INTRODUÇÃO
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina, seguindo a proposta de redefinição da formação médica da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), destacam que os cursos médicos precisam ampliar o enfoque na comunidade e inserir os estudantes desde o início da graduação e ao longo do curso nas redes de serviços de saúde, que se constituem em importantes ambientes de aprendizagem. As DCN apontam para uma formação médica mais geral, humanista e crítica com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, dando centralidade para o ensino da atenção básica organizado e coordenado pela área de Medicina de Família e Comunidade (MFC). A inserção do estudante em cenários de atenção primária deve ser contínua durante todo o curso médico. No período do internato, ao menos 30% da carga horária deve ser desenvolvida na atenção primária e em serviço de urgência e emergência do Sistema Único de Saúde (SUS), com predomínio da carga horária dedicada à atenção primária e voltada para a área de MFC1), (2. Tal imersão social do estudante visa favorecer a construção das competências necessárias para que o cuidado integral dos pacientes se dê de forma interligada, permanente e contextualizada, sempre permeado pelo compromisso social3)-(6.
Para além da graduação, outra preocupação dos gestores públicos e da sociedade em geral recai sobre a futura especialidade a ser exercida pelos egressos dos cursos médicos brasileiros, uma vez que a má distribuição e a desproporção das especialidades impactam diretamente o funcionamento do sistema de saúde. Idealmente, a escolha da especialidade deveria resultar do equilíbrio entre o interesse do profissional e as necessidades dos cidadãos, uma vez que ela determina a disponibilidade de especialistas que prestarão assistência de saúde à população de determinada região do país7), (8.
São várias as razões que interferem na escolha da especialidade: caraterísticas individuais, como idade, gênero, tipo de personalidade, situação conjugal e ter filhos dependentes; currículo vivenciado durante a graduação, tipo de estágio, exposição às diferentes especialidades; remuneração; uso de novas tecnologias; estilo de vida; status social; e características da própria especialidade9), (10. Paralelamente, sabe-se que governantes e autoridades de saúde podem influenciar nos fatores que levam recém-graduados a escolher seu campo de prática futuro11.
Dentre as especialidades médicas, a MFC é considerada a que mais intimamente se relaciona com os princípios de longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado da atenção primária à saúde (APS), porta de entrada para os demais níveis de atenção à saúde12. Há evidências de que o aumento de médicos atuando na APS, especialmente médicos de família, melhora a saúde da população, promove maior equidade de assistência e reduz os gastos em um sistema de saúde efetivo, enquanto o aumento da proporção de especialistas não tem impacto positivo em nível populacional, podendo ser inclusive prejudicial em casos de encaminhamentos desnecessários13)-(15.
Apesar dessa reconhecida importância da MFC na organização dos sistemas de saúde, a pesquisa Demografia médica no Brasil 2018 mostrou que apenas 1,4% dos especialistas que atuam no Brasil é composto de médicos de família e comunidade16), (17. Esse número causa mais impacto quando comprado com países como o Canadá, onde o percentual de médicos de família chega a mais de 50% do total de médicos18. Essa baixa procura dos egressos do curso médico pela atuação no campo da MFC tem sido encarada como um alerta para o governo e as escolas médicas19.
No âmbito da formação médica, observa-se que, a despeito do que é preconizado pelas DCN do curso de graduação em Medicina, a inserção dos graduandos na APS e MFC se dá de maneira heterogênea entre os cursos. Alguns estudos apontam que a especialidade de MFC tem sido mais valorizada, tanto por docentes como por discentes, nas instituições de ensino superior (IES), em que médicos de família compõem o corpo docente e os estudantes são precoce e frequentemente expostos à prática em APS, sobretudo quando os preceptores são modelos de médicos de família. Nessas condições, os estudantes podem se identificar mais facilmente com a especialidade durante o curso e ter maior chance de escolher a carreira de MFC20)-(27.
Diante da importância da MFC no contexto da APS e do SUS, este estudo se propõe a conhecer os fatores que influenciam os médicos na escolha da especialidade de MFC, sobretudo aqueles relacionados com o currículo da graduação.
MÉTODO
Realizou-se um estudo de corte transversal no estado de Pernambuco, no período de junho de 2017 a maio de 2018. A população do estudo foi composta de 129 médicos egressos e residentes dos programas de residência de MFC da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) que ingressaram entre 2012 e 2017. Até a conclusão do estudo, existiam quatro faculdades de Medicina no estado de Pernambuco com turmas já concluídas: três públicas - Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), Universidade Estadual de Pernambuco (UPE) e Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) - e uma privada - Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Como a FPS teve sua primeira turma de Medicina concluída em 2011, optou-se por subdividir a amostra da pesquisa em dois grupos - médicos formados antes e a partir de 2011 -, a fim de comparar os resultados das quatro faculdades de forma igualitária. A coleta de dados foi realizada por meio da aplicação de um questionário eletrônico estruturado, composto por duas seções: 1. perguntas sobre as características sociodemográficas e acadêmicas dos participantes e 2., em escala tipo Likert de cinco pontos, questões sobre os fatores que influenciaram na escolha da especialidade. Para cada assertiva da segunda seção, o candidato poderia escolher um dos cinco itens da escala: 1 - discordo fortemente; 2 - discordo; 3 - indiferente; 4 - concordo; 5 - concordo fortement e. O questionário foi elaborado em formato eletrônico e enviado para o WhatsApp e/ou e-mail pessoal dos participantes por meio do programa LimeSurvey versão 2.0.
Os dados coletados foram armazenados no próprio LimeSurvey 2.0 e posteriormente organizados em planilha Excel. O programa utilizado para a análise estatística foi o Epi Info versão 7.0. Para analisar os fatores influenciadores da escolha da especialidade da escala de Likert, utilizou-se o ranking médio da pontuação, relacionado à frequência das respostas dos participantes que fizeram tal atribuição. Como a escala foi de cinco pontos, os valores maiores que três foram considerados concordantes. Calculou-se o alfa de Cronbach para avaliar a consistência das variáveis analisadas. Fizeram-se análises descritivas das variáveis do estudo, apresentadas em distribuição de frequência, e medidas de tendência central e dispersão
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Pernambucana de Saúde: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAEE) nº 65565517.9.0000.5569.
RESULTADO
Do total de 129 médicos que ingressaram nos programas de residência de MFC do estado de Pernambuco, três foram excluídos do estudo por terem desistido da residência ao longo dos dois anos do programa. O índice de resposta obtido foi de 82,5%, com 104 questionários respondidos de forma completa. A média de idade foi de 31+6,1 anos, com três participantes abaixo dos 25 anos e dois acima dos 50. Houve predomínio de mulheres (58,6%). Em relação à cor, 51 (49%) se declararam brancos e 51 (49%) mencionaram que eram pardos ou pretos. Mais da metade dos participantes eram solteiros (51%) e cerca de 80% não tinham filhos. Quanto à naturalidade, 58 (55,8%) nasceram em cidades do interior do Brasil (Tabela 1).
Características sociodemográficas | N (104) | % |
< 25 anos | 3 | 2,9 |
25-30 anos | 54 | 51,9 |
31-40 anos | 45 | 43,3 |
> = 51 anos | 2 | 1,9 |
Sexo | ||
Feminino | 61 | 58,6 |
Masculino | 43 | 41,4 |
Estado civil | ||
Solteiro | 53 | 50,9 |
Casado/união estável | 50 | 48,1 |
Separado/divorciado | 1 | 1,0 |
Quantidade de filhos | ||
0 | 82 | 78,8 |
1 | 13 | 12,5 |
2 | 6 | 5,8 |
3 | 2 | 1,9 |
4 ou mais | 1 | 1,0 |
Raça/cor | ||
Branca | 51 | 49,0 |
Parda | 43 | 41,3 |
Preta | 8 | 7,7 |
Amarela | 1 | 1,0 |
Indígena | 1 | 1,0 |
Local de nascimento | ||
Interior | 58 | 55,8 |
Capital | 46 | 44,2 |
Estado de nascimento | ||
Pernambuco | 60 | 57,7 |
Outros | 44 | 42,3 |
Fonte: Elaborada pelas autoras
Em relação à graduação, a maioria dos participantes cursou Medicina em faculdades públicas (72,1%), e, dos 29 (27,9%) que estudaram em faculdades privadas, 44,8% utilizaram o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) como forma de financiamento parcial ou total. Quanto ao momento da escolha da especialidade, 69 (66,3%) médicos escolheram fazer a residência de MFC após a conclusão da faculdade (Tabela 2).
Natureza jurídica da faculdade onde cursou Medicina | n | % |
Faculdade pública | 75 | 72,1 |
Faculdade privada | 29 | 27,9 |
TOTAL | 104 | 100 |
Financiamento da faculdade privada | n | % |
Recursos de membros da família | 12 | 41,3 |
Fies | 10 | 34,4 |
Recursos de membros da família + Fies | 03 | 10,3 |
Recursos próprios | 01 | 3,5 |
Recursos próprios + membro da família | 01 | 3,5 |
Programa Universidade par Todos (Prouni) | 01 | 3,5 |
Outros | 01 | 3,5 |
TOTAL | 29 | 100 |
Ano de conclusão do curso | n | % |
Antes de 2011 | 20 | 19,2 |
A partir de 2011 | 84 | 80,8 |
TOTAL | 104 | 100 |
Faculdade onde cursou medicina (Concluintes a partir de 2011) | n | % |
Faculdades de outros estados ou países | 26 | 30,9 |
Univasf | 20 | 23,8 |
UPE | 13 | 15,5 |
FPS | 13 | 15,5 |
Ufpe | 12 | 14,3 |
TOTAL | 84 | 100 |
Momento da escolha da especialidade | n | % |
Antes de entrar na faculdade | 02 | 1,9 |
Nos primeiros quatro anos da faculdade | 11 | 10,6 |
Durante o internato | 22 | 21,2 |
Depois de concluir a faculdade | 69 | 66,3 |
TOTAL | 104 | 100 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
No período do estudo, 65 (62,5%) eram residentes e 39 participantes (37,5%) já haviam concluído a residência. Dos respondentes, 75% ingressaram na residência entre 2015 e 2017. Pouco mais de 10% dos participantes fizeram outra residência além de MFC (Tabela 3).
Ano de ingresso na residência | n | % |
2012 | 12 | 11,6 |
2013 | 07 | 6,7 |
2014 | 07 | 6,7 |
2015 | 20 | 19,2 |
2016 | 22 | 21,2 |
2017 | 36 | 34,6 |
TOTAL | 104 | 100 |
Instituição da residência de Medicina de Família e Comunidade | n | % |
Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) | 38 | 36,5 |
Prefeitura do Recife (PCR) | 17 | 16,4 |
Universidade Estadual de Pernambuco (UPE) | 14 | 13,5 |
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (Imip) | 12 | 11,6 |
Hospital das Clínicas da Ufpe (HC-Ufpe) | 09 | 8,6 |
Núcleo de Ciências da Vida/Ufpe - Caruaru (NCV-Ufpe) | 09 | 8,6 |
Prefeitura de Jaboatão | 05 | 4,8 |
TOTAL | 104 | 100 |
Conclusão da residência | n | % |
Sim | 39 | 37,5 |
Não (residência em curso) | 65 | 62,5 |
TOTAL | 104 | 100 |
Outra residência além de MFC | n | % |
Sim | 12 | 11,5 |
Não | 92 | 88,5 |
TOTAL | 104 | 100 |
Fonte: Elaborada pelas autoras
Na opinião dos participantes, os aspectos pessoais que influenciaram na escolha da especialidade foram: compromisso social, aptidão e afinidade com a especialidade, e circunstâncias da vida familiar ou pessoal. A opinião e o exemplo dos pais ou de outros parentes não foram relevantes na escolha da MFC.
Em relação às características da residência, tanto a duração quanto a disponibilidade de vagas nos programas de MFC do estado favoreceram a escolha da especialidade.
Quanto às características intrínsecas da própria especialidade, a maioria delas exerceu influência positiva na escolha dos participantes, tais como: conteúdo técnico, perspectivas de crescimento profissional, oportunidade de ensino e pesquisa, diversidade de casos, atmosfera no ambiente de trabalho, oportunidade de realizar procedimentos ambulatoriais, carga horária média semanal, tipo de relação médico-paciente, trabalho em equipe multidisciplinar, estilo de vida que a especialidade propicia, assistência predominantemente ambulatorial, cuidado integral do paciente, longitudinalidade do cuidado, preferência por cuidado primário versus cuidado hospitalar, trabalho na comunidade e autonomia que a especialidade propicia. Em contrapartida, as características da especialidade que se destacaram como não influenciadoras foram: o prestígio social da MFC, o retorno financeiro, o mercado de trabalho, na perspectiva da segurança profissional, e a flexibilidade de horário.
No âmbito do currículo da graduação médica, apenas dois fatores foram apontados como tendo favorecido a escolha da especialidade: a influência de algum docente ou preceptor modelo e as atividades práticas vivenciadas no contexto da MFC durante os estágios. Os demais fatores do currículo, como disciplinas ou módulos relacionados com a MFC, atividades extracurriculares, participação em ligas acadêmicas, movimento estudantil e projetos de extensão ou de pesquisa, não exerceram papel positivo na escolha dos participantes (Tabela 4).
Fatores que influenciaram na escolha da especialidade de MFC | Ranking médio | Desvio padrão |
ASPECTOS PESSOAIS | ||
Interesse em ajudar as pessoas (compromisso social) | 4,5 | 0,61 |
Aptidão e afinidade com a especialidade | 4,3 | 0,77 |
Momento da vida (circunstâncias familiares ou pessoais) | 3,9 | 1,12 |
Influência dos pais ou de outros parentes | 1,9 | 1,05 |
Média do bloco | 3,2 | |
CARACTERÍSTICAS DA RESIDÊNCIA DE MFC | ||
Duração da residência | 3,1 | 0,92 |
Disponibilidade de vagas de residência | 3,3 | 1,06 |
Média do bloco | 3,2 | |
CARACTERÍSTICAS DA ESPECIALIDADE DE MFC | ||
Conteúdo técnico da especialidade | 4,1 | 0,76 |
Prestígio da especialidade | 1,7 | 0,85 |
Remuneração/retorno financeiro | 2,6 | 1,16 |
Perspectiva de segurança profissional (mercado de trabalho) | 2,9 | 1,25 |
Perspectivas de crescimento profissional | 3,3 | 1,13 |
Oportunidade de ensino e pesquisa | 3,4 | 1,11 |
Diversidade de casos/tipos de paciente | 4,2 | 0,95 |
Possibilidade de trabalhar em horários flexíveis | 2,9 | 1,35 |
Atmosfera/ambiente de trabalho | 3,8 | 1,11 |
Oportunidade de realizar procedimentos ambulatoriais | 3,6 | 1,05 |
Carga horária média semanal do médico de família | 3,6 | 0,99 |
Tipo de relação médico-paciente | 4,5 | 0,77 |
Trabalho em equipe multidisciplinar | 4,3 | 0,87 |
Estilo de vida que a especialidade propicia | 4,3 | 0,89 |
Assistência predominantemente ambulatorial | 4,1 | 0,86 |
Cuidado integral do paciente | 4,5 | 0,72 |
Seguimento de pacientes em longo prazo (longitudinalidade) | 4,5 | 0,69 |
Preferência por cuidado primário versus cuidado hospitalar | 4,3 | 0,93 |
Trabalho na comunidade | 4,1 | 1,04 |
Autonomia que a especialidade propicia | 3,3 | 1,17 |
Média do bloco | 3,4 | |
FATORES RELACIONADOS AO CURRÍCULO DA GRADUAÇÃO | ||
Influência de algum docente ou preceptor que você admire | 3,1 | 1,32 |
Atividades práticas no âmbito da MFC | 3,1 | 1,39 |
Módulos ou disciplinas teóricos relacionados com MFC | 2,5 | 1,37 |
Atividades extracurriculares relacionadas com a especialidade | 2,8 | 1,37 |
Participação em projetos de extensão e/ou ligas acadêmicas | 2,1 | 1,09 |
Participação em movimento estudantil ou diretório acadêmico | 2,5 | 1,47 |
Participação em pesquisa/iniciação científica | 2,3 | 1,16 |
Média do bloco | 2,6 |
Fonte: Elaborada pelas autoras
A aplicação do coeficiente alfa de Cronbach com valor de 0,847 demonstrou uma boa consistência das variáveis analisadas.
DISCUSSÃO
As crescentes mudanças nas demandas de saúde apontam a atenção primária e a MFC como estratégias de saúde eficazes em diversos países, entretanto ainda está longe de ser uma das principais escolhas entre os egressos dos cursos médicos no Brasil16), (17. Estudos que abordam essa temática ainda são escassos. Com essa preocupação, estudamos a opinião de residentes e ex-residentes de MFC sobre os fatores que contribuíram para a escolha da especialidade.
Fatores que influenciaram na escolha da especialidade
O compromisso social foi decisivo para a escolha da especialidade de MFC na opinião dos médicos participantes do estudo. Mesmo sendo considerada uma característica pessoal que atuaria como motivação intrínseca na escolha profissional, entendemos que o compromisso social pode ser estimulado ou despertado ao longo do percurso da graduação médica. Na verdade, até mesmo anteriormente a isso, por meio da utilização de critérios de admissão nas escolas médicas que favoreçam estudantes com características socioeconômicas, culturais e geográficas diversas, pode-se aumentar o compromisso social dos egressos4), (28.
Ter aptidão e afinidade com a especialidade também foi um fator relevante, como identificado em estudos nacionais e internacionais sobre a escolha da especialidade médica em geral. Nesse sentido, é fundamental a exposição dos graduandos à especialidade de MFC de forma qualificada e em vários momentos do curso para que essa afinidade possa ser despertada9), (29. Entretanto, algumas dificuldades são relatadas para a inserção dos estudantes de Medicina nos cenários de prática em atenção primária de forma longitudinal, seja de cunho administrativo, logístico ou pela falta de profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) que exerçam função de preceptoria.
A influência dos pais ou de outros membros da família na escolha da MFC, ao contrário de outras especialidades, não foi relevante. Esse fato pode estar relacionado com o ainda baixo prestígio social da especialidade relatado em alguns estudos, como também ao fato de ser uma residência que tem tido crescimento recente, portanto envolvendo uma geração mais jovem de médicos no Brasil19), (20.
Em relação às características próprias da especialidade, todas as que estão em consonância com os princípios da atenção primária, como o cuidado integral do paciente, a pluralidade de casos, a assistência ambulatorial, o trabalho em equipe multidisciplinar, a longitudinalidade do cuidado e a atuação na comunidade, foram relevantes na escolha da carreira de MFC20.
Em contrapartida, o prestígio social da MFC, o retorno financeiro e o mercado de trabalho não foram sinalizados como fatores que tiveram impacto positivo na escolha da MFC, como observado em outros estudos12), (29. Ressalta-se que alguns desses aspectos poderiam ser modificados a partir da instituição de políticas públicas que visassem à valorização da atenção primária e de planos de cargos, carreiras e salários para médicos de família no âmbito do SUS, sobretudo na ESF30.
No âmbito do currículo da graduação médica, a presença de preceptores modelos (role models) que exerceram papel inspirador no exercício da MFC relatada em vários países também esteve presente como uma influência neste estudo. Esse fato que está intrinsecamente ligado à vivência de atividades práticas no âmbito da MFC durante a graduação médica, aspecto igualmente destacado como influenciador pelos participantes (23), (25. Em contrapartida, nenhuma outra atividade acadêmica, curricular ou extracurricular, como aulas teóricas, ligas acadêmicas, projetos de extensão ou iniciação científica, foi apontada como influência positiva para a MFC. A análise dos aspectos relacionados ao currículo da graduação fica limitada no presente estudo, uma vez que isso não foi amplamente explorado. Entretanto, os achados reforçam a importância da inserção contínua em cenários de atenção primária e de MFC, além do papel do preceptor no processo de ensino e aprendizagem, assim como na escolha da especialidade.
Quando se analisaram os quatro blocos de fatores influenciadores da escolha da especialidade - aspectos pessoais, características da residência, características da especialidade e fatores relacionados ao currículo -, percebeu-se que, avaliados em conjunto, os fatores relacionados ao currículo da graduação não foram referidos pelos participantes como tendo influenciado na escolha da especialidade. Apesar de as DCN apontarem para uma formação com foco no cidadão, na família e na comunidade, com visão integral e contínua do cuidado, observa-se que a adequação dos cursos de Medicina a elas acontece de maneira heterogênea, seja por fatores ligados à própria IES, seja por fatores relacionados à rede de saúde ou ambos16), (17.
Características sociodemográficas
A pesquisa Demografia médica no Brasil 2018 revelou que os homens ainda são maioria entre os médicos em atividade no país (54,4%), entretanto existe uma clara tendência de feminização da profissão, pois as mulheres já são maioria entre os médicos mais jovens, representando 57,4% no grupo de até 29 anos e 53,7% na faixa entre 30 e 34 anos. Observa-se essa mudança mais rápida em algumas especialidades, em que as mulheres já são maioria, como na MFC (57,1%), fato que se verifica entre os participantes deste estudo e em outros países16), (22. Essa feminização no âmbito da MFC é compreensível pelo fato de que mulheres médicas se adaptam melhor à atuação na atenção primária e ao trabalho em equipe multiprofissional, abordam mais aspectos preventivos, tendem a fazer menos uso desnecessário de tecnologias duras, estão mais propensas a uma boa relação médico-paciente e promovem maior envolvimento dos pacientes nas decisões relacionadas aos cuidados médicos16.
A média de idade dos especialistas em MFC é a menor de todas as especialidades no Brasil, o que indica a expansão recente da especialidade, que pode estar relacionada com a maior oferta de vagas de residência médica e/ou maior procura pela especialização. Solteiros e sem filhos predominaram na amostra, dados que estão em consonância com a baixa média de idade da especialidade no Brasil16.
Ser procedente de área rural ou de cidades de menor porte foi identificado entre as características de médicos que escolheram medicina de família em outros países, o que parece estar em acordo com os participantes do estudo, cuja maioria nasceu em cidades do interior do Brasil22), (23.
Perfil da instituição de graduação
Em relação à distribuição da faculdade de origem, não houve diferença entre os egressos das três faculdades de Medicina da região metropolitana do estado de Pernambuco, considerando que o quantitativo anual de vagas no período analisado foi semelhante entre elas. Entretanto, a única faculdade localizada no interior do estado teve um quantitativo absoluto e percentual significativamente maior de egressos entre os participantes do estudo, apesar de disponibilizar menos vagas anuais no curso de Medicina quando comparada com as demais citadas31. Especulamos que a presença de faculdades de Medicina em cidades do interior, longe dos grandes centros urbanos, onde se concentram os complexos hospitalares superespecializados, seja um fator que influencie no aumento pela procura de uma especialidade básica essencialmente voltada para a atenção primária ambulatorial como a MFC. Outro aspecto importante a ser destacado é que essa universidade oferece vagas de residência de MFC, favorecendo a permanência dos egressos da faculdade na própria região em que se graduaram.
Dos participantes 75% ingressaram na residência nos três anos finais do período do estudo e 25% nos três anos iniciais, o que pode sugerir uma tendência de crescimento na procura pela especialidade de MFC no estado, necessitando, entretanto, de estudos com outro desenho para confirmação (Gráfico 1).
Uma limitação do estudo refere-se à não análise dos currículos das faculdades do estado de Pernambuco, o que permitiria aprofundar a discussão sobre as diferentes influências que possam ter ocorrido de acordo com a inserção da MFC e APS ao longo dos cursos médicos.
CONCLUSÃO
Entre os fatores referidos pelos residentes como influenciadores na escolha da especialidade de MFC, incluem-se aspectos pessoais, características do programa de residência, assim como características da própria especialidade. Por sua vez, aspectos relacionados ao currículo da graduação de forma geral não contribuíram para a essa escolha, entretanto houve concordância de que a vivência em cenário de prática de MFC e o exemplo de preceptores modelos influenciaram na decisão pela especialidade. A qualificação de todos os ambientes de aprendizagem e o planejamento integrado do currículo com participação de profissionais de MFC podem contribuir para uma visão ampliada da atuação da especialidade de MFC desde a graduação.
Contudo, independentemente da especialidade que os graduandos terão na sua prática profissional futura, pensar em um currículo embebido da essência generalista, humana e integral permitirá aos egressos uma visão diferenciada do cuidado, com o compromisso social necessário para a transformação da prática médica vigente.