INTRODUÇÃO
A relação de interdependência entre o Sistema de Saúde e a formação dos profissionais de saúde que nele atuam é um relevante aspecto a estudar. Governantes de diversos países do mundo têm como responsabilidade reconhecer e atuar de forma a promover eficiência, efetividade e equidade na relação entre oferta e demanda de profissionais de saúde, de forma a garantir o cuidado em saúde às populações. Nesse sentido, as escolas médicas precisam dialogar com o mercado de trabalho e atender as demandas de saúde da população, de modo que a formação dos profissionais seja coerente com as necessidades de saúde1 .
No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), há cerca de 30 anos, serviu como marco de inclusão de metade da população antes excluída de qualquer acesso a um sistema público de saúde. Segundo essa lógica, o ordenamento para a formação de recursos humanos é uma das atribuições do SUS, com um olhar sensível para as necessidades de saúde das famílias e comunidades2 .
Desde a criação do SUS até hoje, a formação de trabalhadores para o SUS ainda é incipiente devido às diversas limitações decorrentes dessa interação entre as escolas médicas e as demandas da população. Por um lado, atualmente, muitas escolas médicas, embora estejam em fase inicial de incorporação das Diretrizes Curriculares Nacionais de 20143 , ainda mantêm a maior parte do currículo voltado para a formação centrada na clínica hospitalar e na especialidade, com o paradigma hegemônico da cura, em detrimento das práticas comunitárias, e seu corpo docente tem poucas vivências no SUS e em práticas de promoção da saúde, priorizando a prática diária nos consultórios. Por outro lado, problemas estruturais também persistem, especialmente na gestão do trabalho no SUS, tais como desequilíbrio entre oferta e demanda, escassez de profissionais no interior do País, precarização do trabalho e terceirização dos serviços de saúde4 .
Em reconhecimento a esse cenário, o governo federal brasileiro instituiu o Programa Mais Médicos, por meio da Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Além do provimento de médicos para atendimento da população, essa lei aborda diversos aspectos referentes à formação de médicos sob uma perspectiva diferente da vigente, com vistas a suprir a carência de formação médica para atuação no SUS. Um dos aspectos dessa lei se refere à especialização dos médicos por meio de Programas de Residência. O Art. 5º prevê que “Os Programas de Residência Médica [...] ofertarão anualmente vagas equivalentes ao número de egressos dos cursos de graduação em Medicina do ano anterior.”5 . Sabe-se que, atualmente, o número de vagas oferecidas para residência médica é muito inferior ao número de egressos das faculdades de Medicina em todo o território nacional. Segundo Chaves et al .6 , há concentração de 66,7% das vagas de residência médica do País na Região Sudeste. Considerando a distribuição de escolas médicas no País, o número de egressos por região geográfica e as necessidade populacionais, a ampliação da oferta de vagas de residência médica precisa ser pensada de forma ampla e debatida com os diversos atores envolvidos.
Com vistas a fomentar a discussão sobre a expansão de vagas de residência em nível institucional, foi proposto o presente estudo, que objetiva levantar elementos essenciais de diagnóstico situacional para serem considerados nessa decisão. Assim, foi realizada uma pesquisa com base na realidade local do município de Uberaba (MG) sobre a ocupação das vagas de residência ofertadas, demanda da população por atendimento de especialidade e número de especialistas atuantes na rede pública e privada. O cenário encontra-se na Região Sudeste, cujas características são bastante semelhantes às de outros locais, com oferta de vagas de Medicina em instituição pública e privada. A premissa era que seria possível, por meio dessas informações, evidenciar as lacunas de formação de médicos especialistas e, por conseguinte, direcionar a ampliação de vagas para o preenchimento de tais deficiências.
MÉTODOS
Este estudo foi realizado no município de Uberaba, situado no Triângulo Mineiro, em Minas Gerais. Segundo informação do Censo Demográfico 2010 do IBGE7 , a população de Uberaba é de 295.988 habitantes. No município existem dois cursos de graduação em Medicina, um ofertado por instituição pública desde 1953 e outro por instituição privada desde 1997. As informações da pesquisa foram obtidas junto às universidades, à Prefeitura Municipal de Uberaba e a fontes externas, conforme descrição que se segue. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Triângulo Mineiro sob o nº CAAE: 32895114.0.0000.5154, em 17 de maio de 2015.
Levantamento sobre as vagas de residência médica
A dinâmica do número de vagas de residência médica ofertadas e ocupadas no período de 2011 a 2015 foi levantada junto às instituições de ensino superior do município. Foram obtidos os dados registrados em bancos informatizados das Comissões de Residências Médicas (Coremes) das duas universidades existentes em Uberaba – Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Universidade de Uberaba (Uniube) – após autorização dos coordenadores.
Levantamento sobre a “demanda reprimida” de atendimento por médicos especialistas
A informação sobre a necessidade de atendimento de especialistas no município de Uberaba foi obtida junto à Secretaria Municipal de Saúde de Uberaba, também no período de 2011 a 2015. Nesse período, havia registro da demanda para consulta de médicos especialistas por meio de uma “fila de espera” eletrônica. O agendamento de consultas com médicos especialistas era centralizado em um sistema específico de uma unidade da Secretaria. Para registrar o paciente nesse sistema, era preciso apresentar um encaminhamento a alguma especialidade médica pelo médico que realizou o atendimento na Unidade Básica de Saúde. Foi considerada “demanda reprimida” a subtração entre o número de consultas por especialidade efetuadas no atendimento municipal em cada ano e o número de consultas em fila de espera. Quando o número de consultas em fila de espera foi superior ao número de consultas ofertadas, a deficiência na oferta foi expressa em número negativo.
Levantamento sobre a distribuição de médicos especialistas nos setores público e privado
O número de médicos especialistas atuantes no setor público do município de Uberaba foi obtido por meio das fontes: 1) cadastro no Setor de Recursos Humanos da Secretaria Municipal de Saúde; 2) pesquisa de registro de profissionais de instituições públicas de saúde por localização no CNES, hospedado no sistema Datasus. A busca pelo número de especialistas atuantes no setor privado foi realizada por meio das fontes: 1) pesquisa em catálogos dos principais planos de saúde que oferecem atendimento por especialidades no município (Unimed® e RN Saúde®); 2) levantamento de consultórios particulares de especialistas divulgados em lista telefônica e serviços de busca em endereços eletrônicos; 3) levantamento da relação do corpo clínico dos profissionais médicos atuantes em todos os hospitais privados do município. A busca dessas informações ocorreu no ano de 2015.
RESULTADOS
Ao longo dos anos de 2011 a 2015, houve maior número de egressos da graduação em Medicina no município de Uberaba do que o número de vagas de residência ofertadas. Essa desproporção foi menor em 2015, quando se graduaram 185 médicos e foram ofertadas no município 133 vagas, ou seja, com oferta de vagas localmente para 72% dos egressos ( Tabela 1 ).
2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | |||||||||||
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Instituição | Egressos graduação | Vagas residência ofertadas | Vagas residência ociosas | Egressos graduação | Vagas residência ofertadas | Vagas residência ociosas | Egressos graduação | Vagas residência ofertadas | Vagas residência ociosas | Egressos graduação | Vagas residência ofertadas | Vagas residência ociosas | Egressos graduação | Vagas residência ofertadas | Vagas residência ociosas |
Pública | 84 | 85 | 15 | 78 | 85 | 16 | 81 | 92 | 17 | 79 | 97 | 12 | 82 | 95 | 16 |
Privada | 124 | 16 | 0 | 126 | 16 | 2 | 118 | 18 | 2 | 116 | 30 | 2 | 103 | 38 | 4 |
Total | 208 | 101 | 15 | 204 | 101 | 18 | 199 | 110 | 19 | 195 | 127 | 14 | 185 | 133 | 20 |
No que se refere à especificidade das especialidades, a ocupação das vagas de residência médica foi incompleta em todos os anos para Medicina de Família e Comunidade, em ambas as instituições, durante todo o período estudado, totalizando 19 vagas para ingresso na residência não ocupadas entre 2011 e 2015. Para as demais 22 especialidades ofertadas, foram contabilizadas no mesmo período 40 vagas ociosas nas seguintes especialidades: Ortopedia e Traumatologia, Medicina Intensiva, Hematologia e Hemoterapia, Infectologia, Cardiologia, Ginecologia e Obstetrícia, Oftalmologia, Cirurgia do Aparelho Digestivo, Patologia, Cirurgia Geral, Gastroenterologia. Também foram contabilizadas, no mesmo período, 16 vagas ociosas entre as subespecialidades ofertadas, tais como Mastologia, CTI Pediátrico, Cirurgia do Trauma e Endocrinologia Pediátrica.
Os dados de demanda por especialidades médicas por meio da “fila eletrônica” da Secretaria Municipal de Saúde foram obtidos para os anos de 2011, 2012, 2013 e 2014. Não foi possível obter a informação referente ao ano de 2015, nem aferir a demanda de pacientes para a especialidade Medicina de Família e Comunidade, uma vez que esta não era registrada em fila de espera. Os encaminhamentos a médicos especialistas foram realizados por médicos que atendiam nas Unidades Básicas de Saúde. Ao se comparar o número anual de agendamentos para especialistas e o número requerido de vagas por especialidade, observou-se grande deficiência na oferta das consultas em especialidades, sendo considerada essa diferença negativa como “demanda reprimida”. Os pacientes em fila de espera eram chamados por meio de ligação telefônica para comparecimento em vaga agendada assim que esta fosse oferecida. Nessa ocasião, quando efetuado o agendamento, eles eram retirados da lista de espera eletrônica. As especialidades com as maiores demandas não atendidas foram praticamente as mesmas ao longo dos anos, sendo as mais frequentes Oftalmologia, Neurologia, Endocrinologia, Cardiologia, Cirurgia Vascular e Gastroenterologia ( Figura 1 ).
Também foi identificada demanda reprimida para as seguintes especialidades: Cirurgia Geral, Pequena Cirurgia Ambulatorial, Neurocirurgia, Ortopedia e Traumatologia, Ginecologia e Obstetrícia, Otorrinolaringologia, Cirurgia Pediátrica, Neurocirurgia, Cirurgia do Aparelho Digestivo, Cirurgia Plástica, Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Proctologia, Dermatologia, Hematologia e Hemoterapia, Nefrologia, Geriatria, Pneumologia, Pediatria, Oncologia, Genética e Infectologia.
Quanto ao número de médicos atuantes no município, em 2015, foram identificados 458 médicos na rede municipal de saúde e Hospital de Clínicas da UFTM (setor público) e 1.021 em clínicas e hospitais privados (setor privado), sendo possível haver concomitância de atuação nos dois setores. Entre os médicos atuantes no setor público, as especialidades cadastradas mais frequentemente foram: Clínica Médica (n = 139 / 30,3%); Ginecologia e Obstetrícia (n = 58 / 12,7%); Pediatria (n = 40 / 8,7%); Oftalmologia (n = 33/ 7,2%); Psiquiatria (n = 23 / 5,2%) e Ortopedia (n = 19 / 4,1%). Para as especialidades com maior demanda reprimida na rede pública de saúde foi constatada a presença de sete médicos neurologistas, sete endocrinologistas, sete cardiologistas, dois cirurgiões vasculares, nove gastroenterologistas e 33 médicos oftalmologistas.
No setor privado, as especialidades mais encontradas como referências divulgadas pelos médicos foram: Clínica Médica (n = 119 / 11,7%); Pediatria (n = 114 / 9,3%); Ginecologia e Obstetrícia (n = 84 / 6,9%); Cardiologia, Oftalmologia e Ortopedia (cada especialidade n = 54 / 4,4%). Considerando-se as especialidades com maior “demanda reprimida” na rede pública, ao se comparar o número de profissionais atuantes nos setores público e privado, observou-se que existem: oito vezes mais médicos oftalmologistas no setor privado quando comparados aos do setor público; quatro vezes mais médicos neurologistas no setor privado quando comparados aos do setor público; oito vezes mais médicos cardiologistas no setor privado quando comparados aos do setor público; oito vezes mais médicos cirurgiões vasculares no setor privado quando comparados aos do setor público e três vezes mais médicos gastroenterologistas no setor privado quando comparados aos do setor público. Mesmo considerando a atuação de profissionais em ambos os setores, um número significativo de médicos especialistas não atua na rede pública de saúde, somente mantém vínculo com o setor privado.
DISCUSSÃO
A abertura de novos programas ou a ampliação de vagas de residência médica no Brasil já tiveram como pressuposto a utilização de dados epidemiológicos e de capacidade instalada para definir as oportunidades com vistas a identificar, estimular e apoiar institucionalmente a abertura em áreas prioritárias, considerando temas e regiões8 . Atualmente, os processos regulatórios desses procedimentos se encontram pouco privilegiados frente ao contingenciamento de recursos para ações educativas e orientadoras voltadas às instituições formadoras de médicos residentes. Como resultado, tais instituições têm tomado decisões de ampliação e abertura de vagas de forma isolada, sem considerar seu contexto.
A definição de prioridade frente a um equilíbrio dinâmico entre oferta e demanda de formação de médicos especialistas passa por determinantes da incorporação e redução e/ou abandono dos médicos especialistas do mercado de trabalho, o qual, em última instância, gera um déficit ou superávit de recursos humanos. Nesse sentido, alguns elementos têm forte interferência nas demandas de médicos especialistas, entre os quais se destacam crescimento demográfico, envelhecimento da população, hábitos e condições de vida pouco saudáveis, surgimento de novas doenças, aumento da renda de parte das famílias e organização para a rede de atenção à saúde da população9 .
Com o presente trabalho foi possível ampliar a reflexão de que a identificação dos diversos parâmetros levantados nesta pesquisa se mostrou insuficiente para apontar o direcionamento da abertura de novas vagas de residência. As relações entre os parâmetros levantados não são lineares e estão imbricadas numa complexa teia de eventos e de interesses concomitantes, cujo resultado pode nos direcionar a argumentos falaciosos.
Quando se avaliou a ocupação das vagas de residência ofertadas ao programa de Medicina de Família e Comunidade, por exemplo, observou-se que não houve preenchimento completo delas em nenhum dos anos analisados. A interpretação imediata foi que não seria apropriado ampliar vagas nesse programa porque nem as vagas atualmente ofertadas são preenchidas. No entanto, autores chamam a atenção que no Brasil se estima que em apenas 5% das Unidades Básicas de Saúde há médicos titulados em Medicina de Família e Comunidade (MFC), e em muitas não há9 . Esse dado evidencia claramente que os médicos dessa especialidade não estão sendo formados em número suficiente para ocupar os postos de trabalho criados para acolhê-los.
Assim, cabem diversos questionamentos: será que a ausência de médicos nesse cenário de atuação se dá pela insuficiência de oportunidade, como vagas em residência médica para essa especialidade? Ou o cenário de prática e a perspectiva de mundo do trabalho na atenção básica têm sido pouco atrativos para os egressos do curso de Medicina? Se as vagas de residência de Medicina de Família e Comunidade não são ordinariamente preenchidas, como motivar os médicos recém-formados a optar por essa especialidade? Nas ações de reestruturação dos currículos de Medicina está sendo considerada essa realidade de desmotivação na construção dos cenários de prática e inter-relação com o mundo do trabalho?
A valorização da especialidade Medicina de Família e Comunidade como requisito para atuação em Unidade Básica de Saúde precisaria alcançar diversos atores sociais que interferem diretamente nesse resultado. Os gestores, tanto da instituição de ensino superior como dos serviços de saúde, muitas vezes desconhecem a existência da especialidade e sequer cogitam considerá-la como necessária para atuação nas Unidades Básicas de Saúde. Ao mesmo tempo, a especialidade não conta com prestígio entre os pares, estudantes de Medicina e médicos, que valorizam mais a oportunidade de vislumbrar um trabalho em consultório ou ambiente hospitalar10 . E, ainda neste contexto, os próprios pacientes atendidos nas Unidades Básicas de Saúde muitas vezes identificam os profissionais que nelas atendem como uma ponte para obter renovação de receita ou encaminhamentos a médicos especialistas11 .
Assim, é possível perceber que a Medicina de Família e Comunidade ainda é uma especialidade médica cujo campo de atuação não se encontra devidamente reconhecido e valorizado. Essa realidade precisa ser questionada e parece consequência de um misto de desconhecimento e preconceito, à semelhança das sábias palavras de Gersem Baniwa12 , liderança indígena no Brasil: “Não se pode respeitar e valorizar o que não se conhece. Ou pior ainda, não se pode respeitar ou valorizar o que se conhece de forma deturpada, equivocada e pré-conceitualmente”.
Considerando que a Medicina de Família e Comunidade tem como campo de atuação principal a atenção primária, é possível inferir que o atendimento na Unidade Básica de Saúde feito por médicos não especialistas em Medicina de Família, em destaque por especialistas focais, pode resultar numa demanda encaminhada a especialidades médicas muito maior do que a real necessidade da população. Isto pode se dever à baixa capacidade resolutiva desses profissionais frente às questões inerentes à especialidade Medicina de Família e Comunidade, as quais demandariam conhecimentos, habilidades e atitudes pouco desenvolvidos em especialidades focais. Nesse sentido, cabem mais perguntas: será que a quantidade de encaminhamentos reflete a real necessidade de especialistas da população avaliada? Ou a falta de formação dos médicos em Medicina de Família e Comunidade estaria impactando a resolubilidade na atenção básica?
Ao se analisar mais profundamente a demanda identificada como “reprimida” – e cuja leitura poderia ser interpretada como prioritária para o direcionamento de força de trabalho de médicos especialistas –, também outros aspectos se descortinam. A ausência de atendimento a uma consulta médica solicitada está longe de representar a amplitude de necessidades não atendidas desses indivíduos. Além da demanda explícita caracterizada neste estudo por meio dos registros acessados, existem muitas necessidades de saúde da população que sequer seriam registradas para serem contabilizadas em algum momento, as quais não são consideradas, nem atendidas.
Segundo Osório et al. 13 :
A necessidade de saúde seria considerada insatisfeita quando o indivíduo ou a população não recebe um serviço considerado necessário para a solução de um problema. Assim, nessa conceituação, a necessidade de saúde insatisfeita estaria relacionada ao processo de acesso aos serviços, que incluiria as necessidades percebidas, mas que não são convertidas em necessidades expressas (demanda).
Nesse estudo, os motivos da população com necessidades de saúde insatisfeitas para não procurar os serviços de saúde são diversos, como: por não ter dinheiro suficiente para o deslocamento e/ou efetuar o pagamento; porque o local de atendimento era distante de sua residência ou de difícil acesso; devido à dificuldade de conseguir transporte, inclusive por motivo de greve nos transportes coletivos; porque o horário de funcionamento do estabelecimento ao qual recorreria era incompatível com o horário em que poderia ir; por julgar que o atendimento dos serviços de saúde era muito demorado, com necessidade de marcação prévia de consulta, ficar em fila ou chegar cedo para pegar senha; porque achava ou tinha informação de que no estabelecimento de saúde ao qual poderia recorrer não havia o especialista de que necessitava; porque achou que não tinha direito ao atendimento de que necessitava, como, por exemplo, por achar que o estabelecimento só atenderia moradores da área ou que tivessem plano de saúde; porque não teriam quem lhes fizesse companhia e não poderiam ir sozinhos devido à idade, dificuldade de se locomover sozinho, gravidade do problema de saúde ou razões psicológicas, emocionais ou de simples constrangimento; porque não gostava dos profissionais do estabelecimento; porque os serviços de saúde estavam paralisados por motivo de greve dos profissionais de saúde; por motivo que não se enquadrava nos itens anteriores, como, por exemplo, falta de cartão do SUS13 .
Por conseguinte, o direcionamento da formação de médicos especialistas com base na “demanda reprimida” identificada estaria deixando de considerar a complexidade das necessidades da população. Ademais, é possível que o direcionamento da formação para determinadas áreas com vistas a atender a demanda local do atendimento deficiente da rede pública de saúde também não seja suficiente. Nem é possível verificar algum indicativo de que o aumento de formação de médicos especialistas em determinada área médica de fato contribua para o aumento da atuação deles nos serviços públicos de saúde para atendimento da população. No presente estudo, foi possível perceber a maior quantidade de especialistas atuando no setor privado quando comparada aos do setor público em todas as áreas consideradas de maior demanda de consultas não atendidas. Nesse aspecto, cabe a reflexão levantada por Setelo14 :
Daí decorre a importância de evocar o processo de construção das acepções sobre articulação público/privada na assistência à saúde e assinalar a subsistência de formulações críticas no interior dessa temática representadas, em grande medida, pelo próprio campo da Saúde Coletiva como espaço de prática e de elaboração teórica provido de potência para transitar ao largo da dicotomia totalizante do público versus privado. Há muitas dicotomias que simplificam e homogeneízam a descrição da realidade resultando, em geral, em modelos causais unidirecionais que se dividem entre compartimentos estanques desprovidos de articulação entre si. Público ou privado, capital financeiro ou capital produtivo, SUS ou planos de saúde, ações de governo ou iniciativa privada, empresários ou médicos, finanças ou saúde são exemplos conexos que tendem a ganhar vazão em um cenário instruído por leituras simplificadoras. Paradoxalmente, é a premissa de que cada um dos elementos componentes da grande dicotomia público/privado é qualitativamente distinto e, portanto, não pode ser homogeneizado, que permite estabelecer um gradiente de interface e identificar os matizes subsistentes na realidade empírica. Dito de outra forma, nas análises de políticas de saúde as categorias social, privado e público são indissociáveis e incidem sobre uma extensa interface de fenômenos de articulação onde as ações institucionais de governos determinam e são determinadas por agentes particulares em uma linha de causalidade de mão dupla que precisa ser considerada a despeito das dificuldades inerentes à construção de dados sobre empresas privadas setoriais 14 .
A interface de escolhas do campo de atuação dos profissionais entre o público e privado recebe pressões com interesses muito particulares. Os próprios médicos residentes recém-inseridos no mercado de trabalho associaram maior remuneração com especialização, atividade em consultório e realização de procedimentos. Assim, Lampert et al. 15 consideram que:
A entrada do profissional médico no mercado da prestação de serviços na área de saúde, que extrapola o assistir e cuidar na medicina, com participação em cooperativas, atividades empresariais no sistema de organização e venda de serviços, pode ser um aspecto que dificulta uma análise mais crítica e reflexiva na forma da organização e do assistir em saúde.
Como agravante nesse cenário, nessa balança também pesa contra a opção para investir a carreira no setor público a persistência histórica de problemas estruturais, especialmente na gestão do trabalho da rede pública de saúde, que resultam na precarização e terceirização dos serviços de saúde. Nesse sentido, Machado et al. 16 provocam com os seguintes elementos:
Para tanto, a gestão do trabalho e da educação na saúde tem merecido atenção por parte dos gestores e instituições que buscam a correta adequação entre as necessidades da população usuária e seus objetivos institucionais. Pensar em gestão do trabalho como política significa pensar estrategicamente, e pressupor a garantia de requisitos básicos para a valorização do profissional de saúde e do seu trabalho, tais como: carreira, salários, formas e vínculos de trabalho com proteção social; negociação permanente das relações de trabalho em saúde, capacitação e educação permanente dos trabalhadores; humanização da qualidade do trabalho, adequadas condições de trabalho, ética profissional, entre outros. (p. 1972)
Com o presente estudo foi possível perceber o desafio que representa equacionar os elementos estruturais da situação local como parte do processo norteador para a abertura e/ou ampliação de vagas de residência médica. Foi possível concluir que a reflexão sobre a ordenação de formação de médicos especialistas precisa perpassar pelos diversos atores envolvidos ou atingidos por isso, e não somente resulta no cumprimento de um referencial legal por parte das escolas de Medicina. Este movimento transita pela autocrítica, em especial das instituições de ensino superior (IES), com vistas a buscar um alinhamento coerente entre o perfil dos médicos que se pretende formar na perspectiva das Diretrizes Curriculares Nacionais e o que se oferece de vagas de residência em especialidades focais para os egressos da graduação. Partindo de uma percepção de deslocamento das IES da realidade social, a incorporação de estratégias ao longo do curso que realmente abordem as interfaces do mercado de trabalho para o médico poderá deflagrar uma modificação do olhar dos recém-formados para as opções existentes. Então, uma consequência salutar desse processo seria que as IES participassem mais ativamente e de forma comprometida com os preceitos e concretização do SUS, e assim estariam cumprindo também seu papel social.