tempo oportuno e estabelecer estratégias de intervenção com vistas a sanar alguma dificuldade.
METODOLOGIAS DE ENSINO
A variedade de metodologias de ensino contribui para o maior envolvimento dos nossos estudantes nas aulas: oficinas de trabalho (OT), aprendizagem baseada em projetos, pesquisa e produção do conhecimento, palestras/conferências/seminários, estudo individual e dirigido, atividades em campo, cineviagem educacional, Fishbowl , T eam Based Learning (TBL) , painel integrado, círculo de cultura, situação-problema, narrativas, simulações em espaço protegido e jogos educativos.
Todos esses recursos são utilizados com vistas a centrar no estudante o processo de aprendizagem, levando em consideração desde a competência cultural de cada um até a interface com os saberes apresentados e debatidos na universidade, sem desconsiderar o perfil socioepidemiológico local.
OS DESAFIOS AINDA SÃO MUITOS
A implantação de uma escola médica no interior do Nordeste brasileiro compreende um processo de articulação que envolve aspectos políticos, culturais e organizacionais que potencializam ou dificultam a efetivação de práticas inovadoras na formação médica. Em um curso tão jovem e ainda em formação, como o nosso, são muitos os desafios a superar. O primeiro desafio que destacamos é consolidar a inserção dos alunos na rede de saúde local.
O curso funciona numa cidade de mais de 230 mil habitantes com cobertura da Estratégia Saúde da Família em 97,86% da população. Essa alta taxa proporciona um contexto favorável ao desenvolvimento de ações na rede de atenção básica6 . Entretanto, todos os cenários de práticas utilizados no curso são administrados por entes públicos (Prefeitura Municipal de Arapiraca e Estado de Alagoas) ou instituições particulares, em especial filantrópicas, conveniadas ao SUS. Nenhum dos equipamentos de saúde é gerido ou cogerenciado pela Universidade Federal de Alagoas, o que representa uma barreira em face dos trâmites existentes para tomadas de decisão e gestão destes serviços, que não foram inicialmente estruturados para funcionar como serviços-escola.
O segundo desafio diz respeito à utilização de metodologias ativas em todo o processo de ensino-aprendizagem. O uso dessas estratégias metodológicas requer uma potência criativa do docente para propor aos alunos ações que se distanciem da visão tradicional, descentrando do professor o controle do currículo e os modos de ensinar. A problemática está na produção de docentes inseridos e comprometidos com essa proposta pedagógica, pautados nessa construção coletiva e democrática do saber.
É preciso aceitar o desafio de formar profissionais médicos comprometidos com a realidade sociossanitária local, com a inserção, desde o primeiro dia de aula, nos serviços de saúde da atenção básica, possibilitando-lhes compreender das vicissitudes dos territórios aos instrumentos de gestão na saúde. O médico egresso desse processo formativo, baseado na interprofissionalidade e no pluralismo, é um profissional com competências e habilidades nas dimensões ética (compromisso com o outro), estética (potência criativa em face das mais variadas situações presentes no cotidiano dos profissionais de saúde) e política (perspectiva da transformação da sociedade).