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Revista Brasileira de Educação Médica
versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271
Rev. Bras. Educ. Med. vol.43 no.1 supl.1 Rio de Janeiro 2019
https://doi.org/10.1590/1981-5271v43suplemento1-20190076.ing
ARTIGO ORIGINAL
Preconceito contra Diversidade Sexual e de Gênero entre Estudantes de Medicina de 1º ao 8º Semestre de um Curso da Região Sul do Brasil
IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
IIPrefeitura Municipal de Biguaçu, Biguaçu, Santa Catarina, Brasil.
IIIInstituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
As disparidades no oferecimento de cuidado em saúde à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) são evidentes e documentadas. O preconceito molda-se na naturalização de padrões instaurados e mantidos por diversas instituições, e a literatura corrobora com a existência de preconceito contra LGBT em escolas de medicina. A educação médica, historicamente consolidada em modelo biomédico-farmacêutico, concreto, positivista, hospitalocêntrico, com enfoque em um processo saúde-doença unicausal, representa um status conservador que se mantem rígido há um século. A despeito de programas e diretrizes nacionais e internacionais que orientam medidas inclusivas e de combate à discriminação, é verificada a presença de preconceito contra LGBT na prática médica e inclusive durante o processo educacional médico, notando-se atitudes preconceituosas entre os estudantes de medicina.
Objetivo
analisar o perfil de atitude e o preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre estudantes de um curso de Medicina.
Métodos
foram empregados questionários autoaplicáveis a 391 estudantes de primeiro ao oitavo semestre de um curso de Medicina público da região sul do Brasil no ano de 2017.
Resultados
obteve-se uma taxa de resposta de 85,2% dos entrevistados. O nível de preconceito com base nas assertivas variou de 69% a 89%. Entre os respondentes, 74,9% concordaram que o sexo entre dois homens é errado, 83,9% consideraram homens gays nojentos, 83,9% acreditaram que a homossexualidade masculina é uma perversão, 80,9% afirmaram que o sexo entre duas mulheres é totalmente errado, 83,9% afirmaram que as meninas masculinas deveriam receber tratamento. Em relação à comparação da distribuição dos resultados quanto ao gênero declarado dos estudantes, observou-se que os estudantes autodeclarados masculinos foram mais preconceituosos que as estudantes autodeclaradas femininas. A distribuição de preconceito entre estudantes que se autodeclararam masculinos variou entre 81,5% a 94,4%, e rntre as estudantes que se autodeclararam femininas, variou entre 57,3% e 76,4%. Os dados corroboraram para a importância de integrar a temática de saúde LGBT de forma obrigatória aos currículos e de construir mecanismos de apoio à estruturação pedagógica que auxiliem as aulas e/ou disciplinas a cumprirem seu papel.
Palavras-Chave: Preconceito; Educação Médica; Gênero E Saúde; Homossexualidade; Estudantes
As disparidades no oferecimento de cuidado em saúde à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) são evidentes e documentadas. O preconceito molda-se na naturalização de padrões instaurados e mantidos por diversas instituições, e a literatura corrobora com a existência de preconceito contra LGBT em escolas de medicina. A educação médica, historicamente consolidada em modelo biomédico-farmacêutico, concreto, positivista, hospitalocêntrico, com enfoque em um processo saúde-doença unicausal, representa um status conservador que se mantem rígido há um século. A despeito de programas e diretrizes nacionais e internacionais que orientam medidas inclusivas e de combate à discriminação, é verificada a presença de preconceito contra LGBT na prática médica e inclusive durante o processo educacional médico, notando-se atitudes preconceituosas entre os estudantes de medicina.
Objetivo
analisar o perfil de atitude e o preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre estudantes de um curso de Medicina.
Métodos
foram empregados questionários autoaplicáveis a 391 estudantes de primeiro ao oitavo semestre de um curso de Medicina público da região sul do Brasil no ano de 2017.
Resultados
obteve-se uma taxa de resposta de 85,2% dos entrevistados. O nível de preconceito com base nas assertivas variou de 69% a 89%. Entre os respondentes, 74,9% concordaram que o sexo entre dois homens é errado, 83,9% consideraram homens gays nojentos, 83,9% acreditaram que a homossexualidade masculina é uma perversão, 80,9% afirmaram que o sexo entre duas mulheres é totalmente errado, 83,9% afirmaram que as meninas masculinas deveriam receber tratamento. Em relação à comparação da distribuição dos resultados quanto ao gênero declarado dos estudantes, observou-se que os estudantes autodeclarados masculinos foram mais preconceituosos que as estudantes autodeclaradas femininas. A distribuição de preconceito entre estudantes que se autodeclararam masculinos variou entre 81,5% a 94,4%, e entre as estudantes que se autodeclararam femininas, variou entre 57,3% e 76,4%. Os dados corroboraram para a importância de integrar a temática de saúde LGBT de forma obrigatória aos currículos e de construir mecanismos de apoio à estruturação pedagógica que auxiliem as aulas e/ou disciplinas a cumprirem seu papel.
Key words: Preconceito; Educação Médica; Gênero E Saúde; Homossexualidade; Estudantes
INTRODUÇÃO
Entre as principais causas associadas da falta de assistência à saúde de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) estão a discriminação e o preconceito1 . As sociedades ocidentais contemporâneas ainda estão estruturadas com base nesses parâmetros de exclusão e, como parte dessas sociedades, os profissionais de saúde os reproduzem2 , 3 .
Barreiras ao cuidado adequado têm papel importante no aumento de certas afecções população, na medida em que o preconceito contra pessoas LGBT ainda persiste na comunidade médica e tem impacto negativo na saúde e na estigmatização social. Um melhor preparo profissional dos médicos é necessário para dar visão às reais necessidades da população LGBT e prover cuidado e conforto adequado para diminuir as disparidades em saúde.1
Preconceito é uma categoria importante para a Sociologia, definida por Giddens2 (p.81) como “ideias preconcebidas sobre um indivíduo ou grupo, ideias que são resistentes à mudança, mesmo ante novas informações (...)” e por Jesus3 como “juízo preconcebido de algo ou alguém, com base em estereótipos. Predispõe a determinadas atitudes em relação ao objeto do preconceito, que pode ou não se manifestar na forma de discriminação”. O preconceito é uma forma de violência, que pode se expressar em relação a diversas características: sociais, estéticas, de gênero, entre outras1 .
O preconceito é o resultado de uma trajetória em que ocorrem naturalizações de padrões instaurados e mantidos por diversas instituições, como família, escola e mídia2 . Esses padrões geram uma clivagem e marginalização das coisas e das pessoas entre normal e anormal. Em relação aos gêneros e as sexualidades, existem fundamentações culturalmente apresentadas em sociedade, com funções definidas do que seja o masculino e o que seja o feminino, seja em âmbito privado ou público4 . Em decorrência disso, fundamenta-se a cis-heteronormatividade, que pode ser entendida como um conjunto de normativas que delimitam a expressão do gênero designado de uma pessoa por seu órgão sexual ao nascer em uma ótica de relação heterossexual.5 , 6
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCNM), lançadas em 2001, buscam definir os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da formação de médicos bem como o perfil do médico egresso7 . As DCNM instituídas pelo Conselho Nacional de Educação em 20148 definem em seu artigo 5º que “Na Atenção à Saúde, o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social”8 .
A despeito da importância das referidas diretrizes, há que se considerar que, no tocante aos preconceitos, uma questão importante na Educação Médica é o currículo oculto, definido por Galli9 como “conjunto de experiências e estímulos que o estudante recebe sem que tenham sido previstos ou planificados”. Para Rego10 , o currículo oculto é um dos três elementos do ensino médico, composto também pelo currículo formal – previsto e regimentado sobre o que se pretende ensinar na graduação –, e pelo currículo paralelo – atividades extracurriculares que alteram o previsto formalmente.10
Em todas as ciências da saúde, a temática de gênero e diversidade sexual é marginalizada, e pouco enfatizada mesmo no âmbito da educação. Em relação ao tema de preconceito LGBT, a formação médica está intrinsecamente fundamentada em um ensino cis-heteronormativo11 que, ou inviabiliza as pessoas LGBT de procurarem os serviços de saúde, ou as considera como desvio da norma pela sua orientação sexual e identidade de gênero, tomadas como doenças.
Pessoas LGBT experimentam múltiplas formas de discriminação nos serviços de saúde e têm menos acesso a eles. É estimado que aproximadamente 10 milhões de pessoas nos Estados Unidos se identifiquem como gays ou lésbicas12 , e cerca de 750 mil pessoas se identifiquem como transgêneros. Para 40% das pessoas LGBT, a falta de educação profissional adequada é a principal barreira para o cuidado, com relatos de recusa de atendimento por parte do profissional, tratamentos ruins e abuso verbal. Como consequência, muitas pessoas LGBT evitam tratamentos médicos, incluindo serviços de emergência com medo de serem discriminadas.12
A Política Nacional de Saúde Integral de LGBT instituída pelo Ministério da Saúde em 2011 com o objetivo de eliminar a discriminação e o preconceito institucional é uma tentativa de fornecer melhor assistência a essa população. A política reconhece a existência de estigmas e sua influência no processo saúde-doença. Ainda reitera que inclusão de diversidade, eliminação de discriminação, melhora no acesso, e reforço de movimentos sociais, além de proporem melhor preparação profissional e fomento ao ensino e pesquisa, proporcionariam a manutenção da saúde LGBT segundo os princípios fundamentais do SUS.13 , 14
Em relação a iniciativas internacionais que tentam mudar esse panorama, destaca-se o documento de recomendações da Association of American Medical Colleges para que as escolas médicas norte-americanas promovam inserção de conteúdos curriculares que visem as necessidades específicas de cuidado em saúde às pessoas LGBT12 , 15 . O Institute of Medicine recomenda mais pesquisas sobre inequidades dos serviços de saúde oferecidos às pessoas LGBT, incluindo maior investigação das atitudes dos profissionais e da educação proporcionada, devido à falta de treinamento recorrentemente relatada.1 Além disso, The Joint Commission e U.S. Department of Health and Human Services reforçam a necessidade de educação médica e competência cultural em saúde LGBT.12
A Primeira Conferência Anual de Profissional em Saúde LGBT, que ocorreu em 2013 em Nova Iorque, teve o papel de atualizar as práticas utilizadas e as técnicas educacionais dos profissionais. Entre as resoluções apresentadas por alguns serviços médicos como estratégias de sucesso para atender a população LGBT estão: educação e treinamento aos provedores de cuidado, desenvolvimento de recursos e protocolos, e atenção a necessidades especiais.15
O presente trabalho objetiva analisar o perfil do preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre estudantes de 1º a 8º semestres de um curso público de graduação em Medicina da região sul do Brasil.
PERCURSO METODOLÓGICO
O presente estudo foi uma investigação quantitativa, de corte transversal16 . Foi realizado em um curso de Medicina de uma das universidades federais da região sul do Brasil, em funcionamento desde a década de 1950 em uma das três capitais da região. Trata-se de um curso que passou mais de 10 anos por reestruturação curricular e atualmente destina cerca de 20% de sua carga horária a disciplinas e estágios curriculares voltados à atenção primária à saúde, com intenso contato dos graduandos com a população.
No início das aulas das disciplinas de Saúde Coletiva, os pesquisadores explicaram a todos os estudantes sobre a pesquisa, e solicitaram àqueles que desejassem contribuir que lessem e assinassem o termo de consentimento livre e esclarecido. Após isso, distribuiu-se o questionário autoaplicável para todas as turmas dos oito primeiros semestres, em sala de aula, que foram respondidos individualmente e sem comunicação entre os estudantes. A coleta se deu entre agosto a dezembro de 2017. Houve uma taxa de resposta de 85,24% dos 391 alunos matriculados no curso nesse período, não havendo recusa em participação registrada. A taxa de não resposta resultou-se do número de alunos ausentes no dia da aplicação do questionário.
Na primeira parte do questionário, 12 questões objetivaram traçar o perfil sociodemográfico dos estudantes, e na segunda havia 16 questões do instrumento construído e validado por Costa e colaboradores17 para mensuração de preconceito contra diversidade sexual e de gênero. Os questionários foram distribuídos coletivamente em sala de aula, sem a presença do professor e recolhidos em urna lacrada.
O preconceito contra diversidade sexual e gênero foi medida por uma escala tipo likert constituída por16 itens17 Para cada um dos itens, os participantes foram categorizados em “não preconceito” e “preconceito”, pertencendo ao primeiro grupo aqueles que discordaram plenamente, e ao último aqueles que apresentaram qualquer concordância com o item. Seguindo as recomendações dos autores, foi empregado o teste de qui-quadrado de Pearson para comparar a independência na distribuição de pontuação da variável “preconceito” entre os grupos das demais variáveis independentes (variáveis sociodemográficas). Apenas para a variável sexo houve diferença estatisticamente significativa no teste do qui-quadrado (p<0,05).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Estadual de Santa Catarina (CAAE 34999514.4.0000.0118) e respeitou-se a Legislação Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS
Na tabela a seguir, é apresentado o perfil dos estudantes de primeiro a oitavo semestre do curso de Medicina, segundo as características sociodemográficas.
Característica | Categorias | Frequência (%) | Desvio padrão |
---|---|---|---|
Gênero declarado | Feminino Masculino | 157 (46,9) 178 (53,1) | 0,5000 |
Orientação sexual | Heterossexual Gay Lésbica Bissexual Transexual | 299 (89,3) 22 (6,6) 5 (1,5) 8 (2,4) 1 (0,3) | 7,573 |
Cor de pele autodeclarada | Branca Preta Parda Outras | 261 (77,9) 15 (4,5) 46 (13,7) 13 (3,9) | 0,415 |
Idade | 17 a 21 anos 22 a 26 anos 27 a 31 anos Acima de 31 anos Total | 159 (74,5) 150 (44,8) 20 (6,0) 6 (1,8) 335 (100,0) | 11,843 |
Renda familiar per capita | < salário mínimo Entre 1 e 2 salários mínimos Entre 2 e 3 salários mínimos Entre 3 e 4 salários mínimos Mais de quatro salários mínimos | 59 (17,6) 87 (26,0) 99 (29,6) 45 (13,4) 8 (2,4) 24 (7,2) | 24,943 |
Religião | Ateu Católico Evangélico Espírita Outras | 134 (40,0) 143 (42,7) 16 (4,8) 27 (8,1) 15 (4,5) | 1,083 |
Relacionamento | Solteiro Casado/União estável Namorando | 214 (63,9) 9 (2,7) 112 (33,4) | 10,672 |
Cotista | Sim Não | 98 (29,3) 237 (70,7) | 13,118 |
Semestre do curso | 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º | 42 (12,5) 41 (12,2) 45 (13,4) 40 (11,9) 39 (11,6) 44 (13,1) 42 (12,5) 42 (12,5) | 2,301 |
Convivência com gays | Sim Não | 319 (95,2) 16 (4,8) | 0,214 |
Convivência com lésbicas | Sim Não | 259 (77,3) 76 (22,7) | 0,419 |
Convivência com transexuais | Sim Não | 73 (21,8) 262 (78,2) | 0,413 |
Itens da escala de Costa e colaboradores 34 | Pessoas autodeclaradas femininas | Pessoas autodeclaradas masculinas | Qui-quadrado | Total | Qui-quadrado* | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Concorda freq.(%) | Discorda freq.(%) | Concorda freq.(%) | Discorda freq.(%) | Concorda freq.(%) | Discorda freq.(%) | |||
Sexo entre dois homens é totalmente errado. | 104 (66,2) | 53 (33,8) | 147 (82,6) | 31 (17,4) | 0,001 | 251 (74,9) | 84 (25,1) | 0,000 |
Eu acho que os homens gays são nojentos. | 113(72,0) | 44 (28,0) | 168 (94,4) | 10 (5,6) | 0,000 | 281 (83,9) | 54 (16,1) | 0,000 |
A homossexualidade masculina é uma perversão. | 120 (76,4) | 37 (23,6) | 161 (90,4) | 17 (9,6) | 0,001 | 281 (83,9) | 54 (16,1) | 0,000 |
Sexo entre duas mulheres é totalmente errado. | 124 (79,0) | 33 (21,0) | 147 (82,6) | 31(17,4) | 0,402 | 271 (80,9) | 65 (19,1) | 0,000 |
Eu acho que as mulheres lésbicas são nojentas. | 125 (79,1) | 32 (19,9) | 165 (92,7) | 13 (7,3) | 0,020 | 298 (89,0) | 37 (11) | 0,000 |
Travestis me dão nojo. | 90 (57,3) | 67 (42,7) | 152 (85,4) | 26 (14,6) | 0,000 | 242 (72,2) | 93 (27,8) | 0,000 |
Os homens que se comportam como mulheres deveriam se envergonhar. | 106 (67,5) | 51 (32,5) | 155 (87,1) | 23 (12,9) | 0,000 | 262 (77,9) | 74 (22,1) | 0,000 |
Os homens que depilam suas pernas são estranhos. | 107 (68,2) | 50 (31,8) | 135 (75,8) | 43 (24,2) | 0,117 | 242 (72,2) | 93 (27,8) | 0,000 |
Eu não consigo entender por que uma mulher se comportaria feito um homem. | 105 (66,9) | 52 (33,1) | 145 (81,5) | 33 (18,5) | 0,002 | 250 (74,6) | 85 (25,4) | 0,000 |
As crianças deveriam brincar com brinquedos apropriados para seu próprio sexo. | 94 (59,9) | 63 (40,1) | 154 (86,5) | 24 (13,5) | 0,000 | 248 (74,0) | 87 (26,0) | 0,000 |
As mulheres que se veem como homens são anormais. | 120 (76,4) | 37 (23,6) | 154 (86,5) | 24 (13,5) | 0,017 | 274 (81,8) | 61 (18,2) | 0,000 |
Operações de mudança de sexo são moralmente erradas. | 112 (71,3) | 45 (28,7) | 158 (88,8) | 20 (11,2) | 0,000 | 270 (80,6) | 65 (19,4) | 0,000 |
As meninas masculinas deveriam receber tratamento. | 117 (74,5) | 40 (25,5) | 164 (92,1) | 14 (7,9) | 0,000 | 281 (83,9) | 54 (16,1) | 0,000 |
Os homens afeminados não me deixam à vontade. | 86 (54,8) | 71 (45,2) | 147 (82,6) | 31 (17,4) | 0,000 | 233 (69,6) | 102 (30,4) | 0,000 |
Eu iria a um bar frequentado por travestis. | 32 (20,4) | 125 (79,6) | 26 (14,6) | 152 (85,4) | 0,163 | 58 (17,3) | 277 (82,7) | 0,596 |
As mulheres masculinas não me deixam à vontade. | 100 (63,7) | 57 (36,3) | 131 (73,6) | 47 (26,4) | 0,051 | 231 (69,0) | 104 (31,0) | 0,000 |
Legenda: freq.(%) = frequência absoluta (porcentagem); *= valor do teste do Qui-quadrado realizado em comparação com os grupos “preconceituoso” versus “não preconceituoso”.
Houve predomínio de pessoas que se autodeclararam do gênero masculino (53,1%). Com relação à orientação sexual, os LGBT representaram 10,7% da amostra, sendo 23 homens (22 gays e um transexual) e 13 mulheres (lésbicas e bissexuais). Em relação à cor da pele, 77,9% se autodeclararam branco, enquanto a faixa etária predominante foi de 17 a 21 anos, com 77,5%. Sobre os aspectos econômicos, 82,4% dos estudantes declarou renda familiar acima de um salário mínimo per capita, dos quais 45,4% declararam mais de dois salários mínimos. Quanto à religião, 40% dos estudantes declararam-se ateus e 42,7% católicos. Sobre o tipo de relacionamento, 63,9% eram solteiros, seguidos de 33,4% de pessoas que estavam namorando. Em relação ao ingresso na universidade, 29,3% afirmaram ser cotista. A distribuição entre os oito semestres do curso foi semelhante, não apresentando diferença estatística entre si. Em relação à convivência com a diversidade sexual, 95,2% dos estudantes declararam conviver com gays, 77,3% com lésbicas e 21,8% com pessoas transexuais.
Em relação ao total dos dados, é interessante notar que o nível mínimo de preconceito foi de 69% (item “as mulheres masculinas não me deixam à vontade”) enquanto o máximo foi de 89% (item “Eu acho que as mulheres lésbicas são nojentas”), 74,9% dos estudantes concordam que o sexo entre dois homens é errado, 83,9% sentem aversão por homens gays, 83,9% acreditam que a homossexualidade masculina é uma perversão, 80,9% afirmam que o sexo entre duas mulheres é totalmente errado, 83,9% afirmam que as meninas masculinas deveriam receber tratamento.
No que se refere a à homossexualidade, 82,6% dos estudantes autodeclarados masculinos concordaram que sexo entre dois homens é errado, 90,4% categorizam a homossexualidade masculina é uma perversão, 94,4% sentiam e aversão por homens gays e 92,7% por lésbicas. Entre as estudantes autodeclaradas femininas, 66,2% afirmaram que sexo entre dois homens é errado, 76,4% categorizaram a homossexualidade masculina como é uma perversão, 72% relataram sentir sente aversão por homens gays e 79,1% por lésbicas.
A perspectiva biologicista da sexualidade apresenta a ideia de que as crianças deveriam brincar com brinquedos que seriam apropriados a seu próprio sexo, ideia apoiada por 86,5% dos estudantes autodeclarados masculinos e 59,9% das estudantes autodeclaradas femininas. O desconforto frente aos homens afeminados – diga-se de passagem, não necessariamente homossexuais – foi motivo de aversão para 82,6% dos estudantes autodeclarados masculinos e 54,8% das estudantes autodeclaradas femininas. Paralelamente, 74,5% das estudantes autodeclaradas femininas e 92,1% dos estudantes autodeclarados masculinos afirmaram que as meninas masculinas deveriam receber tratamento.
No que concerne à temática da transexualidade, 85,4% de estudantes que se autodeclararam masculinos e 57,3% das estudantes que se autodeclararam femininas registraram aversão aos travestis; 87,1% dos estudantes autodeclarados masculinos e 67,5% das estudantes autodeclaradas femininas afirmaram que os homens que se comportam como mulheres deveriam se envergonhar, e 86,5% dos estudantes autodeclarados masculinos e 76,4% das estudantes autodeclaradas femininas afirmam que mulheres que se veem como homens são anormais. A maioria dos estudantes autodeclarados masculinos (89%) e das estudantes autodeclaradas femininas (71%) afirmaram que as operações de mudança de sexo são moralmente erradas.
A comparação da distribuição dos resultados quanto ao gênero declarado dos estudantes mostrou que os estudantes autodeclarados masculinos eram mais preconceituosos que as estudantes autodeclaradas femininas. A distribuição de preconceito entre estudantes que se autodeclararam masculinos variou entre 81,5% a 94,4%, e entre as estudantes que se autodeclararam femininas, entre 57,3% e 76,4%. Há que se ressaltar que, para nenhum dos itens, as estudantes autodeclaradas como femininas foram mais preconceituosas quando comparadas aos estudantes autodeclarados masculinos, sendo que o mínimo de 81,5% de preconceito atingido entre os autodeclarados masculinos (ítem “Eu não consigo entender por que uma mulher se comportaria feito um homem”) foi maior que o máximo percentual entre as autodeclaradas femininas de 76,4% (itens “A homossexualidade masculina é uma perversão” e “As mulheres que se veem como homens são anormais”).
Os três itens relacionados à temática da transexualidade (“Os homens que depilam suas pernas são estranhos”, “Eu iria a um bar frequentado por travestis”, e “As mulheres masculinas não me deixam à vontade”) não apresentaram diferenças estatisticamente significantes entre os grupos autodeclarados como masculino e feminino. .
A partir da figura 1 , é possível afirmar que não houve diferenças importantes nos resultados entre os grupos de estudantes entre os oito semestres investigados do curso. Nota-se que a mediana variou entre 1,5 e 3 pontos de preconceito, e em todas os semestres, o preconceito para metade das assertivas (8 pontos) ficou abaixo dos 75% de todos estudantes, apesar da alta prevalência de preconceito. Ressalta-se que os dados não são suficientes para inferir sobre a influência da trajetória no curso ao longo dos oito semestres, na medida em que se tratou de um estudo de corte transversal.
DISCUSSÃO
Apesar da indicação de que um quarto dos estudantes de medicina são preconceituosos a pessoas LGBT ser um dado estarrecedor, a literatura sobre o tema aponta dados semelhantes. Um estudo de 1986 relatou que 30% dos médicos em determinada região da Califórnia recusariam a admissão na escola de medicina a estudantes gays ou lésbicas ainda que com alta qualificação; o estudo referiu também que 40% desses médicos desencorajariam gays e lésbicas a procurar residência médica como especialização18 .
Em outro trabalho em que foram entrevistados cerca de mil médicos do Novo México em 1996, em relação às atitudes dos estudantes de medicina e médicos gays e lésbicas, 5% dos médicos recusariam a admissão nas escolas médicas de estudantes sabidamente gays ou lésbicas; em relação a especialização médica, a oposição foi maior em relação à admissão na residência médica em obstetrícia (10,1%). O estudo concluiu que, apesar de melhora nos dados comparativos a estudos anteriores, gays e lésbicas ainda encontravam forte oposição e dificuldades em sua busca de treinamento médico e especialização.19 Ao entrevistar 1335 estudantes de medicina osteopática nos Estados Unidos sobre suas percepções em relação ao atendimento a pacientes LGBT20 , mostrou-se que cerca de 2% dos entrevistados apresentaram respostas muito positivas nas escalas avaliadas, 80% dos estudantes com respostas positivas, 15,5% neutros e 2,5% negativos em relação ao tema.
Verificam-se muitas semelhanças ao realizar um paralelo entre o presente estudo e o trabalho realizado em 2014 por Lapinski et al.20 em seis escolas médicas nos Estados Unidos, não apenas no número percentual de respostas preconceituosas, mas também no padrão semelhante de preconceito velado, uma vez que em questões que lidam mais com o “aspecto privado da pessoa” em comparação com o “aspecto médico”, a atitude tende a ser mais negativa. Da mesma forma, apesar de muito importante e relevante, faz-se a crítica ao estudo por ignorar a questão velada do preconceito e por considerar respostas menos positivas como ‘neutras ou indiferentes’, as quais podem representar atitudes tão preconceituosas como as pontuadas como ‘negativas’.
Florez-Salamanca & Rubio21 , ao analisar o preconceito sexual entre estudantes de medicina em 2013 em Nova York, conceituaram o preconceito como fator principal de estigmatização e exclusão da população LGBT, resultando em menor acesso e subutilização dos serviços de saúde por essa população. O preconceito é um achado frequente em estudantes de medicina e, se não for erradicado, representa uma barreira ao adequado fornecimento de serviços de saúde para a comunidade LGBT, sugerindo a implementação de atividades curriculares de formação médica, bem como estratégias que sensibilizem e eduquem os estudantes e diminuam o preconceito nos futuros médicos, como por exemplo a interação e envolvimento direto com indivíduos LGBT .
Na definição clássica por Meerens e Petigrew22 , o preconceito velado ou sutil, é tido como indireto, distante e frio, enquanto o preconceito flagrante é definido como direto, aberto e quente.Esse trabalho propõe, ainda, outras dimensões para essas formas de preconceito – para o preconceito sutil, os autores sugeriram três dimensões: (1) defesa dos valores tradicionais, de forma que os membros do grupo alvo de preconceito agiriam de formas inaceitáveis; (2) exagero das diferenças culturais, referido à percepção de cultura (valores e comportamento) divergente; (3) negação de emoções positivas, na forma de rejeição e antipatia a outro grupo. Os autores utilizaram essas dimensões no fomento de uma escala para a medida de preconceito que, no entanto, é vista atualmente como uma análise limitada em comparação a escalas posteriores, sobretudo a escalas personalizadas, como a de preconceito contra diversidade sexual e de gênero, utilizada no presente trabalho.17 , 23
O preconceito acentuado a pessoas transexuais é demarcado na literatura. Particularmente em serviços de saúde, pessoas transexuais ainda enfrentam obstáculos básicos como direito ao nome social, reconhecimento da identidade de gênero, além de dificuldade de acesso. As pessoas transexuais encontram importante despreparo profissional teórico e prático que influenciam diretamente na atenção à saúde, inclusive na dificuldade de acesso dessa população em atendimentos fora do sistema público de saúde. Tal fato evidencia que o SUS talvez não seja o fator base do preconceito, na busca de um profissional que reconheça e atenda a essa população de forma adequada.24 - 26
Segundo White et al.1 , o nível de preparação e conforto de estudantes de medicina no cuidado de pacientes LGBT é desconhecido, sendo que o currículo relacionado à temática LGBT é ruim ou razoável. O tema que mais se sentem preparados para lidar com as pessoas LGBT é sobre HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis enquanto os temas que se sentem menos confortáveis são cirurgia de redesignação de sexo e transição de gênero.
Vale ressaltar que o preconceito contra LGBT, apesar de evidente no âmbito médico, não é excluso, com a literatura apontando outras áreas, principalmente dentro da saúde, que frequentemente expõem as deficiências curriculares como um marco na conivência e perpetuação do preconceito. A existência de preconceito em vários campos de atuação não deve ser um motivo para sua banalização, e sim para a denotação da importância do tema e a exigência de medidas que revertam o quadro atual.
Brennan et al.27 estudaram o conteúdo que aborda LGBT no currículo de enfermagem norte-americano, e apontaram como o currículo é limitado e como os cuidados em saúde da população LGBT têm sido frequentemente negligenciados. Uma revisão de literatura com 17 artigos sobre atitudes de profissionais da enfermagem em relação a pacientes LGBT notou evidências de atitudes negativas em todos os trabalhos analisados. Apesar da revisão salientar limitações importantes dos estudos – principalmente metodológicas, a revisão concluiu que mais conhecimentos na área, com a inclusão de conteúdo LGBT no currículo, é necessário para melhorar a competência cultural.28 Um estudo que entrevistou enfermeiros LGBT evidenciou a falta de políticas de trabalho que os façam sentirem-se mais incluídos e seguros.29 Um projeto que envolveu estudantes de Odontologia do Canadá e Estados Unidos evidenciou que somente 13,3% dos estudantes entrevistados sentiam-se preparados para atender a população LGBT. Além disso, o estudo reportou que, quanto mais a universidade desempenha um papel honesto em relação à diversidade, com ambiente clínico sensível e afirmativo a pacientes com diferentes orientações sexuais, mais os estudantes sentiam-se preparados para suas atividades, indicando, assim, o papel importante da universidade em fornecer um panorama menos discriminador.30
Nesse sentido, Wallick et al.31 também apontaram deficiências importantes na educação médica em relação à temática da diversidade sexual. Ao analisar 126 escolas médicas acreditadas no ano de 1991 nos Estados Unidos, 65% das escolas reportaram uma média de 3 horas e 26 minutos de aulas relacionadas ao tema durante todo o curso, com diferenças entre regiões geográficas. Como forma de aumentar a sensibilidade e conforto em relação a gays e lésbicas e ir contra respostas estereotipadas, os autores propuseram que o tópico de homossexualidade fosse completamente integrado ao currículo.
Um estudo entrevistou 248 estudantes de medicina de 3º e 4º ano em escolas médicas nos Estados Unidos em 2004 para avaliar as suas habilidades em cuidar de pacientes LGBT. Como resultado, mostrou que os estudantes que tiveram mais contato com pacientes LGBT apresentaram escores de atitudes mais positivas indicando maior desejo e vontade de oferecer serviços de saúde. Em virtude disso, o estudo recomendou uma maior exposição clínica dos estudantes em relação a pacientes LGBT.32 Em um trabalho33 na faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, apenas 10% dos professores relataram terem abordado alguma temática relacionada à saúde LGBT em suas aulas, ainda que o tema não estivesse incluído no currículo. O estudo salientou que era necessário acrescentar a temática LGBT aos currículos, o que contribuiria ao desenvolvimento de uma atitude profissional e comportamental em relação a população LGBT.
Ao investigar a existência de práticas e procedimentos para identificar médicos competentes em relação à temática LGBT em escolas de medicina dos Estados Unidos34 , apenas 9% de 138 escolas acreditadas apresentavam procedimentos específicos para a temática e somente 4% revelaram possuir políticas específicas para identificar médicos competentes ao atendimento da comunidade LGBT. Dezesseis porcento responderam ter treinamento com competência compreensiva aos LGBT e 52% apontaram não ter nenhum treinamento; 80% indicaram interesse para o tópico. O estudo concluiu que existe tanto necessidade quanto interesse das escolas médicas em desenvolver procedimentos, políticas e programas para treinar médicos competentes a atender a população LGBT e melhorar o acesso da comunidade à saúde.
Entre os estudantes de medicina e médicos residentes gays e lésbicas do Canadá35 , houve indícios que a orientação sexual teve papel significante nas decisões sobre carreira profissional. Alguns fatores detectados pelo estudo que tiveram influência na avaliação de risco pessoal e profissional pelos estudados foram: presença identificável de apoio, currículo médico inclusivo e políticas de censura à discriminação sexual. Foi identificada também a necessidade de programas de treinamento serem proativos em reconhecer e apoiar a diversidade. Em relação ao clima e à cultura experimentada por empregados e estudantes LGBT em um grande centro acadêmico médico nos Estados Unidos, um estudo36 mostrou grande parte de relatos que evidenciaram uma pressão para os indivíduos permanecerem sem revelar sua orientação sexual na medida em que as pessoas declaradamente não heterossexuais sofriam assédio, apesar da existência de políticas de não-discriminação nas universidades. O estudo concluiu que aperfeiçoamento contínuo, políticas e práticas inclusivas e o desenvolvimento de métodos para evitar o assédio específico sofrido pela população LGBT são mecanismos necessários para melhorar o clima institucional.
Sobre currículo oculto, um estudo realizado em Taiwan37 buscou estudar a relação de gênero e o currículo oculto em estudantes de medicina por meio de análise de discurso. O estudo apontou cinco características do currículo oculto na temática, a saber: (1) estereótipo de gênero no conhecimento fisiológico; (2) tratamento enviesado de mulheres; (3) divisões de trabalho estereotipadas baseadas em gênero; (4) assédio sexual e ambiente hostil e (5) ridicularização da população LGBT. Os resultados evidenciaram que os professores e estudantes auxiliaram na reprodução de uma cultura heterossexual masculina e sexismo, implicando na mitigação de oportunidades de aprendizado e autoestima de estudantes mulheres e LGBT. O estudo salientou que as aulas formais e as atividades extracurriculares e informais contribuiriam para a consolidação das normas heterossexuais masculinas e sexismo estereotipado; o estudo também sugeriu três estratégias para integrar a temática de gênero na educação médica: (1) separar o conhecimento fisiológico da estereotipificação de gênero no modo de ensino; (2) iluminar a importância da sensibilidade de gênero na linguagem utilizada dentro e fora das salas de aula pelos professores e estudantes e (3) ampliar os horizontes de professores e estudantes por meio da exemplificação de experiências de pessoas excluídas e discriminadas, particularmente LGBT e outras minorias.
Em relação à quantidade de tempo que os currículos despendiam à temática LGBT nas escolas médicas, um estudo que envolveu entrevistas com chefes de escolas médicas sobre o conteúdo curricular relacionado a LGBT no Canadá e nos Estados Unidos entre 2009 e 2010, encontrou uma média de 5 horas de conteúdo no currículo. Um terço das escolas médicas não apresentavam nenhuma instrução clínica a tópicos relacionados à saúde LGBT, e apenas 14% das escolas ofereciam qualquer atividade clínica sobre pacientes LGBT.1
Em um outro estudo, publicado em 2014, foram entrevistados 124 diretores de programas de residência médica em emergências médicas nos Estados Unidos para avaliar o quanto de saúde LGBT era ensinado nesses programas. Como resultado, apresentou que um terço dos que responderam afirmaram que tópicos relacionados à temática LGBT eram incluídos no currículo didático, e o tempo médio de instrução em um ano foi de 45 minutos. Além disso, as respostas dos diretores sugeriram que, em média, deveriam ser dedicadas 2,2 horas. A maioria dos diretores relataram a presença de professores (642%) e residentes médicos (56,2%) LGBT em seus programas, sendo que a presença de professores LGBT e de educação LGBT prévia nos programas estiveram associadas a um número maior de horas desejadas sobre saúde LGBT.12
A literatura aponta para uma defasagem nos currículos médicos38 frente à pouca importância dada à saúde de indivíduos LGBT a despeito de sua relevância, reincidindo sobre a questão curricular o peso de não somente ser neutro ou indiferente ao assunto mas como ser conivente e fazer perdurar o preconceito, se não como fator promotor do preconceito ao não combater o desconhecimento e a ignorância e agir (ou deixar de agir) com passividade e negligência sobre o tema. Conforme estudo de Moretti-Pires39 sobre os conteúdos do currículo médico na universidade, há reprodução do machismo e do patriarcado, assim como invisibilidade da saúde das pessoas LGBT, com completa ausência da temática relativa ao gênero e à diversidade sexual. Esses estudos corroboram com um atraso de mais de duas décadas, se comparados aos primeiros trabalhos que notam a defasagem sobre o tema.
CONCLUSÃO
Ao fim da análise dos dados do presente estudo e da literatura sobre o tema, pontua-se que o preconceito contra a diversidade sexual e de gênero está presente em estudantes de Medicina da universidade investigada. Pelo menos 60% apresentaram atitude negativa frente às pessoas LGBT com a margem desse percentual ser ainda maior em função de variáveis como o preconceito velado. Nota-se um comportamento acentuadamente mais negativo em relação às pessoas transexuais. A literatura internacional fornece base para a ocorrência do mesmo fenômeno (preconceito) em escolas médicas, programas de especialização e na própria atuação médica em diversos locais do mundo, inferindo-se que o preconceito vai além da questão econômica de cada local ou país, e permeia aspectos socioculturais semelhantes a todas as escolas médicas.
Além dos dados da literatura mundial que apontam a falta de experiência e treinamento em saúde LGBT por parte dos profissionais de saúde, indicando a ausência desse conteúdo no currículo médico formal, há que ressaltar a existência de um currículo oculto (e o próprio currículo formal) como propulsores e mantenedores de preconceito, além da total ausência de conteúdo curricular relacionado a temática de saúde LGBT. Assim, sugere-se a hipótese de que o currículo médico, com suas falhas e defasagens, seja o cerne do preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre estudantes de medicina. Ao considerarmos que o preconceito encontra campo de desenvolvimento no desconhecimento, na falta de informação e ignorância, o currículo médico contemporâneo não somente é omisso contra o preconceito sendo indiferente a temática, assim como atua enquanto agente fomentador que acentua as atitudes preconceituosas. Entende-se, então, que o currículo médico da forma que é documentada e praticada no cotidiano dos estudantes e médicos é conivente, perpetuador e promotor do preconceito dentro da graduação em medicina.
Doravante, é importante que, após apresentar falhas, busquem-se soluções. Dessa forma, é fundamental que sejam promovidas ações estratégicas que norteiem as mudanças curriculares. Há que conscientizar os profissionais de saúde que desenvolvam suas habilidades de trabalhar com as especificidades das pessoas LGBT, enfatizando a falta de oportunidade de treinamento para conteúdos sensíveis suas singularidades, sendo recomendada a inclusão de conteúdo curricular relacionado à saúde LGBT de forma obrigatória, assim como temas pedagógicos que incluam: terminologia básica relacionada à LGBT, questões de entrevista que facilitem a abertura do tema de orientação sexual e identidade de gênero, informações a respeito do impacto do heterossexismo e da homofobia, e a necessidade de cuidados de saúde específicos de populações minoritárias sobre identidade de gênero e sexual.
Os dados corroboram para a reiterada importância de integrar a temática de saúde LGBT de forma obrigatória ao conteúdo curricular, e construir mecanismos de apoio à estruturação pedagógica que auxiliem as aulas e/ou disciplinas a cumprirem seu papel. Além da necessidade de ministrar conteúdo de forma específica ao acompanhamento e tratamento das pessoas LGBT , reafirma-se que é necessária a educação básica em saúde LGBT de todo corpo docente e quaisquer outros profissionais integrados ao ensino, possibilitando que os pacientes desses futuros médicos não sejam discriminados e tenham acesso a tratamentos adequados, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
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Recebido: 12 de Maio de 2019; Aceito: 22 de Julho de 2019