INTRODUÇÃO
O consumo de álcool é prática disseminada na população mundial, sendo recomendado o desenvolvimento de políticas e ações voltadas a proteger pessoas que preferem não beber, permanecendo na condição de abstêmias, bem como a desestimular o consumo entre os usuários de bebidas alcoólicas1.
No Brasil, uma das ações de monitoramento de fatores de risco na área de vigilância em saúde coordenadas pelo Ministério da Saúde mostra que o consumo de álcool na população geral, nos últimos 30 dias que antecederam a entrevista, apresenta prevalências mais elevadas entre os brasileiros de maior escolaridade (12 e mais anos de estudo) e nas faixas etárias de 18 a 24 anos e de 25 a 34 anos2. Tais resultados reforçam a ideia de que os estudantes universitários, de modo geral, pertencem ao núcleo da população vulnerável às consequências do consumo do álcool, apesar da existência de políticas implementadas no País.
Um levantamento sobre o uso de álcool por universitários, conduzido nas 27 capitais brasileiras, mostrou que a prevalência de consumo entre eles é consistentemente mais elevada comparando-se com a população geral, tanto para uso na vida (86,2% versus 74,6%), quanto nos últimos 12 meses (72,0% versus 49,8%), bem como para os últimos 30 dias (60,5% versus 38,3%)3.
A vida na universidade é preenchida por uma série de novidades que direta ou indiretamente contribui para a experimentação, manutenção e intensificação do uso do álcool4. Desde os anos 1990, estudos apontam que a faculdade de Medicina é locus de iniciação de consumo de álcool5. Contudo, a universidade tem por natureza papel social e compromissos científicos que devem ser desafiados e intensificados a fim de se inibir o uso desta e de outras substâncias psicoativas.
No Brasil, o hábito de ingerir bebida alcoólica se expande a diferentes cursos superiores da área de saúde6. No Rio de Janeiro, dados de 1998 que envolveram 1.005 acadêmicos de Medicina de quatro universidades públicas mostraram que o uso de álcool na vida e nos últimos 30 dias alcançou, respectivamente, as proporções de 96,4% e 58,8%7.
Considerando a gravidade dos problemas gerados pelo uso do álcool e o enfoque da literatura, que envolve quase exclusivamente as características individuais dos estudantes de graduação, neste estudo postulamos que a prevalência do uso de álcool nos estudantes de Medicina, no Brasil, pode manter relação com características da escola médica, bem como com as do curso de Medicina. Assim, os objetivos deste estudo foram: (i) efetuar uma revisão de literatura para identificar estudos de prevalência de uso de álcool entre estudantes de Medicina de escolas brasileiras; (ii) analisar as estimativas de prevalência de uso de álcool segundo características dos cursos e das escolas médicas.
MÉTODO
Estratégias e período de busca
Este estudo abrange uma revisão sistemática da literatura com foco em publicações relativas a estudantes de escolas médicas brasileiras. Essa revisão foi desenvolvida isenta de limitadores de idioma e de período e foi encerrada em março de 2018. Foram utilizadas estratégias de busca com o uso de descritores (DeCs Terminologia) de saúde indexados à base de dados do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (Bireme). As bases de dados bibliográficos consultadas foram a de Literatura Latino-Americana em Ciências de Saúde (Lilacs) e da US National Library of Medicine of National Institute of Health (Medline/Pubmed). As combinações de descritores usadas na busca no Lilacs foram [(estudantes de medicina AND álcool)] e no Pubmed foram [(medical students AND alcohol AND Brazil)]. A busca foi ampliada também à lista de referências dos artigos selecionados para leitura.
Critérios de inclusão
Os critérios de inclusão considerados foram: (i) artigos originais; (ii) informação clara de identificação da escola onde o estudo foi desenvolvido; (iii) fornecimento de estimativas de prevalência de uso de álcool.
Critérios de exclusão
Foram excluídos os estudos que envolveram mais de uma escola, mas que não forneceram estimativas de prevalência individualizadas; e estudos conduzidos em instituições cujos dados de interesse da pesquisa não se encontravam disponibilizados em nenhuma fonte online (site da própria instituição, Ministério da Educação e Cultura, etc.).
Formulários e extração dos dados
Foi desenvolvido um formulário para registrar as informações básicas de identificação dos estudos (autor, ano, periódico, instituição, método de ensino); localização da escola médica (região geográfica e capital/interior); tipo de gestão (pública/privada); características do curso (tempo de existência e carga horária do curso); prevalência de uso de álcool (PV); quantitativo de estudantes entrevistados (N) e de estudantes usuários de bebidas alcoólicas (n).
Estiveram envolvidos na coleta de dados os alunos de iniciação científica, estudantes de Medicina, coautores do presente manuscrito, supervisionados pela orientadora. Diante da falta de consenso sobre a inclusão ou não de um estudo, a decisão foi tomada pela orientadora.
Os indicadores de uso de álcool foram extraídos segundo o padrão de medição relatado nos estudos, sendo considerado para a presente revisão se o estudante (i) bebeu nos últimos sete dias (7D), (ii) bebeu nos últimos 30 dias (30D) e (iii) bebeu no último ano (ANO).
Com a consulta às bases científicas (Lilacs e Pubmed), 131 publicações foram identificadas. Após a triagem inicial, aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, eliminação das repetições e consulta à lista de referências, foram incluídos 14 artigos. O fluxograma síntese da estratégia de busca e seleção de artigos encontra-se na Figura 1.
A qualidade metodológica dos estudos incluídos teve como parâmetro oito critérios, concebidos em 1998 por Loney e colaboradores8, com a finalidade de orientar análises de estudos de prevalência e de incidência. Para esses autores, é importante verificar questões a respeito de: (i) cálculo e adequação do tamanho da amostra; (ii) definição dos indivíduos para composição da população de estudo; (iii) processo adotado para seleção dos participantes; (iv) uso de instrumento de aferição validado; (v) coleta e mensuração da informação sem viés; (vi) verificação de taxa de resposta e de recusa; (vii) estimativa de intervalos de confiança; (viii) apresentação de resultados para grupos e subgrupos, com possibilidade de generalização. Critérios adequados recebem escore 1, e o somatório máximo dos escores é de 8 pontos.
Análise da relação entre indicadores de prevalência e características das escolas médicas
A análise da relação entre os indicadores de prevalência e as características das escolas médicas foi feita primeiramente pela plotagem e visualização de gráficos de ações onde, no eixo do Y, constavam as estimativas de prevalência e os limites de intervalos de confiança, e no eixo de X, os diferentes estudos. A apresentação dos gráficos foi organizada segundo região geográfica, modelo de gestão e localização na capital ou no interior, considerando os diferentes padrões de mensuração [(7D), (30D), (1ANO)].
Correlação entre indicadores de prevalência e características dos cursos de Medicina
A correlação entre os indicadores de prevalência e as características dos cursos de Medicina foi feita pela plotagem e visualização de gráficos de dispersão, considerando no eixo do Y as estimativas de prevalência, e no eixo do X os anos de existência do curso e a carga horária do curso.
O cálculo de anos de existência do curso foi baseado na diferença entre o ano de início das atividades de ensino no curso e o ano em que ocorreu a coleta de dados. A carga horária foi obtida em documentos disponibilizados online pelas universidades ou na página da internet Escolas Médicas9 ou em site oficial do Ministério da Educação. Para esta análise, foi usada a carga horária vigente no ano da coleta dos dados da pesquisa.
Análise estatística
Para verificação de diferenças entre as estimativas de prevalência, considerou-se a comparação de intervalos de confiança de 95% (IC 95%). Prevendo-se que tais intervalos poderiam estar ausentes de algumas das publicações, considerou-se a equação IC(95%) = po ± 1,96√(po(1 – po))/n para obtenção dos limites superiores e inferiores dos intervalos de confiança de IC 95%, onde po é a prevalência estimada, e n é a amostra da população incluída no estudo.
RESULTADOS
Os estudos incluídos (n = 14) nesta revisão foram desenvolvidos na predominantemente Região Sudeste (n = 8) e tiveram casuísticas selecionadas após o ano 2000 (n = 11). Oito deles eram de instituições de administração pública e seis de administração privada. O método de ensino principal foi o tradicional. Somente dois periódicos (Revista Brasileira de Psiquiatria e Jornal Brasileiro de Psiquiatria) contribuíram com mais de um artigo. O escore relativo à qualidade metodológica das publicações variou de 3 a 7. As características dos estudos incluídos encontram-se na Tabela 1.
Referência/Autor/ Instituição | Ano/Periódico | Região/ Local/ Gestão | Carga horária | Existência do curso (em anos) | Principais resultados | escore | Recomendações |
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10. Ferraz et al./ Unichapecó | 2017 / Rev Bras Promoç Saúde | Sul/ Interior/ Privada | 7.880 | 6 | Uso nos 7D = 46,5% Uso nos 30D = 20,2% | 3 | Promover discussões |
11.Petroianu et al. UFMG | 2010 / Rev Assoc Med Bras | Sudeste/ Capital/ Pública | 6.660 | 97 | Uso nos 7D = 37,7% Uso no ANO = 85,2% | 3 | Nenhuma |
12. Carvalho et al./ Santa Casa de SP | 2008 / Int J Adolesc Med Health | Sudeste/ Capital/ Privada | 10.052 | 42 | Uso nos 7D = 35,4% Uso nos 30D = 25,5% | 4 | Nenhuma |
13. Kerr-Correa et al./ Unesp Botucatu | 1999 / Rev Bras Psiquiatr | Sudeste/ Interior/ Pública | x | 31 | Uso nos 7D = 23,0% Uso nos 30D = 50,0% Uso no ANO = 79,35% | 7 | Formatar políticas; fornecer informação científica, educação para lidar com estresse, atividades recreativas e de relaxamento sem uso de substâncias; elaborar programas de prevenção |
14. Tostes et al./ FM. de Itajubá | 2016 / Rev Ciências da Saúde | Sudeste/ Interior/ Privada | 7.555 | 45 | Uso nos 30D = 87,6% | 5 | Elaborar programas e práticas; instituições, entidades representativas dos estudantes e famílias devem se unir para buscar soluções |
15. Calheiros et al./ Unesc (SC) | 2013 / Arq Catarin Med | Sul/ Interior/ Privada | 8.568 | 12 | Uso nos 30D = 85,4% Uso no ANO = 86,9% | 4 | Implementar ações de prevenção; treinar habilidades para lidar com estresse; detectar precocemente o uso; fornecer material científico; treinar professores |
16. Moraes et al./ UF do Tocantins | 2013 / Arq Med Hosp Fac Cien Med Santa Casa SP | Norte/ Capital/ Pública | 8.610 | 6 | Uso nos 30D = 69,7% | 3 | Programas de orientação e prevenção, como o Projeto Viver Bem, da Unesp, e o Programa Viva Mais, da Unicamp. Incluir disciplina sobre álcool e drogas e apoio psicopedagógico |
17. Oliveira et al./ USP (dados 1996) | 2009 / Rev Bras Psiquiatr | Sudeste/ Capital/ Pública | x | 84 | Uso nos 30D = 76,3% Uso no ANO = 84,6% | 5 | Estratégias para reconhecimento precoce de estudantes em risco de uso; alocar recursos para tratamento, recuperação e reabilitação |
17. Oliveira et al./ USP (dados 2001) | 2009 / Rev Bras Psiquiatr | Sudeste/ Capital/ Pública | x | 89 | Uso nos 30D = 75,7% Uso no ANO = 85,7% | 5 | Estratégias para reconhecimento precoce de estudantes em risco de uso; alocar recursos para tratamento, recuperação e reabilitação |
18. Spinelli et al./ Fac. Med. Jundiaí | 2009 / Perspect Med | Sudeste/ Interior/ Pública | 10.310 | 38 | Uso nos 30D = 82,5% Uso no ANO = 91,4% | 6 | Implementar política de prevenção; aumentar carga horária de aulas sobre o tema; oferecer apoio psicológico; criar mecanismos institucionais para informação e prevenção |
19. Tockus e Gonçalves/ Positivo | 2008 / J Bras Psiquiatr | Sul/ Capital / Privada | 8.180 | 3 | Uso nos 30D = 70,4% | 4 | Reconhecer a influência do ambiente universitário; tomar medidas preventivas institucionais; triar o uso na instituição e inserir programas de prevenção |
20. Boniatti et al./ Univ. Caxias do Sul | 2007 / Drug Alcohol Rev | Sul/ Interior/ Privada | 8.010 | 38 | Uso nos 30D = 84,7% Uso no ANO = 92,9% | 5 | Propor programa educacional para debater e esclarecer o uso de drogas psicoativas durante o curso de Medicina |
21. Di Pietro et al./ Unifesp | 2007 / Addict Behav | Sudeste/ Capital/ Pública | 9.900 | 73 | Uso nos 30D = 76,9% | 3 | Propor intervenções preventivas; questionar o modelo de ensino no campo de substâncias psicoativas; implementar estratégias para redução de risco |
22. Pereira et al./ Ufes | 2008 / J Bras Psiquiatr | Sudeste/ Capital/ Pública | 8.205 | 46 | Uso nos 30D = 48,2% Uso no ANO = 82,1% | 6 | Inserir disciplinas que tratem de álcool e outras drogas; criar programas para prevenção do uso |
23. Souza et al./ UF do Ceará | 1999 / Rev Psiq Clin | Nordeste/ Capital/ Pública | 8.736 | 49 | Uso nos 30D = 65,6% Uso no ANO = 79,6% | 6 | Nenhuma |
x (informação indisponível sobre carga horária do curso no ano da coleta de dados da pesquisa original)
Entre os 14 estudos analisados, apenas um17 apresentou resultados de dois anos independentes (1996 e 2001), dez10-13,15,17,18, 20,22,23 examinaram mais de um indicador (7D e/ou 30D e/ou ANO) de prevalência, e um13 único analisou os três indicadores (7D e 30D e ANO) de prevalência de interesse da presente revisão.
Avaliação de estudos de prevalência de uso de álcool nos últimos sete dias (7D)
Quatro estudos10-13 avaliaram o consumo nos últimos sete dias anteriores à entrevista. Três foram desenvolvidos na Região Sudeste e um na Região Sul, sendo dois de escolas públicas e dois de escolas privadas; e dois localizados em capitais e dois no interior. Devido à não sobreposição dos intervalos de confiança, um13 estudo parece indicar realmente magnitudes diferentes das dos demais. Apesar do pequeno número de estudos na categoria de 7D, a dispersão sugere que as estimativas de prevalência de uso de álcool mantêm correlação negativa com a carga horária do curso, bem como com os anos de existência da escola médica (Figura 2).
Avaliação de estudos de prevalência de uso de álcool nos últimos 30 dias (30D)
Com exceção de um estudo11 com gestão pública e localizado numa capital na Região Sudeste, todos os demais examinaram o indicador de prevalência de 30D. Entre estes últimos, predominou a gestão pública (53,8% versus 46,2%) e a localização na capital (53,8% versus 46,2%). As estimativas de prevalência variaram de 20,2%10 a 87,6%14, com sete14,15,17-20,21 estudos mostrando indicadores maiores que 70%. Com respeito à carga horária do curso e aos anos de existência da escola médica, o diagrama de dispersão mostra tendências em direções contrárias, com correlação negativa com a carga horária e positiva com os anos de existência da escola (Figura 3).
Avaliação de estudos de prevalência de uso de álcool no último ano (ANO)
Oito estudos avaliaram o consumo de álcool no último ANO. Cinco11,13,17,18,22 são da Região Sudeste, dois15,20 da Sul e um23 da Nordeste. Predominou a gestão pública (75,0% versus 25,0%), mas a localização capital/interior teve distribuição similar. As estimativas indicam que o padrão de consumo no último ano pode ser maior que 80%, pois quatro11,13,22,23 dos oito estudos nesta categoria tiveram limite inferior dos IC 95% maior do que 0,800, e os outros quatro15,17,18,20 tiveram IC 95% maior do que 0,900. Contudo, devido à completa sobreposição dos limites dos intervalos, não é possível afirmar que o hábito de ingerir álcool seja diferente estatisticamente em alguma das escolas. A verificação de correlação mostra tendência positiva em relação à carga horária e negativa em relação aos anos de existência da escola (Figura 4).
DISCUSSÃO
Este estudo trouxe como principal contribuição a inclusão das características de cursos e escolas médicas no debate do uso de álcool por estudantes de medicina. A revisão bibliográfica mostrou que a literatura é abundante e aborda diferentes padrões de mensuração. O interesse em mensurar o consumo de álcool nos últimos sete dias, 30 dias e último ano, apesar de ter sido delimitado em apenas 14 dos estudos incluídos, uniformizou e otimizou as comparações.
Em relação à qualidade dos estudos, questões salientadas em 1998 por Loney e colaboradores8 como importantes para investigações de prevalência não foram plenamente atendidas, pois nenhum dos estudos incluídos obteve escore 8. Chama a atenção que passos metodológicos imprescindíveis, como cálculo de amostra e métodos aleatórios de seleção dos participantes, foram pouco citados. O maior escore (7) foi atribuído ao estudo de Kerr-Correa e colaboradores13. Contudo, apenas Oliveira e colaboradores17 apresentaram, além das estimativas pontuais de prevalência, os intervalos de confiança de 95%.
Tivemos estudos de instituições de gestão pública e gestão privada, localizadas na capital e também no interior. Considerando as limitações impostas por análises baseadas em aspectos individuais, alguns autores24 enfatizam a importância de ampliar as investigações para compreender a influência das instituições propriamente ditas no hábito de ingerir álcool. Contudo, acrescentam que, mesmo utilizando técnicas estatísticas sofisticadas, as evidências ainda são insuficientes para consistentemente explicar o papel de algumas características da escola e do modelo de gestão sobre o uso de álcool24.
Não identificamos estudos procedentes da Região Centro-Oeste que atendessem os critérios da presente revisão. Ademais, o único estudo23 incluído procedente da Região Nordeste examinou o uso de álcool na vida (92,0%), no último ano (79,6%) e no último mês (65,5%), mas teve coleta de dados em 1997. É importante ressaltar que, nos últimos anos, a Região Nordeste foi agraciada com um número razoável de autorizações para abertura de cursos de Medicina9. Escolas recém-inauguradas supostamente seguem métodos de ensino ativos do tipo Problem-Based Learning (PBL) e contextualizados às necessidades de populações adscritas aos estabelecimentos de ensino e às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS). Em comparação com as escolas que adotam métodos tradicionais, estruturas recém-inauguradas podem constituir ambientes mais atrativos, com repercussão positiva no bem-estar de estudantes de Medicina, o que se reflete, por exemplo, no menor consumo de substâncias psicoativas, sendo, portanto, merecedoras de mais avaliações científicas.
A magnitude dos indicadores obtidos nesta revisão sugere que a situação de estudantes de Medicina pode ser mais complexa que a de outros grupos populacionais. O padrão de uso no último ano tem as prevalências mais altas, todas acima dos limites estimados em levantamento nacional3, tanto para universitários (72%), quanto para a população geral (49,8%). Valores superiores a 90% foram encontrados por Boniatti e colaboradores20 em escola privada do Sul do País e por Spinelli e colaboradores18 em instituição pública da Região Sudeste.
Com respeito ao padrão de uso nos últimos 30 dias, a situação foi mais divergente, pois, dos 13 estudos que avaliaram esse consumo, cinco10,12,13,22,23tiveram valores abaixo dos relatados no levantamento nacional3, onde as prevalências foram de 60,5% e de 38,3%, entre universitários e população geral, respectivamente. Nesta revisão, as menores taxas de consumo nos últimos 30 dias ficaram abaixo de 30% e são de duas escolas privadas10,12, localizadas em capitais.
Por considerar que aspectos ambientais também são responsáveis pelo mau uso do álcool nos Estados Unidos, a força-tarefa coordenada pelo National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) tem induzido intervenções para conter o problema que envolve o campus universitário e comunidades vizinhas25. Embora os aspectos ambientais ainda suscitem controvérsias, o tipo de residência usada pelos alunos, o tamanho da instituição e a disponibilidade do produto são reconhecidos como os principais facilitadores. Do ponto de vista individual, as iniciativas mais bem-sucedidas destacam as habilidades cognitivas e comportamentais como merecedoras de mais atenção, com enfoque nas técnicas motivacionais e no trabalho sobre as expectativas dos estudantes com o uso do álcool26.
No Brasil, o diagnóstico da situação do uso de álcool vivenciada na Universidade Federal de Santa Catarina gerou proposições que abrangem mudanças curriculares, abertura de espaços oficiais e extraoficiais destinados à discussão sobre o tema, incluindo o desenvolvimento de campanhas preventivas e combate ao uso de substâncias em nível local e nacional27. Em 11 dos 14 estudos analisados na presente revisão, os autores se preocuparam em formular algumas recomendações. As propostas em geral mostram que a universidade não pode continuar a se omitir do enfrentamento do problema do álcool. Entre outras ideias, os autores destacaram a importância de formular políticas e criar programas, questionar modelos de ensino, inserir disciplinas sobre o tema, capacitar professores, oferecer materiais, cuidar dos estudantes que fazem uso, incluindo oferta de atividades recreativas e de relaxamento que não façam uso de substâncias, etc. Uma interrogação que permanece, embora não tenha sido objeto desta revisão, é como as universidades brasileiras, em especial as escolas médicas, estão lidando com o problema do álcool em seus estudantes? Houve avanços ou ainda estão apenas no plano da proibição nos campus e ambientes vizinhos?
Com respeito às análises de correlações, primeiramente destacamos a importância dos resultados relativos aos últimos sete dias. Apesar de contarmos com apenas quatro estudos, o padrão de 7D tem a vantagem de conter menor possibilidade de viés de memória e, por conseguinte, de erro de mensuração. Na falta de informações mais precisas sobre frequência e volume ingerido, a análise do padrão de uso em período de tempo mais curto e recente (7D) delineou tendência de prevalências em direção negativa tanto com a carga horária quanto com os anos de existência da escola. Por outro lado, as correlações dos padrões de 30D e um ano envolveram um número maior de estudos, com estimativas de uso de álcool mais elevadas, mas um panorama de maior imprecisão, com as linhas de tendências seguindo em direções contrárias. Em que pese o caráter exploratório do presente estudo, os resultados encontrados, alinhados à gravidade do problema do uso do álcool, justificam a implementação de pesquisas delineadas especificamente para determinar o efeito de componentes ambientais relacionados às escolas e cursos sobre o uso de substâncias, especialmente o álcool, entre os estudantes de Medicina.
Uma das vantagens da atual revisão foi não impor restrições com respeito a idioma e ano de publicação. Contudo, as reformulações implementadas por algumas escolas médicas ao longo dos anos e a falta de informação clara impuseram algumas limitações que inviabilizaram a análise de correlação de carga horária de todas as escolas incluídas. Outra limitação é que, por se tratar de uma revisão sistemática que preencheu todos os passos exigidos por esse tipo de pesquisa, a não implementação de metanálise impediu a estimar uma medida sumária de prevalência de uso de álcool entre estudantes de Medicina.
Concluindo, nossa revisão mostrou que o uso de álcool é tema recorrente na literatura científica no Brasil e que as prevalências nos últimos sete dias, 30 dias e último ano são altas entre estudantes de Medicina. Acentuamos que a influência das características de escolas médicas e de cursos de Medicina sobre o uso de substâncias psicoativas carece de mais atenção da comunidade científica, sendo notória a necessidade do envolvimento das instituições de ensino superior no controle do problema do álcool no Brasil.