INTRODUÇÃO
Sabe-se que o desempenho do médico é fortemente influenciado por seus conhecimentos, por suas competências clínicas e também pela capacidade de empatia. A empatia contribui positivamente para a relação médico-paciente e tem impacto na adesão ao tratamento1),(2. Há ainda a evidência de que a habilidade empática pode ser influenciada pela personalidade3. Assim, das diversas características individuais do profissional que podem interferir no atendimento aos pacientes, destacamos neste artigo a personalidade e a empatia.
A personalidade é definida como um conjunto de características singulares de cada indivíduo. Embora possa ser modulada por diferentes contextos, a personalidade é referida como relativamente constante ao longo do tempo4, determinando um perfil único para cada pessoa constituído de diferentes características, aqui denominadas “domínios” ou “traços” de personalidade. Tais atributos podem ser influenciados pela cultura, educação e observação de comportamentos de outras pessoas5 que formam os domínios da personalidade e permeiam a conduta humana6.
A empatia, por sua vez, é um dos atributos mais destacados em profissionais da área da saúde, principalmente na relação médico-paciente, reunindo em seu conceito domínios cognitivos, emocionais e afetivos7. Oriunda do grego, empatia significa a capacidade de colocar-se no lugar do outro, sem se confundir com ele8. Sendo assim, o uso dessa habilidade privilegia a escuta associativa, a atenção à linguagem corporal e a observação dos sinais de ansiedade9 do paciente pelo médico10. Estudos prévios demonstraram que a empatia tem impacto terapêutico positivo11),(12 com aumento na satisfação do paciente, reduzindo a ansiedade e o sofrimento dele, com resultados clínicos significativamente melhores13. Sabe-se também que ela varia conforme os anos de experiência do profissional e com o gênero, e existe consenso na literatura de que as mulheres apresentam maiores escores de empatia, especialmente em grupos de estudantes de Medicina14.
Estudos que analisaram a relação entre empatia e os cinco principais domínios da personalidade (conscienciosidade, extroversão, socialização, abertura para experiência e neuroticismo) demonstraram correlação positiva e significativa entre empatia e socialização, e abertura para experiência e extroversão15)-(18. Contudo, há relatos de uma correlação inversa da capacidade de empatia com o neuroticismo19. Esses resultados são oriundos de estudos internacionais realizados com estudantes de Medicina. No Brasil, existem dados publicados sobre os níveis de empatia em estudantes de Medicina, mas dados analisando sua correlação com outras características individuais, como a personalidade, não foram publicados até o momento. Portanto, os objetivos deste estudo foram: 1. analisar a capacidade de empatia e os domínios de personalidade, e 2. investigar a associação entre empatia e personalidade em estudantes de Medicina brasileiros.
MÉTODOS
Os dados analisados fazem parte de um projeto mais extenso que visa conhecer o perfil do estudante de Medicina de uma universidade pública do Brasil. As análises apresentadas neste artigo são resultantes de duas enquetes transversais realizadas com alunos do primeiro ano de Medicina nos anos de 2015 e 2017. Foram distribuídos questionários contendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e questionários autoaplicáveis, em horário curricular disponibilizado à pesquisa. Apresentaram-se aos alunos os objetivos da aplicação, bem como as instruções para a participação na pesquisa.
Dentre os questionários aplicados para avaliação do perfil do aluno, utilizaram-se dois instrumentos validados em português para mensurar a capacidade de empatia e a personalidade: respectivamente, a Jefferson Scale Empathy - Students version (JSE-S)20 e o NEO-Five Factor Inventory (NEO-FFI)21. Esse último é composto pelos domínios de personalidade descritos por Costa e McCrae22, na denominada Teoria dos Cinco Fatores ou Big Five, definidos a partir de atributos, a saber: extroversão, socialização, conscienciosidade, neuroticismo e abertura para experiência23.
A JSE-S é um questionário que avalia a empatia, amplamente validado e utilizado em estudantes de Medicina de diversas nacionalidades, sendo composto por 20 itens, dez com afirmativas diretas e dez com afirmativas reversas, cujas respostas variam em escala do tipo Likert de 1 (“discordo fortemente”) a 7 (“concordo fortemente”). Os escores foram calculados respeitando a reversibilidade de cada item. Não há um ponto de corte, e, quanto maior for o escore obtido pelo estudante, maior será propensão à empatia.
O NEO-FFI, por sua vez, é um instrumento para avaliação de domínios individuais da personalidade, que são: extroversão, neuroticismo, conscienciosidade, socialização e abertura para experiência. O questionário é composto por 60 itens com escalas de 1 (“discordo fortemente”) a 5 (“concordo fortemente”), com um total de 12 itens que avaliam cada um dos cinco domínios de personalidade. Os domínios podem ser assim descritos: a “extroversão” se refere à intensidade e frequência de relações interpessoais; a “socialização” se concentra nos tipos de interações sociais construídas pelo indivíduo; a “conscienciosidade” indica o grau de resiliência e motivação; o “neuroticismo” indica a adequação emocional; enquanto a “abertura à experiência” demonstra a disposição a novas experiências24.
Um total de 77 alunos do ano de 2015 participaram da pesquisa, com adesão de 100% dos presentes no momento da enquete. No ano de 2017, 93 alunos do primeiro ano foram convidados a participar, dos quais 87 responderam aos questionários (93,5%). Nos dois grupos, observou-se um mínimo predomínio do sexo feminino, com 50,5% em 2015 e 50,6% em 2017.
Com o objetivo de unir os dados das duas coletas transversais, realizou-se uma análise preliminar em que se compararam a distribuição dos dados e os resultados das duas turmas de alunos com relação às variáveis analisadas. Observou-se uma distribuição não paramétrica nas duas turmas de alunos. A média da empatia do grupo 1 (77 alunos) foi de 118,77 ± 9,9 e a média do grupo 2 (87 alunos) foi de 116,66 ± 11,73. A comparação entre as médias dos escores obtidos para os parâmetros analisados entre os grupos foi realizada por meio do teste Mann-Whitney, não se observando diferença estatisticamente significativa (p = 0,219).
A análise descritiva dos dados incluiu cálculos de média, escores mínimos e máximos, e desvio padrão de cada um dos domínios do NEO-FFI e da JSE-S. Na análise das variáveis contínuas, utilizaram-se os testes t de Student e Mann-Whitney e a regressão linear múltipla. A correlação entre personalidade e capacidade de empatia foi analisada por meio da correlação bivariada do índice de Spearman, após verificação de distribuição não paramétrica. Na análise de todos os dados, utilizou-se o software SPSS versão 22. A significância estatística foi estabelecida por meio de um valor de p ≤ 0,05.
O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
RESULTADOS
O total de alunos participantes foi de 164 (96,4%). No questionário JSE-S, utilizado para avaliação da empatia, a média do escore global obtida foi de 117,6 ± 10,9, observado na Tabela 1. Na avaliação dos escores da JSE-S para empatia estratificada por sexo, observaram-se as seguintes médias: 119,5 ± 10,5 para o grupo feminino e 115,7 ± 11 para o masculino, com diferença significativa entre os grupos (p < 0,01).
Instrumentos | Geral | Feminino | Masculino | p | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média ± DP | Mín | Máx | Média ± DP | Mín | Máx | Média ± DP | Mín | Máx | ||
(JSE) | 117,6 ± 10,9 | 84 | 140 | 119,5 ± 10,5 | 85 | 139 | 115,7 ± 1 | 84 | 140 | 0,010 |
(E) | 28,0 ± 4,1 | 13 | 43 | 28,2 ± 4,1 | 13 | 37 | 27,8 ± 4,1 | 13 | 43 | 0,655 |
(AE) | 21,8 ± 3,4 | 08 | 30 | 20,6 ± 3,3 | 08 | 28 | 23,0 ± 3,0 | 16 | 30 | 0,000 |
(S) | 26,8 ± 4,5 | 15 | 43 | 25,6 ± 4,5 | 15 | 36 | 28,0 ± 4,2 | 19 | 43 | 0,001 |
(C) | 29,1 ± 3,8 | 16 | 39 | 29,4 ± 3,8 | 16 | 37 | 29,4 ± 3,9 | 20 | 39 | 0,930 |
(N) | 21,7 ± 4,7 | 08 | 35 | 21,8 ± 4,7 | 10 | 35 | 21, 6± 4,2 | 08 | 34 | 0,701 |
(JSE): Jefferson Scale Empathy; (E): extroversão; (AE): abertura para experiência; (S) socialização; (C) conscienciosidade; (N): neuroticismo; Mín: mínimo; Máx: máximo; Média ± DP: média e desvio padrão. Fonte: Elaborada pelos autores.
A análise dos domínios da personalidade demonstrou que a maior média global foi a de “conscienciosidade” (29,1 ± 3,8), e “neuroticismo” obteve a menor (21,7 ± 4,7), como se observa na Tabela 2. A maior pontuação obtida da personalidade no grupo feminino foi em “conscienciosidade”, com média de 29,4±3,79, e a menor em “abertura para experiência”, com média de 20,6 ± 3,3. No grupo masculino, “conscienciosidade” e “neuroticismo” obtiveram as maiores e menores médias (29,4 ± 3,9 e 21,6 ± 4,2, respectivamente). Constatou-se diferença significativa entre os grupos após estratificação no escore dos domínios de personalidade “abertura a novas experiências” e “socialização”, conforme ilustra a Tabela 1.
JSE | E | AE | S | C | N |
---|---|---|---|---|---|
Masculino | 0,203 | 0,004 | 0,073 | 0,050 | 0,028 |
Feminino | -0,064 | -0,055 | 0,046 | 0,108 | -0,077 |
Geral | 0,078 | -0,071 | -0,006 | 0,063 | -0,007 |
E: extroversão; AE: abertura para experiência; S: socialização; C: conscienciosidade; N: neuroticismo. Fonte: Elaborada pelos autores.
Fez-se a avaliação da correlação pela média global e pela estratificação por sexo. Encontraram-se correlações fracas, e nenhuma delas foi estatisticamente significativa (Tabela 2).
A regressão linear múltipla não apresentou resultados significativos entre os domínios de personalidade e empatia, conforme mostra a Tabela 3.
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como objetivo abordar a relação entre a empatia e a personalidade entre estudantes de Medicina do primeiro ano da graduação. Os nossos resultados demonstraram que os alunos com maior tendência à extroversão têm uma propensão significativamente maior à empatia, reforçando a hipótese de que essas duas características se relacionam3. Segundo Costa et at.16, que também avaliaram empatia e personalidade em estudantes de Medicina, a análise dos fatores de personalidade contribuiu para a identificação de alunos mais empáticos, sobretudo nas dimensões conscienciosidade e abertura a novas experiências.
Na nossa análise dos níveis de empatia, os maiores escores foram das mulheres, o que é reforçado pelos resultados da literatura sobre estudos realizados com grupos de estudantes de Medicina25. De acordo com o estudo de Duarte et al.26, as mulheres, no que concerne aos discentes de Medicina, são mais empáticas do que os homens, e essa diferença tente a crescer ao longo do curso26. Há outros aspectos que contribuem para a mudança dos níveis de empatia ao longo do curso de Medicina além da personalidade e do gênero. Piumatti et al.27 destacam, por exemplo, que a motivação para o estudo da Medicina centrada no paciente pode contribuir para manter a empatia ao longo da formação médica e, por isso, deve ser estimulada.
Uma revisão da literatura realizada por Fragkos28 mostrou que as intervenções de empatia em estudantes de Medicina são eficazes e que diferentes medidas têm sido adotadas para o estímulo precoce dessa habilidade. Exemplo disso se observa no estudo realizado por Schweller, Costa et al.29, no qual a aprendizagem por meio de consultas com pacientes simulados favoreceu a empatia de estudantes em diferentes anos do curso de Medicina29. Salientamos também a importância de estratégias de aprendizagem precoces para o desenvolvimento da empatia nos estudantes de Medicina, pois, como ressaltam Piumatti et al.27, alunos com menores níveis de empatia tendem a reduzir ainda mais seu escore com o passar do tempo. Assim, é possível individualizar intervenções pedagógicas integradas ao currículo para mudar esse cenário.
Na análise da avaliação da personalidade, por sua vez, observamos que a conscienciosidade é o traço predominante entre os cinco domínios avaliados nos dois sexos. O mesmo achado foi descrito por Lievens et al.30, entre outros autores, que destacam a conscienciosidade como um fator positivo no desempenho durante o curso de Medicina, sugerindo que os alunos com essa qualidade são mais propensos à proatividade, à autodisciplina e à menor tendência à desistência do curso. Outro estudo, realizado por Laher31, que avaliou a personalidade de acordo com o gênero, observou que os domínios relativos à abertura à experiência e à capacidade de socialização foram maiores nos homens, assim como descrito em nossos resultados. Esses atributos, como a abertura para experiência, demonstram uma maior flexibilidade, criatividade e também a capacidade de tomada de perspectiva diferente dos demais colegas, enquanto a socialização reflete uma maior capacidade de interação, tendo uma correlação positiva e significativa com a empatia3. A extroversão, como apontado anteriormente, está relacionada a uma maior capacidade de empatia, e, nos nossos achados, o escore desse domínio foi maior nas mulheres. Por fim, o neuroticismo também foi maior nas mulheres, e há a evidência de que o aumento dessa característica da personalidade ao longo do curso está associado a um melhor desempenho acadêmico32.
O conhecimento acerca da personalidade do estudante de Medicina vai além da capacidade de predizer a empatia e sua trajetória ao longo da graduação. Segundo Mullola et al.33, os traços de personalidade podem influenciar na carreira médica, desde a escolha da especialidade até a relação profissional com o paciente. Portanto, ao mesmo tempo que a formação para a prática médica com estratégias de ensino-aprendizagem adequadas pode favorecer o desenvolvimento da empatia, também poderá reforçar os traços de personalidade, permitindo aos alunos a escolha adequada da sua prática futura entre as diversas especialidades médicas.
Diante do exposto, destacamos dois pontos fortes do estudo: o primeiro foi a uniformidade da distribuição de sexo nas duas enquetes, sendo relevante para a análise dos resultados obtidos, já que a literatura demonstra haver uma diferença em aspectos da empatia no que se refere à comparação entre os sexos25. O segundo ponto foi a alta taxa de adesão, pois os discentes demonstraram, por meio da sua participação, o interesse no estudo do perfil do estudante de Medicina da instituição. Como limitação, temos um estudo transversal realizado por dois grupos em momentos distintos, em uma única instituição, e a utilização de escalas autorreferidas, que podem não refletir a empatia na relação médico-paciente. A amostra de 164 estudantes pode não ser representativa da população geral de estudantes de Medicina, necessitando de grupos multicêntricos.
Por fim, faz-se fundamental investigar como a relação entre personalidade e empatia se comporta no tempo, sobretudo se a capacidade de empatia se modifica ao longo dos anos de formação médica e qual a relação desta com a modulação nos traços de personalidade34, assim como outras características que possam interferir na empatia, como ambiente de aprendizagem e qualidade de vida35. Assim, a análise da evolução longitudinal desses grupos poderá avaliar potenciais preditores de empatia ao longo do curso de Medicina.
CONCLUSÃO
Os resultados deste estudo demonstram que, entre os cinco domínios de personalidade analisados, a conscienciosidade predomina tanto nos alunos do sexo masculino como no feminino; esse traço de personalidade se relaciona à autodisciplina e à proatividade. Além do mais, observou-se diferença significativa nos domínios denominados socialização e abertura para experiência, os quais foram mais expressivos nos homens, comparativamente às mulheres. Já os domínios de neuroticismo e extroversão predominaram nas mulheres com relação aos homens, mas a diferença não alcançou significância estatística. Os escores de empatia, por sua vez, foram significativamente maiores em mulheres, condizente com os achados da literatura. Há evidências da relação entre personalidade e empatia, e medidas de intervenção que reforcem traços positivamente associados a empatia podem ser realizadas ao longo da formação médica. Estudos complementares com desenho longitudinal permitirão elucidar as inter-relações entre personalidade e empatia, assim como acompanhar a potencial modulação entre elas na prática clínica e também analisar outros fatores que afetem a empatia, além da personalidade.